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Perspectiva

versão impressa ISSN 0102-5473versão On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.36 no.3 Florianopolis jul./set 2018  Epub 30-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2018v36n3p992 

Artigos

Infância e limiar em Walter Benjamin

Infancy and threshold in Walter Benjamin

Infancia y umbral en Walter Benjamin

Eduardo Oliveira Sanches1 
http://orcid.org/0000-0001-9810-5764

Divino José da Silva2 
http://orcid.org/0000-0003-0000-1268

1Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP

2Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP


Resumo

Este estudo de natureza teórica busca evidenciar aspectos da infância presentes na obra de Benjamin, a partir da ideia de limiar. Encontramo-nos com ela em lugares do pensamento onde o filósofo se detém sobre a importância das zonas limiares e dos locais de passagens para uma experiência com o moderno. Tais lugares do pensamento sinalizam e indicam marcas que contribuem para conferir à infância sua modernidade, bem como abrem caminho para pensar os sentidos da infância no tempo presente. Nossa hipótese é de que a ideia de infância é atravessada por núcleos conceituais e imagéticos importantes na obra do autor, como força mobilizadora, tanto desses conceitos como da ideia de infância. Foram encontrados sinais de um pensamento que brinca com as noções constituintes da imagem da infância da qual fala o autor. É justamente esse "brincar filosófico" o que aproxima a noção benjaminiana de infância de ideias densas e conceitos importantes, no contexto de suas reflexões, como a noção de limiar.

Palavras-chave:  Infância; Limiar; Desvio; Modernidade; Walter Benjamin

Abstract

This theoretical study seeks to highlight aspects of childhood, present in the work of Benjamin, from the idea of threshold. We meet with her in places of thought where the philosopher pauses, with acuity, about the importance of threshold zones and places of passage for an experience with the modern. Such places of thought signal and indicate marks that contribute to give infancy its modernity, as well as, way to think the senses of childhood in the present time. Based on this premise, our hypothesis is that the idea of childhood is crossed by important conceptual and imaginary nuclei in the author's work as a mobilizing force, both of these concepts and of the idea of childhood. We believe, therefore, that we have found signs of a spark of thought that plays with the notions that form the image of childhood in which the author speaks. And it is precisely this "philosophical play" which brings the notion of childhood from which Benjamin treats of dense ideas and concepts important in his reflections as the notion of threshold.

Keywords:  Childhood; Threshold; Detour; Modernity; Walter Benjamin

Resumen

Este estudio de naturaleza teórica procura evidenciar aspectos de la infancia presentes en la obra de Walter Benjamin, a partir de la idea del umbral. Tal idea la hallamos en lugares del pensamiento, en que el filósofo analiza la importancia sobre de las zonas umbrales y de los locales de pasajes para una experiencia con lo moderno. Dichos lugares del pensamiento señalan e indican marcas que contribuyen para conferir a la infancia su modernidad, como también abren el camino para pensar en los sentidos de la infancia en el tiempo presente. Nuestra hipótesis es que la idea de infancia es atravesada por núcleos conceptuales e imágenes importantes en la obra del autor, como una fuerza que moviliza, tanto estos conceptos como la idea de infancia. Fueron encontradas señales de un pensamiento que juega con las nociones constituyentes de imagen e infancia de las cuales habla el autor. Es justamente ese “juego filosófico” lo que aproxima a la noción benjaminiana de la infancia de ideas densas y conceptos importantes, en el contexto de sus reflexiones, como la noción de umbral.

Palabras clave:  Infancia; Umbral; Desvío; Modernidad; Walter Benjamin

Introdução

As reflexões que compõem este estudo buscam evidenciar aspectos da infância, presentes na obra de Benjamin, a partir da ideia de limiar. Encontramo-nos com ela em lugares do pensamento onde o filósofo se detém, com acuidade, sobre a importância das zonas limiares e dos locais de passagens para uma experiência com o moderno. Tais lugares do pensamento sinalizam e indicam marcas as quais contribuem para conferirmos à infância sua modernidade, bem como abrem caminho para pensar os sentidos da infância no tempo presente. Com base nessa premissa, nossa hipótese é de que a ideia de infância é atravessada por núcleos conceituais e imagéticos importantes na obra do autor, como força mobilizadora, tanto desses conceitos como da ideia de infância. Nessa vertente, se, por um lado, a imagem alegórica da criança emerge, com frequência, como força cuja sensibilidade tem o potencial de romper com a perspectiva administrada do tempo vazio e homogêneo, próprio da modernidade, por outro, abordar essa força profanadora ilumina a própria noção de infância, no contexto da obra do autor. Acreditamos, assim, termos encontrado sinais de uma centelha de pensamento que brinca com as noções que formam a imagem da infância da qual fala o autor, e é justamente esse "brincar filosófico" o que aproxima a noção de infância da qual trata Benjamin de ideias densas e conceitos importantes, em suas reflexões.

Em um pensamento estruturado e mobilizado por meio de desvios, como é o caso da produção de Walter Benjamin, “é sempre mais significativa à deambulação por essas zonas de abertura do que a passagem da linha de fronteira a qual delimita problemas, com a pretensão de chegar a sua solução e fixação” (BARRENTO, 2013, p. 9). Nessa vertente, temos a pretensão de iluminar a ideia de infância, a partir da luminosidade refratada de ensaios com perspectivas da noção de limiar. Essa noção encontra seu par dialético na noção de fronteira: se o limiar amplia as possibilidades do aprendizado, da ação, das experiências, pois nessa noção está contida a ideia de abertura frente à realidade, a ideia de fronteira evidencia a (de)limitação do campo da ação.

Pensar a infância sob esse crivo ilumina, de modo profano (AGAMBEM, 2007), a própria imagem da criança, em sua infância moderna. A criança, o sujeito da infância, é um ser limiar, porque ele habita o espaço entre a ausência da fala e sua potencialidade comunicativa, na forma articulada do ser falante. Para o sujeito dessa infância, existe uma espécie de brinquedo também limiar, por meio do qual os restos da história ganham novo e messiânico sentido, na forma de instrumentos do brincar (BENJAMIN, 2002). Estes são formados por todo tipo de coisa possível de ser manipulada pela criança, em seu brincar, e ganham a mais alta condecoração e honraria, ao se transformarem em brinquedo, no lúdico mundo das crianças. Nele, vassoura transforma-se em cavalo, a mesa da cozinha em casinha de boneca e a rolha do vinho em peixe, na pescaria realizada no balde. Aliás, esse mundo imaginativo, quase surreal, é, igualmente, um grande limiar constituído entre a materialidade do mundo concreto e a subjetividade do mundo interno da criança. Um lugar de trocas, portanto, onde a criança exercita sua criatividade e capacidade expressiva, incorpora o mundo em sua complexidade, enquanto deixa suas marcas rupestres, aquelas mesmas que nos acompanham até a atualidade, como um símbolo da origem de nossa humanidade.

A noção de limiar nos ajuda a compreender que, através do modo como a criança participa do mundo, faz emergir um índice filosófico capaz de aproximar sua sensibilidade a de personagens, tais como o flâneur ou o colecionador, segundo os apresenta Benjamin, em sua obra. O desvio é uma das grandes marcas que integra a constelação de conceitos que delimitam a ideia de limiar como método, segundo Barrento (2013), porém, pode ser também uma forma de ser e estar no mundo. Nessa vertente, há, para a sensibilidade da criança, a perspectiva sempre eminente do desvio como princípio de recusa a um discurso linear. Isso a leva para o caminho indireto na relação com as coisas, aquele mediado pela possibilidade de observar, parar e tomar fôlego, sempre que necessário, recuar e avançar em relação à realidade com a qual se pretende alguma relação. A imagem fisiognômica construída por Benjamin, para descrever a criança contribui para fortalecer também a ideia de uma infância do homem.

Prenhe de um futuro desconhecido, a infância também é atravessada por uma temporalidade da espera e da paciência, que tem no limiar seu espaço privilegiado [sic]. A infância ainda sabe fruir de um tempo sem determinação [tal como o flâneur], de um tempo que não possui um fim prefixado [assim como o colecionador], um tempo de espera de um desconhecido que não pode ser antecipado por uma decisão precipitada, mesmo quando os adultos tentam encaixar a criança numa estratégia de previsibilidade da vida. Assim o presente é pleno da intensidade da descoberta e, simultaneamente, pleno de angústias e de espera com relação ao futuro, como se o tempo da espera (Warten) redobrasse, por sua necessária paciência, o fervor do vivido, que não voltará mais com essa abertura (GAGNEBIN, 2014, p. 42).

A criança como uma espécie de flâneur aprendiz ou como colecionadora dos restos da história faz parte de realidades observáveis. Quem, em sua infância pessoal, nunca recebeu um puxão de orelhas, mesmo simbólico, por se desviar dos conselhos dos mais velhos? Ainda assim, somos tentados a experimentar dos prazeres e dores consequentes do desejo que nos moveu ao desvio e, às vezes, todas as catastróficas profecias acontecem e um braço se quebra ou um brinquedo se perde. Essa ousadia e abertura para os agoras, descritas por Benjamin como pertencentes à sensibilidade da criança e afirmadas na citação, descortinam a própria imagem da infância do homem, como uma forma de sensibilidade alternativa para o endurecimento sensível causado pelos choques do modelo social moderno.

Sobre os limiares da infância

Ritos de passagem – assim se denominam no folclore as cerimônias ligadas à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade, etc. Na vida moderna, estas transições tornaram-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em experiências limiares. O adormecer talvez seja a única delas que nos restou. (E, com isso, também o despertar.) E, finalmente [...] O limiar [Schwelle] deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira [Grenze]. O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra schwellen (inchar, intumescer), e a etimologia não deve negligenciar estes significados. Por outro lado, é necessário determinar o contexto tectônico e cerimonial imediato que deu à palavra o seu significado.

Walter Benjamin

A ideia de limiar (BENJAMIN, 2007; BARRENTO, 2012; 2013; GAGNEBIN, 2014) nos auxiliará no exercício de pensar e explorar a noção de infância, nos ensaios de Walter Benjamin dedicados a essa temática. A ideia de limiar como uma questão metodológica na abordagem filosófica benjaminiana é fundamental para estabelecer nossa via de contato com o que chamaremos de as infâncias de Benjamin (SANCHES, 2017). Nossa primeira hipótese é de que, para esse autor, infância e experiência estão conectadas de modo profundo e é possível compreender essa relação por meio da ideia de limiar. A segunda é que essa infância se ampara ao menos em dois eixos os quais nos permitem tomá-la em sua forma plural: como alegoria ou de modo literal. Em função da ideia de limiar, consideramos que esses caminhos não se apresentam de forma hierarquizada, estando, por essa razão, vinculados entre si, de sorte a estabelecer uma reciprocidade de incidência, no que diz respeito ao índice e profundidade das reflexões. Ou seja, se entendermos que a noção de infância que se concebe a partir do século XIX faz parte do conjunto de coisas as quais denominamos modernas, pensá-la em si mesma – enquanto infância da e para a criança – ou de modo alegórico – como uma imagem de pensamento –, não obedece a uma hierarquia caracterizada por distinguir a importância de um sobre o outro, mas são complementares, pois um explica e amplia a percepção e compreensão sobre o outro. Nesse contexto, como experiência e infância aparecem vinculadas ao sentido de limiar na obra do autor?

Pelo seu pensamento imagético (e não apenas conceptual), e pela sua determinação em evitar o que chamava, em carta a Hofmannsthal de 13 de janeiro de 1924, ‘a barbárie da linguagem das fórmulas’, e a que contrapõe a necessidade de libertar as palavras da “carapaça dos conceitos” pela ‘força magnética do pensar’ [...], e isto significa usar um método que é mais imagético do que conceptual, que não separa o pensamento da forma do pensamento e, sobretudo, que escolhe como objecto e lugar privilegiado desse pensamento, não o espaço interior e já delimitado dos saberes, mas precisamente o limiar, a fronteira, o lugar-entre (BARRENTO, 2012, p. 42).

Para Barrento (2012; 2013), uma das questões constitutivas da obra benjaminiana é justamente a escolha de construir reflexões a partir de zonas limiares e, com isso, recompor os sentidos atribuídos aos objetos e conceitos, de maneira a conciliar teorias aparentemente inconciliáveis. Como exemplo dessa determinação reflexiva, a obra do pensador é repleta de noções limiares, tais como as passagens, as fantasmagorias, o colecionador, os restos e rastros da história, o novo bárbaro, a experiência, a infância. Em todos os exemplos, a ideia de limiar como método

[...] assenta muitas vezes apenas num ligeiro, mas decisivo, desvio do olhar que permite ver o objecto a outra luz – quer se trate de um objecto sensível (artístico ou literário) ou filosófico, abstracto: por exemplo, uma filosofia da História lida a contrapelo das visões teleológicas ou cíclicas do séc. XIX (Hegel, Nietzsche), e cruzando pontos de vista messiânicos (mas não escatológicos) e materialistas (mas contaminados pela teologia, e não ortodoxos). É o que acontece em textos-chave da leitura da História por Benjamin, particularmente as Teses sobre o conceito da História e o Fragmento teológico-político (BARRENTO, 2012, p. 44).

Voltaremos a essas questões mais adiante, pois nossa intenção, neste momento, é apenas apresentar os eixos de suporte para o desenvolvimento deste estudo. Gostaríamos de fazer um desvio, a fim de estabelecer certos contornos para o par dialético limiar e fronteira. Ao tomarmos como ponto de partida o excerto “Ritos de passagem”, o qual compõe a obra Passagens e que abre este estudo como epígrafe, verificamos que a primeira atitude relevante seria diferenciarmos limiar de fronteira, para, então, compreendermos como Benjamin pensa a infância como um dos muitos “lugares-do-entre” (BARRENTO, 2012, p. 41), por meio dos quais visa a estabelecer análises sobre o moderno.

De acordo com o filósofo, a noção de limiar está associada a uma grande área ou zona, na qual é possível transitar entre situações, muitas até consideradas opostas ou antagônicas. Portanto, deve ser diferenciado do termo fronteira, que seria a demarcação precisa entre os opostos, inviabilizando o trânsito. A fronteira emerge como a imagem daquilo que mantém ou contém algo, evidenciando a necessidade de demarcar o limite, através de contornos bem definidos, como os muros de uma casa demarcam a fronteira entre o dentro e o fora da propriedade. O quintal e a calçada da rua seriam uma imagem de região limiar, pois, diferentemente da fronteira, que delimita, o limiar tende a ampliar as possibilidades de ação e experiência, com um espaço maior para relações, viabilizando um registro mais abrangente e dinâmico sobre o vivido. Por conseguinte, no contexto que nos interessa neste estudo, o que seria limiar, para Benjamin?

O limiar é, assim, uma marca que atrai pelo que promete (em Walter Benjamin “incita a uma reflexão sobre o secreto”), diferentemente da fronteira, que é um lugar que pode assustar pelo que esconde, o desconhecido do outro lado; o limiar é uma linha (ampla, mais uma “zona”, como diz Benjamin) de passagens múltiplas, a fronteira é uma linha única de barragem, num caso mais traço de união, no outro de separação; enquanto a fronteira é muitas vezes apenas um lugar burocrático, o limiar é um lugar onde fervilha a imaginação (e na obra de Benjamin, o livro de memórias Infância Berlinense: 1900 é disso o melhor exemplo, cheio de figuras que são guardiões dos limiares, de portas, portões, varandas, campainhas, corredores que constituem objectos privilegiados do fascínio da criança – e do filósofo) (BARRENTO, 2013, p. 122-123).

Segundo Gagnebin (2014. p. 39), Benjamin ainda chama a atenção para as experiências limiares que estão associadas a períodos de transformação. “Ainda que sejam marginais com relação aos estados mais longos, tais períodos são essenciais, porque possibilitam atravessar um limiar, deixar um território estável e penetrar num outro”. Conforme a autora, para o pensador, “outro território, ao lado da literatura resguarda ainda experiências de limiar: o território da infância”. Como exemplo, encontramos, nos escritos sobre infância, inúmeras descrições sobre passagens limiares de uma infância vivida em Berlim, descritas por meio das impressões sobre as cores, os jardins, os feriados, as ruas e as varandas da cidade (BENJAMIN, 2013). Em outra obra, temos a descrição dos brinquedos associados à noção de utensílios do brincar, a brincadeira comparada ao limiar que o ato de narrar, no contexto da tradição, provoca enquanto local privilegiado da experiência (BENJAMIN 2002). Ou, ainda, através das conferências e teatros radiofônicos, narra-se a história a contrapelo, para as crianças, entre os anos de 1920 e 1030 (BENJAMIN, 2015). Nessas radioconferências, Benjamin analisa a história pulsante dos brinquedos e livros infantis, transforma-se em narrador e leva adiante sua ideia de formação para as crianças, via ondas de rádio.

Esse mundo, pensado e narrado pelo autor, é o ambiente ao qual nos reportaremos, visando às infâncias de Benjamin. A imagem das zonas limiares permite pensar um espaço de construção cultural, no qual o mundo adulto e o universo infantil se cruzem. Nesse espaço, residem as relações necessárias para que uma ideia de cultura da criança (BOLLE, 1984) seja explorada como produção limiar entre o que é infantil e não infantil. Apesar de a criança ter certa autonomia de produção, o que se entende pela cultura da criança está sempre atrelado, de algum modo, ao mundo do adulto e ao ambiente e momento sócio-histórico do qual emerge.

Nesse sentido, forma-se um campo de ação limiar que se estabelece na relação entre o adulto e a criança e que favorece o trânsito entre a forma de ser e estar no mundo dessas partes. Sem esse limiar para o trânsito e a troca, provavelmente, seria improvável qualquer espécie de mediação cultural entre essas duas formas de sensibilidade e racionalidade tão distintas. Em tal contexto, o autor valoriza a capacidade da criança em resistir às obrigações que lhes são outorgadas, a partir do olhar do adulto sobre a concepção de infância. Na visão benjaminiana, essa capacidade se efetiva por meio das peculiaridades da existência, da sensibilidade e dos modos de ser das crianças. Esta produz um mundo à parte do mundo adulto, um pequeno inserido no grande, porque,

[...] assim como o mundo da percepção infantil está impregnado em toda parte pelos vestígios da geração mais velha [...] e embora reste a ela uma certa liberdade em aceitar ou recusar as coisas, não pouco dos mais antigos brinquedos (bola, arco, roda de pernas, pipa) terão sido de certa forma impostos à criança como objetos de culto, os quais só mais tarde, e certamente graças à força da imaginação infantil, transformaram-se em brinquedos (BENJAMIN, 2002, p. 96).

Na zona limiar, há espaço para a ação da criança, e esse fazer fortalece a ânima curiosa, transformadora e transviada dos pequenos, que, mesmo a contragosto do adulto, conseguem transformar objetos de culto em profanos. A criança benjaminiana tem esse poder ancestral profanador de ser protagonista, na contramão do processo de alienação. Elas, exclusivamente elas, têm a capacidade de corrigir de maneira realmente eficiente as demandas de um brinquedo, quando necessário. Elas o fazem ao brincar que, aliás, pode ser considerada uma zona limiar entre a fantasia e a realidade. Nessa ação, “mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa eficiente camarada proletária na comuna lúdica das crianças”, alega Benjamin (2002, p. 87). Elas buscam se afirmar naquilo que é posto fora pelo adulto, e esse mundo de coisas, de certo modo, se “volta exatamente para elas [as crianças], e somente para elas” (BENJAMIN, 2002, p. 58). Nesse mundo diminuto das crianças, onde elas “brincam, existe sempre um segredo enterrado” (BENJAMIN, 2002, p. 149), assim como nos parreirais descritos no ensaio “O narrador”, as crianças escavam nos restos e naquilo que para o adulto se tornou inútil ou obsoleto e encontram, nessa forma de trabalho lúdico profano, a felicidade.

É no limiar das coisas que a criança realiza o ato fundamental do seu protagonismo. Esses limiares muitas vezes são registrados por Benjamin como resultados da imaginação e da criação infantil, ao interagir com o mundo ao seu redor. Nele, a criança transubstancia-se de cortina em fantasma, em um abrir e fechar de olhos; “e atrás de uma porta ela própria é porta” (BENJAMIN, 2013, p. 103); transforma-se em um totem, ao se acocorar embaixo da mesa, grande templo e um dos altares desse deus corcunda; fantasia-se de todas as cores dos lápis e canetinhas como quem se veste para um baile; e, “ao elaborar histórias, crianças são cenógrafos que não se deixam censurar pelos ‘sentidos’” (BENJAMIN, 2002, p. 70). Desse modo, “a criança descobre semelhanças entre si e o mundo, e este mundo não é para ela inanimado, mas animado” (GEBAUER; WULF, 2004, p. 144). O corpo se torna um instrumento de mediação e tradução do mundo sensível e do não sensível e, por meio de múltiplas linguagens, o corpo se comunica livre e espontaneamente com o mundo, atualizando, constantemente, enquanto experiência, significados culturais para a criança. Por outro lado, a corporeidade também é o meio pelo qual ela demonstra, simboliza, amplifica a forma peculiar de como tais significados culturais, ao serem atualizados, reverberam em outros elementos da cultura, a partir das produções da criança.

É evidente que, no brincar infantil, as crianças reproduzem muitos aspectos que elas vivenciaram, no contexto sócio-histórico em que se inserem, e os conteúdos por elas aprendidos do universo adulto. No entanto, a forma como o vivido é representado no ato do brincar nunca reproduz exata e fielmente todas as representações e elementos do vivido por elas. Nesse sentido, quando brincam, as crianças reelaboram, de modo criativo, tais impressões e as reorganizam numa realidade nova que responde a suas aspirações, incorporando os elementos enquanto experiência.

Em Benjamin (1994, p. 108), essa percepção entre reprodução e ação infantil está relacionada ao conceito de mimese; “a questão importante, contudo, é saber qual a utilidade para a criança desse adestramento da atitude mimética”. Para a criança, suas experiências vão sendo constituídas, ampliadas e ressignificadas por inúmeros processos miméticos (GRIGOROWITSCHS, 2010, 2011). À medida que ela se torna casa, macaco, motorista ou balão, ela experimenta possibilidades, limites e transgressões da própria corporeidade. A mimese apresenta, nesse sentido, “papel central nas relações de mundo [...] é um pré-requisito imprescindível da cultura, do social e da educação e perpassa muitas áreas do agir, do interagir e do produzir humanos” (GEBAUER, WULF, 2004, p. 41). Benjamin, segundo Gagnebin (1993), evidencia dois momentos distintos como sendo primordiais para compreender a “atividade mimética especialmente humana: não apenas reconhecer, mas produzir semelhanças. Essa produção mimética caracteriza a maior parte dos jogos, das brincadeiras infantis” (p. 80). A ação mimética permite à criança manipular variáveis importantes do próprio aprendizado, como a temporalidade, o ritmo, a repetição, o espaço, por meio de recursos lúdicos. Portanto, a criança não brinca somente de atividades consideradas humanas, como ser professor ou enfermeiro, ela brinca de ser cavalo, pássaro, carro, avião, visto que “a atividade mimética sempre é uma mediação simbólica, ela nunca se reduz a uma imitação” (GAGNEBIN, 1993, p. 80). Tal processo de exploração de si e do mundo inaugura e reconfigura cargas de significação no universo infantil, pois

[...] o pensamento da criança ainda na sua essência plástica é determinado através destas primeiras impressões, que mais tarde irão pré-formar as possibilidades de percepção e de vivência. A sensação e o pensamento do adulto são marcados pelas coisas, imagens e alegorias codificadas simbolicamente e mergulhadas no interior da criança. Nestas primeiras experiências de tempo e espaço, cultura e história, enraíza-se a vida da criança (GEBAUER; WULF, 2004, p. 142).

A mimese, no contexto de nosso estudo, deve ser concebida como um processo que também se caracteriza como desvio, como limiar. No processo mimético, a coisa nunca é ela, apenas se assemelha. O caminho nunca é em linha reta, e sim por atalhos, porque, na mimese, “as semelhanças não existem em si, imutáveis e eternas, mas são descobertas e inventadas pelo conhecimento humano de maneiras diferentes, de acordo com as épocas” (GAGNEBIN, 1993, p. 80). Essa não linearidade e estado quase anárquico das possibilidades da mimese fornecem às vivências infantis situações de resistência e autonomia frente à vida administrada. Essa perspectiva revitalizadora da ação mimética que emerge do mundo sensorial e reverbera em dimensão estética é algo que se evidencia em muitos dos ensaios de “Infância Berlinense: 1900”.

Em tais ensaios, as experiências da infância em Berlim contêm inúmeras imagens de absorção mimética das galerias, parques, ruas, bosques, praças, casas, alamedas, cômodos. A interpretação que Benjamin-criança tinha da realidade e o modo mágico como decifrar o mundo seriam articulados por ele somente anos mais tarde. Assim, surgem lembranças, passagens, até então secretas, que, no decorrer dos ensaios – como num movimento de mimese de si mesmo, como quem usa a infância como objeto de similitudes para e no adulto –, têm suas lacunas preenchidas por novos conteúdos de sentido. É, portanto, a partir da noção de memória que se relacionam infância, estética e experiência, para o pensador. Benjamin chama a atenção para a dimensão política de suas reflexões e mostra, com base nas imagens que emergem de suas memórias, traços de uma cultura da criança com um forte sentido ético-estético presente nelas (SANCHES, 2017).

Entre as imagens que Benjamin colecionava da infância, o corcunda é uma personagem que ele escolhe explorar. Recorrente em fábulas, contos, canções e poemas, de acordo com o autor, o significado dessa personagem extrapola os limites dados nas páginas dos livros infantis. No ensaio “O anãozinho corcunda”, o pensador utiliza a personagem como um símbolo das relações de aproximação e distanciamento de si que ocorrem no processo mimético, tal como aparece de modo textual:

Eles provavelmente sabem mais coisas desse corcunda. De mim não se aproximou. Só hoje sei como se chamava. Foi minha mãe quem me disse. “Já chegou o desastrado!”, dizia ela quando eu quebrava alguma coisa ou caía. Agora entendo o que ela queria dizer. Referia-se ao anãozinho corcunda que tinha olhado para mim (BENJAMIN, 2013, p. 114).

É característica da ação mimética a necessidade do esvaziar-se parcial e momentaneamente de si, a fim de que a outra substância possa fazer parte de quem realiza o exercício da mimese. Dessa maneira, onde o corcundinha se encontrava, nunca estava o pequeno Benjamin - “Onde ele aparecesse, quem ficava a perder era eu. E o que eu perdia eram as coisas, até que no decorrer do ano o jardim se transformava em um jardinzinho, meu quarto num quartinho e o banco em um banquinho” (BENJAMIN, 2013, p. 114). Essa experiência acontece em um duplo sentido: primeiramente, ela é sempre o olhar e a reflexão do adulto que, ao recordar, reconstitui as lacunas, com o auxílio do prisma do presente, em busca das trilhas ainda não percorridas. E, assim, as coisas tornam-se menores, à medida que Benjamin cresce e envelhece e se afasta da idade e dos contornos físicos da criança que um dia foi, para se aproximar dela, no que ficou nele enquanto primeiros registros, enquanto memória. “Nesse sentido, a lembrança da infância não é idealização, mas, sim, realização do possível esquecido ou recalcado. A experiência da infância é a experiência daquilo que poderia ter sido diferente, isto é, releitura crítica do presente da vida adulta” (GAGNEBIN, 1997, p. 181). E um segundo sentido destaca-se: a infância em si, como experiência de uma criança burguesa no limiar entre os séculos XIX e XX, no qual se encontram fragmentos ainda coloridos da memória daquele cuja infância não fora roubada pelo mundo do trabalho.

Sem perder o prumo, a concepção de limiar acompanha também a noção de brinquedo, para o autor. Afirma ele, ao descrever uma exposição de brinquedos:

Ela não reúne apenas brinquedos no sentido estrito do termo, mas também muitas coisas que estariam no limiar desse campo. Pois em que outro lugar poderiam juntar-se jogos de salão tão bonitos, também blocos de construção, pirâmides natalinas, câmaras ópticas, para não mencionar ainda livros, materiais ilustrados e lâminas para a aula visual? (BENJAMIN, 2002, p. 81).

Uma cultura construída no limiar – a da criança no limiar da cultura adulta – só se sustenta, se seus utensílios, se os recursos pelos quais ela se constitui e se efetiva, também estiverem nesse campo. A imagem que o autor forma sobre o brinquedo é a de que qualquer coisa sobre a qual a imaginação infantil lança olhares para criar e as mãos para manipular podem compreender a noção ampla de brinquedo. Ou seja, a sensibilidade infantil permite que ela valorize o que tem à mão, como meio para dar vazão ao imaginado. Dessa forma, o pensador valoriza o modo de ser da criança, a sensibilidade frente à vida, à abertura ao acontecimento, ao inusitado. Em contrapartida, faz críticas severas aos meios e mecanismos de controle da vida infantil criadas pela visão burguesa, que se expressa, parcialmente, no recurso que o adulto cria para a criança, visando ao brincar infantil, tais como brinquedos pedagógicos, bonecas realistas e todo tipo de parafernália industrial, supostamente produzida para atender a demandas e necessidades da criança, em seu brincar.

Além dos brinquedos, podemos pensar também a cidade como um campo no qual a imaginação da criança se perde, pertencendo a uma dessas formas de registro, no qual o conceito limiar reside: a cidade como um labirinto, como um local-brinquedo. Portanto, repletos de paisagens, passagens, esconderijos, varandas, praças, transeuntes, personagens com as quais a criança também brinca e a partir dos quais amplia seus processos de significação da vida, bem como a imagem que dela faz, aprendendo como ser um habitante da urbis.

Em um quadro impregnado de experiências limiares, as transformações da sensorialidade são evidentes, e Benjamin (2002, p. 148) chama a atenção para tal “sensibilidade moderna”, educada a reconhecer, prontamente, os apelos mercantis, cujo treinamento tem início na mais tenra idade. Nesse sentido, para a sensibilidade da criança do século XX, o autor desenvolve narrativas radiofônicas. Contando com ouvidos sensíveis às ondas do rádio, o autor escreve e faz a locução para crianças, abordando várias temáticas, como cultura, literatura, política, história, economia, entre outros. “Essas palestras radiofônicas para crianças dão uma nova dimensão à fisionomia do escritor que é Benjamin, revelando um pedagogo tão discreto quanto engenhoso que, assumindo o lugar de narrador, leva adiante o Iluminismo” (TIEDEMANN, 2015, p. 7). A esse respeito, Walter Benjamin tem cerca de 90 palestras radiofônicas para crianças, das quais ele próprio fez a locução de 60, no programa de rádio chamado “A hora da criança”, entre 1927 e 1932.

Ele dizia às crianças coisas como: “Abram seus ouvidos, vocês já podem ouvir o que não se consegue aprender com facilidade nas aulas de alemão, de geografia ou de moral e cívica” (BENJAMIN, 2015, p. 87). E, assim, a cidade de Berlim era o grande palco das narrativas. A conexão entre acontecimentos e locais, evidenciados na narração, fazia das palestras verdadeiras viagens pelo mundo. Com leveza na forma e profundidade no conteúdo, o pensador falava de Berlim na relação viva com a história, com a economia, com a urbanização, a industrialização. Ele descrevia a cidade pelas fisionomias da urbanização moderna e, dessa forma, guiava as crianças por aventuras no ambiente da urbis, como quem ensina a arte de se perder na “selva de pedra”. Por meio de temas de interesse da criança, como os brinquedos e jogos, ou ainda os parques e fábricas, o autor conta a história da Berlim moderna e os modos de globalização do mundo. “A contrapelo”, como ele se propôs ler a história, mostrava que as transformações tiveram seu peso e seu preço. Ao contar sobre os brinquedos, por exemplo, Benjamin se mantém fiel ao método e conta a história, inicialmente, dos brinquedos vencidos, aqueles que foram engolidos pelo processo de modernização. A partir desses, o autor chega à concepção de brinquedos e jogos modernos, enfatizando a dimensão arcaica e artesanal que veio antes do processo industrial da confecção dos brinquedos. Critica ainda o excesso de pedagogização dos jogos e questiona com as crianças a fidelidade desses jogos ao universo lúdico infantil, chamando-os de “jogos ocupacionais” (BENJAMIN, 2015, p. 69).

Como se vê, no limiar entre o fim da República de Weimar e o estabelecimento do III Reich, Benjamin enxerga em programas de rádio uma possibilidade de despertar a curiosidade na criança, estabelecendo uma relação como a experiência/sabedoria do ancião narrador, que, no leito de morte, conta aos filhos o segredo de um tesouro escondido. Esse tesouro é composto pelos cantos e recantos de Berlim, do qual Benjamin se torna um dos grandes fisionomistas, pois faz dela o rosto da grande personagem de suas narrativas, mostrando, a partir dela, a face da modernidade. Ora por intermédio de charadas, ora como um viajante, relata o que viu pela vida. Benjamin, a seu modo, colabora para uma tentativa de revitalização da ideia da Bildung, mantendo vivos espaços limiares para a experiência, em meio às dificuldades sociais vividas entre a Primeira e a Segunda Guerras, na República de Weimar, na Alemanha do início do século XX.

Destarte, as narrativas contribuíram para a criação de mais um limiar, o da formação crítica por meio do rádio, tecnologia que existia apenas há três anos em Berlin. Tal como ele descreve no ensaio “O telefone”, o rádio também era bastante sedutor e atraente para as crianças, como meio para algum fim comunicacional. Assim, afirma Benjamin (2015, p. 65-66):

Não me resta nada a fazer, senão dizer tranquilamente o que penso de verdade: Quanto mais uma pessoa entende de um assunto e quanto mais ela passa a saber da quantidade de coisas belas que existem de uma determinada categoria – sejam elas flores, livros, roupas ou brinquedos -, tanto maior será sempre a sua alegria em ver e saber mais sobre elas, e tanto menos ela se preocupará em possuir, comprar ou dar de presente estas mesmas coisas.

Em função dessa prerrogativa, o autor cria extensos espaços imaginativos em tais palestras, possibilitando à criança a ampliação do mundo em função de provocações filosóficas sobre o ambiente histórico moderno. A criança é observada como ser em potencial e não como o ser da falta. Já em 1928, afirmava o autor sobre essa condição que identifica a infância: “demorou muito tempo até que se desse conta que as crianças não são homens ou mulheres em dimensões reduzidas” (BENJAMIN, 2002, p. 86). Essa ideia de emancipação da criança em face do exclusivismo da visão do adulto sobre a infância demorou a acontecer, no entanto, Benjamin percebia os sintomas sociais dessa emancipação e provocava a mente infantil, em suas palestras radiofônicas. Dizia ele que, se o adulto tem programas especializados, “por que não se pode fazer esses programas especializados para a criança também? Por exemplo, sobre brinquedos” (BENJAMIN, 2015, p. 61).

Considerações finais

A cultura da criança, em Benjamin, é um ambiente que emerge dessas zonas limiares da existência, na qual se dá a relação entre crianças e adultos, sendo reafirmada pelo autor, através da valorização que ele faz sobre o que é considerado próprio da infância, no contexto da modernidade. Nesse caso, um profundo sentido para o cultivo de si, na criança benjaminiana, ocorre por meio da liberdade expressa no brincar. Em tal espaço, a criança tem lançadas as possibilidades de ação necessárias para sua autonomia ser desenvolvida.

O pensador destaca o poder profanador desse fazer, que consegue restituir ao uso comum os objetos antes consagrados e separados das possibilidades de manipulação cotidiana. As crianças transformam tais objetos, antes de culto, em brinquedos, criando, assim, novas formas pelo e para o brincar. Ele ainda enfatiza a importância da ausência inicial de fala articulada como fator de abertura e de precedente para quem ainda se espanta frente ao conhecimento. Essa criança é insolente, como afirma o autor, bem como poderosa. Cria para si um mundo à imagem e semelhança do mundo adulto, corrigindo, obviamente, toda forma de depreciação ou desvio que o brinquedo possa, eventualmente e por qualquer contingência, ter sofrido. Ele torna evidente, em seus contos radiofônicos, que, apesar de as crianças terem características que as conectam sob o título infância, no contexto da luta de classes, as infâncias burguesas ou proletárias são muitos diferentes.

Na visão de Gagnebin (1994), a reconstrução da experiência teria como pressupostos uma reordenação ou a constituição de uma nova narratividade fundada em formas sociais de organização comunitária. Tal assertiva se funda sobre o princípio de refazer a dimensão afetiva de uma experiência coletiva (Erfahrung), a começar pelas experiências vividas de modo isolado (Erlebnis). Há, no ambiente cultural formado pela criança, a abertura ao mundo tão necessária para contribuir para a reconstrução dessa experiência comunitária, de senso coletivo e coletivizante das produções culturais. O que Benjamin faz, ao valorizar a infância enquanto tal, é identificar esse movimento de abertura na estrutura particular do fazer infantil. Se, nas narrativas tradicionais, o inacabamento é essencial, pois cada história pede outra história e ainda está aberta à reinterpretação, na brincadeira, a repetição e o inacabamento são também peças-chave para que ela ocorra. Além de evidenciar a produção infantil, o autor cria uma grande alegoria desse lugar das crianças, como um local de experiências no sentido forte do termo: a infância.

Nesse sentido, almejando uma formação que acompanhe o movimento descrito, Benjamin (2002) defende uma pedagogia mais anárquica e libertária, tendo em perspectiva a ideia de uma formação cultural ampla que vise à autonomia em face da educação ético-psicologizante burguesa, que tem por objetivo o cidadão útil. Forma-se aqui a imagem de um pensador que já reivindicava, no início do século XX, o lugar da criança como um protagonista. Para tanto, coloca-se como o narrador na iminência de contribuir para formar as crianças, por meio de contos radiofônicos, resgatando, de certo modo e nos limites da Alemanha de 1920, a força da Bildung como formação cultural. Como uma espécie de infância do homem (AGAMBEN, 2007), a força da imagem da criança, na obra desse autor, representa tanto o resgate de si nos anos torpes da República de Weimar, como a esperança do resgate da humanidade, reinventando locais nos quais as experiências comoventes da infância possam ainda se tornar hábito.

Referências

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Recebido: 26 de Junho de 2018; Aceito: 10 de Julho de 2018

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