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Perspectiva

versión impresa ISSN 0102-5473versión On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.36 no.4 Florianopolis oct./dic 2018  Epub 30-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2018v36n4p1186 

Artigos

Os mapas e as tecnologias digitais: novos letramentos em pauta no ensino de Geografia1

Maps and digital technologies: new literacies on the agenda of geography teaching

Mapas y tecnologías digitales: nuevas alfabetizaciones en la agenda de la enseñanza de la geografía

Tânia Seneme do Canto1 
http://orcid.org/0000-0003-0299-8268

1Universidade Estadual de Campinas, Unicamp


Resumo

Tomando como referência a discussão sobre os novos letramentos e as tecnologias digitais, o presente artigo aborda as novas possibilidades e demandas que as práticas de mapeamento desenvolvidas sob as condições tecnológicas atuais colocam para o ensino de Geografia. Como será possível notar, as tecnologias digitais têm permitido a emergência de formas de produção e uso dos mapas que se distinguem significativamente de outras pré-existentes. Marcada pelos modos de comunicação e interação próprios de uma nova cultura, esta nova cartografia carrega consigo a possibilidade de práticas de letramento bastante diferentes de outras com grande tradição na Geografia e cartografia escolares. Assim, as rupturas e conhecimentos que os novos letramentos cartográficos possibilitam e requerem ao ensino de geografia são as principais questões que orientam este texto.

Palavras-chave:  Cartografia; Novas tecnologias no ensino de geografia; Novos letramentos

Abstract

Taking as a reference the discussion about new literacies and digital technologies, this article addresses the new possibilities and needs that mapping practices developed under contemporary technological conditions raise for the teaching of geography. As will be noted, digital technologies have allowed the emergence of forms of production and use of maps that differ significantly from other pre-existing ones. Marked by the modes of communication and interaction of a new culture, this new cartography carries with it the possibility of literacy practices quite different from others with great tradition in school geography and cartography. Thus, the ruptures and knowledge that new cartographic literacies make possible and require in geography teaching are the main questions that guide this text.

Keywords:  new technologies in geography teaching; cartography; new literacies

Resumen

Tomando como referencia la discusión sobre nuevas alfabetizaciones y tecnologías digitales, este artículo aborda las nuevas posibilidades y necesidades que las prácticas de mapeo desarrolladas bajo las condiciones tecnológicas actuales plantean para la enseñanza de geografía. Como se observará, las tecnologías digitales han permitido la aparición de formas de producción y uso de mapas que difieren significativamente de otros preexistentes. Marcada por los modos de comunicación e interacción de una nueva cultura, esta nueva cartografía lleva consigo la posibilidad de prácticas de alfabetización muy diferentes de otras con gran tradición en la geografía y cartografía escolares. Así, las rupturas y conocimientos que las nuevas alfabetizaciones cartográficas hacen posibles y requieren en la enseñanza de la geografía son las principales cuestiones que guían este texto.

Palabras clave:  nuevas tecnologías en la enseñanza de la geografía; cartografía; nuevas alfabetizaciones

1 Introdução: uma nova geração de estudantes

Em seu livro A Polegarzinha, Michel Serres (2013) utiliza como metáfora o conto de Hans Christian Andersen para nos apresentar não uma menina do tamanho de um dedo polegar, mas sim que se relaciona com o mundo a partir dele. Na história de Serres, a Polegarzinha representa uma geração de crianças e jovens que, por meio do toque de seus pequenos dedos na tela de um celular, têm acesso aos mais distantes lugares, às mais diversas pessoas, aos mais inusitados acontecimentos e informações em questão de segundos. Para o autor, esta geração precisa ser entendida, pois, com seus polegares hiperativos, desenvolve novas maneiras de fazer, pensar e aprender próprias dos espaços híbridos e tempos líquidos em que vivemos hoje.

Para aguçar um pouco mais a reflexão sobre as mudanças e desafios que as tecnologias de informação e comunicação recentes colocam para a inteligência humana, Serres (2013) nos lembra da opção de Montaigne quando surgiu a imprensa. Com o saber depositado nos livros e prateleiras das bibliotecas, ter uma cabeça bem constituída lhe pareceu bem mais interessante do que acumular todo o saber na mente. No contexto atual, em que nem sequer precisamos lembrar a localização dos livros nas estantes, Serres recorre à lenda de São Denis para mostrar como estes novos aparelhos decapitaram nossos corpos e entregaram em nossas mãos a memória, o raciocínio, a imaginação. Assim,

A Polegarzinha abre seu computador. Mesmo sem se lembrar da lenda, ela considera ter a própria cabeça nas mãos e à sua frente, bem cheia, haja vista a quantidade enorme de informações disponíveis, mas também bem-constituída, já que os motores de busca trazem, à vontade, texto e imagens. [...] Como ela, todos nos tornamos São Denis. Nossa inteligência saiu da cabeça ossuda e neuronal. Entre nossas mãos, a caixa computador contém e põe de fato em funcionamento nossas “faculdades”: uma memória mil vezes mais poderosa do que a nossa; uma imaginação equipada com milhões de ícones; um raciocínio, também, já que programas podem resolver cem problemas que não resolveríamos sozinhos. (SERRES, 2013, p. 36).

Com uma mente tão poderosa diante delas, cabe então perguntar: que conhecimentos se tornam válidos para as crianças e jovens desta época? Qual o sentido do conhecimento para uma geração que toma os suportes e dispositivos digitais como extensões de seu próprio corpo? No presente artigo, olhamos para estas questões com foco no ensino de Geografia, buscando abordar, principalmente, os letramentos que as formas recentes de produção e uso dos mapas demandam e possibilitam.

Desse modo, começamos por apresentar, a partir da classificação proposta por Lucia Santaella (2013), como o desenvolvimento das tecnologias e meios de comunicação possibilitaram o surgimento de diferentes tipos de leitores. No segundo tópico, discutimos o conceito de novos letramentos presente em Colin Lankshear e Michele Knobel (2007), os quais se baseiam numa perspectiva sociocultural para compreender as práticas e interações que se dão com os textos digitais. Em seguida, buscamos mostrar como a cartografia contemporânea tem sido marcada pela presença das novas tecnologias e as mudanças que temos experimentado a partir delas em nossas práticas de mapeamento. Para finalizar, trazemos nossas últimas considerações à luz do que foi abordado ao longo do texto.

2 Novas formas de texto, novas formas de leitura e escrita

Para Santaella (2013), não há por que mantermos uma visão purista da leitura e da escrita, associando-as apenas à codificação e decodificação das letras, se o ato de ler foi se expandindo historicamente a partir do surgimento de novas linguagens e de suas diversas misturas. Desse modo, a autora entende que o surgimento das tecnologias digitais e dos meios de comunicação a elas vinculados fizeram emergir novas formas de leitura e escrita, as quais podem ser representadas nas figuras do que Santaella chama de “leitor imersivo” e “leitor ubíquo”.

Antes destes novos leitores eram o “leitor contemplativo” e o “leitor movente” que habitavam o mundo. O “leitor contemplativo” surgiu no Renascimento e é caracterizado por Santaella (2013, p. 20) como “o leitor meditativo da idade pré-industrial, da era do livro impresso e da imagem expositiva, fixa”. Já o “leitor movente” é um leitor em movimento, dinâmico, que foi se constituindo nos grandes centros urbanos, na relação com diferentes signos que passaram a atrair sua atenção, como o jornal, a fotografia, o cinema, a publicidade e a televisão.

Com o desenvolvimento do ciberespaço, da multimídia e da hipermídia, surge então o “leitor imersivo”. Diferentemente dos leitores que lhe antecederam, na classificação de Santaella, este novo tipo de leitor não segue a linearidade do texto nem tropeça nos signos da cidade. Ele constrói seu percurso de leitura na própria caminhada, navegando por entre fragmentos de informação que aparecem e desaparecem num simples clicar de botões. Em síntese, diz a autora:

O leitor imersivo inaugura um modo inteiramente novo de ler que implica habilidades muito distintas daquelas que são empregadas pelo leitor de um texto impresso que segue as sequências de um texto, virando páginas, manuseando volumes. Por outro lado, são habilidades também distintas daquelas empregadas pelo receptor de imagens ou espectador de cinema, televisão. [...] Cognitivamente em estado de prontidão, esse leitor conecta-se entre nós e nexos, seguindo roteiros multilineares, multissequenciais e labirínticos que ele próprio ajuda a construir ao interagir com os nós que transitam entre textos, imagens, documentação, músicas, vídeo etc. (SANTAELLA, 2013, p. 20).

Vivendo no contexto de mudanças culturais e tecnológicas bastante velozes característico da última década, o “leitor imersivo” tem se transformado em um outro tipo de leitor, diz Santaella (2013). O “leitor ubíquo”, segundo ela, emergiu principalmente com o aparecimento dos celulares e da internet móvel, que possibilitaram uma dupla mobilidade às pessoas. Hoje, podemos navegar de um ponto a outro das redes digitais e, simultaneamente, nos movimentar fisicamente pelo espaço. Com isso, o “leitor ubíquo” acaba reunindo as características do leitor movente e do leitor imersivo em uma única figura.

Ao mesmo tempo em que está corporalmente presente, perambulando e circulando pelos ambientes físicos – casa, trabalho, ruas, parques, avenidas, estradas – lendo os sinais e signos que esses ambientes emitem sem interrupção, esse leitor movente, sem necessidade de mudar de marcha ou de lugar, é também um leitor imersivo. Ao leve toque do seu dedo no celular, em quaisquer circunstâncias, ele pode penetrar no ciberespaço informacional, assim como pode conversar silenciosamente com alguém ou com um grupo de pessoas a vinte centímetros ou a continentes de distância. O que lhe caracteriza é uma prontidão cognitiva ímpar para orientar-se entre nós e nexos multimídia, sem perder o controle da sua presença e do seu entorno no espaço físico em que está situado. (SANTAELLA, 2013, p. 22).

Como pensa a autora (2013), o surgimento de um novo tipo de leitor não leva ao desaparecimento do anterior – os diferentes tipos de leitores coexistem, complementam-se e se completam nas práticas cotidianas. Contudo, não há como negar que o surgimento de um novo tipo de leitor sempre envolve novas formas de conhecimento e aprendizagem, novas capacidades e necessidades, o que coloca para a educação e o ensino de Geografia o desafio de entender os letramentos que estão em jogo quando as novas tecnologias adentram a vida dos jovens e a dinâmica da sala de aula. Buscando contribuir com esta discussão, Lankshear e Knobel (2007) desenvolvem o conceito de novos letramentos a partir de uma perspectiva sociocultural do uso das tecnologias digitais.

3 Os novos letramentos como práticas sociais

Para compreendermos de maneira mais clara o sentido do conceito novos letramentos para Lankshear e Knobel (2007), é importante observar como os autores entendem a noção de letramento de maneira mais geral, já que encontramos aí os pressupostos que orientam sua interpretação sobre o uso das tecnologias.

[…] we have recently defined literacies as “socially recognized ways of generating, communicating and negotiating meaningful content through the medium of encoded texts within contexts of participation in Discourses (or, as members of Discourses)” (Lankshear and Knobel 2006, 64). Identifying literacies as social practices is necessarily to see them as involving socially recognized ways of doing things. (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p. 4).

Com essa definição, Lankshear e Knobel (2007) chamam a atenção para o fato de que o letramento não se refere ao conhecimento de como ler e escrever um tipo de texto, mas como usar este tipo de texto para certos fins em certos contextos. Esta forma de conhecimento envolve práticas compartilhadas, isto é, modos de fazer reconhecidos por determinados grupos, comunidades, gerações. Por isso, os autores apontam que o letramento pode ser entendido como uma família de práticas que inclui envolvimento social e atividades padronizadas na relação com textos codificados.

No que se refere ao conceito de novos letramentos, os autores (2007) afirmam que o termo vem sendo utilizado de maneira bastante genérica, servindo como um guarda-chuva conceitual para designar diferentes práticas realizadas com as tecnologias digitais. “As a general classification, ‘new literaciestypically refers to interactions with digitized textual material and other digital media” (LANKSHEAR; KNOBEL; CURRAN, 2013, p. 1). No entanto, considerando o modo como pensam o letramento, Lankshear e Knobel (2007) entendem que estas novas práticas e interações não podem ser apreendidas apenas em função do surgimento de novos tipos de textos. Para eles, os novos letramentos existem especialmente em função de um novo ethos, possibilitado por novos objetos técnicos, mas não dependentes deles. Os autores esclarecem:

We think that what is central to new literacies is not the fact that we can nowlook up information onlineor write essays using a word processor rather than a pen or typewriter, or even that we can mix music with sophisticated software that works on run-of-the-mill computers but, rather, that they mobilize very different kinds of values and priorities and sensibilities than the literacies we are familiar with. The significance of the new technical stuff has mainly to do with how it enables people to build and participate in literacy practices that involve different kinds of values, sensibilities, norms and procedures and so on from those that characterize conventional literacies. (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p. 7).

Com isso, Lankshear e Knobel adotam uma perspectiva ontológica dos novos letramentos, buscando nos mostrar que a cultura que emerge com as novas tecnologias pode ser significativamente distinta de outras pré-existentes. Em relação aos letramentos convencionais, dizem eles (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p. 9) que os novos letramentos são mais participativos, colaborativos e distribuídos. Sendo assim, são menos dominados por especialistas ou profissionais e apresentam normas mais fluidas e menos duradouras. Tais diferenças, de acordo com os autores, são sustentadas por um fenômeno muito mais amplo e complexo, que inclui um processo de fratura do espaço, caracterizado pela coexistência entre o espaço físico e o ciberespaço, assim como o desenvolvimento de uma nova mentalidade, pautada em princípios não materiais e pós-industriais.

Em contraste à mentalidade anterior, marcada pelo pensamento físico-industrial, o qual tem na escassez seu principal paradigma, a nova mentalidade assume como valores a dispersão e a coletividade, investindo na maximização dos relacionamentos, conversações e redes, por meio da troca e distribuição da informação (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p. 11). Com isso, esta nova mentalidade, segundo os autores, não abraça as novas tecnologias para realizar de uma maneira mais “tecnologizada” as coisas que já realizava antes; pelo contrário, ela aposta no uso dos novos meios para explorar modos originais de fazer as coisas.

More and more the world is being changed as a result of people exploring hunches andvisionsof what might be possible given the potential of digital technologies and electronic networks. The world is being changed in some quite fundamental ways as a result of people imagining and exploring new ways of doing things and new ways of being that are made possible by new tools and techniques, rather than using new technologies to do familiar things in more “technologizedways (first mindset). (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, p. 10).

Diante do exposto, consideramos que para compreender os novos letramentos associados às tecnologias digitais é necessário ir além da análise das técnicas e habilidades aplicadas ao seu uso. Sem dúvida, esta é uma dimensão muito importante, porém insuficiente para identificar e entender as práticas sociais que dão sentido à apropriação das diversas formas de textos que estão emergindo na contemporaneidade com as novas tecnologias, dentre as quais incluímos e destacamos os mapeamentos digitais.

4 Mapeando com as tecnologias digitais

Quando se trata de ensinar e aprender Geografia, a cartografia aparece como uma das principais linguagens mobilizadas neste processo. Professores e alunos de diferentes níveis de ensino reconhecem nos mapas um tipo de “texto” e conhecimento próprios desta disciplina escolar, por lhes possibilitarem a expressão e comunicação de diferentes fenômenos geográficos, bem como a significação de uma diversidade de conceitos e pensamentos espaciais. Com isso, a cartografia já vem sendo há algum tempo pensada como uma forma de “leitura e escrita” necessária à aprendizagem da Geografia.

Diante da importância dessa linguagem para a construção do conhecimento geográfico e na esteira da discussão sobre alfabetização e letramento no campo da linguística, é recorrente encontramos no campo da cartografia escolar o uso do termo “letramento cartográfico” para enfatizar que ler e escrever em cartografia envolve muito mais que o domínio de um conjunto de códigos específicos. Ser letrado nesta linguagem implica conseguir dar sentido aos usos que fazemos dela e, para isso, é necessário tomar os mapas também como uma prática social, mergulhando no entendimento de seus diferentes contextos de uso. Desse modo, a partir da apropriação do conceito de localização pela criança, Castellar (2003) nos indica que umas das principais dimensões do letramento cartográfico é a compreensão da função social que o mapa possui:

Ao se apropriar de um conceito, por exemplo, de localização, a criança colocará nos desenhos dos trajetos os pontos de referências, assim, ao ler uma planta cartográfica ela poderá relacionar e compreender os conceitos de localização e pontos de referência e a função social que uma representação cartográfica possui. É nesse momento que ampliamos o uso de uma técnica em ações do cotidiano. (CASTELLAR, 2003, p. 2).

E qual a função social que o mapa possui hoje? Como temos nos apropriado dele no cotidiano? Tomando também como referência a conceito de “letramento cartográfico”, levantamos estas questões com o intuito de entender quais são os novos conhecimentos que estão em jogo quando passamos a mapear o mundo com as tecnologias digitais.

4.1 A autoria múltipla do mapeamento

Atualmente, em grande parte das vezes em que as representações cartográficas chegam até nós pelas telas dos diversos dispositivos que nos rodeiam, não são apenas aos nossos olhos que elas se dirigem mas também às nossas ações. Os mapas que circulam hoje no ciberespaço já são produzidos contando com a participação dos usuários para se realizarem e, mesmo quando não são pensados neste formato, ainda assim é possível transformá-los por meio de diferentes editores de imagem e programas de computador que permitem sua articulação com outras representações. Desse modo, não há como negar que existe hoje uma profunda permeabilidade e interação entre os momentos de produção e consumo dos mapas, a qual se desdobra em uma dificuldade cada vez maior de atribuir a uma única pessoa a autoria de um mapa.

Mesmo que alguns autores (DEL CASINO JUNIOR; HANNA, 2006) afirmem que produção e consumo estão sempre entrelaçados no mapeamento, as novas tecnologias possibilitam-nos experimentar de uma maneira ainda mais abrupta o rompimento desta fronteira que há muito tempo separou e fixou os papéis de autor e leitor, produtor e usuário na cartografia. Segundo Cartwright (2008, p. 11), a evolução da web provocou uma mudança radical no caráter autoral dos mapas, pois “users would construct their own mapping product from both cartographer provided components and their own information”. Martin Dodge, Chris Perkins e Rob Kitchin (2009, p. 317) também nos informam sobre este fenômeno na seguinte passagem:

Significant changes in notions of authorship are at the heart of many contemporary modes of mapping. In particular there is a fracturing of authorship with the emergence of a morewriterlykind of mapping (following Roland Barthes), which according to Pickles (2004: 161) canengage the reader as anauthorand insist upon the openness and intertextuality of the text’. Moreover many aspects of map-making practices are undergoing a metamorphosis towards aremixcultural model of production that is apparent in many other media (cf. Bolter and Grusin 1999; Diakoopoulos et al. 2007), in which new media constantly reinterpret existing media in a process facilitated by rapid and unconstrained access.

Dois aspectos são centrais neste processo de fratura da autoria que os autores mencionam. O surgimento de mapeamentos mais abertos, ou writerly, tem sua raiz nas novas formas de interatividade que as tecnologias digitais inauguram a partir da possibilidade de acesso e armazenamento não linear da informação. Com isso, os usuários dos mapas tornam-se capazes de realizar múltiplos percursos de leitura, transformando um mesmo mapa em incontáveis outras versões de mapa. Este potencial de autoria encarnado no papel de leitor dos mapas digitais se amplia ainda mais no momento em que, além de navegar pelo mapa, ou melhor, por entre os vários mapas interligados que compõem o mapeamento, os usuários passam a poder inserir novas informações neles. Isso explica o crescente interesse e engajamento das pessoas em projetos de mapeamento colaborativos e participativos através do uso das novas tecnologias.

O outro aspecto que destacamos refere-se aos caminhos e à velocidade com que a informação pode viajar de um lugar a outro do globo hoje. Tais caminhos, cada vez mais diversos e conectáveis entre si, são o que sustenta as práticas de mapeamento baseadas na “remixagem”, conceito este que busca enfatizar a apropriação e recombinação de conteúdos produzidos por terceiros. Desse modo, é cada vez mais comum produzirmos nossos mapas partindo de mapas criados por outras pessoas, aos quais temos fácil e rápido acesso através da internet e de outros diferentes meios de transmissão de dados digitais. Esta intensa troca e distribuição da informação no campo da cartografia, além de tornar ainda mais complexa a identificação da origem e a autoria dos mapas que circulam entre nós, também contribui para a constante reinterpretação de mapas pré-existentes.

4.2 Mapas híbridos

É interessante observar que as tecnologias digitais não só misturaram os papéis de autor e leitor de mapas como também confundiram nossa definição de representação cartográfica. Parece que, ao mesmo tempo em que os mapas se tornaram mais presentes em nossas vidas, mais difícil ficou apontar o que é e o que é não é um mapa. É certo que conceituar este objeto não é uma tarefa fácil nem mesmo para os teóricos mais respeitados do pensamento cartográfico, mas é também bastante evidente que os mapas com os quais interagimos diariamente deixaram, já há algum tempo, de serem formados apenas por pontos, linhas e polígonos.

Os mapas que exploramos em nossos computadores, tablets e celulares estão atravessados por fotografias, textos, sons, vídeos, anúncios publicitários e também por algoritmos. Esta mistura de diferentes formas de linguagem, que não atinge somente os mapas mas também diferentes modos de expressão e comunicação da cultura contemporânea, resulta em novas linguagens, ou espécies sígnicas, como coloca Santaella (2007). Especificamente no campo da cartografia, isso quer dizer que a linguagem dos mapas vem ganhando novas possibilidades de representação dos espaços e lugares e, portanto, as convenções cartográficas não bastam mais para os mapas contemporâneos.

Exatamente pela capacidade de produzir novos signos, Santaella (2007) entende a articulação das linguagens promovida pelas novas tecnologias como um processo de hibridização. Esta compreensão da autora ressalta que tanto a convergência das mídias quanto a forma não linear de combinação de vários tipos de signos já existentes contribuem com a ampliação das linguagens. Diz ela:

De fato, não poderia haver melhor qualificação do que “híbridas” para as misturas entre as mídias, sob o nome de “multimídia”, e para as misturas entre sistemas de signos diversos e linguagens distintas, configuradas em estruturas hipertextuais, sob o nome de “hipermídia”. (SANTAELLA, 2007, p. 132).

Com a evolução contínua dos softwares, aplicativos e dos códigos que os sustentam, as formas de integração das linguagens e das mídias também vão sendo reinventadas e, a cada dia, novas e sofisticadas misturas sígnicas passam a circular no ciberespaço. Em algumas aplicações criadas com mapas é como se a própria linguagem cartográfica, como a conhecemos tradicionalmente, adquirisse transparência e fosse penetrada por outras diferentes linguagens (CANTO, 2016). Assim, podemos não ver pontos, linhas e polígonos nestas novas formas de mapeamento, mas os mapas estão lá, territorializando de maneira invisível os diversos outros signos que a eles se articulam.

Nesse contexto, o termo “híbrido” utilizado por Santaella (2007) visa precisamente indicar as várias e complexas possibilidades de combinação entre as linguagens efetivadas nas novas tecnologias, o que confere ao texto, ao som e à imagem instabilidade e fluidez profundas. Assim, emprestamos este conceito dela para acentuar que os mapas também não são mais como costumavam ser. Eles evoluíram, cresceram, ganharam novas formas a partir da integração e articulação com outras linguagens no meio digital. Com isso, tornamo-nos capazes de representar novos fenômenos espaciais e de lançar outros olhares para um mundo extensivamente mapeado.

4.3 O mapa como interface

Mais um aspecto que gostaríamos de destacar em relação ao modo como o uso das tecnologias digitais tem impactado o campo da cartografia diz respeito ao funcionamento do mapa como uma interface entre os mundos “real” e virtual na contemporaneidade. Com o surgimento de dispositivos móveis com propriedades de conexão à internet e ao Sistema de Posicionamento Global (GPS), as posições que ocupamos no espaço físico tornaram-se um valioso elemento para produção, distribuição e acesso à informação que circula no ciberespaço. Por onde andamos, os lugares que frequentamos, os caminhos que percorremos, os espaços que consumimos são, hoje, dados que importam na orientação do fluxo informacional. Sendo assim, como afirmam Dodge, Perkins e Kitchin (2009), cada vez mais o mapeamento é encontrado como parte das interfaces digitais, isso quando não é em si mesmo uma interface passível de consulta.

Ainda de acordo com os apontamentos dos autores citados, as interfaces digitais associadas ao mapeamento já eram uma realidade antes da disseminação e popularização das tecnologias móveis, mas seu uso era bastante restrito a fins militares. Na contemporaneidade, contudo, elas participam intensamente de nossas experiências diárias.

[...] this interface between person, map, and the world in motion would once have been reserved for specialized and particularly military applications, but is now the everyday experience for many when walking with a mobile phone, driving with a satnav, flying with the airshow maps on an in-flight entertainment system, and even playing with handheld GPS units in treasure hunting games of geocaching. (DODGE; PERKINS; KITCHIN, 2009, p. 313-314).

Tal fenômeno se deve ao crescente número de aplicativos baseados na integração entre informação digital e localização geográfica. Tais aplicativos têm sido denominados por vários autores de mídias locativas. André Lemos (2008, p. 207), um dos principais autores brasileiros dedicados ao tema, entende que as mídias locativas podem ser classificadas em diferentes tipos, considerando a função que desempenham, entretanto uma característica comum a todas é “a emissão de informação digital a partir de lugares/objetos”. Ele explica:

As mídias locativas são utilizadas para agregar conteúdo digital a uma localidade, servindo para funções de monitoramento, vigilância, mapeamento, geoprocessamento (GIS), localização, anotação ou jogos. Dessa forma, os lugares e objetos passam a dialogar com dispositivos informacionais, enviando, coletando e processando dados a partir de uma relação estreita entre informação digital, localização e artefatos digitais móveis. (LEMOS, 2008, p. 207).

Geralmente, as mídias locativas com função de mapeamento geram mapas de percursos e pontos de interesse, assim como mapeiam a localização de fotos e outros conteúdos produzidos por seus usuários. Em muitos casos, tais mídias também possibilitam que seus usuários recebam e compartilhem estes mesmos tipos de conteúdo e informação enquanto se movimentam pelo espaço. Com isso, os mapas não apenas funcionam como interfaces que nos ajudam a tomar maior consciência do espaço ao nosso redor como também permitem que nós próprios ou outras pessoas nos vejam nos mapas, o que certamente transforma o modo com que nos relacionamos com o espaço e com o outro, além de colocar diversas questões de ética e de privacidade em debate.

5 Considerações finais: letramento cartográfico no plural

Como foi possível notar, temos experimentado mudanças em nossa interação com a cartografia. Questões relativas à autoria, à representação, à linguagem e à função dos mapas emergem das novas práticas que se tornaram possíveis com o desenvolvimento das tecnologias digitais. E a cartografia no ensino de Geografia? Continua a mesma e única?

As ideias e argumentos defendidos neste texto partem do pressuposto de que o ensino de Geografia não deve se pautar em um único tipo de letramento cartográfico. Diferentes tipos de mapas e modos de mapear implicam em diferentes formas de conhecimento, e cada uma a sua maneira pode exercer um papel relevante na educação geográfica. Portanto, parece-nos bastante pertinente considerar os novos conhecimentos que a cartografia contemporânea está produzindo e demandando, bem como as geografias que podemos aprender e ensinar com e através delas.

Sendo assim, ao longo do texto, buscamos nos aproximar destes novos conhecimentos a partir do conceito de novos letramentos, discutido por Lankshear e Knobel (2007). Com base em sua abordagem sociocultural, concluímos que é preciso ir além da análise das técnicas e habilidades aplicadas à produção e uso dos mapas digitais. Ou seja, é necessário que comecemos a explorar e analisar, dentro e fora da sala de aula, os valores e sensibilidades que fazem as práticas de mapeamento digital serem diferentes de outras já consolidadas no ensino de Geografia.

Outro aspecto importante a ser considerado neste contexto diz respeito às polegarzinhas e leitores ubíquos que, em número cada vez maior, têm habitado nossas escolas. Mesmo diante da dificuldade em sabermos lidar com seus incontroláveis dedos e conexões no cotidiano da sala de aula, estes alunos e alunas trazem consigo necessidades e capacidades para as quais a Geografia e a cartografia escolares não podem fechar os olhos e ignorar. Isto porque não há como possibilitar a eles uma maior compreensão do mundo se não levarmos em conta os novos espaços que estão lhes formando.

1Este artigo faz parte da pesquisa “Cartografia e Tecnologias Digitais: Novas Literacias no Ensino de Geografia (?)”, processo nº 2016/16121-0, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

REFERÊNCIAS

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Recebido: 24 de Julho de 2017; Aceito: 21 de Fevereiro de 2018

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