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Perspectiva

versión impresa ISSN 0102-5473versión On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.36 no.4 Florianopolis oct./dic 2018  Epub 30-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2018v46n4p1302 

Artigos de Demanda Contínua

O mito do mérito: ensaio sobre meritocracia e qualidade da educação

The myth of merit: essay on meritocracy and quality of education

El mito del mérito: ensayo sobre meritocracia y calidad de la educación

1Universidade Estadual de Santa Cruz, UESC


RESUMO

Políticas educacionais com critérios meritocráticos têm sido a tônica dos processos avaliativos não apenas no Brasil, mas como uma tendência global. A proposta deste texto, em tom ensaístico, é discutir a noção de mérito a partir de três autores. Na primeira parte são apresentadas críticas a epistemologias que se pretendem neutras em relação à avaliação educacional, partindo das contribuições de Miriam Limoeiro-Cardoso. A segunda parte apresenta ideias de Michael Young em uma sátira da meritocracia como hierarquização social. Na terceira parte há as críticas de Diane Ravitch aos testes padronizados no sistema educacional dos Estados Unidos, que levaram à construção de qualidade como desempenho de excelência em avaliações mensuráveis.

Palavras-chave:  Mérito; Avaliação; Testes Padronizados; Qualidade da Educação

ABSTRACT

Educational policies based on meritocratic criteria have been the focus of evaluation processes not only in Brazil, but as a global trend. The purpose of this essay is to discuss the notion of merit from three authors. In the first part are presented elements of criticism to epistemologies that are intended to be neutral in relation to educational evaluation starting from the contributions of Miriam Limoeiro-Cardoso. The second part presents the main ideas of Michael Young in a satire of meritocracy as social hierarchy. In the third part there are Diane Ravitch's criticisms on standardized tests in the United States educational system, which led to the construction of quality as a performance of excellence in measurable assessments.

Keywords:  Merit; Evaluation; Standardized tests; Quality of education

RESUMEN

Políticas educativas con criterios meritocráticos han sido la tónica de los procesos de evaluación no sólo en Brasil, sino como una tendencia global. La propuesta de este texto, en tono ensayístico, es discutir la noción de mérito a partir de tres autores. En la primera parte se presentan críticas a epistemologías que se pretenden neutras en relación a la evaluación educativa, partiendo de las contribuciones de Miriam Limoeiro-Cardoso. La segunda parte presenta ideas de Michael Young en una sátira de la meritocracia como jerarquización social. En la tercera parte hay las críticas de Diane Ravitch a las pruebas estandarizadas en el sistema educativo de los Estados Unidos, que llevaron a la construcción de calidad como desempeño de excelencia en evaluaciones mensurables.

Palabras clave:  Mérito; Evaluación; Pruebas estandarizadas; Calidad de la Educación

Introdução

A formulação de políticas educacionais baseadas em critérios meritocráticos tem sido a tônica dos processos avaliativos não apenas no Brasil, mas como uma tendência global. A proposta deste texto, em tom ensaístico, é a de discutir a noção de mérito a partir de três autores.

Na primeira parte são apresentados elementos de crítica a epistemologias que se pretendem neutras em relação à avaliação educacional, fundamento de políticas meritocráticas, partindo das contribuições de Miriam Limoeiro-Cardoso. Apresenta-se a filiação teórico-metodológica compartilhada com a autora, o materialismo dialético, e advoga-se a necessidade de apreciar resultados de pesquisa a partir de uma abordagem que não separe processo e produto. Como ilustração de uma abordagem que privilegia a produção de dados a partir de uma epistemologia supostamente neutra, apresentamos a construção do discurso sobre mérito no acesso à educação superior. A segunda parte apresenta as principais ideias de Michael Young em uma sátira da meritocracia como hierarquização social. As características das políticas de mensuração de qualidade educacional são identificadas nos valores subjacentes da sociedade distópica criada pelo autor inglês. Na terceira parte discutem-se as críticas de Diane Ravitch aos testes padronizados no sistema educacional dos Estados Unidos, os quais levaram à construção de qualidade como desempenho de excelência em avaliações mensuráveis.

Mito do método, mito do mérito

Em 1971, Miriam Limoeiro Cardoso publicou um texto considerado um clássico na discussão sobre teoria e metodologia nas ciências (naturais e humanas): O Mito do Método. Neste texto, a autora discute o processo que denomina mitificação do método, compreendido ora como técnica instrumental, ora como lógica intrínseca à descoberta. Limoeiro Cardoso (1971) problematiza estas duas formas de apropriação: 1) a compreensão de método com lógica, em que a repetição de procedimentos determinados seria capaz de validar a produção de conhecimento, parece contrariar o que conhecemos como principais contribuições de cada ciência ou campo do saber – seu caráter de novidade é com frequência decorrente de alguma forma de ruptura epistemológica. E 2) a redução do método a técnicas determinadas, enfatizando a questão do “como fazer” determinadas pesquisas, isola e salienta seu aspecto instrumental, em detrimento dos pressupostos teóricos que sustentam a forma de aproximação do objeto de pesquisa.

O atual momento de colonização do campo educacional por avaliações quantitativas padronizadas em nível internacional parece combinar estas duas formas de se pensar a pesquisa educacional: uma fúria classificatória na forma de testes para crianças começa tão cedo quanto aos 4 anos de idade, acompanhando-a em várias séries do Ensino Fundamental, ao longo e ao final do Ensino Médio, prosseguindo na entrada e saída da universidade e persistindo até mesmo nos draconianos critérios de avaliação da pós-graduação. A valorização da repetição de passos pré-estabelecidos na produção de conhecimentos parece conviver harmoniosamente com a sobreposição de métodos capazes de gerar resultados quantificáveis.

Na produção de conhecimento em educação a ênfase nos aspectos práticos que envolvem o trabalho do professor, bem como o controle deste trabalho baseado na necessidade eternizada de produção de resultados mensuráveis, é compatível com uma epistemologia cartesiana, que sobrevaloriza técnicas consideradas neutras, preponderando um esforço não teórico em que valem os resultados. Discutem-se os “dados”, galvanizados em fatos inquestionáveis, como se as escolhas de que decorrem não tivessem qualquer influência nestes resultados.

Miriam Limoeiro Cardoso desafia estas formas redutoras de pensar o método ao tratá-lo como parte constitutiva de uma totalidade em conjunto com a teoria. O método seria componente de um conjunto para elaborar o conhecimento, sendo este último concebido como “resultado da relação entre o sujeito que se empenha em conhecer e o objeto de sua preocupação” (CARDOSO, 1971, p. 4), parte da resposta à pergunta “o que faz este todo ser como é?”, considerados os seus fundamentos.

Analisar um objeto a partir da totalidade coloca uma série de desafios do ponto de vista teórico-metodológico. O materialismo dialético como forma de compreensão (bem como transformação) da realidade tem na articulação parte e todo uma de suas premissas centrais. Para proceder a uma análise de determinada totalidade, entretanto, faz-se necessária uma ruptura com a análise de “coisas”, passando à análise de “processos”. Esta contradição é discutida por David Harvey no tocante ao processo avaliativo que concerne ao trabalho docente:

Como educador, sou constantemente confrontado com a relação processo-coisa. O processo de aprendizado de um estudante é julgado por coisas realizadas, como ensaios escritos. Mas às vezes é difícil, se não impossível, avaliar esse processo por meio de coisas produzidas. Os estudantes podem achar o processo extremamente esclarecedor e aprender muito, mas, se redigem um ensaio ruim, recebem uma nota F. Dizem, então: “Mas aprendi tanto com o curso!”. E eu respondo: “Como você pode escrever um ensaio como este e dizer que aprendeu com o curso?”. Mas esse é um problema com que nos deparamos com frequência. Podemos fracassar estrondosamente quando produzimos a coisa, mas ter um aprendizado fantástico ao longo do processo (HARVEY, 2013, p. 119).

A dissociação entre processo e produto está na base da suposição do método enquanto técnica neutra. “Supõe-se o método como elemento capaz de desvendar o mundo, a realidade, guardando desta sua objetividade pura e total” (CARDOSO, 1971, p. 14). As formas de aproximação da realidade que consideram que o real se mostra “tal qual ele é” fundamentam-se na ideia de que o vetor epistemológico parte do real para o sujeito que o estuda. Nesta perspectiva, a atividade de pesquisa precisaria tão somente ir ao real “captar os dados”. A técnica nada teria a ver com o conteúdo sobre a qual é aplicada – o esforço da pesquisa é apenas técnico, e não teórico; teórico é o seu resultado, apenas. A neutralidade da técnica seria garantida pela neutralidade do pesquisador como indivíduo. Ao buscar o apoio do método científico, entende-se o conhecimento como nada mais que a manipulação de dados pelo sujeito (CARDOSO, 1971).

Diversamente, Limoeiro Cardoso propõe que o sentido do vetor epistemológico parte do racional e vai ao real: há uma interferência decisiva do sujeito, teórico enquanto constrói a teoria e empírico enquanto a testa na prática. O sujeito empírico, antes de definidor de situações, aparece como um portador – insconscientemente portador de uma cultura “que lhe dita os hábitos, as maneiras de proceder, as normas a seguir, as preferências, etc.; de uma linguagem que lhe estrutura o pensamento”; e conscientemente, é portador de tudo aquilo que já sabe sobre o objeto – através da experiência passada individual, dos grupos e da sociedade, no que dela ficou guardada na memória, constituindo as prenoções, e nas teorias codificadas que lhe servem de apoio, fornecendo-lhe as noções sobre o que procura, conceitos, relações, precisões (CARDOSO, 1971).

Com o jogo das palavras mito do método/mito do mérito, pretendo dialogar com a mitificação que Miriam Limoeiro Cardoso aponta em seu texto. O que relaciona o “mérito” ao “método” é o isolamento entre processo e produto no sistema educacional. Esta epistemologia que se supõe neutra, tem como pressuposto fundamental a geração de índices que possam ser comparáveis (acompanhados da evidente expectativa de serem sempre maiores do que os que lhe antecederam). Detectadas falências na conformação a estes modelos, é preciso identificar os culpados, frequentemente professores e alunos, os sujeitos que de acordo com a hierarquia do sistema educacional teriam menor capacidade de intervenção nas normas. Ao atribuir as falências a indivíduos e não a processos, um poderoso legitimador das desigualdades geradas é a atribuição do conceito de mérito tanto aos professores quanto aos alunos que melhor se conformam à avaliação.

Tomemos um dos aspectos em que esta noção de mérito é mais forte: no acesso à universidade. A falência da ampla maioria no desempenho das provas de seleção das universidades públicas, em decorrência das desigualdades do sistema educacional, não pode ser abertamente assumidas como “demérito”; isto poderia minar a hierarquia tácita de prestígio entre instituições que permite a reprodução de classe a partir da formação em instituições mais valorizadas. Com a limitação da formação em instituições públicas cujos critérios de acesso implicam em um tipo de formação básica preferencialmente acessível às classes dominantes, um grande contingente torna-se apto ao consumo desta mercadoria por meio de instituições privadas. Denominar aqueles que não são aprovados em sua seleção como “sem mérito” ou “desqualificados” é algo que pode comprometer a comercialização de diplomas.

É aqui que entra em jogo o discurso sobre a “democratização”, por meio de um crescimento do setor privado a partir da “flexibilização” de fundamentos do que seria o direito à universidade. Cobra-se mensalidade para consumir esta mercadoria, o ensino frequentemente é dissociado da produção científica mais atual, priorizando a reprodução de conhecimento em vez de sua produção; os cursos são voltados à formação de mão de obra (a exemplo de bacharelados tecnológicos, cursos sequenciais), há um uso intensivo de tecnologias, culminando na substituição do trabalho docente através da educação à distância, e uma tendência à reprodução de cursos na forma de “pacotes” vendidos por grandes corporações internacionais.

Há uma grande segmentação entre escolas para distintas classes ou, na perspectiva de Gramsci (2014), um dualismo escolar: o tipo de formação das universidades públicas mais prestigiadas acaba sendo majoritariamente acessado por filhos das classes dirigentes, enquanto que os cursos voltados para inserção mais imediata no mercado de trabalho são destinados às classes subalternas. Entretanto explicitar estas diferenças comprometeria o objetivo central dos cursos de cariz mercantil, o de vender a mercadoria da “formação flexível” para aqueles que não acessaram a formação mais valorizada no mercado. É aí que entra a centralidade do discurso para caracterizar a formação comercializada em termos que permitam a sua valorização.

O dualismo escolar é minimizado por meio do discurso da “igualdade de oportunidades” para o ingresso na universidade, considerando que todos os candidatos realizam uma mesma prova e que seu resultado é decorrente de seu esforço ou capacidade individual. Entretanto isto desconsidera diferenças históricas no acesso à educação para distintas classes. É o “efeito de evidência”, a capacidade da ideologia naturalizar diferenças históricas (ORLANDI, 2011) que permite ao discurso do “mérito” atuar como legitimador da dualidade escolar, transferindo a indivíduos a responsabilidade de seu sucesso/fracasso, utilizando-se de termos como capacidade, competência, habilidade e talento.

O que garante a coerência ao discurso sobre o mérito no acesso ao ensino superior é a restrição do número de vagas, caracterizando este tipo de formação como “recurso escasso”, disponível apenas àqueles que “se provem merecedores”, ao mesmo tempo em que abre espaço para um amplo mercado. Ao descrever os estudantes que não logram aprovação nas universidades de prestígio – essencialmente estudantes oriundos de escola pública - como sem mérito, aprofunda-se uma imagem da escola pública como local da falta. Os sujeitos da educação pública – professores e alunos – são sujeitos da falta: falta de qualidade, falta de mérito. Estes estudantes são tratados como aqueles para quem o que falta é o preparo, elemento que só pode vir de uma instituição dita de qualidade. Neste cenário, o que resta ao estudante é voltar-se a cursos ou instituições menos seletivas, que sejam adequadas ao que ele merece.

O ascenso da meritocracia

Numa conjuntura educacional em que tomam força avaliações de desempenho baseadas em princípios gerenciais meritocráticos, a obra The Rise of Meritocracy, do sociólogo inglês Michael Young, traz diversas contribuições para pensar o tema. É surpreendente que o livro de 1958, o primeiro em que se apresenta o termo “meritocracia”, praticamente não se encontre nas referências brasileiras para a discussão do tema da avaliação de mérito nos sistemas educacionais.

Em artigo publicado pelo jornal The Guardian, Michael Young (2001) polemiza com o então Primeiro Ministro britânico Tony Blair (seu correligionário no Labour Party) sobre o uso do termo “meritocracia”, bem como das políticas que se fundamentam nesta ideia. O livro em que o termo é cunhado se constitui numa sátira retrospectiva (teria sido escrita em 2033) do que poderia ter ser tornado a Grã-Bretanha de 1958 (ano em que foi publicado), caso levasse adiante a meritocracia como base de seu sistema educacional. Young (2001) discute no artigo que seu livro deveria ser tomado como uma advertência, o que claramente não havia sido considerado, tendo em vista a insistência da política educacional de accountability1 de Blair.

A disputa pública entre os trabalhistas Young e Blair marca dois campos bem determinados no interior do Labour Party: de um lado, o Primeiro Ministro que ficou conhecido pelo apoio à política de Guerra ao Terror após os ataques às torres gêmeas no 11 de setembro de 2001; de outro, alguém que construiu o programa do Labour Party no pós-guerra, um dos idealizadores do modelo britânico do Estado do Bem-Estar Social. Curiosamente, este último, um feroz crítico dos privilégios da nobreza na obra em questão, tornou-se o “Barão Young de Dartington” em 1978, figurando na galeria de Lords nomeados pela Rainha Elizabeth II.

Em diversas situações, Michael Young expressa seu pesar quanto a políticas meritocráticas. No prefácio à edição de 1994 pela Transaction Publishers, por exemplo, ironiza que parte significativa de pessoas que comentam ou se referem ao livro, um sucesso de vendas desde sua publicação, sequer o leram: “os livros mais influentes são sempre os não lidos”. Lord Young critica o fato de que os defensores de princípios meritocráticos, implícita ou explicitamente procuraram retratá-lo como defensor do mérito: “Eles negligenciaram, ou não notaram, o fato de que o livro é uma sátira, e apesar de ser sociologia, e portanto algo propriamente sério, está também dentro da tradição mais antiga da sátira inglesa” (YOUNG, 1994, p. xv).

The rise of meritocracy faz diversas referências à sátira inglesa, ao citar autores como George Orwell e Aldous Huxley, construindo um enredo de uma distopia, acentuando a defesa do mérito como fundamento social. O narrador é um (scholar) inglês, pincelado como um burocrata ironizado ao longo de toda a obra, a qual joga com a ambiguidade/polissemia causando efeitos cômicos. O conflito entre a visão do burocrata contra os críticos da sociedade “idealmente meritocrática” exemplifica esta ambiguidade:

As massas, por toda sua falta de capacidade, não se comportam como se sofressem de um senso de indignação? Elas necessariamente se vêem como as vemos? Sabemos que apenas dando-as reino livre à imaginação bem-treinada e inteligência organizada que a humanidade pode esperar alcançar, em alguns séculos, os elogios que merece. Vamos reconhecer que aqueles que reclamam da injustiça presente pensam que estão falando algo real, e tente entender como é que este nonsense para nós parece fazer sentido para eles2 (YOUNG, 1958, p. 15-16).

Chega a ser surpreendente a atualidade da obra de Young, não só pelos temas que discute com sarcasmo, mas até mesmo pelos acontecimentos fictícios descritos no ensaio. Logo na introdução o narrador expressa sua preocupação frente aos “levantes de Maio”, quando teriam ocorrido quebra-quebra de lojas, greves de empregadas domésticas, entre outros eventos radicalizados3. O narrador se propõe discutir algumas causas históricas das demandas que irromperam nos levantes de Maio, um estado de crise (um termo modalizado a todo tempo, com exceção do título do último capítulo) do modelo de sociedade baseado no mérito.

No ensaio é delineada uma sociedade que leva o modelo meritocrático às últimas consequências, através da construção de situações que seriam absurdas ao ponto da comicidade, ao mesmo tempo que remete a práticas ideológicas hegemônicas no discurso escolar e no discurso das políticas educacionais. O sujeito-narrador identifica como principal antagonista da sociedade idealmente baseada no mérito o movimento que denomina Populismo, impulsionado por feministas que representariam um ala de esquerda mais radical e mais conectada aos levantes de Maio, e sustenta que estes, “ainda que não tenham sido explicitamente organizadas pelas populistas, foram organizadas pela história”.

Já na introdução o narrador explicita seu pressuposto (e consequentemente sua posição social privilegiada): “não há revoluções, apenas lentos acréscimos de uma mudança incessante que reproduz o passado ao transformá-lo”. Quando o narrador defende que as estruturas sociais devem ser mantidas sem revolução, e remete a discussão ao ano de 1914, reforça a possível leitura de que Young não apenas trata da fictícia sociedade de 2033, mas sobretudo da sociedade britânica de então (1958). É surpreendente a possibilidade de fazer uma leitura contextualizada com o Brasil pós-levantes de junho de 2013.

Young constrói uma narrativa que remete ao ano em que inicia a Primeira Guerra Mundial (1914), quando “as classes altas tinham seu quinhão de gênios e imbecis, assim como a classe trabalhadora”. Já que poucos homens trabalhadores brilhantes e afortunados sempre escalaram até o topo, ainda que subordinados na sociedade, as classes inferiores continham uma proporção quase tão alta de pessoas superiores quanto as próprias pessoas de alta classe. O ponto de inflexão foi a partir da experiência de testagem desenvolvida pelo Exército Britânico durante a guerra (Pioneer Corps), quando as pessoas passaram a ser avaliadas conforme a sua inteligência, princípio que levou a uma mudança na natureza das classes. “Os talentosos tiveram a oportunidade de subir de nível de acordo com suas capacidades e as classes baixas consequentemente foram reservadas para aqueles com menos habilidades”.

Ao longo do livro, a medida de QI (“objetiva”) é sistematicamente reiterada para caracterizar diversas profissões e postos de trabalho, assim como a classificação das crianças na escola, delimitando a fórmula de que Mérito = QI + esforço. Utilizando-se do argumento de autoridade de cientistas ingleses, que afirmam sistematicamente o estado de progresso da “sociedade moderna” de 2033 (como verificado pelo “aumento objetivo” da “taxa de progresso social”), o narrador atribui à competição internacional (nunca questionada), que deixou a Grã-Bretanha para trás, a motivação para “fazer melhor uso de seu material humano”, este classificado como “escasso recurso”.

As metáforas abusam de referências a Darwin, termos que remetem à teoria da evolução, competição por recursos, esforços, mutação, confluindo para ideias relacionadas ao determinismo biológico. É o caso do trecho que trata das profissões intelectuais como cientista, tecnólogo, artista e professor, ou seja, profissões que estão distantes da relação com o trabalho manual: “brilhantes que olham sem hesitar, elite incansável que fez da mutação um fato social como biológico”. A “Natureza” assume o papel antes atribuído a Deus: tem leis inexoráveis, às quais é preciso se submeter, e não tentar questioná-la ou dominá-la. Visto que a inteligência é retratada como “escasso recurso”, por depender basicamente de herança genética, é preciso investir em instrumentos capazes de medir e selecionar o talento.

Young atribui à construção da ideia de mérito o eixo do questionamento ao mundo agrário representado pela sociedade feudal. Nesta forma de dominação, o status é transmitido por laços familiares da nobreza, rigidamente hierárquica, baseada no poder do pai como chefe de família, e fundamentada na estabilidade das inertes relações sociais. O mérito teria sido o elemento que questionou a transmissão de privilégios familiares para atribuir sua distribuição baseada no esforço, representado no modelo do empreendedorismo burguês do self made man.

Entretanto a sociedade inglesa, que devemos lembrar ser até hoje uma monarquia parlamentar, manteve a convivência das instituições altamente hierárquicas com instituições “modernas” a partir do desenvolvimento do capitalismo do século XIX. Segundo Young (1958, p. 48), “em nossa ilha nunca descartamos os valores da aristocracia, porque nunca descartamos a aristocracia” - máxima bastante adequada para a explicação das resilientes relações sociais oligárquicas e plutocráticas no Brasil. Dentre os exemplos ingleses de instituições que permaneceram hierárquicas, não surpreende que Young destaque as universidades, para quem a excelência era parte da “tradição”.

Como a ciência de investigação é desenvolvida fundamentalmente em universidades, estas têm se convertido nas principais instituições para a criação do determinismo biológico (atribuir a características inatas o desempenho desigual) (LEWONTIN et al, 2003). Desde que a ciência passou a ser parte crucial da legitimação da ideologia, os cientistas se converteram nos geradores da forma concreta pela qual ela penetra na consciência pública. Os autores afirmam ainda que se a ideologia for considerada como uma “arma na luta de classes” então as universidades “funcionam como fábricas de armas”. A ciência assumiu o papel principal de legitimador da ideologia burguesa, um papel de autoridade que antes estava a cargo da Igreja.

Lewontin, Kamin e Rose (2003) destacam o papel dos britânicos Francis Galton e Karl Pearson no desenvolvimento do movimento “eugenista” que embasou o modelo altamente seletivo da educação inglesa, baseado na ideia de que as diferenças de habilidade poderiam ser quantificadas e mensuradas. Cyril Burt, discípulo de Pearson, foi responsável pelo desenvolvimento do conceito de QI. Nos Estados Unidos, este movimento foi direcionado ao intento de provar a superioridade racial do branco sobre o negro (LEWONTIN et al, 2003).

No ensaio de Young, essa medida de inteligência (QI) obtida por métodos “inquestionavelmente objetivos”, passa a ser tomada como base para a indústria. Criticando as comprehensive reforms4, o narrador alerta para o “perigo” do rebaixamento do desempenho na “competição internacional” com os demais países. Estes também possuíam o seu “estoque de talento”, este “recurso escasso”, sobretudo considerando que estavam num contexto de Guerra Fria, em que a produção de armas era alçada a política-chave para a “defesa nacional”.

A retórica baseada na lei da oferta e procura de “talentos” representa uma ácida crítica ao processo de colonização do discurso dos negócios aplicado à educação (ou “comodificação” da educação). É referido inclusive como “desperdício” deixar a criança “pobre e talentosa” destinada aos trabalhos manuais em vez de direcioná-la às escolas de ponta – os trabalhos manuais eram destinados somente àquelas pessoas cuja avaliação escolar (medida do QI) já havia provado sua “burrice” (o termo utilizado pelo autor é dumbness).

O narrador, que se identifica com os privilégios sociais da elite meritocrática, tece fortes críticas ao Partido Trabalhista, que combatia o estabelecimento de um sistema escolar dual (grammar schools como escolas da elite e comprehensive schools como escolas “democráticas” - leia-se aqui voltadas para as massas). A justiça para a maioria era encarada como injustiça para a minoria – a parcela que realmente importava, visto serem a parcela de “gênios”: “Ao mostrar que todos os homens eram igualmente astutos em algo – o que poderia ser mais fácil? - eles foram tão longe quanto podiam mostrando que nenhum homem é um gênio em coisa alguma – o que pode ser mais perigoso? Em nome da igualdade eles sacrificaram os poucos aos muitos.” (YOUNG, 1958, p. 46)5.

No hierárquico sistema escolar descrito no ensaio ficcional, o papel atribuído à escola é o de ser uma “escada rolante para os bem dotados”, que, tendo em vista as necessidades de geração de talentos (o recurso mais escasso), deveriam começar o quanto antes a testagem para verificar suas aptidões e qual tipo de escola seguiriam: “o governo aprendeu que o único jeito de conseguir mais e melhores engenheiros, médicos e servidores públicos até os limites da Natureza era começar aos 3 anos, para assegurar que nenhuma habilidade escapasse a partir desta idade”.

A dificuldade maior, segundo o narrador, não era tanto “que os hábeis ficassem na escola”, mas fazer com que os “estúpidos” saíssem para aturar os trabalhos manuais para os quais sua inteligência era adequada. Para fazê-lo, era preciso avançar nas técnicas de testagem, estabelecendo o QI como “qualificação chefe para entrada na elite”, momento a partir do qual “A psicologia educacional assumiu um lugar central na pedagogia da qual nunca foi totalmente deslocada” (YOUNG, 1958, p. 70). Ainda que tenha enfrentado críticas, o modelo foi se consolidando conforme os psicólogos e sociólogos estudiosos destas avaliações foram se libertando dos “emaranhados da ideologia”.

É curioso que, escrevendo em 1958, Young tenha antecipado na sátira o entusiasmo e apologia do poder quase salvador hoje atribuído às tecnologias. Na narrativa, o ano de 1989 marca “um novo passo na ciência”, tratando de “automação” muito antes das profundas modificações dos processos produtivos pós-crise de 1973, e atribuindo às máquinas a capacidade de testagem: “Enquanto homens se tornavam mais parecidos com máquinas, as máquinas se tornaram mais parecidas com homens, e quando as máquinas foram construídas para imitar pessoas, o ventríloquo se entendeu” (YOUNG, 1958, p. 73-74). O poder de as máquinas julgarem objetivamente o desempenho reforçou a ideia de mérito como característica objetiva e inata, determinada biologicamente, cujo papel da escola era tão somente “revelar” - caso contrário, direcionar os “estúpidos” aos trabalhos manuais para os quais seriam melhor adequados, segundo sua própria medida e julgamento.

Para estes últimos, discutiu-se qual filosofia escolar seria mais adequada: “As crianças aprendiam os 3 R's6 assim como usar ferramentas simples e medição como aferidor ou mesmo micrômetros”. Passou a existir uma preocupação mais sistemática do papel da escola para os “medíocres”: “as escolas tinham uma função muito mais importante do que equipar seus alunos com algumas habilidades elementares; elas também precisavam instilar uma atitude mental que seria útil para efetivar o desenvolvimento de suas tarefas futuras na vida” (YOUNG, 1958, p. 109). Desta necessidade decorre a criação de um Mythos, ou mitologia: o mito da muscularidade, que promovia o culto da coragem física, “encorajando os alunos a valorizar força física, disciplina corporal, destreza manual. Artesanato, ginástica e jogos viraram o centro do currículo”. Mais adiante, afirma que “o único trabalhador manual bom, sabemos, é o que não tem habilidade para nada melhor”, e conclui que “uma vez que todos os gênios estão na elite, e todos os imbecis entre os trabalhadores, que significado pode ter a igualdade? Que ideal pode ser sustentado a não ser o princípio de status igual para inteligência igual?” (YOUNG, 1958, p. 115)

Os conflitos sociais decorrentes do aprofundamento da estratificação de classes são narrados na segunda parte do livro, quando se descrevem os descontentamentos com os privilégios da elite pelos trabalhadores manuais, e o questionamento cada vez mais profundo do axioma de que “as pessoas são desiguais, e a injunção moral decorrente é que elas deveriam ter seus postos na vida atribuídos conforme suas capacidades” (YOUNG, 1958, p. 116). Young retrata a acomodação do Partido Trabalhista à nova sociedade a partir do deslocamento da ideia de igualdade para a de igualdade de oportunidades, com ironia fina: “Os socialistas não percebiam que, aplicada na prática, a igualdade de oportunidades significava a igualdade da oportunidade de ser desigual” (YOUNG, 1958, p. 129).

O ataque ao princípio hereditário empreendido pelos socialistas foi crucial para a emergência da sociedade baseada no mérito, e o apelo por ascensão social levou os socialistas a serem complacentes com a lógica competitiva. O Partido teve seu caráter de classe esvaziado quando “abandonaram o apelo de solidariedade da classe trabalhadora e se concentraram na classe média, em parte para capturar novas seções do eleitorado, mais para manter o ritmo de seus próprios apoiadores, que tinham em sua perspectiva subido quanto a seu ponto de origem”. Young descreve inclusive as mudanças discursivas que teriam marcado esta transformação, por meio de relexicalizações afins com os sentidos da nova sociedade ainda mais estratificada: o “Partido Trabalhista” é relexicalizado como “Partido Técnico”, já que o termo “trabalhador” havia se tornado um tabu com o qual a nova classe média não gostaria de ser identificada7. A integração do novo “Partido Técnico” às estruturas de poder via transmissão de privilégios antes restritos às oligarquias para os familiares dos sindicalistas são invocadas para explicar esta transformação do sindicalismo em braço da elite meritocrática.

O capítulo final, intitulado “Crise”, narra o crescente clima de contestação, protagonizado por militantes mulheres, muitas vezes das “classes mais espertas” que renunciam aos seus privilégios e são consideradas como as “novas Populistas”. Estabelecendo uma aliança com antigos sindicalistas que, segundo o narrador, “nunca saíram de sua adolescência política”, este novo movimento é apontado como o principal responsável pelos “levantes de Maio” de 2033.

No Manifesto de Chelsea, resolução da convenção do “Partido dos Técnicos”, o movimento se opõe à ideia de que alguém seja intrinsecamente superior a outro em qualquer sentido, defendendo um conceito mais pleno de igualdade. Uma leitura possível é de que o trecho a seguir represente a visão defendida pelo próprio Michael Young:

A sociedade sem classes seria uma em que ambos possuíssem e atuassem sob valores plurais. Se tivéssemos de avaliar pessoas não apenas de acordo com sua inteligência e sua educação, sua ocupação, e seu poder, mas de acordo com sua gentileza e sua coragem, sua imaginação e sua sensibilidade, sua simpatia e generosidade, não poderia haver classes. Quem seria capaz de dizer que o cientista seria superior ao porteiro com qualidades admiráveis como pai, o servidor público com habilidade incomum em ganhar prêmios seria superior ao caminhoneiro com habilidade incomum para cultivar rosas? A sociedade sem classes também seria a sociedade tolerante, na qual diferenças individuais fossem ativamente encorajadas assim como passivamente toleradas, na qual a dignidade do homem recebesse enfim significado pleno. Todo ser humano teria então oportunidade igual, não para ascender no mundo à luz de qualquer medida matemática, mas desenvolver suas próprias capacidades especiais para levar uma vida rica8 (YOUNG, 1958, p. 169).

O conceito de igualdade defendido no trecho acima, apesar de tratar da ideia de “oportunidade igual”, demarca contra a ascensão baseada em uma medida matemática, mas sim no desenvolvimento das “próprias capacidades” para uma “vida rica”. A “sociedade sem classes” permitiria “valores plurais”, uma “sociedade tolerante” com as diferenças, de forma a estimular a sua convivência e na qual a dignidade tivesse plenitude. Trata-se de um conceito distinto daquele trabalhado pelo narrador do livro, mais afim ao pensamento liberal clássico.

De acordo com Lewontin et al (2003), o liberalismo clássico estaria fundamentado em três pressupostos, a saber: 1) a assunção de que as desigualdades sociais seriam consequência direta e iniludível das diferenças entre os indivíduos em habilidade e mérito intrínsecos - o êxito destes indivíduos dependeria de sua capacidade geneticamente determinada e esforço empreendido; 2) o mérito e a habilidade seriam transmitidos de geração a geração nas famílias; e 3) visto que estas diferenças são biológicas (logo, naturais), elas conduzem inevitavelmente a sociedades hierárquicas, já que é próprio da natureza formar hierarquias de status, riqueza e poder (LEWONTIN et al, 2003). O corolário desta visão de sociedade é uma prescrição para a atividade do Estado: não se deve buscar uma equalização “antinatural” de condições sociais, o que seria “artificial”, mas proporcionar “o lubrificante para facilitar e estimular o acesso dos indivíduos às posições que suas naturezas intrínsecas lhes predispuseram” (LEWONTIN et al, 2003, p. 90, o grifo é meu)

Na contramão das avaliações padronizadas: o arrependimento de uma das formuladoras da política educacional de George H. W. Bush e Bill Clinton

Diane Ravitch, uma das educadoras que participou ativamente das formulações do Departamento de Educação estadunidense nos mandatos presidenciais de George H. W. Bush (o pai) e Bill Clinton, recentemente publicou um livro (Vida e Morte do Grande Sistema Escolar Americano) em que expressa seu desconforto com os rumos tomados pelas políticas que costumava defender. Ravitch (2010), que atribui esta mudança de posição ao fato de ter “visto como estas ideias estavam funcionando na realidade”, acredita que as reformas escolares que ajudou a elaborar representam mais um modismo pedagógico cuja efetiva melhoria na educação não se sustenta na prática. O livro de Ravitch é um depoimento que busca explicar, na visão da autora, porque as estratégias de reforma, apoiadas pelas instâncias educacionais oficiais, financiadas por corporações “mega-ricas” (que a autora chama de “clube dos garotos bilionários”) e aplaudida por conselhos editoriais estão equivocadas: segundo o subtítulo da obra, porque os testes e a “escolha” (choice) estão destruindo a educação.

Segundo Ravitch, os formuladores oriundos do mundo dos negócios tinham como propósito das reformas alinhar a educação pública com as práticas de organizações modernas, flexíveis e de alta performance, a fim de fazer a transição da era industrial para a pós-industrial. Estes reformadores atribuíam às escolas geridas pelo Estado ineficácia, tendo em vista a ausência do princípio da competição – não havia incentivo para que os professores melhorassem – e advogavam a expansão de escolas charter, escolas financiadas pelo governo mas com gestão privada:

Livres do controle governamental direto, as escolas seriam inovadoras, contratariam apenas os melhores professores, livrar-se-iam de professores incompetentes, estabeleceriam suas próprias escalas de pagamento, competiriam por estudantes (clientes) e seriam julgadas somente por seus resultados (escores em testes e notas de conclusão)9 (RAVITCH, 2010, p. 9-10).

Ravitch admite, com algum arrependimento, que deixou-se influenciar pela ideologia conservadora dos administradores de alto escalão no Departamento de Educação. Posicionando-se com simpatia pela política lançada no governo Reagan em 1983, sintetizada no documento A Nation At Risk, localiza-se no campo daqueles que defendem um “currículo escolar rico e coerente, especialmente em história e literatura para preservar a educação pública americana, porque ela está intimamente conectada com nossos conceitos de cidadania e democracia e com a promessa da vida americana” (RAVITCH, 2010, p. 14).

Ravitch estabelece uma série de diferenciações, muitas das quais questionáveis, entre o que representou o lançamento do documento A Nation At Risk, de Reagan, e a lei No Child Lef Behind, aprovada durante o governo de George W. Bush (o filho). A partir de um tom laudatório ao documento do governo Reagan (um projeto “positivamente idealista, liberal e presciente”), tece duras críticas ao No Child Left Behind, “uma abordagem tecnocrática à reforma escolar que media “sucesso” apenas em relação a testes padronizados em matérias de duas habilidades, com a expectativa de que este treinamento limitado reforçaria nossa competitividade nacional com outras nações” (RAVITCH, 2010, p. 29). A autora identifica que A Nation At Risk foi precursor do movimento em defesa de padrões de ensino mínimos nacionais (por ela endossados até hoje), e que teria sido “sequestrado” (hijacked) pela implementação da lei No Child Left Behind, a qual passou a enfocar os testes e a accountability de seu desempenho, a partir de indicadores públicos. O enfraquecimento do movimento em defesa de padrões (standards), em vista das controvérsias sobre o que ensinar num país de dimensões tão continentais quanto as visões ideológicas sobre currículo e escola, abriu caminho para o movimento em defesa dos testes e da accountability.

Ravitch afirma que a expectativa de que “a mão invisível do mercado” (mencionando textualmente o liberal Adam Smith) levaria a melhorias por meio de uma força invisível não se sustenta na educação: a ideia de que a liberdade da regulação governamental seja uma solução é uma “isca” do mercado para tratar, numa falsa analogia, educação a partir da visão do mundo de negócios. Financiada por fundações com o intuito de aprofundar estas ideias nas instituições de ensino superior para a formação de professores, bem como nas próprias escolas, Ravitch se tornou porta-voz dessa política por mais de uma década.

Com sua demissão em 2009, a autora passou a examinar como as reformas empreendidas estavam debilitando a educação pública americana, sobretudo o movimento de “escolha”, endossada pela No Child Left Behind, lei que a autora é categórica em afirmar como dispositivo para “medir e punir” o desempenho das escolas. O plano de accountability desta lei incluía uma série de metas, dentre elas alcançar “proficiência” (definida segundo cada estado da federação) para 100% dos estudantes até o ano de 2014. O não-cumprimento da audaciosa meta implicaria em sanções para a escola, na forma de uma “restruturação” frequentemente de caráter privatista, como transformar-se numa escola charter (escolas financiadas publicamente mas com gestão privada), substituir a equipe de gestão, ou ser transferida diretamente para o controle privado.

A autora retrata as experiências de destaque que serviram de inspiração à No Child Left Behind que ocorreram nos Estados Unidos da América, partindo dos casos de Nova York e San Diego, cidades que primeiro implementaram modelos educacionais com ênfase em choice e accountability no país. Narra em detalhes que as principais estratégias para atingir as metas estabelecidas na lei envolviam práticas de “microgerenciamento”, ou seja, intervenção das instâncias oficiais para coação e constrangimento de diretores e professores no sentido do cumprimento das metas. Chama atenção o exemplo de San Diego, onde, durante uma reunião de conselho escolar, quinze profissionais foram demitidos publicamente e escoltados por oficiais de polícia para retirar seus pertences das escolas em que estavam lotados, algo que foi interpretado como aviso para aqueles que não “colaborassem” com o modelo implementado (RAVITCH, 2010).

O movimento batizado como movimento de “escolha”, representado na oferta de vouchers de matrícula (uma espécie de “vale” correspondente ao custo de cada aluno, que poderia ser direcionado tanto para a escola pública como para a privada ou a charter) seria a principal contraparte do investimento em accountability das escolas: a partir de testes padronizados (exclusivamente de língua inglesa e matemática), seria possível aferir quais escolas obtêm o melhor desempenho, permitindo que as famílias escolham dentre as escolas que melhor “competem” neste mercado – sejam elas escolas públicas, escolas charter ou privada – onde matricular seus filhos. Entretanto, segundo Ravitch (2010), escolas de periferia, com maior participação de negros e imigrantes, frequentemente mantinham o mesmo público, colocando em xeque o modelo de que as famílias matriculariam seus filhos em “escolas melhores” ou “mais competitivas”, o que demonstra que o modelo de “escolha dos pais” tinha grandes limitações.

A ênfase nas escolas charter consolidou, para a autora, um sistema de “duas camadas com crescente desigualdade” (qualquer semelhança com o conceito de dualismo não é mera coincidência), já que as escolas públicas que recebem a maioria de estudantes pobres, ou que não dominam a língua inglesa (imigrantes) são ciclicamente avaliadas como de “menor qualidade”, frente às avaliações padronizadas e outros indicadores de accountability. A principal crítica de Diane Ravitch, com quem concordo neste ponto particular, é a desconfiança com a aproximação entre “qualidade da educação” e desempenho nos testes (“escola boa é a bem avaliada”). A autora (antiga defensora do modelo que passou a combater) afirma que o uso indiscriminado dos testes e principalmente a vinculação entre o desempenho dos testes e decisões sobre a equipe escolar (demissão de diretores e professores, remuneração baseada em prêmios ou punições conforme desempenho, fechamento de escolas públicas e transferência para o setor privado) não é sinônimo de boa educação.

O depoimento de Ravitch é incisivo em afirmar que a busca por melhores resultados nos testes que contemplam somente língua inglesa e matemática se converteu em princípio e fim da atividade educativa, com muitos poréns. Ainda que em alguns casos possa ter ocorrido um aumento no desempenho segundo estas medidas (o que a própria autora questiona), Ravitch alerta para o risco de se igualar qualidade da educação a desempenho nos testes. Num contexto em que o desempenho está vinculado à permanência dos profissionais de educação, ao “pagamento por mérito” (bônus concedido para os profissionais das escolas que aumentam seus indicadores de desempenho), e à centralização da tomada de decisões, Ravitch aponta que estas alterações estão encolhendo ou mesmo eliminando a noção de público da educação: a ausência de fóruns para se debater a tomada de decisões é algo marcante numa política em que “vale tudo” para “melhorar os índices”.

Dentre os argumentos utilizados, está a demarcação de que testes não são instrumentos precisos, diferente do que boa parte da literatura educacional parece tomar por evidência. Os testes, diferentes de um termômetro ou um barômetro (e mesmos estes tem um grau de erro calculado), são falíveis como a inteligência humana, por diversas razões: seja por uma escolha de vocabulário ambígua, questões mal formuladas ou erros não previstos. A avaliação de determinado estudante, ainda que fizesse a mesma prova em dias diferentes, não corresponderia ao mesmo desempenho, seja porque ele teve uma boa noite de sono, ou porque não tenha se distraído com algum problema pessoal. São ainda descritos outros “atalhos” que podem “inflacionar” os resultados nas provas, como a “cola” institucionalizada, ou o fato de professores e diretores revelarem os resultados da prova para fins de melhor pontuação nos testes; cursos que se voltem prioritariamente para a preparação ao teste, ao invés de outros propósitos educativos10.

São relatadas ainda outras práticas condenáveis em função da necessidade de “melhorar os índices”: restringir a admissão de estudantes de “baixa performance”, visto que tendem a jogar para baixo o desempenho da escola. Isso pode ser feito de diversas maneiras: através do fechamento de escolas que concentram menores notas, colocando exigências adicionais para admissão de estudantes nas escolas bem avaliadas, excluindo dos testes aqueles estudantes que apresentam notas baixas ou com muitas faltas, limitando o ingresso de imigrantes (aprendizes da língua inglesa) ou de estudantes que necessitam de educação especial. Em nome da competição, diversos grupos sociais (principalmente os mais pobres, negros e/ou imigrantes, e os deficientes) acabam sendo preteridos com o fim último de “melhorar o desempenho da escola”.

A reflexão de Diane Ravitch (2010) parece bastante conveniente para pensar na contraparte do desempenho “de excelência” ou “meritório”: a lógica da competição entre escolas, em busca do aumento do desempenho em testes, aprofunda a segmentação entre escolas “excelentes” e escolas “de baixo desempenho”. A outra face do mérito é o “fracasso”, seja por conta dos estudantes que evadem, seja por reafirmar que as escolas que tenham problemas para atingirem as metas de desempenho entrem num círculo vicioso de sanções que contribuem para o esvaziamento da educação pública.

Ao utilizar mecanismos de mercado para a educação, reduzindo qualidade da educação à performance nas avaliações externas, renuncia-se à possibilidade de apreender qualidade em outros termos que não estes determinados pelo mercado. Os opositores a este movimento são frequentemente identificados como “defensores dos sindicatos”, eleitos como principais oponentes do que seria “educação de qualidade” segundo os padrões mercadológicos – os sindicatos são apontados como principal obstáculo à meta de obter “professores eficientes” (e de “se livrar” dos ineficientes), justamente por representarem um polo sistemático de oposição à perda do caráter público da educação.

A redução de qualidade a desempenho em avaliações externas, vinculando o aumento nos “indicadores de qualidade” ao “pagamento por mérito” dos professores, reforçou a ideia de mérito como a principal característica a ser buscada no processo educacional. Bons professores seriam aqueles capazes de gerar bons índices – e bons índices só podem ser atingidos com bons alunos (ou seja, os que vão bem nos testes padronizados). O mérito na educação passa a ser associado aos indivíduos que são bem avaliados, ainda que as condições em que esta avaliação se dá dificilmente sejam postas em xeque. Educação de qualidade é igualada à educação de excelência, capaz de formar os indivíduos melhor avaliados, seja por sua “inteligência inata” (também mensurável por seu coeficiente de inteligência – QI) seja por seu esforço (ou capacidade de conformar-se aos critérios de avaliação determinados).

Algumas considerações

O fio de continuidade que pode ser traçado a partir de autores de épocas tão distintas e contextos tão diversos é aqui estabelecido pela construção do mérito como padrão-ouro de qualidade da educação. Miriam Limoeiro-Cardoso critica a compreensão de método como mera técnica de obtenção de dados dissociada da compreensão teórica. Uma epistemologia pretensamente neutra que subjaz à avaliação de qualidade tomada de avaliações padronizadas. Esta perspectiva de apreciação da qualidade escolar é criticada por Diane Ravitch, que destaca que a produção de índices mensuráveis como principal objetivo na escola, em vez de propiciar uma mudança na cultura escolar que fosse capaz de produzir melhores índices, aprofundou diferenças abissais entre escolas já tidas como de excelência em oposição às escolas “de bairros”, com maior concentração de negros e imigrantes. A partir da sátira de Michael Young, é possível identificar que a distopia construída em sua obra, de uma sociedade hierarquizada pelo mérito, tem raízes nas políticas presentes, as quais podem permanecer intocadas caso não se submetam à apreciação crítica.

1Accountability por vezes traduzido como “responsabilização”, é aqui compreendido no sentido de que a escola, assim como uma empresa, deve “prestar contas” (account) do que investe, bem como dos resultados obtidos a partir deste investimento.

2Do not the masses, for all their lack of capacity, sometimes behave as though they suffered from a sense of indignity? Do they necessarily see themselves as we see them? We know it is only by giving free reign to well-trained imagination and organized intelligence that humanity can hope to reach, in centuries to come, the fulfillment it deserves. Let us still recognize that those who complain of present injustice think they are talking about something real, and try to understand how it is that nonsense to us makes sense to them” (YOUNG, 1958, p. 15-16).

3A similaridade com os eventos que ficaram conhecidos como jornadas/levante de junho de 2013 no Brasil é surpreendente: troquemos junho por maio, domésticas por garis, considere-se o papel do feminismo nos movimentos massivos de rua recentes, e a analogia se completa.

4Comprehensive reforms ou reformas compreensivas foram medidas aplicadas em diversos países europeus a partir da constatação de que o sistema educacional era extremamente segmentado e contribuía para discriminação de estudantes.

5“By showing that all men are equally duffers at something – what could be more easy? - they went as far as they could to show that no man is a genius at anything – what could be more dangerous? In the name of equality they wantonly sacrificed the few to the many” (YOUNG, 1958, p. 46).

6Os 3 R (“erres”) aqui descritos correspondem a “Reading”, “wRiting” e “aRithmetic”, ou seja, o famoso “mínimo” esperado para a educação dos trabalhadores - “ler, escrever e contar”.

7Outros exemplos citados por Young são a transformação da denominação de ocupações, como caçador de ratos (“oficiais de roedores”), inspetores sanitários (“inspetores de saúde pública”), e limpadores de banheiro (“atendentes de amenidades”).

8“The classless society would be one which both possessed and acted upon plural values. Were we to evaluate people, not only according to their intelligence and education, their occupation, and their power, but according to their kindliness and their courage, their imagination and sensitivity, their sympathy and generosity, there could be no classes. Who would be able to say that the scientist was superior to the porter with admirable quality as a father, the civil servant with unusual skill at growing roses? The classless society would also be the tolerant society, in which individual differences were actively encouraged as well as passively tolerated, in which full meaning was at last given to the dignity of man. Every human being would then have equal opportunity, not to rise up in the world in the light of any mathematical measure, but to develop his own special capacities for leading a rich life” (YOUNG, 1958, p. 169).

9“Free of direct government control, the schools would be innovative, hire only the best teachers, get rid of incompetent teachers, set their own pay scales, compete for students (costumers), and be judged solely by their results (test scores and graduation rates)”. (RAVITCH, 2010, p. 9-10).

10Exemplo disso é a recorrência com que faculdades privadas, que com o intuito de obter melhores resultados na avaliação do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), organizam cursos preparatórios para melhorar o desempenho da instituição no exame.

Notas

Referências

CARDOSO, Miriam Limoeiro. O mito do método. Boletim carioca de Geografia, v. 25, 1971. [ Links ]

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HARVEY, David. Para entender O Capital. São Paulo: Boitempo. 2013. [ Links ]

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______. The rise of meritocracy. London: Transaction Publishers, 1994. [ Links ]

Recebido: 17 de Maio de 2017; Aceito: 08 de Junho de 2018

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