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Perspectiva

versão impressa ISSN 0102-5473versão On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.36 no.4 Florianopolis out./dez 2018  Epub 30-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2018v36n4p1338 

Artigos de Demanda Contínua

EM DIVERSAS FRENTES: AS FILHAS DA CARIDADE E SUAS EXPERIÊNCIAS EDUCACIONAIS NAS PROVÍNCIAS DE MINAS GERAIS E DO RIO DE JANEIRO (1850-1900)

IN DIFFERENT FRONTS: THE DAUGHTERS OF CHARITY AND THEIR EDUCATIONAL EXPERIENCES IN THE MINAS GERAIS AND THE RIO DE JANEIRO (1850-1900)

EN DIFERENTES FRONTERAS: LAS HIJAS DE LA CARIDAD Y SUS EXPERIENCIAS EDUCATIVAS EN LA CAPITAL DEL IMPERIO Y MINAS GERAIS (1850-1900)

Aline de Morais Limeira Paschehttp://orcid.org/ 0000-0002-5964-66611 

Maria Aparecida Arruda2 
http://orcid.org/0000-0002-4916-0756

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ

2Universidade Federal de São João Del Rei, UFSJ


RESUMO:

Ao entender a importância de refletir acerca das articulações entre poder público e Igreja Católica ao longo do desenvolvimento do processo de escolarização no Brasil, este estudo investigou experiências educativas de iniciativas religiosas de uma Ordem específica em atuação desde a segunda metade do século XIX. Neste caso, propusemos a análise acerca do papel das Filhas da Caridade (Ordem de São Vicente de Paulo) no campo da Educação, a partir de algumas orientações mundiais da Ordem, cuja atuação se realizava em diversos países. Os Estatutos da Ordem de São Vicente de Paulo pretendiam regulamentar suas práticas, elaborando um complexo sistema de regras, princípios, finalidades e normatizações. Assim, procuramos esquadrinhar a proposta de atendimento das religiosas, e as representações erigidas em torno da ação educativa, com base nos pressupostos especificados naquele documento e nas demais fontes analisadas (anúncios publicitários, relatórios oficiais da administração do ensino e impressos). De modo específico, tencionamos inquirir acerca de suas ações nas províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Tomamos, para efeito da análise, dois exemplos de instituições educativas criadas pelas vicentinas pertencentes à malha privada do ensino: em Minas Gerais, um Externato (com aulas avulsas) na cidade de São João del-Rei; e, na província do Rio de Janeiro, o Colégio Imaculada Conceição na Corte Imperial, fundado em 1855 (em funcionamento até hoje). Como resultado, apreendemos que, apesar de distantes geograficamente, as instituições analisadas apresentam maior número de características que as aproximam num esforço pelo investimento comum da educação.

Palavras-chave:  instituições escolares; ensino religioso; expansão das ordens religiosas

ABSTRACT:

Understanding the importance of reflecting on the articulations between public power and the Catholic Church throughout the development of the schooling process in Brazil, this study aims to investigate educational experiences of religious initiatives of a specific Order in action since the second half of the nineteenth century. In this case, we proposed the analysis of the role of the Daughters of Charity (Order of Saint Vincent de Paul) in the field of Education, based on some world orientations of the Order, whose activity was carried out in several countries. The Statutes of the Order of Saint Vincent de Paul intended to regulate their practices, elaborating a complex system of rules, principles, aims and norms. Thus, we seek to analyze the proposal of religious services, and the representations erected around the educational action, based on the assumptions specified in that document and in the other sources analyzed (commercials, official reports of the teaching administration, printed). Specifically, we intend to inquire about their actions in the provinces of Minas Gerais and Rio de Janeiro. For the purpose of the analysis, two examples of educational institutions created by the Vincentians belonging to the private teaching network were studied: in Minas Gerais, an Externato (with lectures) in the city of São João del Rei; and in the province of Rio de Janeiro, the Immaculate Conception College in the Imperial Court, founded in 1855 (in operation until today). As a result, we perceive that, although geographically distant, the analyzed institutions present more characteristics that approximate them in an effort for the common investment of education.

Keywords:  School institutions; Religious education; Expansion of religious orders

RESUMEN:

Entendiendo la importancia de reflexionar acerca de las articulaciones entre poder público e Iglesia Católica a lo largo del desarrollo del proceso de escolarización en Brasil, el estudio tiene como objetivo investigar experiencias educativas de iniciativas religiosas de una Orden específica en actuación desde la segunda mitad del siglo XIX. En este caso, propusimos el análisis acerca del papel de las Hijas de la Caridad (Orden de San Vicente de Paulo) en el campo de la Educación, a partir de algunas orientaciones mundiales de la Orden, cuya actuación se realizaba en diversos países. Los Estatutos de la Orden de San Vicente de Pablo pretendían reglamentar sus prácticas, elaborando un complejo sistema de reglas, principios, finalidades y normatizaciones. Así, procuramos escudriñar la propuesta de atención de las religiosas, y las representaciones erigidas en torno a la acción educativa, con base en los supuestos especificados en ese documento y en las demás fuentes analizadas (anuncios publicitarios, informes oficiales de la administración de la enseñanza, impresos). De modo específico, tenemos la intención de investigar sobre sus acciones en las provincias de Minas Gerais y Río de Janeiro. En la ciudad de San Juan del Rey, en el municipio de San Juan del Rey, en el municipio de San Juan del Rey, en el municipio de San Juan del Rey, En la provincia de Río de Janeiro, el Colegio Inmaculada Concepción en la Corte Imperial, fundado en 1855 (en funcionamiento hasta hoy). Como resultado, aprehendemos que, a pesar de distantes geográficamente, las instituciones analizadas presentan mayor número de características que las aproximan a un esfuerzo por la inversión común de la educación.

Palabras claves:  Instituciones escolares; Educación religiosa; Expansión de las órdenes religiosas

Introdução

Talvez, o registro fotográfico da Escola da Igreja Protestante Rio da Luz e fragmentos de artigos publicados em jornais datados de 2011 e 1880 indiquem que a complexa problemática da religião e sua incursão no campo educacional dizem respeito ao passado, ao presente e, sobretudo, ao futuro.

Fonte: Jornal O Caminho.1 1

Figura 1 Foto de 1895 da Escola da Igreja de Rio da Luz (atualmente Escola Municipal de Ensino Fundamental Profª Gertrudes S. Milbratz – Jaraguá do Sul, SC) 

A mãe [...] não admite que as aulas de ensino religioso comecem com uma oração nem que Deus seja tratado como uma entidade real e superior [...] O acordo foi feito no ano passado [...] e permitiu que, nesse horário, os meninos frequentem a biblioteca (VALLE, 2011).

[...] intolerável tyrania do ensino leigo obrigatório, evidente perseguição ao ensino religioso, como evidente afferro ao ensino positivista (...) que so agradou à tresloucada grei dos positivistas atheus (O APÓSTOLO, 18/03/1880, p. 1).

Talvez, o registro fotográfico da Escola da Igreja Protestante Rio da Luz e fragmentos de artigos publicados em jornais datados de 2011 e 1880 indiquem que a complexa problemática da religião e sua incursão no campo educacional dizem respeito ao passado, ao presente e, sobretudo, ao futuro.

A partir de possíveis diagnósticos atuais, em relação a alguns aspectos do funcionamento da máquina escolar, podemos nos deparar com certos conflitos ou tensões presentes nas relações estabelecidas entre algumas forças que a legitimam, dão suporte e fazem-na funcionar. Referimo-nos às forças públicas e privadas, já analisadas, por exemplo, a partir de perspectivas como a da “privatização dos recursos públicos” na instrução por meio da instituição da subvenção (GONDRA & PASCHE, 2016). De modo geral, a historiografia da educação, a partir de outros estudos, como os de Gondra e Schueler (2008), Carvalho e Gonçalves Neto (2010), aponta que a construção da forma escolar moderna se deu por intermediações de forças distintas.

Diversas experiências educativas, escolares e não escolares, surgiram a partir de iniciativas de particulares e pelas ações do Estado em todo o Brasil. No entanto, em alguns lugares, como a capital do País, a malha particular de ensino alcançava, muitas vezes, índices mais significativos nas estatísticas, as quais contabilizavam números de colégios ou alunos (PASCHE, 2014). Nesse sentido, é imprescindível, para a História da Educação, conhecer e compreender a organização e o funcionamento daquelas experiências.

Na reflexão acerca dessas questões, a indagação sobre o papel ou a presença da Igreja Católica – que mantinha (e mantém!) múltiplas e complexas relações com o poder público e cujas ações estavam historicamente ligadas às questões educacionais no Brasil – não pode estar ausente. Não somente por tratar-se da religião oficial do Estado Imperial ao longo do século XIX, mas porque há evidências de que o poder público amparou as ações católicas na instrução em termos materiais com subsídio financeiro e doação de espaços e material por exemplo (PASCHE, 2014). Desta feita, esta proposta de estudo, inserida em projetos de pesquisas em desenvolvimento, tem como objetivo investigar as experiências educativas de iniciativas religiosas de uma Ordem específica da Igreja Católica a partir da segunda metade do século XIX.

Vicentinas: uma Ordem, sua história e sua pedagogia

Interessa-nos observar e refletir acerca do papel das vicentinas (como são conhecidas as integrantes da Ordem de São Vicente de Paulo, as Filhas da Caridade) nas atividades de Educação, Escolarização, Caridade e Assistência, com base nas orientações mundiais da própria Ordem e de suas experiências realizadas no País ao longo do século XIX.

Essas religiosas representavam a ala feminina da Sociedade São Vicente de Paulo – a masculina era a Congregação da Missão (ou Lazaristas) – e se instalaram no País em meio ao movimento de expansão das atividades assistenciais e sociais da Igreja Católica no Oitocentos, tendo como propósito desenvolver ações pastorais e educacionais. Vindas da França, em conexão com o Superior Geral da Congregação da Missão, Padre Etienne, e da Casa Mãe de Paris (Superiora Geral das Filhas da Caridade), instalaram-se no Brasil em fins da década de 1840, inicialmente em Mariana, em seguida em todo o País (em 1853, na província do Rio de Janeiro).2 Mas a história de sua fundação remonta ao ano de 1633, quase dois séculos antes de sua chegada ao País. E esses registros da Companhia encontram-se diretamente relacionados aos dos seus fundadores: Vicente de Paulo (Monsieur Vincent) e Luísa de Marillac (Mademoiselle Le Gras) (ARRUDA, 2018).

A Companhia das Filhas da Caridade, confiada a Luíza de Marillac pelo seu idealizador e líder espiritual o Padre Vicente de Paulo, estruturou-se em Châtillon-les-Dombes (mais tarde Châtillon-sur-Chalaronne), na França, com as primeiras iniciativas de assistência às famílias pobres da paróquia da cidade, estendendo essas ações, mais tarde, a outras localidades. Foi atribuída a elas a função de educar as crianças órfãs, entendendo que isso as aproximaria da imagem de Nossa Senhora, visto que, segundo Luísa de Marillac, a caridade deveria completar-se pela educação.

Entre outras coisas, Luísa de Marillac era encarregada de ensinar maneiras de curar conforme os usos de então, quais sejam: fazer sangria e preparar remédios e tisanas. As órfãs aprendiam ainda os principais artigos da religião, pois, de acordo com as normas, o serviço delas não se dirigiria apenas aos corpos, mas também às almas. Recomendava o Padre Vicente aos membros de sua congregação que ensinassem aos pobres e os catequisassem, em todas as ocasiões, a partir das circunstâncias e de seus centros de interesses – em 1737, ele foi canonizado pelo Papa Clemente XII e, em 1885, foi declarado patrono de todas as obras de caridade da Igreja Católica por Leão XIII.

O regimento da instituição era flexível desde a criação da Ordem ainda no século XVII (1633). Isso porque os seus Estatutos foram sendo construídos ao longo de muitos anos, variando de acordo com a cultura local (dentro do que era considerado “lícito e tolerado”) e com as concepções da própria Ordem, mantendo, porém, alguns pilares básicos de sustentação. Fazem parte dos Estatutos da Ordem de São Vicente de Paulo cartas assinadas pelo próprio Padre fundador, que tinham como função regulamentar suas práticas ao longo do tempo (ARRUDA, 2018).

Em carta datada de 1647, o Padre Vicente orientava os membros da recente Companhia a praticar a humildade, a caminhar sempre na prática da renúncia, da paciência, mansidão e da obediência, e a perseverar na vocação. A disciplina, a hierarquia, a passividade e a submissão são requisitos necessários, na perspectiva do Padre Vicente, aos que servem ao estado eclesiástico no exercício da salvação do povo pobre.

De acordo com a orientação dele, a condição inferior na hierarquia não deveria ser contestada, posto que se tratava da disposição da Providência sob as bênçãos de Deus. Na sua Conferência de 22 de outubro de 1650, Vicente de Paulo recomendava às Filhas da Caridade: “Si el Sr. O bispo... os pregunta qué sois, si sois religiosas, le responderéis que sois pobres Hijas de la Caridad que os hábeis dado a Dios para el serviço de los Pobres”. A preocupação do Padre Vicente (por ocasião da Assembleia Geral das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, 1642) era, portanto, formar uma estrutura interna, cuja atividade seria regulada pela obediência à hierarquia católica e à caridade pelas ações sociais.

Fonte: Arquivo Nacional – códice 300.

Figura 2 Estatuto da Associação Santo Vicente de Paulo 

No Rio de Janeiro, o Estatuto da Associação São Vicente de Paulo, por exemplo, foi aprovado pelo Decreto 3.019, de 05 de dezembro de 1862, alguns anos depois de sua chegada (1853), regulamentando a criação de uma “corporação denominada Província Brasileira das Irmãs de Caridade” (NASCIMENTO, 2013). Analisando-o, é possível perceber a proposta de atendimento das religiosas, e as representações erigidas em torno das suas ações educativas, com base nos pressupostos especificados naquele documento. A partir desse regimento, anunciava que o trabalho das missionárias com as “chamas da caridade” consistia no atendimento aos pobres em suas casas, hospitais e escolas para meninos e meninas, orfanatos, asilos, casas para “loucos”, casas de saúde, campos de batalha a cuidar dos feridos, prisioneiros e outros. No Brasil, inicialmente, as ações das vicentinas se restringiram aos cuidados com os doentes, posteriormente estendendo-se ao ensino, articulando caridade e assistencialismo. Nesse caso, compreendemos que havia absoluta troca entre aspectos da cultura francesa, feminina e congregacionista das Filhas de Caridade com a cultura brasileira e dos diversos lugares onde estiveram instaladas (LAGE, 2011).

Integrando a Ordem, havia a Congregação da Missão (masculina) e a Companhia das Filhas da Caridade (feminina), duas iniciativas que iriam marcar profundamente suas ações no mundo inteiro. Defendia, a Ordem, a função de assistir os pobres e reconhecer o papel insubstituível dos leigos tanto para a evangelização como para a promoção dos pobres. Não raro, é possível observar, nas falas do Padre Vicente, dois advérbios, que se tornaram, para ele, indissociáveis: “espiritualmente” e “corporalmente”. A Congregação da Missão procurava difundir uma educação moral e religiosa calcada na manutenção dos “bons costumes” representados em valores éticos e cristãos.

Buscava-se, assim, na construção de uma determinada identidade do gênero masculino, a formação do bom cristão e do bom súdito para o desenvolvimento de um determinado tipo de educação moral. E os trabalhos das Filhas de Caridade, que estavam “sob jurisdição dos respectivos bispos e da direção superior da Missão da Caridade” (BRASIL, 1862), também tinham como pretensão uma dimensão feminina e pedagógica não restrita aos seus preceitos internos, mas estendida a toda a sociedade ou a “tudo que é obra de caridade”; para elas, o cuidado e a missão educativa, conforme indicam os estatutos.

Por meio do referido documento, as normas da Congregação foram regulamentadas, descrita como deveria ser a vida interna e externa das suas integrantes, no convívio com a sociedade em geral e suas funções, pois se pretendia formar o caráter do bom cristão e, consequentemente, do bom cidadão, perfazendo-se o quadro ideal almejado pela Igreja e pelo Império/Estado. Por ser religião oficial do Estado Imperial, podemos compreender que esses e outros princípios da Igreja Católica (representados e divulgados por tantas outras ordens, sociedades e associações) colaboravam por forjar uma ideia de sociedade e homem civilizados ao mesmo tempo em que as representações acerca da função educativa estavam, quase sempre, articuladas aos princípios morais e religiosos.

De modo geral, como atesta a historiografia da educação, a partir de meados do século XIX, o ideário civilizador e disciplinador da população estava diretamente relacionado às práticas sociais de caridade em relação à pobreza e à mendicância. A preocupação com o perigo representado pela pobreza acentuou-se no País, sobretudo nos principais centros urbanos como a capital, a Corte Imperial. Nessa perspectiva, ancorada em novos padrões de civilidade e difundida por grupos de intelectuais, instituições escolares, representantes políticos, religiosos e pelo Estado, a população menos favorecida, chamada de “classes perigosas”, deveria ser disciplinada, higienizada e civilizada. A instrução e a educação passaram a ser prioridade para a manutenção da ordem social. Para tanto, a criação de asilos, escolas, orfanatos e hospitais contribuiu para a composição do modelo assistencialista de atendimento à população pobre, difundindo-se a ideia de que a educação das classes populares seria um poderoso instrumento de “regeneração social” (GONDRA; SCHUELER, 2008). Dessa feita, o trabalho educativo das Vicentinas – entendido aqui a partir de sua complexidade direcionada pelas ações de escolarização, caridade, assistência e doutrinação religiosa – ganhava visibilidade e legitimidade no Oitocentos.

Experiências educativas

De modo específico, tencionamos inquirir algumas de suas ações e iniciativas no campo da educação nas províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. A primeira, por se tratar do lugar onde originalmente se instalaram as representantes da Ordem francesa quando chegaram ao Brasil criando lá suas primeiras iniciativas; e a segunda, o Rio de Janeiro, por abrigar a capital do Império e ter recebido algumas de suas representantes poucos anos após sua chegada. Dessa forma, tomamos, para efeito da análise, dois exemplos de instituições educativas criadas pelas vicentinas pertencentes à malha privada do ensino: o Externato (localizado na cidade de São João del-Rei) e o Colégio da Imaculada Conceição (Rio de Janeiro, antiga Corte Imperial).

O conjunto documental que permitiu realizar o estudo compõe-se de registros oficiais, manuscritos e impressos, alguns disponíveis na internet e outros sob a guarda de arquivos mineiros ou fluminenses. A análise se deu, portanto, a partir de um repertório de fontes produzidas pelas próprias instituições escolares e pela Ordem religiosa das Filhas da Caridade, como os Relatórios da Santa Casa de Misericórdia, os Estatutos da Ordem de São Vicente de Paulo e os anúncios publicitários do Almanak Laemmert (1844-1914), bem como por vestígios resultantes das ações da administração pública do ensino em Minas Gerais (São João del-Rei) e Rio de Janeiro (Corte Imperial), como Relatórios dos Presidentes das Províncias e legislações específicas da instrução no período analisado.

Um externato nas Minas Gerais

As Filhas da Caridade chegaram a São João del-Rei na segunda metade do século XIX com a atribuição de organizar o funcionamento e ajudar na manutenção da Santa Casa de Misericórdia. Suas ações, todavia, foram expandidas com a criação e organização de um Externato particular para o ensino primário (Externato de São João del-Rei), com a construção e funcionamento de espaços para cuidados com crianças órfãs (Recolhimento da Casa de Caridade e Asilo das Órfãs), assim como de um colégio particular do ensino secundário (Colégio Nossa Senhora das Dores).

Segundo documentos produzidos pela Santa Casa de Misericórdia, esses investimentos no comércio da instrução serviriam para arrecadar fundos para a manutenção das órfãs. Mas, de acordo com alguns documentos oficiais da administração do ensino, sabe-se que o atendimento à orfandade contava também com a subvenção dos poderes públicos para a manutenção dessa “obra de caridade”: a lei mineira de 17 de julho de 1892 autorizava o Presidente do Estado a conceder auxílio anual, por meio da verba direcionada à “Instrução Pública”, ao “Recolhimento da Casa de Caridade de São João del-Rei” e ao “Asilo das Órfãs da mesma cidade”, conferindo a quantia de 2 contos de réis às órfãs ali instaladas (uma quantia equivalente a 120 mil réis mensais). Essas subvenções, destinadas à manutenção das obras de caridade e das entidades educacionais, exigiam, em troca, o ingresso de, no mínimo, dez alunas pobres nos colégios particulares da Companhia (conforme ficou estabelecido na lei de agosto de 1892).

O Externato apareceu como resultado da reorganização de aulas avulsas já existentes na cidade, a partir de uma iniciativa da Irmã Matricon (supervisora geral da missão das Filhas da Caridade na cidade), e como uma proposta articulada ao funcionamento da Santa Casa de Misericórdia. Não há registros que assegurem o início de seu funcionamento, mas é possível afirmar que sua história está diretamente atrelada à própria criação da Escola Normal, que, por sua vez, encontra-se imbricada à criação do Colégio Nossa Senhora das Dores, fundado em 1898 e equiparado às Escolas Normais Oficiais do Estado em 1905 (ARRUDA, 2018).

O Externato funcionou no mesmo período que os da capital (então Ouro Preto) e o de Diamantina, o que caracteriza um contexto de remodelação desse nível de ensino (aulas avulsas e ensino primário). Seu projeto educativo era marcado pela oferta de aulas primárias para meninas, com saberes obrigatórios desse nível de ensino, como leitura, escrita e matemática, mas também por um grupo de saberes mais amplos para a boa educação das suas alunas, como aulas de francês, desenho e piano.

Consta, nos Relatórios da Santa Casa de Misericórdia (1898), a contabilização de 119 alunas matriculadas, sendo 56 meninas matriculadas como “aulas retribuídas” (pagantes) e 63 em “aulas gratuitas”. A mesma prática ocorria em outras instituições das Vicentinas de Minas Gerais:

A criação dos colégios confessionais femininos em Minas Gerais estaria intimamente ligada à vinda das Filhas de Caridade de São Vicente de Paulo e dentro de uma nova perspectiva tanto de ensino, diferenciado dos recolhimentos anteriores, como também de assistência, principalmente às órfãs, contando, inclusive, com subvenções da província. No Relatório de Presidente da Província de 1871, aparece a informação de que havia uma subvenção da província para o Colégio das Irmãs de Caridade de Mariana (MG), que mantinha neste momento 176 alunas, e para as irmãs de Diamantina (MG), com 145 alunas (LAGE, 2008, p. 7).

No entanto, para além da prática da caridade, o recebimento de alunas pobres em colégios particulares se tornou uma política pública no Império a partir das subvenções que eram concedidas para diversas instituições escolares privadas, e não somente as religiosas (GONDRA; PASCHE, 2016).

No Externato, era ministrado o ensino de algumas disciplinas mediante pagamento de mensalidades no valor de cinco mil réis mensais (no caso das disciplinas básicas como leitura e escrita) ou de dez mil réis mensais se fossem incluídas as aulas extras (como francês, desenho ou piano). No caso das disciplinas básicas, o destaque é para a cultura vernacular exigindo das alunas o estudo da prática da linguagem bem escrita e, sobretudo, “bem falada”.

As orientações compunham-se no sentido de desenvolver o gosto pela leitura e escrita. A fala, cultivada e relacionada à cultura escrita, consistia em um conjunto de habilidades que deveriam ser adquiridas, aprimoradas ou aprendidas. O ensino da língua francesa tinha como objetivo levar a aluna a ter uma compreensão da escrita nessa língua. O ensino de música e do canto, assim como as aulas de piano, figurava entre os componentes de prestígio estabelecido naquele espaço e valorizado pela elite são-joanense, cumprindo um papel intermediário entre os objetivos estético-civilizadores, cívico-patrióticos e disciplinadores. A intenção era desenvolver a comunhão cívica, o culto à pátria, a recepção estética, o cultivo ao belo, a harmonia e a ordem. Era uma estratégia utilizada pelas vicentinas para conseguir um equilíbrio entre a razão e a sensibilidade, em que a educação pela arte se transformaria em um instrumento por meio do qual se atingiria o equilíbrio. O desenho, feito a partir da observação do objeto e à mão livre, delineava as perspectivas de ensino em que as dimensões e a proporcionalidade dos objetos (o contorno e a forma) seriam exploradas juntamente com o vocábulo (imagem da coisa).

Os resultados das aulas de piano seriam “atestados em apresentações durante as festas cívicas, literárias ou religiosas”, organizadas pelas alunas com orientação das professoras, cuja socialização constituiria, para as educandas, o “ensejo de despertar e apurar o gosto artístico e literário”. A oferta do ensino de francês, juntamente com o ensino de piano e canto, sugere um refinamento cultural de forma a prepará-las, também, para o “convívio dos salões” (MUNIZ, 2002). Nesse quadro social, as mulheres eram avaliadas pela beleza física, pela religiosidade, pelos valores morais e pelas principais prendas domésticas nas quais se destacavam (ALMEIDA, 1998).

Um momento de consolidação, crescimento e reorganização dessa instituição foi o ano de 1898 com a construção de outro prédio, que abrigou – e abriga até hoje – o Colégio Nossa Senhora das Dores – instituição do ensino secundário, de formação de professoras, fundada em um contexto em que se preconizava a necessidade de criação de prédios específicos para as escolas em consonância com os preceitos pedagógicos em debate à época em todo o País.

O edifício escolar, nessa perspectiva (difundida por professores, intelectuais, políticos e pelo movimento higienista), deveria ser emblemático: sua arquitetura externa deveria ser identificada por todos como um espaço de educação, e o interior, por sua vez, capaz de traduzir os princípios de asseio, controle, fiscalização e higiene (GONDRA, 2004). Nesse aspecto, a capital do Império destaca-se em termos de investimento público, visto que as primeiras escolas públicas foram construídas ainda no século XIX, em 1870, nas freguesias mais urbanizadas, como Santana, Santa Rita, Santo Antônio, São José e Glória, não obstante o investimento da iniciativa particular já existisse nessa direção, como é possível comprovar em documentos da época e nos próprios anúncios publicitárias nos quais os colégios destacavam sua arquitetura e aspectos como salubridade e suntuosidade do prédio escolar de que dispunham (LIMEIRA, 2010).

Oito anos depois (30 de novembro de 1906), o Externato fecharia suas portas e seria mantido somente o Colégio Nossa Senhora das Dores – naquela ocasião já equiparado às escolas normais oficiais públicas do estado de Minas Gerais (o que ocorreu no ano de 1905). Diferente desta, a instituição criada no Rio de Janeiro tem uma história mais longa, como veremos.

Um colégio na capital do Império

Entre outras coisas, o Estatuto da Associação São Vicente de Paulo (aprovado em 1862 no Rio de Janeiro) estabelecia formalmente um colégio particular de meninas sob a direção e administração das Irmãs de Caridade:

Art. 42. A fim de attingir os fins, á que se propõe a Associação, ella estabelecerá desde já: § 4º Um Collegio, onde as meninas que pagarem a pensão que fôr estabelecida, receberáõ uma educação completa e christã em conformidade com os respectivos programmas. Art. 43. Os sobreditos Estabelecimentos serão entregues ás Irmãs da Caridade para os dirigir e administrar inteiramente conforme o espirito de suas regras, e a experiencia adquirida em taes administrações, sem que ninguem se possa ilegível na direcção e administracção delles; competindo-lhes a admissão e expulsão das alumnas, os programmas, a policia e tudo quanto lhe diz respeito (BRASIL. 1862).

O Colégio da Imaculada Conceição, na verdade, existia desde 1854. A sua regulamentação formal com a vinculação jurídica à Companhia das Vicentinas Filhas da Caridade é que aconteceu a partir desse Decreto (LIMEIRA; NASCIMENTO, 2012).

Fonte: Almanak Laemmert, 1874, p. 48.

Figura 3 Propaganda do Colégio Imaculada Conceição – Rio de Janeiro 

Localizada ainda hoje no mesmo endereço desde o Oitocentos (no bairro de Botafogo, zona sul da cidade), a instituição selecionava o seu público em termos de idade (a partir dos sete anos) e gênero (somente meninas). O Collegio da Imaculada Conceição expôs, em um anúncio publicitário de 1874, sua “maternal vigilância” como princípio da boa qualidade da educação que oferecia. Também, acrescentou que o trabalho realizado pretendia “ornar e cultivar o seu espírito”.

As religiosas anunciavam a “situação agradável e salubre da casa” capaz de garantir a boa saúde das educandas. Conquanto, atestam, na mesma medida, um compromisso em manter com as suas alunas uma vigilância sempre “solícita e maternal” no intuito de zelarem por “maneiras polidas e delicadas”, que distinguiam “pessoas bem-educadas”. Entende-se, com isso, a construção de um conjunto articulado de preocupações relacionadas ao asseio moral e físico, como funções e objetivos inscritos naturalmente à lista das demais prescrições escolares, o que era muito comum nas publicidades da malha privada de escolarização no Oitocentos (PASCHE, 2014).

A composição dos valores cobrados em seu estabelecimento para a educação de meninas, no ensino interno (para pensionistas), comparava-se aos preços dos demais colégios mais famosos e estruturados da capital do Império. Sua mensalidade custava 40 mil réis para um currículo básico (que já era mais completo do que em outros estabelecimentos, como o Collegio do Padre Venerando). Os valores poderiam ser acrescidos de taxas para aulas avulsas: aulas de piano (30 mil réis por trimestre), canto (20 mil réis por trimestre), línguas (20 mil réis por trimestre) e desenho (24 mil réis por trimestre).

Fonte: Almanak Laemmert, 1868, p. 358.

Figura 4 Anúncios com as matérias de ensino 

As funções sociais designadas à instrução primária no século XIX (do ensino público ou particular) pelos administradores estavam articuladas à disseminação de conhecimentos básicos e ao desenvolvimento da educação moral e religiosa, como é possível observar a partir da configuração do currículo oficial que se organiza com a Reforma Couto Ferraz, de 1854. Naquele tempo, “educar e instruir permaneceriam entendidas enquanto ações primordiais às quais o Estado deveria imprimir uma direção” (MARTINEZ, 1999, p. 24). Assim, a escola primária era aquela em que se deveria aprender e ensinar a ler, escrever, contar e valorizar os bens religiosos. Atividades como ginástica, bordados, trabalhos de agulha e costura compreendiam disciplinas específicas para uma “boa educação” das meninas da Corte.

Os altos preços das mensalidades não podem nos aludir no sentido de supor que seu público estivesse composto exclusivamente por meninas de famílias abastadas, visto que, a partir da correlação das fontes, podemos identificar que havia naquele estabelecimento, como uma prática comum, a oferta de vagas gratuitas para meninas pobres, como também se viu na instituição localizada em São João del-Rei. Alguns documentos dão-nos mostra da referida prática:

Fonte: Relatório do Presidente da Província do Rio de Janeiro, 1872, p. 45.

Figura 5 Ofício do delegado da Freguesia da Lagoa 

Esse tipo de notícia era publicado em alguns de seus anúncios no Almanak Laemmert, como também nos relatórios do Delegado da Instrução (como no exemplo citado), responsável pela Freguesia da Lagoa (localidade onde estava situado o bairro de Botafogo). De acordo com sua diligência, em que se apresentavam os números das subvenções e alunos atendidos nos colégios particulares, constata-se o atendimento nos espaços católicos de “quasi 80 pobres internas que recebem gratuitamente a educação e instrucção”, ao lado de 230 alunas pagantes, naquele ano de 1872, na instituição mantida pelas Irmãs de Caridade, da Associação São Vicente de Paulo, sem que a instituição recebesse, porém, subvenção pública (quem recebia era a Escola da Irmandade da Capella de N. S. de Copacabana ou a Escola de D. Clara Paulina Ruster, por exemplo).

No externato mineiro (em 1898), a contabilidade caritativa da Ordem representava mais de 50% do público escolar da instituição (lembrando que eram 119 alunas matriculadas, sendo 56 meninas pagantes e 63 não pagantes). Enquanto isso, no colégio carioca (em 1872), o percentual não ultrapassava cerca de 30%. Os cálculos são, talvez, as tarefas reflexivas que menos nos importam, senão inquirir as diversas formas pelas quais estiveram associadas as forças religiosas e o poder público em prol da capilarização, disseminação e extensão do projeto de instrução via escola no Brasil para um público cada vez mais amplo.

Aproximações entre as distintas experiências: algumas considerações

Constatamos que o signo religioso imprimia àqueles estabelecimentos do comércio da instrução uma dívida sagrada com os pobres da sociedade, sem que estes precisassem obrigatoriamente contar com o Estado Imperial para manter suas iniciativas de caridade ou assistencialismo, visto que muitos colégios apresentaram uma cota específica de atendimento aos alunos pobres entre os pagantes, como era o caso do Collégio Imaculada Conceição. Alguns efeitos dessas constatações são a inviabilidade de afirmações generalizantes do tipo que garantem a falência dos projetos imperiais para educação ou mesmo acerca da presença exclusiva de famílias abastadas nos espaços de escolarização, mormente na malha privada.

Tanto quanto considerar que havia colégios particulares de todos os tipos – caros e com arquitetura de grande porte ou baratos, adaptados aos espaços possíveis, com pequena estrutura – e escolas públicas espalhadas pelas freguesias urbanas e rurais da cidade, a subvenção (pública) ou a caridade (religiosa) surgiam como canal de acessibilidade de uma população pobre e, portanto, muitas vezes, marginalizada dos processos educativos formais. Nesse caso, inscrita no conjunto “população pobre e marginal”, estava um grande número de filhos e filhas de pequenos comerciantes, índios, pescadores, protestantes, lavadeiras, brancos, órfãos, brasileiros, filhos do “ventre livre” de mulheres escravas, espíritas, ambulantes, pintores e estrangeiros.

Destarte as relações entre as forças públicas (Estado) e particulares (Igreja Católica), a análise dos efeitos e implicações da realidade que se estabelecia no Oitocentos demanda interrogações e reflexões aprofundadas, no intuito de expandir a possibilidade de compreender melhor as mediações que envolviam a educação escolarizada no Brasil daquele tempo e dos dias atuais.

O que sabemos é que o Estado Imperial e a Igreja Católica disputavam e compartilhavam, entre si e entre as demais iniciativas, o dever de educar nos preceitos da religião e o direito de escolarizar a população. Têm-se, pois, aí, alguns indícios de que a demarcação entre as noções de público e particular estava sendo gradativamente legitimada. A fronteira entre um termo e outro era ainda bastante tênue, o que implicou problematizar a separação formal entre ambas as forças.

Nesse sentido é que pensar o processo de escolarização na sociedade brasileira do século XIX impõe adentrar também nos espaços de atuação da Igreja Católica, os quais não ficaram restritos à oferta do ensino, mas da sua gestão (funções ocupadas por religiosos na administração pública) no magistério (atuando como professores na sua formação, na seleção dos concursos ou na fiscalização docente). A Igreja Católica tinha representantes (freiras, padres, bispos, freis e outros) ocupando cargos em diversas instâncias da educação: inspetor, conselheiro ou delegado da instrução, reitor, professor, diretor de colégio e autor de livro escolar (PASCHE, 2014).

Neste trabalho, a partir de um ponto comum (os Estatutos das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo) e de duas experiências institucionais (distantes geograficamente), foi possível perceber que as ações promovidas pelas “heroínas da caridade” em prol da escolarização, em diferentes espaços e tempos, foram sustentadas por determinadas representações de unidade religiosa em torno de ideais como caridade, maternidade, moral e educação.

Nos ideais educativos das vicentinas, há uma determinada perspectiva de gênero que não deve passar despercebida, já que sua intencionalidade – sobretudo nas representações maternas e da moral feminina – constituía-se em saber escolar em suas práticas.

De modo geral, as funções designadas à instrução primária no século XIX (do ensino público ou particular) estavam articuladas à disseminação de conhecimentos básicos e ao desenvolvimento da educação moral e religiosa, como é possível observar a partir da configuração do currículo oficial que se organizou a partir de legislações como a Reforma Couto Ferraz (BRASIL, 1854). Assim, a escola primária era aquela em que deveria se aprender e ensinar a ler, escrever, contar e valorizar os bens religiosos. O currículo compreendia obrigatoriamente a instrução moral e religiosa, leitura, escrita, noções essenciais de gramática, princípios elementares de aritmética, sistemas de pesos e medidas, e o ensino facultativo (opcional ao estabelecimento) de aritmética e suas aplicações práticas, história sagrada (leitura dos evangelhos e estudo da Bíblia), elementos de geografia e história, princípios das ciências físicas e história natural, geometria, desenho linear, música e canto.

Inobstante não haver, na legislação, diferenciações do currículo pela perspectiva do gênero, há indícios de que, na oferta, os estabelecimentos privados (religiosos ou não) marcavam tal distinção. Em relação aos saberes para o ensino primário de meninas, os complementos curriculares (além das disciplinas básicas da leitura escrita, matemática e doutrina cristã) disponibilizados nos colégios da capital do Império, por exemplo, tinham restrições a alguns ramos da matemática (álgebra, aritmética e geometria) e, geralmente, ficavam mais condicionados à oferta de “prendas que aperfeiçoam a educação de uma menina”, aulas de ginástica, bordados e trabalhos de agulha e costura. Já no caso da instrução primária para o sexo masculino, é crível identificar um alargamento na oferta de disciplinas e cursos. Para eles, ao lado das matérias básicas, havia propagandas que anunciavam a aprendizagem de disciplinas complementares como escrituração e contabilidade mercantil (anúncio do Collegio Padre Saraiva, Almanak Laemmert, 1854), bem como aritmética, geografia, matemáticas, ciências, filosofia e retórica.

Nesse aspecto, percebemos que ambas as instituições analisadas reforçaram e legitimaram tais tradições culturais e sociais ao imprimirem, aos saberes ofertados na sua prática escolar determinadas, marcas de gênero, procurando reforçar, assim, uma certa representação do feminino e do masculino. Não de forma isolada, o fizeram as Irmãs de Caridade, visto que esse era (é) o procedimento empreendido pela própria instituição católica. Acerca disso, a historiografia da educação tem investido em interessantes pesquisas que promovem uma reflexão atual e necessária.

Em a Construção da memória em congregações católicas: práticas e imagens agentes, Paula Leonardi (2013) estuda quatro congregações criadas em meio às aparições marianas no século XIX e analisa o uso da memória na construção e difusão de imagens, agentes do feminino com o fim de educar. Da mesma forma, Miguel Berger (2004), em Igreja x Educação: o papel do Colégio Nossa Senhora de Lourdes na formação da elite feminina, investiga trajetória, objetivos e diretrizes administrativas e pedagógicas norteadoras do Colégio Nossa Senhora de Lourdes (1904). Com isso, afirma: “a igreja católica procurava, via ensino, retomar o poder e moldar consciências, favorecendo a formação de uma mulher dócil, meiga e devotada para cumprir suas funções de esposa e mãe”; e a instituição desenvolvia uma prática pedagógica e avaliativa, pautada nos moldes do ensino tradicional, a participação das alunas nas atividades didáticas, nas festas religiosas e cívicas, bem como as formas de “resistência ao sistema de controle ao qual estavam submetidas para preservação do ideário católico conservador” (BERGER, 2004, p. 151).

Como resultado dos objetivos traçados, das perguntas definidas e dos materiais consultados, foi-nos possível analisar e compreender a existência de um projeto defendido mundialmente pela Ordem de São Vicente de Paulo em torno da universalização das suas práticas de ensino, assistência, amparo e caridade, cuja pretensão era caracterizar-se por ações semelhantes em diversos lugares a partir de normas e regras únicas. Tal pretensão articulava-se à necessidade partilhada por elas de construir, manter, defender e legitimar uma determinada identidade institucional. Nessa ótica, o exercício da caridade era apresentado como um componente da vida católica, e a assistência aos necessitados de saúde ou de recursos materiais ou intelectuais passava a ser uma obrigação decorrente da formação religiosa. A educação, nesse conjunto, figurava como uma esfera vital.

Com esses princípios, as religiosas investiram na criação e funcionamento de estabelecimentos comerciais de educação que estavam inseridos numa realidade muita específica: a malha privada de escolarização, que era mais numerosa do que os investimentos públicos no século XIX (LIMEIRA, 2010). No interior da burocracia, do lucro e da administração do comércio da instrução, as irmãs vicentinas do Rio de Janeiro e de São João del-Rei praticavam aquilo que apresentavam como exercício da caridade: recebiam gratuitamente meninas pobres em seus estabelecimentos de ensino; prática muito comum aos demais estabelecimentos particulares mesmo entre aqueles não confessionais.

Querer entender melhor a inscrição religiosa no campo educacional nos fez analisar, de forma conjunta, as iniciativas católicas em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Na capital do Império, as alunas pobres das Filhas da Caridade (que constituíam grande parte do quadro docente da instituição) estudavam ao lado de parte da elite econômica da sociedade, haja vista que o Collegio da Imaculada Conceição era uma referência da boa, seleta e cara educação primária. Já na cidade de São João del-Rei, a iniciativa escolar era mais modesta, como indicam os valores das mensalidades. Talvez, isso as aproximasse mais dos princípios da irmandade: atendimento e cuidado com os pobres. Mas é imprescindível considerar o significativo número de iniciativas sem caráter formal ou informal (institucionalizado ou não) por meio das quais inúmeros sujeitos, com os mais diversificados pertencimentos, foram instruídos nas habilidades da leitura e da escrita. Nesse caso, as experiências religiosas, como as escolas dominicais, o ensino das letras nas lojas maçônicas, a leitura bíblica nas escolas protestantes e os cânticos, mitos e solenidades da cultura africana, entre outras, denotam o alcance ainda imensurável do projeto de derramamento das luzes da instrução.

Desse modo, pretendemos colaborar com os estudos históricos acerca da educação, os quais têm permitido refletir acerca da complexidade do processo de escolarização que nos forja como sujeitos e como sociedade. Assim, entendendo que a sociedade é obra do próprio homem (ELIAS, 1993), podemos entender a escola como uma invenção do homem e este, por sua vez, como uma invenção da escola. Se o raciocínio fizer sentido, resta o desafio de continuar tentando compreender, estranhar e problematizar o processo de constituição, as funções e os sujeitos da refinada e complexa aparelhagem escolar que nos constitui e que constituímos ao longo do tempo.

2A instituição religiosa e educativa “Casa Mãe de Paris” foi a primeira instituição confessional feminina vicentina instalada em Minas Gerais (na cidade de Mariana) e em Portugal (na cidade de Lisboa) na segunda metade do século XIX. Conferir Lage (2011).

Notas

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Recebido: 21 de Junho de 2017; Aceito: 21 de Maio de 2018

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