SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.37 número1Editorial: Perspectiva v37n1 2019O corpo-ambiente virtual índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Perspectiva

versão impressa ISSN 0102-5473versão On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.37 no.1 Florianopolis jan./mar 2019  Epub 18-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2019v37n1p11 

Apresentação

Imagens, Mídias e Práticas Corporais

Monica Fantin1 

Augusto Cesar Rios Leiro2  , Organizadores

1UFSC

2UFBA/UNEB


A expressão reta não sonha.

Não use o traço acostumado.

A força de um artista vem das suas derrotas.

Só a alma atormentada pode trazer para

a voz um formato de pássaro [...]

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.”

(Manuel de Barros)

Em uma conjuntura política e educacional marcada pela (in)certeza e pela complexidade, movida por diferentes possibilidades midiáticas e tecnológicas, em tempos de cultura digital, pautar a tríade imagens, mídias e práticas corporais foi um desafio literário singular.

O enunciado aberto do dossiê, ao lado da autonomia dos escritores convidados, possibilitava recortes acerca das políticas públicas, das produções imagéticas, das tecnologias educacionais, das reflexões acerca do ciberespaço, das releituras das culturas corporais, dentre outros temas, gerando na autoria desta edição do periódico qualitativa expectativa de socialização de estudos (inter)nacionais, em sintonia com o binômio educação e cidadania. E pensar a cidadania num contexto em que alguns direitos básicos estão sendo ameaçados requer do percurso formativo uma constante articulação entre os diferentes campos do saber que se constrói na ação educativa e investigativa.

A necessidade de explorar novas fronteiras da educação e comunicação para atuar em tal realidade envolve cada vez mais olhares múltiplos, plurais e interdisciplinares que atuam e transitam na perspectiva inter e transdisciplinar, de modo a transitar em diferentes territórios, práticas e narrativas, para “transver o mundo”, como diz a epígrafe de Manuel de Barros.

Inspirados na poética dessa possibilidade não linear de pensar a formação e a pesquisa, buscamos reflexões e práxis pedagógicas em que as imagens transpassassem os corpos e as mídias – o que nos desafia a entender melhor os distintos processos, vínculos e articulações que enlaçam imagem e educação nos processos de ensinar e aprender característicos do mundo contemporâneo. Interfaces e nuances que envolvem abordagens epistemológicas, filosóficas e pedagógicas sobre a tríade imagem, mídia e tecnologia, bem como sobre as experiências centradas nas práticas corporais – entendidas a partir da corporeidade e corporalidade como possibilidades enunciativas –, tendo como fio condutor a educação e a possibilidade de construção de conhecimento de si, do outro e do mundo. Imagens, práticas e conhecimentos que hoje necessariamente se entrecruzassem pela e com cultura digital.

Se na década de 1960, McLuhan (2007, p. 33) dizia que a tecnologia elétrica adentrava os muros, e nós somos insensíveis, surdos, cegos e mudos ante a sua confrontação com a tecnologia de Gutemberg, para Han (2017, p. 11), hoje, passa-se o mesmo com o digital, pois somos mais uma vez “programados por suas mídias” sem perceber a radical mudança de paradigma. Na esteira do digital, que, “sob decisão consciente, muda completamente o nosso comportamento, a nossa percepção, a nossa sensação, o nosso pensamento, as nossas formas de convivência.” Segundo o autor, “embriagamo-nos com a tecnologia digital, enquanto somos incapazes de avaliar plenamente as consequências de nossa embriaguez. São esta cegueira e a obnubilação simultânea que a acompanha que definem a crise atual”.

Embora possamos (re)levar o tom de certas visões, é fundamental pensar nos desafios da educação e da comunicação num momento atravessado por tensões, intolerâncias que fazem parte desse “enxame digital”, como diz Han (2017), formado tanto por indivíduos isolados, sem um sentimento de “nós” que lhes possibilite uma ação comum, como por coletivos outros, silenciosos ou ruidosos. Para o autor, “a hipercomunicação digital destrói o silêncio [de] que a alma necessita para refletir e para ser ela própria”, pois “ouvimos apenas o ruído sem sentido e sem coerência”, e “tudo isso impossibilita a formação de um contrapoder que possa pôr em causa a ordem estabelecida” (HAN, 2016, quarta-capa).

No entanto, esse contrapoder também se constrói na comunicação constituída de formas não verbais, nos gestos, nas expressões faciais, na linguagem corporal e nas formas que conferem um caráter tátil aos modos de comunicar. E, diante da pluralidade de dimensões e níveis da percepção humana – que não se reduz ao visual, mas solicita a participação de outros sentidos –, por vezes, o meio digital tanto pode retirar quanto intensificar seu caráter corporal e tátil. Afinal, o tocar com a ponta dos dedos na tela é uma ação que transforma a nossa relação com o outro, pois elimina a distância que constituiu o outro na sua alteridade. Como diz Han (2016, p. 36): “podemos tocar a imagem, tocá-la diretamente [...]. Através do toque da ponta dos dedos, disponho do outro. Afastamos o outro com a ponta dos dedos, fazendo aparecer em seu lugar a nossa imagem refletida”.

Essa possibilidade de afastar e/ou aproximar o outro com a ponta dos dedos é algo muito potente, uma ação que merece uma atenção especial. Para Arendt (1997), a ação é entendida como a capacidade de “dar início”, de começar algo diferente, e ela vê como possibilidade de ação cada nascimento ou cada criança que traz a promessa de um novo começo. Mas, quando esse agir está de certa forma condicionado a processos automáticos, como fica a nossa “liberdade de ação”?

Ao se perguntar quem somos e que tipo de relação estabelecemos uns com os outros, o filósofo Luciano Floridi (2017) assevera que estamos vivemos a quarta revolução, em que a infosfera está transformando o mundo, pois o desenvolvimento no campo da tecnologia, da informação e da comunicação tem modificado nossas respostas às perguntas fundamentais, a maneira com que nos relacionamos com os outros e o modo com que damos forma e sentido ao nosso mundo, interagindo com ele. Para o autor, a nanotecnologia, a internet das coisas, a web 2.0, a web semântica, o iCloud ou computação em nuvem, os jogos baseados em registros de movimentos do corpo, os aplicativos para smartphone, tablets e touch screen, o GPS, a realidade aumentada, os drones, os ‘amigos/companheiros’ artificiais, os carros que se guiam sozinhos, os dispositivos informáticos usáveis, as impressoras 3D, as identidades roubadas, o controle de dados, os cursos online, as mídias sociais, as cyber-guerras e muitos outros levam tanto os tecnófilos quanto os tecnófobos a se perguntarem: o que virá a seguir? E o autor interroga: o que está por traz de tudo isso? Há alguma perspectiva de interpretação desses fenômenos como aspecto de uma única tendência?

Parte da dificuldade em obter tais respostas reside no fato de considerarmos as tecnologias como instrumentos mediante os quais interagimos com o mundo e entre nós. Para Floridi, as tecnologias “se tornaram forças ambientais, antropológicas e interpretativas. Elas criam e forjam nossa realidade física e intelectual, modificam a nossa autocompreensão, mudam o modo com que nos relacionamos com os outros e com nós mesmos, atualizando nossa interpretação de mundo. (FLORIDI, 2017, p. IX).

E ainda fazem tudo isso de maneira difusa, profunda e incessante, de modo que a tênue fronteira entre a vida online e off-line tende a desaparecer, pois estamos cada vez mais conectados e progressivamente fazendo parte de uma “infosfera global”. E esta passagem de época ou de era, segundo o autor, representa uma quarta revolução.

Se o online tem definido cada vez mais nossas atividades cotidianas (relações, trabalho, cotidiano, diversão), percebemos que, em cada âmbito da vida, as tecnologias da comunicação estão se tornando forças estruturantes dos diversos ambientes em que vivemos, transformando a realidade. Mas será que estamos sendo capazes de colher seus frutos? E quais seriam? A emancipação e o empoderamento do sujeito? Ou, ao contrário, estamos mais vulneráveis e convivendo com diversos riscos implícitos ou explícitos? Parece-nos que, entre tantos dilemas, delineia-se a importância de desenvolvermos uma abordagem capaz de perceber tanto as possibilidades da realidade natural como as da artificial, de modo a enfrentar certos desafios colocados pelas tecnologias atuais, sobretudo a partir da educação.

Imagens em profusão, as mais diversas formas, a intensidade da (auto)exposição nas mídias, a distração generalizada, a volatilidade das relações e dos movimentos, as informações em proliferação contínua, que por vezes dificultam a reflexão, mas que ao mesmo tempo revelam uma potência para outros olhares e para a pesquisa e formação. Nesse sentido, Flusser (2008) reconhece duas tendências a partir das imagens técnicas atuais: uma que indica o rumo de sociedades totalitárias, centralmente programadas e formadas por receptores de imagens; e outra que indica o rumo de uma sociedade telemática, com diálogos entre os criadores e colecionadores de imagens. Embora possamos discutir essas formas colocando-as em questão, para o autor “o que não podemos questionar mais é o domínio das imagens técnicas na sociedade futura [...] então é quase certo que as imagens técnicas concentrarão interesses existenciais dos homens futuros” (FLUSSER, 2008, p. 13).

Ao situar imagens e artefatos no centro da existência contemporânea, Flusser (2007, p. 153) discute as imagens nos novos meios e como a produção de imagens incorpóreas se transcodifica, já que “as imagens se tornam cada vez mais transportáveis e os receptores cada vez mais imóveis, isto é, o espaço político se torna cada vez mais supérfluo”. Para ou autor, essa tendência é característica da “revolução cultural dos tempos atuais. Todas as mensagens (informações) podem ser copiadas e transmitidas para receptores imóveis. Trata-se, na verdade, de uma revolução cultural, e não apenas de uma nova técnica” (FLUSSER, 2007, p. 153). Da maneira como funcionam hoje, os novos meios transformam as imagens em “modelos de comportamento e fazem dos homens meros objetos. Mas os meios podem funcionar de maneira diferente, a fim de transformar as imagens em portadoras e os homens em designers de significados” (FLUSSER, 2007, p. 159).

Assim, por um lado, mensagens/imagens/informações que por vezes deixam de informar e passam a deformar; formas de comunicação que deixam de comunicar e passam a “provocar”; tempo que se dispersa em sucessões de presentes, com “provável perda de vista de horizontes do futuro e das memórias sociais do passado” (PAIS, 2017, p.306); sociedade da transparência, que também estrutura a sociedade da vigilância e do controle. E, por outro lado, a inteligência conectiva, as redes, o papel dos espaços de afinidade como poderosos espaços da aprendizagem digital e as mudanças que podem promover na educação, como diz Gee (2013).

Ao criticar o que denomina de “anti-educação”, Gee (2013) esclarece que a cultura e as abordagens educacionais atuais falham em nos deixar mais inteligentes e oferecem ideias desatualizadas sobre o que podemos fazer. E, segundo ele, as mídias sociais podem contribuir mais com essa geração de estudantes, desde que educadores e pais maximizem seus efeitos positivos dentro e fora da sala de aula. Desse modo, a aprendizagem digital e as mídias sociais podem ensinar a resolver desafios globais, e a inteligência conectiva e sincronizada seria uma estratégia importante para superar as limitações das escolas de hoje.

De fato, a rápida difusão das mídias digitais e sociais, com seus dispositivos móveis, tem transformado radicalmente nosso cenário, ainda que num contexto de desigualdades e exclusões, como presenciamos em nosso país, pois, com a portabilidade, as mídias digitais “migraram para dentro de nossas vidas”, mas elas nem sempre estão presente nas escolas e nos processos de ensinar e aprender. Ocorre o mesmo com as aprendizagens colaborativas, pois, quando se fala em “tecnologia de grupo” ou “tecnologia de comunidade” (Rivoltella, 2017) em referência às distâncias que diminuem e às possibilidades de compartilhamento características da cultura participativa e convergente, sabemos que nem sempre elas fazem parte ou são devidamente problematizadas na educação e na pesquisa.

É diante desses vários cenários, provocações e inquietações que o Dossiê Imagens, Mídias e Práticas Corporais pretende contribuir com reflexões e práticas educativas e culturais a partir de diferentes áreas e abordagens, em busca de diálogos possíveis. Desse modo, não pretendemos propor soluções aos diversos problemas esboçados, mas buscamos – criticamente – colocar em questão certas tendências que se encontram nos seus fundamentos.

Entre tantas questões do contemporâneo, sofisticadas ou singelas, a contribuição e a originalidade dos textos deste dossiê destacam-se pela singularidade das articulações entre temas e autores de diferentes áreas do conhecimento – Artes, Comunicação, Educação, Educação Física, Filosofia, Sociologia –, para pensar nos desafios acima descritos de forma interdisciplinar. Aliada a isso, a insuficiente discussão dessa temática em dossiês no nosso país evidencia a necessidade da ampliar os diálogos sobre o tema, ainda mais quando questões candentes sobre mídia, sociedade e formação são atravessadas por fake news e por propostas políticas que comprometem as conquistas de uma educação pública de qualidade para todos.

Com esse propósito, o presente dossiê apresenta dois blocos articulados em torno das categorias teóricas substantivas – imagem, mídia e corpo – que transversalizam o conjunto composto por oito textos, cinco de autores brasileiros e três de autores estrangeiros.

No artigo Il corpo-ambiente virtuale ou O corpo-ambiente virtual, o filósofo Roberto Diodato (USCS/Itália) discute como o “mundo da vida” mediatizado é entendido como um ambiente hipermidiático ou um meio, um dispositivo habitado pela neotecnologia digital, que torna o tecido do mundo um tecido comunicativo. Para o autor, nesse tecido, o corpo-ambiente virtual se caracteriza como um ente novo, imersivo e interativo, ontologicamente híbrido, porque é interno e externo ao mesmo tempo, coisa e imagem. Amparado em Husserl, Manovich, Foucault, Queau, Grusin entre outros, o autor discute as interfaces além das telas. Ao pensar a relação entre tocar e imaginar, para ele, o que se toca são as imagens, que, por sua vez, resultam de um processo de digitalização. Imagens oníricas táteis, sonoras, olfativas e gustativas. E, quando discute a novidade ontológica do virtual, o “corpo virtual” deve ser entendido não como representação da realidade, mas sim como realidade construída de modo diferente daquela constituída pela participação circular do corpo vivo com o mundo, o qual, graças à percepção-visão, atravessa, torna-se gesto, movimento eventualmente mediado por instrumentos de reprodução analógica e, portanto, imagem. Ao relacionar arte e virtualidade, o autor discute a obra de arte na era dos dispositivos virtuais e sua natureza interativa como uma forma de experiência contingente e coletiva em que corpo e obra que se tornam espaço midiático.

Na continuidade da reflexão sobre imagens, o texto de Valeska Fortes Oliveira (UFSM), Imaginário, mídias e formação: o que pode o professor no espaço universitário? discute as mídias com referências no campo do imaginário social, a partir das invenções midiáticas e das relações criadas com elas. A empiria da reflexão envolve professores universitários, suas relações com as mídias e as imagens a partir dos desafios colocados por estudantes, sobretudo pela evidente mudança dos corpos passivos aos corpos plugados. Com as linguagens audiovisuais das mídias eletrônicas, no espaço universitário, os corpos foram modificados pela corporalidade e pelas formas como essas mídias comunicam e informam, sobretudo quando esses corpos de alunos e professores se encontram nas aulas universitárias. Fundamentado em Serres, Machado e Castoriadis, o texto discute a ideia de criação enfatizando os seres simbólicos que somos, não apenas herdeiros de tradições, de projetos histórico-sociais e de metanarrativas já desenhadas em outros momentos históricos, mas como produtores dos sentidos que instituímos. Por meio de um enfoque biográfico em que os professores refletem sobre os saberes e fazeres que constroem na docência a partir dos usos das tecnologias, a autora enfatiza a importância de perguntar também “que sentido dão os professores à utilização das redes sociais para a aprendizagem?”. “Que relação temos com as redes sociais?”. “Como podemos produzir experiências capazes de deslocar os estudantes e a nós mesmos para outros movimentos, outros pensamentos e ações na sociedade?”. E é trazendo depoimentos e relatos de professores universitários que a autora reflete sobre os desafios da aprendizagem e das formas de ressignificação de suas práticas no campo do imaginário social, de modo a pensar em outras possibilidades de ser professor e de viver na cultura das mídias.

O pensar sobre os corpos e as imagens em diferentes espaços pode ser enriquecido com o texto Fotografias em Instagram: imagens de práticas corporais e sociabilidades em parques públicos citadinos de lazer, de Augusto Cesar Rios Leiro (UFBA/UNEB), Ednaldo Pereira Filho (Unisinos) e Paulo Carvalho Lima (UFBA). Os autores analisam as sociabilidades humanas a partir de imagens de práticas corporais em parques públicos e urbanos veiculadas no Instagram. Baseados em um estudo exploratório de natureza quanti-qualitativa, as imagens capturadas no Instagram são tomadas pelos autores como moldura da reflexão, pois – por meio de busca e rastreamento da geolocalização de dois parques públicos de cidades metropolitanas brasileiras –, as imagens de sociabilidades na internet expressam aspectos da singularidade da vida cotidiana, bem como sua espetacularização. Para os autores, ao fazer suas postagens, os indivíduos produzem relações sociais mediadas por imagens, e quando o assunto é a sociabilidade humana, os espaços real e virtual não se constituem como ambientes distintos. Como fundamentos teóricos, os autores discutem as imagens no contemporâneo a partir de Debord, a intimidade como espetáculo sugerida por Sibilia, as práticas corporais como fenômeno cultural a partir de Lazarotti, a sociabilidade em Simmel, a fotografia como linguagem e dispositivo em Joly, e a ênfase nos parques públicos de lazer como espaços-tempos de encontro de sujeitos, proposta por Leiro. A trilha metodológica traz um minucioso trabalho de escolha e análise de imagens, que percorreu o Instagram e monitorou o uso de aplicativos com sistema de busca e geolocalização, para rastrear os dois parques públicos e então fazer os recortes e escolhas das imagens a partir de critérios e indicadores relacionados às categorias de análise. Entre textos escritos e imagéticos, tendo o desafio das narrativas e suas interlocuções como fio condutor das interpretações possíveis, o artigo finaliza com instigantes provocações ao nosso sentir e pensar as práticas corporais e as imagens nos parques e nas redes.

Por sua vez, o artigo Os selfies e o corpo tombamento: reflexões a partir de uma autoimagem sonora, de Edméa Santos e Carina D’Avila (UERJ), reflete sobre uma experiência que fez parte de uma pesquisa-formação com estudantes de Fotografia e Tratamento de Imagem, na disciplina “Olhar”, desenvolvida na Escola de Arte e Tecnologia Spectaculu, no Rio de Janeiro. Com objetivo de potencializar a experiência estética, a metodologia da pesquisa-formação, inspirada em Barbier, Nóvoa, Macedo, Josso e atualizada por Santos, focaliza-se na experiência educativa dos envolvidos como condição para a produção de novos conhecimentos. A experiência analisada parte de um dispositivo utilizado em sala de aula chamado “Autorretrato Musical” – uma autoimagem conectada a uma música –, que envolveu o desenho de si e a escrita de suas redes de formação, o falar sobre si e escutar o outro, e a criação e produção da autoimagem sonora. Entre músicas, imagens, visualidades e postagens, o texto nos convida a usar certos aplicativos do ciberespaço, entendendo que as redes de formação são imprescindíveis na cultura digital e que os usos das novas tecnologias digitais em rede podem aproximar os sujeitos. Entre narrativas de si e do outro, singularidades e diferenças, corpos e autorretratos, selfies e nudes, imagens e escutas, as autoras discutem as diferentes estéticas atravessadas pelas noções de presença e sentido (Gombrech) que se relacionam com a noção de tombamento, no texto entendido como manifesto ético-estético em si, presente nos corpos de uma juventude formada na/com periferia e na internet que cria outras narrativas e espaços de ação, sobretudo em relação à identidade negra. Aqui a multirreferencialidade ajuda a interpretar os diversos pontos de vista, a “exuberância, a abundância, a riqueza das práticas sociais”. Por fim, nas “(in)conclusões”, a experiência estética, a resistência dos corpos e os processos de descoberta, criação e reinvenção de si e das formas de fazer aparecem como aspectos indispensáveis à vivência educativa e à pesquisa formativa.

A relação entre mídia, corpo e sociedade transcende fronteiras, e a pesquisadora portuguesa Isabel Freire (Universidade Lisboa) analisa alguns aspectos de tal relação no artigo Cidadania da sexualidade na imprensa portuguesa do pós-revolução dos Cravos. A autora analisa o conteúdo de revistas e jornais publicados entre 1968 e 1978, período de euforia da Revolução do 25 de Abril de 1974, com a intenção de contribuir para o debate sobre a mudança social das vivências afetivo-sexuais na transição da ditadura para a democracia em Portugal. O ponto de partida é a análise de matérias que associam liberdade política à liberdade sexual, consideram as vivências íntimas como assunto público e de cidadania e, de certa forma, marcaram a agenda midiática após a Revolução dos Cravos: a publicação da carta em que uma adolescente narra sua história pessoal sexual, enviada por ela mesma a uma revista feminina; o primeiro manifesto homossexual português, publicado na imprensa duas semanas após a Revolução dos Cravos; e uma reportagem que trata de um documento assinado por 500 prostitutas reivindicando direitos sociais e políticos, que foi discutido em uma reunião feminista do Movimento Democrático da Mulher. No contexto de uma transição da ditadura/censura para a democracia e da discussão se há ou não distinção entre a vida privada e pública, o artigo transita por diferentes narrativas, documentos, livros, canções, poesias e artigos sobre temas da intimidade afetivo-sexual na sociedade portuguesa. Entre diferentes termos que expressam certas transformações, a autora destaca a retórica de alguns, que perduram há mais de cinco décadas: revolução sexual, emancipação de mulheres, liberdade sexual e outras discursividades, que são analisadas a partir de Foucault. O conceito de cidadania íntima refere-se às decisões de controle (ou não) sobre o corpo, os sentimentos e os relacionamentos, bem como às escolhas acerca de identidades, experiências de gênero e experiências eróticas. Entre interrogações sobre histórias de vida e autobiografias, a autora destaca a dimensão pedagógica de tais narrativas e a necessidade de as ciências humanas e sociais prestarem mais atenção aos modos de contar tais histórias nos diferentes meios de comunicação, nas novas esferas públicas – programas de auditórios, talk shows, filmes caseiros, blogs pessoais – e nas redes sociais, chamando atenção para os discursos de cidadania da sexualidade que revelam pertencimento, exclusão e também podem produzir novas narrativas de resistência.

No artigo Mídia, corpo e mercado: (im)possibilidades formativas diante do poder simbólico, Cristiano Mezzaroba e Sergio Dorenksi (UFS) tecem uma reflexão crítica sobre o culto ao “corpo perfeito” na mídia a partir da imagem e do discurso, inferindo como o poder simbólico atua nas subjetividades, gerando demandas por produtos personalizados no mercado. A partir de uma imersão na produção acadêmica relacionada ao tema proposto, o texto fundamenta-se em autores como Adorno e Horkheimer; Bourdieu; Orozco; e Martin-Barbero, para discutir a indústria cultural, o poder simbólico e as mediações. E, como contraponto aos discursos midiáticos, os autores assinalam a possibilidade de enfrentamento por meio da formação humana, na especificidade da formação cultural que ocorre na mediação escolar (Freire, Macedo, Nóvoa). A partir de uma abordagem de leitura crítica dos mecanismos que constroem as representações do corpo na contemporaneidade, aqui o corpo é entendido na tessitura entre o biológico, o psíquico-emocional, o social, o político e o cultural. Ao discutir o poder simbólico do apelo midiático no “corpo-mercado”, os autores cruzam os discursos da “vida-saudável”, da prática de atividades e do conhecimento científico com o poder simbólico da mídia e das “ditaduras da beleza”, das “ditaduras do corpo” e das “ditadura da moda” e suas estéticas, difundidas nos mais diversos produtos midiáticos do cotidiano das pessoas – que na cultura digital usam as mais diversas tecnologias e seus aplicativos em busca do que os autores consideram o mito da atividade física e saúde. Eles exemplificam tais aspectos em diferentes cenários de consumo cultural e na análise de algumas pesquisas sobre corpo e discurso midiático, destacando a importância da formação e a relevância da mídia-educação.

Diante da importância de pensar a formação a partir de experiências e pesquisas que tratassem do tema deste dossiê desde a infância, o artigo Cenários de pesquisa com e sobre crianças, mídia, imagens e corporeidade, de Monica Fantin e Gilka Giradello (UFSC), busca refletir sobre a relação entre mídia, imagens e corporeidades na pesquisa com e sobre crianças sob o viés da educação. A partir da pluralidade de cenários e práticas culturais das infâncias contemporâneas, as autoras situam os fundamentos teórico-metodológicos que têm orientado investigações em contextos nacionais e internacionais. A partir de um entendimento da pesquisa como espaço de reflexão crítica e instância pedagógica, as investigações escolhidas na composição do artigo entrelaçam os temas mídia, imagem e corporeidade com particular destaque aos direitos das crianças, à ludicidade, às autorias infantis e aos desafios das práticas educativas na cultura digital. Ao situar os temas e as abordagens discutidos na pesquisa com e sobre crianças no contemporâneo, na perspectiva da mídia-educação, as autoras chamam atenção também para os novos métodos de investigar as novas práticas midiáticas e culturais, para a diversidade de suas formas textuais, de análise e de produção, bem como para as novas metodologias de ensino e de pesquisa. Num universo temático e metodológico transversal, observa-se a importância dos estudos sociológicos, dos estudos da infância, dos estudos culturais, dos multiletramentos e de outros saberes para fundamentar as metodologias e tensionar também os dilemas éticos de pesquisar a relação entre crianças, imagens, mídia, internet e redes sociais, na escola e fora dela, bem como os modos de participação na cultura, para além de certas retóricas. Por fim, o texto sinaliza algumas tendências de pesquisa, enfatizando a importância da articulação interdisciplinar entre pesquisadores que atuam com estes temas, de modo a qualificar a mediação educativa no contexto das mudanças culturais contemporâneas.

No epílogo deste instigante dossiê, o artigo Towards a cultural history of digital autodidacticism – changing cultural narratives of education, ou Por uma história cultural do autodidatismo digital – mudanças nas narrativas culturais da educação, o Professor inglês Julian Sefton-Green (Deakin University, Austrália) discute aspectos do fenômeno supostamente novo das aprendizagens na cultura digital, mas que possui suas raízes em formas tradicionais de aprendizagem. Ao tratar de novos imaginários do aluno no contemporâneo, “conectado, criativo, autônomo, codificador, motivado e criador digital”, o autor situa tais raízes em diversas visões, de diferentes sistemas educacionais, rastreando aspectos históricos de antigos imaginários do autodidatismo e de abordagens teóricas da aprendizagem contemporânea, como, por exemplo, o Conectivismo (Siemens), a Teoria da Aprendizagem Conectada (Ito et al.) e a participação em comunidades de prática ou em grupos de pares e de afinidades (Gee). Dessa forma, ele articula os âmbitos formais e informais de conhecimento, que por vezes são entendidos na tensão da autoaprendizagem e do autodidatismo. O autor também analisa como ambos se incorporam e atualizam as visões de “novos alunos do amanhã”, valorizando a história cultural como via de compreensão para o digital. Ao sublinhar as práticas artesanais, o código e a experiência, o texto destaca uma “disjunção emocional” entre a valorização de certas habilidades consideradas “lentas” e outras, associadas ao “hipster contemporâneo”, em referência a uma estética rápida, automatizada e impessoal, relacionada ao digital. O autor exemplifica as possibilidades de entrelaçamento da cultura digital com os interesses do aprendizado artesanal, suas afiliações e desconexões com o ato digital, de modo a reconceitualizar a natureza da aprendizagem na era digital, já que o “aprendiz” ou aluno destas culturas artesanais-digitais é muito diferente do sujeito produzido pela escola moderna.

Por fim, após essa síntese panorâmica dos artigos, deixemos que cada texto fale por si. As palavras iniciais, a rigor, são convites para leituras e interpretações singulares, que ensejem novas reflexões sobre imagens, mídias e práticas corporais e instiguem novas escritas a partir do dossiê em tela.

Referências

ARENDT, Hannah. Entre passado e futuro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. [ Links ]

BARROS, MANOEL de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996. [ Links ]

FLORIDI, Luciano. La quarta revoluzione: come l’infosfera sta transformando il mondo. Milano: Raffaello Cortina, 2017. [ Links ]

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac-Naif, 2007. [ Links ]

FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas. São Paulo: Annablume, 2008. [ Links ]

GEE, James P. The anti-education Era: creating smarter students through digital learning. New York: St. Martins, 213. [ Links ]

HAN, Byung-Chul. No enxame: reflexões sobre o digital. Lisboa: Relógio D’Água, 2016. [ Links ]

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2007. [ Links ]

PAIS, José M. Juventudes contemporâneas, cotidiano e inquietações de pesquisadores em Educação – uma entrevista com J. M. Pais. Educar em Revista, Curitiba, n. 64. p. 301-313, abr./jun. 2017. e-ISSN 1984-0411. http://dx.doi.org/10.1590/0104-4060.50119. [ Links ]

RIVOLTELLA, Pier Cesare. Tecnologie di comunità. Bréscia: La Scuola, 2017. [ Links ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original sejacorretamente citado.