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Perspectiva

versión impresa ISSN 0102-5473versión On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.37 no.1 Florianopolis ene./marzo 2019  Epub 18-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2019.e53039 

Dossiê Imagens, Mídias e Práticas Corporais

Os selfies e o corpo tombamento: reflexões a partir de uma autoimagem sonora

The selfies and the “tombamento” body: reflections from a sound self-portrait

Los selfies y el cuerpo “tombamento”: reflexiones a partir de una auto-imagen sonora

Edméa Oliveira dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0003-4978-9818

1Universidade Federal de Santa Maria, UFSM

2Universidade Federal de Santa Maria, UFSM


Resumo

O presente artigo faz parte de uma pesquisa-formação que aconteceu na Escola de Arte e Tecnologia Spectaculu, no ano de 2016, com 29 estudantes de Fotografia e Tratamento de Imagem, na disciplina “Olhar”, que possui o objetivo de potencializar suas experiências estéticas. A metodologia de pesquisa-formação (MACEDO, 2000; JOSSO, 2004; SANTOS, 2002) se desempenha de forma criativa, buscando se debruçar sobre a experiência educativa para produção de novos conhecimentos e abordagens. E, nesse encontro, o termo ‘tombamento’ ficou cada vez mais evidente, a partir de um dispositivo usado em sala de aula, chamado ‘Autorretrato Musical’, que se trata de uma autoimagem conectada a uma música. O processo deste dispositivo se divide basicamente em três etapas: desenho de si e escrita de suas redes de formação; falar sobre si e escutar o outro; criação e produção da autoimagem sonora. O objetivo deste artigo, portanto, visa tratar sobre essa experiência, transando relações da noção de ‘tombamento’ com efeitos de presença e sentido debatidos pelo autor contemporâneo Gumbrecht (2010). Conclui-se que o ‘tombamento’ é um manifesto ético-estético em si, ou seja, no próprio corpo da geração contemporânea, composta por uma juventude ‘afrontosa’, que se formou na/com a periferia e a internet, criando novas narrativas e referências para os seus e ganhando novos espaços de ação, que foram apropriados pelas mídias massivas e alvo de muitas críticas. Mas, para vivencia educativa e para pesquisa formativa, o processo de criação de si e a reinvenção das formas de fazer são combustíveis indispensáveis.

Palavras-chave:  Tombamento; Cibercultura; Pesquisa-formação; Fotografia; Som; Selfie; Autorretrato

Abstract

This article is part of a research-training that took place at the Spectaculu School of Art and Technology in 2016, with 29 students of Photography and Image Treatment in the discipline “Olhar” (View), whose objective is to enhance their aesthetic experiences. The research-training methodology (MACEDO, 2000; JOSSO, 2004; SANTOS, 2002) performs in a creative way in which it seeks to look at the educational experience to produce new knowledge and approaches. And in this meeting, the term “Tombamento” became increasingly evident from a device used in the classroom called “Autorretrato Musical” (Musical Self Portrait) that is a self-image connected to a song. Basically, the process of this device is divided into three: self-design and writing of their training networks; talk about yourself and listen to the other; creation and production of sound self-image. The objective of this article, therefore, is to examine this experience by exchanging the notions of “Tombamento” with effects of presence and meaning debated by the contemporary author Gumbrecht (2010). It is concluded that Tombamento is an ethical-aesthetic manifesto in itself, that is, in the very body of a contemporary generation composed of an ” confrontational” youth who has formed in the periphery and the internet and who creates new narratives and references to theirs, gaining new spaces of action, being appropriated in mass media and subject to much criticism.

Keywords:  Tombamento’; Cyberculture; Research-formation; Photography; Sound; Selfie; Self-Portrait

Resumen

El presente artículo es parte de una investigación-formación que se realizó en la Escuela de Arte y Tecnología Spectaculu, en el año 2016, con 29 estudiantes del curso de Fotografía y Tratamiento de Imagen en la disciplina llamada “Mirar”, que tiene como objetivo potenciar las experiencias estéticas. La metodología de la investigación-formación (MACEDO, 2000; JOSSO, 2004; SANTOS, 2002) se desempeña de forma creativa y busca desarrollar en la experiencia educativa la producción de nuevos conocimientos y abordajes. Y, en este encuentro, el término “Tombamento” se manifestó cada vez con más evidencia a partir de un dispositivo utilizado en clase llamado “Autorretrato musical” que se basa en una auto-imagen conectada a una música. El proceso de este dispositivo se divide en tres momentos: diseño de sí mismo y escritura de las redes de formación; hablar de sí mismo y escuchar al otro; creación y producción de la auto-imagen sonora. El objetivo principal de este artículo es abordar esta experiencia realizando relaciones con la noción de Tombamento con efectos de presencia y sentido debatidos por el autor contemporáneo Gumbrecht (2010). Concluyendo que el “Tombamento” es una manifestación ético-estética en sí, o sea, en el propio cuerpo de una generación contemporánea compuesta por una juventud que se formó en la periferia y con el uso de internet. Jóvenes que crean nuevas narrativas y referencias para los suyos, ganando nuevos espacios de acción, siendo apropiados en los medios masivos y objeto de muchas críticas.

Palabras clave:  ‘Tombamento’; Cibercultura; Investigación-formación; Fotografía; Sonido; Selfie; Autorretrato

1 Autorretrato Musical

Fonte: Spectaculu Escola de Arte e Tecnologia (2016)

Figura 1 – Autorretrato da estudante Andressa Núbia 

Convocamos vocês, cara leitora e caro leitor, a conhecer, antes de seguir leitura, através do QRcode1 contido na imagem anterior, a exposição “Autorretrato Musical”, que tem como texto release:

A proposta de se ver e se expor nem sempre é uma tarefa fácil. Apesar de vivermos o fervor dos ‘selfies’, produzir uma só imagem que fale sobre si foi desafiante para cada estudante dos cursos de Tratamento de Imagem e Fotografia. Os estudantes tiveram a liberdade para criar, planejar uma grande ou pequena produção, mas o mais importante era que eles conseguissem expressar o que eles são, ou estão, suas potencialidades, criações, personalidades que os tornam pessoas únicas e especiais. Para complementar a imagem, acrescentamos o som. A música brinca com a imagem e vice-versa. A ideia é que cada pessoa que visite a exposição decodifique o código QR que a levará para música, a qual foi obra prima de cada trabalho. Assim compreendemos que visualidade não é só bidimensional, mas é também sonora. Com intuito de brincar com os sons e imagens, todas as músicas que foram matéria para cada trabalho e que estarão nos fones de ouvido de cada pessoa, estarão tocando no ambiente. A ideia é exatamente jogar com o indivíduo-coletivo, com as partes e com o todo, com a mescla de imagens e sons não pensados para as mesmas, mas quiçá podem encaixar perfeitamente. O que foi planejado e o acaso do encontro. Para cada estudante ver-se com outro som, ou melhor, com o som do Outro e ser afetado pela escolha deste. A pequena mostra promove por fim uma série intensa de encontros, desencontros e reencontros.

Olhar-se. Olhar-se no Outro. Olhar-se com o Outro.

2 Metodologia de pesquisa-formação na cibercultura

Este presente artigo é fruto de uma pesquisa-formação realizada no ano de 2016 e contextualizada na cultura contemporânea, a cibercultura, que tem como caracteres principais a digitalização dos códigos e o seu compartilhamento via conexão de redes virtuais, que atravessam continentes. Tal texto dissertativo foi impulsionado pelas inquietações e aprendizagens desenvolvidas nas aulas da disciplina de Olhar, ministrada para xs2 29 estudantes dos cursos de Fotografia e Tratamento de Imagem na Escola de Arte e Tecnologia Spectaculu3, localizada na Zona Portuária do Rio de Janeiro. Os cursos são gratuitos e destinados para jovens estudantes de escolas públicas, na faixa etária entre 16 e 21 anos. Essa disciplina propõe-se, sobretudo, a potencializar a sensibilidade dxs estudantes e, por isso, parte da ideia de que o Olhar não se restringe a um único sentido, a visão, mas opera por meio de todos os outros, além dos cinco mais conhecidos.

Cristina D’Ávila (2008) ao abordar paradigmas de formação docente, reconhece a “epistemologia das práticas” como um novo paradigma de formação na contemporaneidade. Santos (2014) dialoga com este paradigma, mencionando a sua pertinência para compreensão da metodologia pesquisa-formação, já que

A epistemologia da prática busca o reconhecimento de um saber oriundo, mobilizado e reconstruído nas práticas docentes. Busca compreender e elucidar a produção de saberes no bojo da experiência docente – saberes subjetivos que se objetivam na ação. A noção de saber assumida engloba, num sentido amplo, os conhecimentos, as competências, habilidades e atitudes ou o que convencionamos chamar de saber, saber fazer e saber ser. Ao que acresço a dimensão do saber sensível, vinculado à experiência estética e lúdica. Esses tipos de conhecimento, diferentemente das representações em estado inconsciente, refletem o que os profissionais dizem de seus próprios saberes profissionais. Nesses estudos, interessa saber como os professores integram esses saberes a suas práticas, os produzem, transformam e os ressignificam no seio do seu trabalho. (D’ÁVILA, 2008, p. 33-34)

A pesquisa-formação se inspira na pesquisa-ação (BARBIER, 2002), que valora a implicação como precedente nas pesquisas científicas, remetendo à pertinência de deixar-se envolver, entrelaçando prática e teoria nas Ciências Sociais. Bebe também do conceito de formação desenvolvido por toda obra de Paulo Freire (1967-2000), bem como dos estudos de Nóvoa (1995, 2002, 2004) e Macedo (2000, 2001) e da própria noção de pesquisa-formação desenvolvida por Josso (2004) como principais referenciais teóricos. Edméa Santos (2002) e Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura (GpDoC4) atualizam a proposta, preocupando-se sobretudo com a constante mudança na interface cidade-ciberespaço, pois reconhecem que a cibercultura transforma epistemologicamente as formas de ser e fazer nos grupos sociais, mesmo dos excluídos digitais.

Portanto, cada pesquisa-formação se imbui dessa proposta metodológica e também a atualiza, uma vez que ela não pressupõe uma estrutura estabelecida. Esta é impelida pela efemeridade das coisas, pelos acasos e tateares docentes e científicos que não reconhecem a validação de hipóteses como uma possibilidade. Se cada formação é um processo eterno, uma obra sempre aberta, cada pesquisa-formação é igualmente única, por promover o encontro de várias formações em curso a cada exercício de inspirar e expirar, pulsante como a vida. Relembrando o quase ‘trava-língua’ de Freire (1997, p. 25): “[...] quem forma se forma e reforma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado”, na pesquisa-formação, x pesquisadorx-docente tem em mãos, no corpo inteiro, aliás, a criação como pólvora instigadora, reconhecendo a desconstrução de certezas infalíveis como um dos seus movimentos docentes.

A atualização da pesquisa-formação proposta por Santos (2014), portanto, não é gratuita, pois a cibercultura é cultura que vibra aqui-agora, dinâmica e indefinida, movida por autorias individuais-coletivas, trazendo à tona as criações dos praticantes culturais5 via compartilhamento de suas imagens e mensagens numa rede global. Se as redes de formação são elementos imprescindíveis, não seria possível segmentar a cultura digital dessa empreitada, até porque os usos das novas tecnologias digitais em rede não mais se separam dos sujeitos ordinários.

3 O dispositivo6 6 “Autorretrato Musical”

Fonte: Acervo pessoal das autoras (2016).

Figura 2 – Esboços dxs estudantes Mathaus e Jéssica 

Criado com estudantes em 2015, no ano subsequente, o projeto “Autorretrato Musical” ganhou a seguinte formatação de etapas: 1) esboço de si (onde xs estudantes se desenham e escrevem suas redes de formação); 2) falar sobre si e ouvir os demais sem tempo prévio definido, e 3) criação e produção do produto final de forma coletiva e individual.

A apresentação da proposta desse projeto para xs estudantes antecedeu qualquer ensinamento teórico explícito em sala de aula. O que promoveu uma dinâmica diferente, já que não se propôs estudar algo para um dia pô-lo em prática. A proposta já se iniciou em prática e, por isso, para torná-la viável, xs estudantes deveriam lançar mão de tudo que já experimentam em vida. Nas entrelinhas, xs estudantes podiam reconhecer que elxs já são capazes de produzir algo, reduzindo a passividade em conhecer a si próprios. Então a proposta buscou também potencializar a autonomia e a pesquisa, enaltecendo a sensibilidade com práticas afetivas. Portanto, o processo de criação começou já no primeiro dia de aula, sem ‘perda de tempo’, ou melhor, ‘ganhando tempo’. Nesse dia, xs estudantes se desenharam no centro de uma folha A4 e, em volta, as suas redes de formação – o que chamamos de esboço. Ao pedir que xs estudantes escrevessem sobre suas redes de formação, criou-se a oportunidade de lembrá-lxs que os seus processos formativos se dão em todos espaços-tempos em que elxs estejam estão presentes. Nos seus esboços, poderiam trazer qualquer coisa que xs tivesse formado: uma amizade, um namoro, uma experiência, a vivência com espaços sociais, culturais, e assim por diante.

No momento seguinte, xs estudantes começaram a falar sobre o que havia em seus esboços e também fora dele, porque, ao falar, muitas outras coisas lhxs iam surgindo. Aos poucos, xs estudantes encontraram nas aulas um espaço-tempo para o desabafo de momentos que até então não haviam compartilhado com mais ninguém. E cada umx escolhia o seu melhor dia para isso. Todas as vezes em que umx estudante começava a sua narrativa de si, não só a docente mas também xs demais participantes se surpreendiam com mais uma história profundamente intensa. Não houve uma história de vida que não tivesse nenhuma batalha a ser combatida. Casos de racismo, expulsão de casas ou de instituições, brigas familiares, doenças superadas ou não, falecimento de pais e parentes, casos de depressão, homofobia e relacionamentos abusivos foram algumas das histórias que xs estudantes narraram. Porém, não era com tom de tristeza que nos sondavam, era mais com um tom de desabafo mesmo. Relatos com alto grau de densidade, de vidas intensamente vividas, de infâncias arteiras e, talvez, de descobertas precoces, tal como as demandas de uma vida adulta. Como o aluno Carlos Abdala nos disse uma vez: “Esse processo no início do curso foi muito importante para todos nós, nos conhecemos melhor e ouvimos histórias incríveis que eu acho que muito adulto, mesmo você, professora, nunca tenha passado por algo parecido.”

O que talvez a gente tenha observado é que essas realidades desafiam a lógica de ‘vidas perfeitas’. Muito cedo, xs estudantes se viram obrigadxs a passar por situações complicadas. Pelo discurso oficial, que pressupõe realidades ideais, elxs deveriam ainda estar só brincando. Mas a narrativa de uma parte triste da vida, que elxs chamam de bad, conciliava-se com a criação de rotas de fuga para outras realidades além daquela morta e fria que se apresenta para a juventude nascida e criada na periferia. Juventude essa que ‘quer simplesmente viver”, como uma vez nos disse a aluna Andressa Núbia, sem ter que carregar nas costas toda uma história de opressão socialmente construída e sustentada por lógicas embranquecedoras, “de classe e ideologia dominante brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas” – como escreveu Neusa Santos Souza (1983, p. 17) em seu poderoso livro Torna-se negro, que, aliás, foi recomendado pela própria Andressa, que se preocupa com a saúde mental da população negra.

Na epígrafe do livro Olhos d’água (2015), da escritora Conceição Evaristo, a atual diretora executiva da Anistia Internacional do Brasil, Jurema Werneck, descreve essa forma de ser reinventar, mesmo a partir do que está posto. Apesar de falar diretamente da realidade da mulher negra, são elas as parideiras desta geração. Portanto, não há coincidência de sentidos, mas sim pertinências profundas.

A mulher negra tem muitas formas de estar no mundo (todos têm). Mas um contexto desfavorável, um cenário de discriminações, as estatísticas que demonstram pobreza, baixa escolaridade, subempregos, violações de direitos humanos, traduzem histórias de dor. [...] Parcelas da sociedade estão dizendo para você que este é o cenário. As leituras que se faz dele trazem possibilidades em extremos: pode se ver tanto a mulher destituída, vivendo o limite do ser-que-não-pode-ser, inferiorizada, apequenada, violentada. Pode-se ver também aquela que nada, buscando formas de surfar na correnteza. A que inventa jeitos de sobrevivência, para si, para a família, para a comunidade. Pode-se ver a que é derrotada, expurgada. Mas, se prestar um pouco mais atenção, vai ver outra. Vai ver Caliban (o escravo de Sheakespeare em A Tempestade) atualizado, vivo, pujante. Aquele que aprende a língua do senhor e constrói a liberdade de maldizer! [...] É assim que Conceição Evaristo inventa este mundo que existe. De Ana Davenga, Maria, Duzu-Querença, Natalina, Salinda, Luamanda, Cida, Zaíta, Maíta. E desses meninos/homens perdidos, herdeiros de mães sem nome, herança que as mulheres deixaram e que ninguém quis receber. São histórias duras de derrota, de morte, machucados. São histórias que insistem em dizer o que tantos não querem dizer. O mundo que é dito existe. Suas regras, explícitas. (WERNECK, 2016, p. 10).

A ‘língua do senhor' discursa repetida e principalmente por meio de duas formas de ver a população negra, uma inferiorizada e a outra romantizada, que a pressupõe detentora de características como força, manemolência, sedução e exotismo. Jurema Werneck (2016), no seu maldizer, com toda propriedade, diz que há muitas formas de ser nesse mundo discriminador, que é o que xs estudantes conhecem muito cedo. Portanto, as suas narrativas estão diretamente entrelaçadas a esse mundo que acontece através de velados não dizeres, mas que existe, como lembra Werneck.

O narrar de si, portanto, não será uma tarefa fácil, porque se contrapõe a um discurso monocromático que teima em repetir que o racismo e homofobia não existem. E as narrativas que demostram o contrário estão também na existência, no corpo, na presença e permanência das histórias de vida. Como Neusa Souza (1983, p. 17) vai dizer: “Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade.”

O processo de identificação com o outro e o compartilhamento dessas realidades singulares, mas que desafiam as lógicas de ‘vidas perfeitas’ acabaram gerando um fortalecimento entre elxs. Foi o aluno Lucas Lopes quem chamou atenção para isso na sua despedida da turma7, escrevendo assim no grupo da disciplina no WhatsApp:

Hoje eu finalizei mais uma etapa, que foi muito importante na minha vida. Terminei um curso que era de seis meses em três meses, por causa das olimpíadas (olimpíadas...). Quero dizer às pessoas que passaram ao meu lado ao decorrer desses 3 pequenos/longos meses. Quero dizer que vocês são muito importantes para mim. No primeiro mês, foi proposto uma coisa bem interessante para nós (tratamento e fotografia), conhecer a história de cada um dos 30 alunos. Uma coisa que nunca foi feita ao decorrer dos meus 21 anos de idade, nos lugares por que eu passei. Isso me fez me tornar mais humano, me pôs mais no lugar das pessoas, e não julgá-las de cara, de início... Foi o primeiro lugar na minha vida (LITERALMENTE) em que eu gostei de todo mundo, mesmo eu tendo mais conectividade com uns do que com outros, mas foi o lugar – o primeiro lugar – em que eu fui com a cara de todos e não tive rixa com ninguém. Mesmo eu não gostando de partidas na minha vida (não sei lidar), eu gostaria de agradecer imensamente a cada um que conviveu comigo ao longo desses três meses. Eu mostrei meu verdadeiro eu, desde quando eu entrei pra Spec, sem medo do que iriam dizer. Mostrei o meu eu, que eu sempre quis mostrar pro mundo, e me tornei aquilo que eu sempre quis ser, e agora eu tô sendo. Agradeço imensamente a cada um que contribuiu pro meu desenvolvimento. Sei que alguns irão achar que não contribuíram para minha evolução, mas todos, exatamente todos vocês me ajudaram a me redescobrir. Sei que há muito o que evoluir/descobrir em mim, mas vocês foram a apontar. Quero dizer que eu amo muito vocês, e obrigado por cada momento que passamos juntos.

O exercício da escuta sensível, que só pode acontecer a partir dessa dimensão de confiança que criamos aos poucos, gerou uma ambiência de empatia entre todxs. A escuta, portanto, tinha um papel tão fundamental quanto a fala. Fora que, como também lembrou Lucas, não é algo muito comum de se vivenciar na maioria dos espaços/tempos por que passamos. Não dizemos troca de experiências de vida, mas sim o ato de escutar em silêncio x outrx por um tempo não contabilizado. Segundo Barbier (1998, p. 187):

A escuta sensível recusa-se a ser uma obsessão sociológica que fixa cada um em seu lugar e o impede de se abrir para outros modos de existência diversos daqueles que são impostos pelo papel e pelo estatuto social. Mais ainda, a escuta sensível supõe uma inversão da atenção. Antes de situar uma pessoa em seu “lugar”, comecemos por reconhecê-la em seu ser, em sua qualidade de pessoa complexa, dotada de liberdade e de imaginação criadora. (grifos no original).

Por mais que se trate de singularidades e diferenças, não se trata de separar os sujeitos de seus contextos, mas sim de reconhecê-los como praticantes culturais, sobretudo. São tão fazedores da cultura quanto a cultura é fazedora deles. Se apropriam dos códigos da linguagem e os reinventam, criando no cotidiano. Nesse processo de criação de uma autoimagem, cada estudante buscou inspiração em novas ou já conhecidas referências. Qual a imagem que vai falar de si? Como produzi-la? Qual escolher? Como editar? Era uma série de questões a que elxs buscavam responder.

O processo de produção foi um dos momentos mais complicados, até mesmo mais do que falar de si, talvez porque fosse necessário materializar numa só imagem e música tudo aquilo que cada estudante sente/percebia de si e queria comunicar ao mundo. Era constante ouvir e receber mensagens com este tom no WhatsApp: “Professora, socorro, não faço a mínima ideia do que eu vou fazer!!”, “eu estou desesperado!” disse-nos uma vez o aluno Lucas Apóstolo. Como interpretar a si mesmo? Era isso que xs estudantes deveriam fazer?

A fim de compreender a interpretação, buscamos respostas em Macedo (2000), que descreve a trajetória da hermenêutica desde um termo originalmente teológico e depois apropriado pelo campo científico, para referenciar um “esforço de interpretação científica de um texto complexo”. O autor remete-nos à fenomenologia, que dispara um distanciamento da explicação (conhecimento analítico e que procede por decomposições), trazendo à tona a compreensão (conhecimento intuitivo e sintético). Aprofundando esta e buscando romper com o círculo vicioso do objeto-sujeito-objeto, Macedo (2000, p. 75) então afirma:

No círculo hermenêutico, entende-se que cada parte de um texto requer o resto dele para tornar-se inteligível; o todo só pode ser compreendido em termos das partes, há um constante movimento entre as partes e o todo, não havendo nem começo absoluto nem ponto final. Nestes termos, a compreensão se dá por meio de uma recriação da experiência ao tentar conhecê-la. Demanda-se, aqui, um certo grau de empatia ou uma disponibilidade para recriar interpretando. […] Faz-se necessário alertar, ainda, que não há sentido em si, daí a natural opacidade da linguagem e sua natural incompletude; desta perspectiva, a interpretação é incontornável.

Essa ideia de incompletude da linguagem serviu como uma ajuda valorosa no processo criativo do projeto, para lidar com as dificuldades que xs estudantes estavam sentindo. Portanto, as orientações foram para elxs se mantivessem atentxs, pois estamos sempre sendo, ou seja, sempre nos formandos e, portanto, somos indefiníveis, independentemente da linguagem utilizada, no nosso caso, a visual e a sonora. Por isso, essa (im)possível criação deveria reconhecer sobretudo os seus limites.

Para xs estudantes, a compreensão da ideia de ‘fase’ é muito significativa, aliás, talvez uma das fases de nossas vidas que o incerto é o que temos mais de certo. O fato de estar se sentindo perdidx muitas vezes se deve à inconclusão das respostas às perguntas, que vão crescendo de maneira cada vez mais assombrosa, relativas ao que elxs vêm planejando e fazendo da sua vida adulta e independente. Essa busca faz com que elxs voltem para si. Quem são? O que querem? O que desejam? Daí que se exploram e exploram o mundo com uma sede que não cessa. Portanto, muitxs dxs estudantes acabam relatando que seus autorretratos são representativos de uma fase, um período de transição.

Aliás, um dos mais complicados trabalhos que xs estudantes tiveram que desenvolver nesse processo de criação foi definir o que seria mesmo imprescindível nas suas imagens. Foi bem comum, portanto, que, a princípio, xs estudantes instantaneamente buscassem agregar numa imagem todas essas experiências, mas logo depois a maioria percebeu que estava mais interessadx em expressar uma sensação daquilo que eram, ou melhor, estavam sendo, do que ideias segmentadas, porque, afinal, elxs não são ‘só’ isso. Por exemplo, se uma estudante é pichadora, bailarina e costureira, não são necessariamente os elementos expressivos dessas experiências que têm que estar na imagem, como o seu pixo, seus sapatos de ballet e uma máquina de costura. Já que é possível encontrar outras meninas que têm exatamente as mesmas vivências, mas são pessoas diferentes, então agregar essas experiências não é falar de si, necessariamente.

O que foi imprescindível em todos trabalhos? O corpo. O corpo foi inquestionavelmente presente no autorretrato, porque é ele o todo, o único formado pelas suas histórias, é a história em si. O autorretrato vibra a presença dos sujeitos, o corpo, um todo ambulante. O corpo não se representa, ele é em si mesmo, pulsante. Nesse trabalho, podemos observar corpos seminus, isso porque não foi possível a nudez por inteiro, como algumas(uns) estudantes desejavam; pés descalços na rua, costas e peitos à mostra, o exalar e a tonalidade da pele, corpos transpassados por imagens, corpos repetidos e ainda a particularidade do autorretrato de Rômulo Amorim, que convoca a presença do corpo do seu irmão gêmeo, “porque ele sempre está”.

O ato de se fotografar não é, aliás, um ato novo para xs estudantes, que nasceram e se criam já na expansão da internet, imersos na cibercultura, e produzem quase que cotidianamente seus autorretratos compartilhados nas redes sociais, a que viemos chamar de selfie e nudes (selfies do corpo nu). Soares, Barreto e Maia (2015) estabelecem diferenças, porém, entre autorretrato e selfie, compreendendo que o primeiro tem como característica a permanência temporal, como algo que produzido para perdurar, já imbuído de sentidos; e o segundo, como algo fluído no fluxo, gerado no instante em que é compartilhado, por isso não representativo. Reconhecendo, logo de início, que “as configurações atuais também desarticulam questões referentes à representação que por muito tempo dominaram os debates relativos à imagem” (SOARES; BARRETO; MAIA, 2015, p. 1), os autores afirmam que:

O conceito de representação não dá mais conta desse debate, uma vez que o selfie, embora encontre seu lastro no real, não se apresenta como reprodução. Não temos aí uma sugestão convencionada de um objeto a ser reproduzido nem mais a intenção de fabricar uma semelhança e muito menos importam as insuficiências de semelhança em relação ao que está sendo fotografado. [...]

No caso da fotografia, muito se disse que a escolha de ângulos, enquadramentos, etc. colocam o sujeito-fotógrafo na fabricação do objeto. No caso do selfie, além de suas intenções, o fotógrafo, que é, simultaneamente, o fotografado, insere o corpo na fotografia. E se as poses e os estados de ânimo provocam uma alteridade, uma virtualização em relação ao objeto fotografado, estamos cada vez mais distantes de uma possibilidade de representação. [...]

Poderíamos seguir a pista de Baudrillard, para quem a imagem contemporânea não passa de signo esvaziado, capaz de referir apenas a si mesma, devido à sua hiper-realidade e à perda do sentido de equivalência da representação. Não há mais modelo a ser seguido. “O real se tornou apenas um álibi do modelo” (BAUDRILLARD, 1991, pág. 143). Por esse pensamento, a imagem é Oruborus ou, numa linguagem mais popular, um cachorro correndo atrás do próprio rabo, totalmente autorreferente. No selfie, poderíamos pensar a imagem que difere de si mesma: a foto que é uma alternativa ao momento do registro, que é uma composição que não existe mais, mas que nunca se pretendeu como registro do que já foi, como é o caso da fotografia clássica. (SOARES; BARRETO; MAIA, 2015, p. 4-5).

Trazendo esses autores para o diálogo, podemos compreender o que se quer dizer com a não representação nos selfies, à que elxs atribuem caracteres como a hiper-realidade, a autorreferencialidade e a questão do tempo. Esta última se refere especificamente a duas dinâmicas: não haver produção para a captura da imagem e a reprodução imediata, síncrona com o tempo presente. Assim, (2011) também observa:

Ao aplicar essa tecnologia (captura de imagens através de máquinas) a computadores, não apenas se ampliou o acesso à produção e veiculação de imagens, mas, em larga medida, rompeu-se o limite, isto é, a distinção entre o signo e o objeto: quando projetamos, via internet, nossa voz e imagem de nosso corpo em tempo real, interagindo dessa forma com outras pessoas, é a própria realidade da experiência humana que ali se consuma em toda a sua imprevisibilidade e irreversibilidade factual. A imagem deixa de ser uma representação [...].

Santaella (2007), também apontando as diferenças entre a fotografia impressa e a digital, lembra que o caráter duplo da imagem, ou seja, representativo, se enfraquece (para ser fiel à sua escrita) não só devido aos fatores já apresentados acima, como o acompanhamento do fluxo do compartilhamento em tempo real, mas também pelo fato de termos imediatamente em mãos a imagem produzida. Os selfies, portanto, têm como característica o compartilhamento imediato, síncrono com o tempo presente em que foram capturados. E também assíncrono, já que não se lhes tem o domínio depois do compartilhamento, por isso a autora chamará de imagens voláteis não só os selfies mas toda imagem digital que, a partir do instante em que é compartilhada, perde a sua origem, flui na nuvem. Mas, como já apontamos (2014), a produção de fotografias digitais transforma epistemologicamente o nosso modo de sentir e olhar o mundo.

Assim sendo, os selfies não o são apenas porque podem ser compartilhados imediatamente à sua produção, embora, de fato, esse seja um importante caractere; mas inicial, talvez. Pois, a partir do momento em que se tornam um hábito social, observa-se que o comportamento muda para produção dessas imagens. Ou seja, pode-se até afirmar que os selfies têm como característica a conexão com o tempo presente, mas não se pode afirmar que são produções despretensiosas, já que, ao criarem o costume cotidiano do selfie, observa-se que as produções estéticas corporais (vestimenta, maquiagem, acessórios, cortes de cabelo, etc.) se transformam na projeção de um futuro próximo, no qual um novo selfie será realizado.

Por essas questões, não observamos tantas diferenças do Autorretrato Musical para a prática do selfie, porque xs estudantes são produtores das dinâmicas ciberculturais e estão imersos nelas. Dentro desse quadro, seria mais interessante perceber as semelhanças entre ambos, inclusive quando a obra do estudante se torna selfie.

Representação, para Pierce, segundo Santaella (2016), trata-se do último movimento de formatação de sentido no processo hermenêutico. Antes disso, existe o indefinível, o escapável a definições. Portanto, se o processo interpretativo, ou seja, de produção dos sentidos, perpassa o primeiro, o novo, o fresco, o que já está imerso na sopa sígnica, mas nos escapa à tradução imediata, poderíamos pensar o corpo e o seu autorretrato como uma matéria viva desses processos?

Gumbrecht (2010), na sua obra Produção de presença – o que o sentido não consegue transmitir, defende a tese de que existem outras formas de conhecimento que não perpassam somente pela interpretação dos sentidos, mas trazem o efeito de presença como algo que escapa à tradução. Porém, não é nenhuma novidade que existem coisas para as quais a produção do sentido é insuficiente à compreensão. Nos nossos cotidianos, encontramos, volta e meia, a seguinte frase: “Não tenho palavras para explicar o que sinto”. Ardoino (1998), assumindo a noção de complexidade e, juntamente com outrxs autorxs, inaugurando a multirreferencialidade como uma proposta de interpretar, através de diversos pontos de vista, a “exuberância, a abundância, a riqueza das práticas sociais”, que “proíbem concretamente sua análise clássica por meio da decomposição-redução”, compreende que, ainda sim,

[...] a representação sistêmica da complexidade também não é inteiramente suficiente para dar conta de certos aspectos característicos das práticas e das situações sociais, especialmente a consistência particular de uma temporalidade-duração mais histórica. O modelo da regulação não tende, em suma, a ocultar exageradamente a natureza polêmica da ação, privilegiando aí o jogo quase-físico das forças e das tensões? Assim, nesse caso, a energética precederia, deliberadamente, a hermenêutica. A partir de um tal embasamento, a ideia de complexidade não mais cessará de oscilar entre paradoxo e contradição (G. Bateson, Y. Barel etc.). Em função das opções privilegiadas e das linguagens que traduzirão essa escolha, a implicação (em primeiro lugar a dos próprios práticos, em seguida, a dos pesquisadores e a de seus diferentes parceiros), o conflito, o inconsciente, o imaginário etc. encontrarão ou não espaço na análise das práticas. (ARDOINO, 1998, p. 26)

É importante dizer logo que Gumbrecht (2010) repete a todo momento em sua tese que não se trata de refutar de maneira nenhuma os sentidos ou a interpretação, mas sim de trazer à tona a presença para o campo epistêmico, inclusive preocupando-se com as perspectivas estéticas, históricas e pedagógicas. A presença poderia ser também o que Barbier propôs quando escreveu sobre a escuta sensível, quando sugeriu o não julgamento anterior à intepretação. Poderia ser também o que Leonardo da Vinci chamou de indizível, em referência ao que a arte expressa. Na verdade, sempre soubemos que havia outra coisa além, mas esse além, para Gumbrecht, não está no espírito, mas sim nos “mundos cotidianos”, no chão, na terra. E, assim como Ardoino propôs uma implicação e Alves (2008) propôs o mergulho com todos os sentidos, ele também vai propor a necessidade de sentir a presença; é a ela que ele vai se dedicar, sem ser panfletário, mais uma vez, sem defender a negação dos processos de interpretação.

Para Gumbrecht (2010), a experiência estética (conceito que ele compreende como algo “vivido”) oscila entre efeitos de presença e sentido que, por sua vez, não são complementares, ou seja, não convivem em equilíbrio, pelo contrário, interferem uns nos outros e se perturbam. Os efeitos de presença são tudo aquilo que escapa à imediatez da tradução dos sentidos, são instantes fugazes de intensidade, algo que arrebata o ser sem que ele entenda por que. Essa falta de compreensão, na cultura moderna, significa uma falta de domínio da coisa que acontece.

A fim de fazer entender ambos os efeitos, o autor vai distinguir a “cultura de presença”, que, se fosse remeter à uma época específica, seria mais próxima dos tempos medievais, da “cultura de sentido”, mais próxima dos tempos modernos. Assim, então, ele considera que a autorreferência humana predominante numa cultura de sentido é o pensamento, enquanto a autorreferência predominante numa cultura de presença é o corpo (GUMBRECHT, 2010, p. 106). Portanto, a tese do autor traz algo de extrema pertinência para este trabalho, que é a materialidade, a invocação da presença nos corpos e nas produções da juventude contemporânea, com quem estamos em diálogo, na qual pudemos observar a vibração do que Gumbrecht (2010) chama de experiência estética, composta da tensão e da relação entre os efeitos de sentido e de presença.

Importante reforçar ainda que o autor transpõe, por toda sua obra, essa discussão para a cultura contemporânea e seu “desejo de presença”. Segundo ele, as novas tecnologias, paradoxalmente, promovem a presença, apesar de que, supostamente, tenderiam a encolher os efeitos de presença, já que a comunicação se dá por meio de dispositivos e telas, a distância. Desde já, podemos dizer que essa desconfiança do autor, para nós, não é novidade, porque compreendemos que não são as máquinas que promovem esse efeito de presença que ele propôs, mas sim os usos que os praticantes culturais fazem dela. Gumbrecht (2010, p. 15) vai dizer então:

Se é verdade que se pode descrever a moderna cultura ocidental (incluindo nela a cultura contemporânea) como um processo gradual de abandono e esquecimento da presença, também é verdade que alguns “efeitos especiais”8 produzidos hoje pelas tecnologias de comunicação mais avançadas podem revelar-se úteis no re-despertar do desejo de presença.

O autor confessa que não sabe como lidar com esse paradoxo e revela, já no fim da sua obra, em um capítulo de tom mais pessoal, que essa dificuldade em perceber as inovações tecnológicas pode ter a ver com o seu envelhecimento e o seu costume com a presença física das pessoas, mas que é inegável que essas inovações saltam os efeitos de presença. Conversando com ele, afirmamos que o ciberespaço nada mais é do que uma rede alimentada por pessoas, que pulsam vida e vivem experiências estéticas diversas, escapando muitas vezes à estrutura imposta. Portanto, escolhem nos ciberespaços seus espaços formais, onde vestem-se da imagem que precisam manter, quer para família, quer para o trabalho, assim como os informais – e nestes é que emergem a desestrutura –, criando perfis fakes9 ou não, nos quais são aquilo que desejam ser ou o que realmente são.

A juventude contemporânea é mestra, aliás, em achar e até mesmo em produzir esses espaços, fugindo, muitas vezes, dos olhares familiares, embora não se acanhe em ‘lacrar’10 a sociedade, postando uma série de imagens provocativas, até mesmo nudes, o que deixa uma sociedade higienista temerosa e ao mesmo tempo atiçada.

Encontramos algo em comum em muitos autorretratos, como os de Mathaus Oliveira, Lucas Lopes, Carlos Abdala e Andressa Núbia, que é a valorização da pele, corpos pulando para fora da imagem, além da ausência de explicações sobre o autorretrato. Como Lucas Lopes disse: “uma imagem simples” e ao mesmo tempo “misteriosa”. Misteriosa porque não nos dá pistas, é só um corpo e a valorização dele, não tem um elemento figurativo que possa nos informar o que ele faz, o que pretende, o que se passa ali. Pelo contrário, temos elementos que se confundem, praticamente uma mistura entre o passado e o contemporâneo.

A pintura no rosto, cada vez mais comum entre a juventude negra, remete à estética de tribos africanas, já o piercing, além de cruzar várias gerações, nos seus mais diversos formatos, é muito comum entre xs estudantes. Gumbrecht (2010, p. 174) entende que é uma forma de “estar ligado ao chão”, de dar a si mesmo uma certeza – de algum modo ôntica – de estar “vivo”. Acreditamos que a pintura facial também faça essa “chamada terrena”, além de ter como característica visual as formas não representativas, porque ambos (pintura e piercing) foram perdendo a sua referência espiritual oriunda das tribos para outras referências contemporâneas, mas, fora isso, têm um caráter abstrato e que não é duplo de nada: é porque é. Ou seja, continua sem dar pistas à imagem.

O que acaba bagunçando mais ainda a tentativa de compreender a imagem de Lucas, assim como a de Carlos e Mathaus, é a presença da calça jeans; no caso do Lucas, ainda mais porque deixa aparecer um pouco a cueca, que remete mesmo à despreocupação e à informalidade juvenil que tanto incomodam a sociedade, remete a uma cultura urbana que se mescla com toda ancestralidade, ou seja, à ascendência africana, que ali está presente.

Mais misteriosa ainda nos parece a imagem de Andressa, que não olha diretamente para a pessoa que observa a imagem, deixando-se flutuar no ar: ‘o que será que se passa?’ ‘O que será que ela está pensando?’ E quando observamos os detalhes, encontramos mais uma vez as misturas de tempos: a valorização da pele com o glitter dourado, outra coisa também muito usada por essa geração, as tranças enroladas para cima, uma joia na cabeça remetendo à presença de uma rainha e, ao mesmo tempo, um relógio digital, que briga com toda cena, deixando-nos sem saber o que dizer, embora possamos sentir...

4 Geração ‘tombamento’: a presença da presença

A ferida que dominava o território do meu crânio

permaneceu durante uns vinte dias, com soro,

pomadas para queimadura e uma certeza:

a poesia estética será dos meus descendentes

nos próximos dias, até o fim da vida.”

(Yasmin Tayná11)

Fonte: Karol Conká (2015).

Figura 3  Imagem do videoclipe Tombei 

Em 2015, numa aula, xs estudantes colocaram a música Tombei, da rapper Karol Conká (2016). No momento, era tudo muito esquisito, o ritmo, o nome da cantora, o ‘tombei’ e o refrão da música: “já que é pra tombar, tombei”. As meninas, principalmente, dançavam de um jeito diferente, e a pergunta que nos rondava – “que geração é essa?” – se aprofundou ainda mais. No ano seguinte, principalmente pelo mergulho na vida dxs estudantes durante o Autorretrato Musical, o tombamento começou a ficar mais evidente.

Não se sabe precisar de onde nem como surgiu o termo; por certo que não foi criado pela rapper, mas é fato que ela ajudou a cunhá-lo. O ‘tombamento’ é, antes de tudo, uma presença juvenil provocante e também de enfrentamento. Perante toda a realidade que brevemente resumimos, essa é uma postura que, geralmente, não deixa passar nada, ou seja, que se coloca contra as manifestações segmentadoras e a estética corporal, acompanha todo esse processo exalando AFROntamento. O ‘tombamento’ se assemelha aos demais movimentos negros, que são acompanhados de uma ética-estética, mas se cria com os códigos digitais contemporâneos.

Para fazer sobressair o corpo negro, que antes era motivo de vergonha, a juventude usa muitas roupas e batons coloridos, para chamar a atenção aos lábios grossos, bem como piercings no nariz. De igual modo, além dos cabelos reconquistarem seu formato natural, sem alisamentos, a juventude vem lhes dando também as mais diversas tonalidades de cor, geralmente bem chamativas. Assim como os turbantes, cada vez mais utilizados, e os vários tipos de tranças, também coloridas.

Como escreveu a aluna Andressa sobre o primeiro dia que saiu de turbante na rua:

Fonte: Núbia (2016).

Figura 4 – Postagem da aluna Andressa 

Para os garotos, como Lucas Lopes e Mathaus, pintar o cabelo de amarelo provavelmente se tornou um ato de resistência ainda maior, porque homens negros de cabelos tingidos de loiro são, segundo Viridiane Vidal12, alvo da Polícia Militar.

Certo dia, conversando em sala de aula, xs estudantes observaram que, ao mesmo tempo em que liberta, o tombamento pode acabar se tornando opressor com outras pessoas negras “não empoderadas”. Segundo elxs, porque envolve um investimento financeiro que as outras pessoas não detém. Essa é uma preocupação tão evidente nxs estudantes que não os vemos se autodenominando geração tombamento; pelo contrário, elxs põem a questão em xeque.

Além do exercício de se autocriticar que xs estudantes e xs outrxs jovens fazem nas suas redes sociais, a geração tombamento recebe críticas de todos os lados, provocando, inclusive, reações opostas. Recebe críticas de militantes, que cobram uma postura mais criteriosa dessa geração, ao mesmo tempo em que reconhecem a sua importância. Também é vista com olhar de estranheza no seio familiar e na sua comunidade, que muitas vezes se incomodam com ela, mas também a admiram. Tal como Andressa nos contou quando saiu com turbante de casa: segundo ela, ainda antes de pisar no asfalto, desde que colocou o pano na cabeça, começou a ouvir uma série de brincadeiras, mas também olhares de contemplação e empatia.

O ‘tombamento’ recebe ainda críticas de diversas pessoas da sociedade, o que não é uma novidade. Esse movimento não necessariamente impede manifestações de racismo ou homofobia, mas se torna um chamariz para essas questões. O ‘tombamento’, como movimento estético que é, acaba sofrendo uma série de apropriações por parte da publicidade e das fabricantes de diversos produtos no sistema de mercado, que estão sempre de olho nas novas tendências, inclusive na juventude, que sempre esteve sob o foco dessas empreitadas, como bem apontou Savage (2009)13.

No Dia Internacional do Orgulho Gay, por exemplo, a empresa Avon Cosméticos veiculou um anúncio da sua nova linha de cosméticos acompanhado da seguinte mensagem: “O que te define é o seu olhar”, do qual participaram diversos artistas, jornalistas e vlogueirxs que se colocam contra o padrão estético vigente, além de muitas personalidades LGBTs.

Em contraponto, cresce cada vez mais a tendência de comprar roupas usadas e de fabricação artesanal, pois, além do preço acessível, há muita inspiração nos anos 90. Por exemplo, a iniciativa do “Original Favela”14, bazar itinerante criado por meninas de São Paulo e pela youtuber Nátaly Neri, que promove essa tendência, defendendo o consumo consciente no seu perfil do Instagram15.

Portanto, esse movimento se torna problemático, porque, ao mesmo tempo em que, enfim, a representatividade vem conquistando espaço nas mídias, como a venda dos produtos também é destinada a outros públicos, percebe-se de forma evidente um processo de apropriação cultural. A questão também foi percebida pela blogueira Leila de Castro16:

Esse movimento crescente de volta ao cabelo natural despertou o interesse do mercado e tem propiciado o surgimento de novos produtos para crespas e cacheadas. Se por um lado isso pode ser visto como uma conquista, já que muitas mulheres negras podem finalmente se ver representadas nos produtos que consomem ou pelo menos ter opções de compra, por outro, é bem evidente que todos esses lançamentos possuem o interesse lucrativo enorme que veio acompanhado de uma consequência: a tentativa de transformação do movimento de volta ao cabelo natural como tendência a ser consumida. Diante dessas coisas, uma das minhas grandes preocupações é quem está lucrando com tudo isso e quais as implicações dessa lógica de consumo para a vida das pessoas.

Movimentos como esse já foram vistos anteriormente, como no punk e no próprio funk, e isso foi muito debatido também em sala de aula, uma proposição dxs próprixs estudantes, que levantavam, assim como essa, outras pautas do movimento negro, dos feminismos e dos LGBTs. Hoje, aliás, observamos como o processo do Autorretrato Musical assumiu um tamanho maior do que podíamos esperar, até porque não estávamos ali só tratando da autoimagem, o que, por si só, já seria um grande projeto, mas, paralelamente, também discutíamos diversas questões éticas e estéticas.

Mas, ainda que todo esse processo de tomada de consciência não acompanhasse a geração tombamento, na qual, como dissemos, muitas vezes a estética antecede os sentidos a ela agregados, será que ele não seria válido? O que consideramos válido? O que tanto incomoda nessa geração?

Inspiradas em Coelho (2015), que vai falar de outras presenças e também de juventudes “periferizadas” como um “choque epistemológico”, viciadas na própria língua criada pela geração tombamento, vamos sugerir que a sua presença é, em si, um ‘lacre epistemológico’, em consonância com o autor, que afirma:

[...] choque epistemológico definitivo que, a meu ver, esses jovens nos ofertam – aquele que reconhece e devolve ao corpo, sua condição de órgão produtor de saberes, complexificando assim a própria noção moderna de “saberes”, uma vez que convoca as dimensões do sensível, da presença, da fisicalidade, à sua elaboração. Dimensões essas que até então, precisaram ser interditadas desse processo, a fim de que, desgarrada dessa fonte de incapturas, dessa imanente ginga nunca plenamente capturável que é o corpo, a consciência pudesse triunfar e abrir caminho ao reino da humanidade esclarecida. O maior impedimento da sustentação desse reinado, no entanto, estava no seu próprio interior, ou melhor, em sua própria superfície que mesmo após severas tentativas de separação, seguia ali dando contornos físicos, atribuindo presença a este “ser” que tentava transcender-se por si mesmo, mantendo nele uma terrível gravidade, um enigma que não se deixa esclarecer. E essas juventudes, em meio a tantas outras potências contemporâneas, são eloquentes em exibir desavergonhadas as fissuras indicativas da saturação desse projeto, em sentir-se bem ao nível do chão. (COELHO, 2015, p. 76).

Além da noção de corpo como presença, pretendemos sacá-la pelos elementos da experiência estética e pelas proposições sobre os efeitos de presença desenvolvidos por Gumbrecht (2010), para propor tal lacre epistemológico, que se dá na presença em si dessa geração.

Um dos elementos que observamos, nesse sentido, foi a sensação muito viva do passado presente no ‘tombamento’, ao mesmo tempo muito ligada ao aqui-agora, trazendo à tona o passado como quem evoca deusas e deuses em si. Como escreveu Stephanie Ribeiro17, “As tranças comuns entre as matriarcas negras ficaram coloridas. Os turbantes que as avós e mães usavam na casa da ‘patroa’ ganharam cores e estampas, e agora saem na balada.”

Gumbrecht (2010) apregoa que a prática de valorização do passado é uma postura contemporânea que cria uma “esfera de simultaneidade” entre os tempos atuais e os antigos. Segundo o autor, estamos aos poucos deixando de lado a compreensão moderna de relação com o tempo, que entendia o presente como algo sempre em transição, o futuro como passível de cálculos e premissas, e o passado, primeiro, de forma segmentada, porque não considerava o período medieval e, segundo, como uma forma de aprendizado de base para o futuro, principalmente no desenvolvimento de leis antigas. Para ele, atualmente, “[...] estamos mais do que nunca ansiosos (e mais bem preparados no nível do conhecimento e até no da tecnologia) para preencher o presente com artefatos do passado e reproduções fundadas nesses artefatos” (GUMBRECHT, 2010, p. 150). O que ele vai chamar de “desejo de presentificação” remete-nos à experiência de se sentirem Deuses que alguns alunxs postaram em suas redes sociais no dia da produção fotográfica do Autorretrato, assim como outros nomes utilizados nas narrativas dessa geração: rainha, musa, deusa, etc.

Apoiando-se no conceito fenomenológico de “mundo-da-vida”, de Edmund Husserl, que se propõe a reunir todas as operações mentais e intelectuais de que os seres humanos são capazes, em todos os tempos e culturas, assim, num determinado tempo específico, poder-se-ia encontrar todos os outros tempos. Tratando ainda da nossa nova relação com o tempo, Gumbrecht (2010, p. 152-153) escreve um trecho profundo em sua obra, que remetemos à presença da geração tombamento:

Uma das características mais surpreendentes do mundo-da-vida [...] é a capacidade humana geral de imaginar operações mentais e intelectuais que a mente humana não é capaz de realizar. Em outras palavras: faz parte do conteúdo do nosso mundo-da-vida imaginar – e desejar – capacidades que estão além das fronteiras do mundo-da-vida. Os atributos com que as diferentes culturas dotaram seus deuses – onisciência, eternidade, onipresença ou força excepcional – são reduto dessas imaginações. Se afirmamos, com base nessa reflexão, que aquilo que imaginamos estar além das fronteiras do mundo-da-vida virá a construir objetos – meta-historicamente estáveis – de desejo, podemos especular que diferentes desejos de atravessar as fronteiras do mundo-da-vida em direções diferentes podem originar diferentes correntes básicas de energia que conduzirão todas as culturas e historicamente específicas. A dupla limitação temporal da vida humana pelo nascimento e pela morte, por exemplo, criará o desejo de atravessar essas duas fronteiras do mundo-da-vida, e a metade desse desejo será mais especificamente a vontade de atravessar a fronteira do nosso nascimento – em direção ao passado. Esse mesmo desejo motivará todas as culturas históricas, historicamente específicas, como uma força subterrânea. O objeto desse desejo, subjacente a todas as culturas históricas, historicamente específicas, seria a presentificação do passado, ou seja, a possibilidade de “falar” com os mortos ou “tocar” os objetos dos seus mundos.

Se levarmos em conta toda grandiosidade das tradições africanas dizimadas ao longo do tempo, numa tentativa de criar nos seus descendentes uma autoimagem de si equivocada, essa dimensão que atravessa tempos e que em determinados momentos é acessada em corpos e presenças, como quem acessa códigos talvez nunca desenhados, mas sim exalados e exaltados, a autoimagem deixa de se equivocar para evocar em si essa conexão eterna. Trata-se também de um histórico e longo movimento de resistência que teima em perdurar, apesar das adversidades.

Se, assim sendo, a luta contra a apropriação cultural, ou seja, a apropriação desses códigos, é mais do que necessária, também o é, como já repetidamente disseram, talvez com outras palavras, a manutenção de sua existência. Mas também somos levadas a crer, em segredo, que esse processo, por mais venoso, usurpador e revirador de códigos que seja, não será jamais o código em si, se não for ancestral, se não cruzar o tempo de maneira tão viva e serena.

E, dessa maneira, propusemo-nos a entender os usos que essa geração faz das novas tecnologias, como um canal de acesso não a informações, mas a essa sensação de memória viva da sua ancestralidade em si, os códigos atravessando os tempos, existindo por diversas mãos nesse mundo contemporâneo, travestidos digitalmente e com pés descalços na rua (ver autorretrato da Danieli Machado). Nesse sentido, Diana Domingues (2002, p. 38-39) vai escrever:

Quando estamos conectados através de interfaces, o sangue tem a mesma importância que a corrente elétrica: “o homem exaurido está recebendo uma alma tecnológica.” (Domingues, apud Berges, 1999, p.11-8). Se pensarmos em que dimensão as tecnologias se constituem numa verdadeira revolução, devemos pensar que estamos diante de um novo homem, ou “d’um nouveau Golem”. Esta denominação escolhida René Berges (1991) afirma que com o computador tudo acontece como se o homem e a máquina entrassem numa estreita simbiose. Em lugar de assujeitamento ou submissão do homem ao computador, o que se está verificando é um alargamento de nossa consciência ou um “suplemento da alma”. As memórias eletrônicas oferecem uma existência exterior como propagações do eu no interior de circuitos eletrônicos. Os limites entre exterioridade e interioridade ficam abalados. As memórias externas nos transformam em seres potenciais para existir fora de nós mesmos. Entretanto, os atos de ler, escrever, gravar e conectar não são somente a expressão de nossa subjetividade. São uma maneira de nos perdermos a nós mesmos. Conectados, nós estamos em estados de passagem, num trânsito (Perniola, 1990) de alguma coisa para outra coisa estranha e diferente. O real está nesse intervalo, em uma instância elíptica. Esta é uma experiência enigmática de TRANS-E.

O estado de passagem, de transe e de estar perdido é uma realidade para essa juventude, instantânea e elíptica, praticamente vital. E, em sua cotidianidade periférica, em que o corpo está marcado e alvejado para morrer, a vida se coloca de maneira mais brava e feroz, portanto fadada também a carregar um peso muito maior do que seria possível carregar. A fuga não é só bem-vinda mas também necessária ao exaurir-se. A falta de domínio de si é, talvez, uma das formas de enfrentamento que mais deve incomodar a sociedade esclarecida. Porque o sentido domina como a palavra com que intitulamos algo até então sem nome, tornando-o apegado para sempre a esse gesto, por mais que ele seja ressignificado.

Esse incômodo trazido pelas reações dúbias que essa geração causa por onde passa, aliás, de certa maneira já traçado aqui, ao mesmo tempo que repele, atrai. Não é possível que aja no mundo alguém que não tenha experimentado essa falta de domínio de si também como mote existencial, nem que seja por milésimos de segundos, a fim de sobreviver em meio a tantas etiquetas que colocamos nos efeitos, nas coisas e em nós. Para Gumbrecht (2010, p. 146), a perda de domínio se dá na oscilação dos efeitos de presença e sentido, e a experiência estética, em meio ao mundo cartesiano, recupera “a dimensão existencial e corpórea da nossa existência” e ainda nos devolve “a sensação de estar no mundo físico de coisas”. Porém,

[...] devemos logo acrescentar que essa sensação, pelo menos em nossa cultura, não terá nunca o estatuto de uma conquista permanente. Então, ao contrário, talvez seja mais adequado formular que a experiência estética nos impede de perder por completo uma sensação ou recordação da dimensão física das coisas.

E, sobre conquista, essa geração conhece muito bem; não será tão cedo que poderemos nos sentar tranquilos e ler um jornal sem encontrar um rastro sequer da luta desigual por espaço, mesmo porque, ainda mesmo quando reconhecidamente seus, ‘algo’ cedo ou tarde lhes os usurpa, quando não os assassina.

Ainda no contexto da perda de si e da ocupação de espaços, as festas não poderiam, aliás, estar nesse corpo, que quer gastar-se, que quer debochar da morte companheira. Em festas como Batekoo (2018), onde a proposta é “unir todos os ritmos negros para todo mundo se divertir muito e quebrar até o chão, até as pernas dizerem CHEGA!”, protagonizada pela própria juventude negra. É a mesma festa que não tolera qualquer forma de preconceito, com uma equipe preparada para receber denúncias no local.

A geração tombamento transpira liberdade, mas talvez tenha cansado da sua versão romântica enlatada e plastificada, vendida nos contos de fada das princesas dos cabelos dourados. A liberdade está muito mais em impor o seu ser no mundo do que em desejar um ‘eterno final feliz’, portanto o corpo tombamento é uma presença violenta, disputa espaço, esgarça-o se preciso, mas o mais interessante é que tudo isso está no corpo em si. Por isso falamos da presença da presença.

Coelho (2015, p. 80) vai atribuir, ainda, a violência à perda de si:

Se, então, é de experiências que lancem o corpo em gestos, movimentos, comportamentos, linguagens, expressões, reconhecidamente movidas não exclusivamente pela sua dimensão dirigida, mas por algo para além e para aquém de si mesmo; se é um corpo (des)possuído, então, que é convocado a suspender a memória de si para performatizar a memória coletiva, de grupo, da tribo; se esse corpo trágico, então, é levado a periodicamente perder-se, morrer e renascer, logo, será justamente de mecanismos de “violência”, numa acepção do atravessamento de nossa subjetividade, da dinamização de nossa inércia pessoal, que os exageros necessários serão construídos.

Por mais que o corpo tombamento não deseje, não queira, não se dedique a isso, que refute inclusive a violência nos seus discursos, esse é um corpo que provoca violência no contexto em que vive, por gostar de sair de si nas festas e por se fazer presente ainda que a sua presença não seja desejada. Não só por se portar como é, exaltando seus tempos terrenos e ancestrais de maneira inspirada, num coletivo que se forma: “Okay, ladies now let’s get in formation!” (Ok, damas, agora vamos ficar em formação!). Formation, música icônica disso tudo que nos propomos a dizer, faz parte do polêmico álbum Lemonade, em que a cantora Beyoncé, reconhecidamente uma rainha para a geração atual, faz uma série de referências ao movimento negro e diversas AFROntas à sociedade racista e machista. Não à toa, um disco muito criticado.

As músicas e danças carregam essa oscilação de sentido e presença de que Gumbrecht (2010) tanto fala de maneira muito viva. As danças, cheias de gestuais representativos, assim como as músicas e suas letras, também provocam a perda do sentido, algo inexplicável, ou seja, que o sentido não alcança. Como explicar o inexplicável?

5 (In) Conclusões

Percebemos que essa juventude, o tempo inteiro com fone de ouvido, imersa nessas vibrações (e aqui vale pensar no sentido de reverberação sonora também), exala essa sensação que o restante da sociedade, geralmente, tende a compartimentar em algum lugar, seja admirando uma obra de arte num dia incomum, seja nos cultos religiosos ou noutro momento de intensidade, que é o que Gumbrecht vai achar como definição de experiência estética: instantes de intensidade.

Essa juventude em que mergulhamos é intensidade pura. O tombamento é, então, um fenômeno contemporâneo hipnótico, de oscilação carregada de efeitos de sentido e presença em si. E o que se pede dele, como vimos, é a racionalidade de suas ações. Pensamos, enquanto professoras, que embevecer-se de conhecimento nas práticas é prerrogativa do empoderamento, mas a experiência estética em si é uma arma tão política quanto, sem nem sequer talvez ter a consciência de que é, algumas vezes, de primeira – digamos assim.

Se entendermos a ancestralidade como a centralidade de todo movimento negro, com toda ressalva que essa afirmativa pode trazer, o ato de descobrir-se nesse momento de intensidade, nesse instante sensível, que não mais se refere à inferioridade como prerrogativa de ser negrx, mas no qual se encontra a identidade negra em si, que se ama, é quase que simultaneamente encontrar seus ascendentes e toda sua história, como algo que te arrebata e não tem mais volta.

Por isso, a busca pela estética de cada negrx não é necessariamente narcisista, pois, enquanto Narciso debruçava-se por horas diante da fonte, à população negra, retiraram-lhes as águas há muito tempo e quebraram seus espelhos depois, produzindo um efeito de busca do ser atrás dele mesmo. À sua miragem foi imposto um corpo pálido e branco, que não faz cessar essa busca, só aumentar, tentando matar aos poucos suas memórias, cujas resistências estão no corpo. O corpo negro, que é alvo de uma descomunal e cotidiana chacina, resiste cada vez mais alicerceado em todxs que põem essa memória viva. O corpo é a sua memória – que tenha fartura e eternidade.

Diante da quebra de lógicas e da vibração viva em corpo dos temerosos e admirados efeitos de presença na sociedade cartesiana, a geração tombamento é, em corpo, a presença da presença, um lacre epistemológico que vem tombar as certezas. Uma delas, acreditamos, é a própria forma de contar e fazer história; outra, a forma de aprender, e ainda tantas outras formas de ver o mundo devidamente e intrinsecamente adaptadas às lógicas brancas.

1Para decodificar qualquer código QR ou QR code, é necessário baixar um aplicativo decodificador no seu dispositivo. Atualmente, algumas câmeras de celular já fazem a decodificação sem necessidade de baixar esses apps.

2Usamos “x” para poder nos referir a qualquer pessoa, ao invés da usual inflexão de gênero dos artigos masculinos e femininos.

4Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura. Disponível em: https://bit.ly/2Hfm9Iz. Acesso em: 19 fev. 2019.

5Inspiramo-nos em Certeau (1994), que criou essa expressão para frisar a inventividade de todos os sujeitos no cotidiano, pois não somos idiotas culturais.

7O curso de Tratamento de Imagem durava somente um semestre, já o de Fotografia durava um ano.

8O autor, mais a frente, vai equiparar os efeitos especiais com os efeitos de presença.

9Desde a criação das redes sociais, um fenômeno muito interessante é a criação de contas de perfis de pessoas que não existem. Quando esse assunto surgiu em sala de aula, foi bem interessante observar o quanto essa atividade foi importante para a formação de algumas pessoas, principalmente no tocante à orientação sexual.

10Lacrar é uma gíria contemporânea para se referir a um choque que perturbe algo/alguém.

11Cf.: https://bit.ly/2UrVwmR. Acesso em: 19 fev. 2019.

12Cf.: https://bit.ly/2TAlOXT. Acess em: 19 fev. 2019.

13O jornalista Savage, no livro A Criação da Juventude (2009, p. 11), afirma que os primórdios do termo teenager “desde o início foi um termo de marketing usado por publicitários e fabricantes que refletia o poder de consumo recentemente visível dos adolescentes. O fato de que, pela primeira vez, os jovens se tornaram um público-alvo também significava que eles tinham se transformado num grupo etário específico com rituais, direitos e exigências próprias”.

14Cf.: https://bit.ly/2TuNblL. Acesso em: 19 fev. 2019.

15Cf.: https://bit.ly/2J65OaU. Acesso em: 19 fev. 2019.

16Cf.: https://bit.ly/2HsuA2G. Acesso em: 19 fev. 2019.

17Cf.: https://bit.ly/2EQYvyK. Acesso em: 19 fev. 2019.

Referências

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Recebido: 05 de Setembro de 2017; Aceito: 06 de Dezembro de 2018

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