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Perspectiva

versão impressa ISSN 0102-5473versão On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.37 no.1 Florianopolis jan./mar 2019  Epub 18-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2019.e51922 

Artigos

A Interdisciplinaridade constituindo o discurso pedagógico na Formação de Professores de Química em um curso preparatório para o ENEM

The Interdisciplinarity as a constituent part of pedagogical discourse in the training of chemistry teachers in a preparatory course for the ENEM

La Interdisciplinaridad constituyendo el discurso pedagógico en la Formación de Profesores de Química en un curso preparatorio para el ENEM

Josiele Oliveira da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-2150-6513

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS

2Universidade Federal de Pelotas, UFPel


Resumo

O presente artigo refere-se à formação de professoras de Química no projeto de extensão Desafio Pré-vestibular da UFPel. A partir de discursos presentes em documentos oficiais que orientam a formação docente no país e de enunciações nas falas dos sujeitos da pesquisa – professoras de Química do projeto no ano de 2015 – buscamos analisar como o movimento pela interdisciplinaridade (VEIGA-NETO, 1996a) produz efeitos na forma como essas professoras compreendem a sua formação e se veem no exercício da docência. A pesquisa, de caráter qualitativo, foi realizada a partir da noção de discurso em Michel Foucault (2014; 2015), que compreende o discurso como constitutivo dos objetos sobre os quais fala (FOUCAULT, 2015). O material empírico foi produzido a partir de um questionário respondido pelas professoras pesquisadas. Os resultados mostram que o discurso pedagógico que valoriza a interdisciplinaridade na Educação Básica também está presente nas falas das professoras no curso de extensão, sendo um dos efeitos do discurso, a referência desse projeto como espaço que oportunizaria às professoras a formação que não tiveram/têm no curso de graduação, com relação ao desenvolvimento de ações interdisciplinares.

Palavras-chave:  Interdisciplinaridade; Formação Docente; Discurso

Abstract

The article refers to the training of Chemistry teachers in Desafio Pré-vestibular UFPel extension project. From discourses present in official documents that guides teacher education in the country and enunciations in the subject lines of the research- Chemistry teachers of the project in the year of 2015 – we seek to examine how the movement for interdisciplinarity (VEIGA-NETO, 1996a) has effects on how these teachers understand their training and see each other in the exercise of teaching. The research, with qualitative character, is performed from the notion of speech based on Michel Foucault (2014; 2015), which comprises the speech as a constitutive part of the object which it speak (FOUCAULT, 2015). The empirical material was produced based on a questionnaire answered by the surveyed teachers. The results showed that the pedagogical discourse that values the interdisciplinarity in basic education is also present in the lines of the teachers in the extension project, being one of the effects of this speech the reference of this extension project as a space that offer opportunities of training that these teachers did not have in their undergraduate course, in respect of the development of interdisciplinary actions.

Keywords:  Interdisciplinary; Teacher training; Speech

Resumen

El presente artículo se refiere a la formación de profesoras de Química en el proyecto “Desafio Pré-vestibular” de la UFPel. A partir de los discursos presentes en documentos oficiales que direccionan la formación docente en el país y de enunciaciones en las hablas de los sujetos de la pesquisa – profesoras de Química del proyecto en el año de 2015 – buscamos analizar como el movimiento por la interdisciplinariedad (VEIGA-NETO, 1996a) produce efecto en la forma como las profesoras comprenden su formación y se vean en el ejercicio de la docencia. La pesquisa, de carácter cualitativo, es realizada a partir de la noción de discurso en Michel Foucault (2014; 2015), que comprende el discurso como constitutivo de los objetos sobre los cuales habla (FOUCAULT, 2015). El material empírico fue producido a partir de una encuesta respondida por las profesoras pesquisadas. Los resultados muestran que el discurso pedagógico que valora la interdisciplinariedad en la Educación Básica también está presente en las hablas de las profesoras en el curso de extensión, siendo uno de los efectos de ese discurso la referencia de ese proyecto como espacio que crearía oportunidades a las profesoras la formación que no tuvieron/tienen en el curso de graduación, con relación al desarrollo de acciones interdisciplinares.

Palabras clave:  Interdisciplinariedad; Formación Docente; Discursomodelos no convencionales

Introdução

Durante as décadas de 1990 e 2000, muitas críticas começaram a ser produzidas sobre a lógica da formação do professor conhecida como “modelo 3+1” (três anos de disciplinas específicas e um ano de disciplinas pedagógicas), até então hegemônica, sobretudo no que diz respeito à pouca valorização do saber pedagógico ou mesmo da proximidade entre a universidade e realidade escolar, assim como sobre as disciplinas pedagógicas introduzidas no quarto ano do curso serem meras disciplinas técnicas e auxiliares na formação do professor.

Essas críticas culminaram numa reforma curricular dos cursos de licenciatura, instituída com as Resoluções nº 1 e nº 2, de 18 e 19 de fevereiro de 2002, editadas pelo Conselho Pleno (CP) do Conselho Nacional de Educação (CNE), cujo objetivo era produzir uma transição do modelo de formação docente desse modelo “3+1” para um modelo que buscava valorizar a práxis educativa a partir da relação de proximidade entre universidade e escola, além de inserir as disciplinas pedagógicas desde os primeiros semestres do curso, de modo que a produção da identidade docente perpassasse todo o processo de formação.

Este artigo tem como objetivo voltar ao passado e compreender qual era a lógica de formação propagada nos três primeiros anos daquela perspectiva curricular do “3+1” nos cursos de formação de professores no período de institucionalização dos cursos superiores de Geografia. Com tal objetivo em mente, passamos a nos questionar se o enfoque no processo de formação nos primeiros anos priorizava os saberes de referência da ciência geográfica em detrimento dos saberes escolares e pedagógicos, bem como se é possível afirmar que naquele período os cursos de licenciatura em Geografia em nada contribuíam para a formação do futuro professor e consequentemente para a aproximação entre o aluno e a realidade escolar.

Para entender essas questões este artigo partirá de um ‘exercício arqueológico do saber geográfico’, buscando compreender o processo de construção desse conhecimento e entendendo também como as instituições e sociedades geográficas, bem como a escola, foram fundamentais para os primeiros passos da matéria escolar geografia, que posteriormente se tornou acadêmica com a criação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934.

A questão do método: porque a arqueologia do saber

Quando nos questionamos sobre o recorte necessário em nosso objeto de pesquisa, qual seja, a construção da disciplina Geografia, deparamo-nos com uma questão central para uma pesquisa que se propõe histórica: o recorte temporal. Deleuze (2013, p. 31) afirma que, para Foucault, seu método “parecia ter dois efeitos opostos, pois conduzia os historiadores a operar cortes bem amplos e distantes, dividindo períodos longos, enquanto levava os epistemólogos a multiplicar os cortes, às vezes de breve duração”. Mas que método era esse? E por que tal método propiciava esses efeitos distintos?

Primeiramente, falaremos sobre esse ‘método’, que, dentro da perspectiva foucaultiana, é bem mais livre de formulações, ou mesmo de receitas a serem seguidas (VEIGA-NETO, 2007). Esse ‘método’ é a arqueologia, e a partir deste exercício pode-se apreender os discursos que se encontram na superfície de inscrição de um dado objeto de investigação. Fica mais clara tal ideia quando trazemos os diferentes efeitos que a arqueologia causa entre epistemólogos e historiadores no tocante ao problema do recorte temporal, partindo do pressuposto que o epistemólogo visa conhecer a origem conceitual, em contrapartida ao historiador, que não possui uma preocupação com o conceito em si, mas sim com o acontecimento – evento ou fenômeno. Em todo o caso, há de se concordar que ambos veem a história a partir de certas descontinuidades, e é aí que trazemos as ideias foucaultianas, exemplificadas neste texto a partir do livro Vidal, Vidais: Textos de Geografia Humana, Regional e Política, organizado por Haesbaert, Pereira e Ribeiro (2012). Os autores afirmam que a problemática levantada no trabalho é “sugerida indiretamente pelos escritos do filósofo francês Michel Foucault” e que

[...] sua reflexão em torno da criação de discursos que definem e excluem uma determinada agenda de temas, criando uma ordem discursiva dita racional e institucional, assim como sua análise acerca do surgimento das Ciências Humanas, inaugurando a Modernidade mediante um paradigma que fragmenta e dispersa o mundo e o Homem em uma gama de campos científicos, são parte integrante de nossa abordagem. A crítica do filósofo à constituição dos saberes e à ordem do discurso orienta parte das questões aqui apresentadas, na medida que reconhecer que o próprio Vidal não menospreza os saberes (do senso comum) frente a uma “ciência” unilateralmente constituída. (HAESBAERT; PEREIRA; RIBEIRO, 2012, p. 14. destaque nosso).

Por meio da fragmentação e dispersão de Vidal de La Blache, o livro ilustra bem o que seria a arqueologia, pois o saber não é original de um sujeito isolado do mundo. A ‘morte do homem’ tratada por Foucault vai ao encontro dessa lógica de dispersão do sujeito em uma pluralidade de funções possíveis que formam um acontecimento discursivo (FOUCAULT, 2013). O autor, nesse sentido, transcende o próprio indivíduo, como afirma Foucault (2001, p. 13):

Chegar-se-ia finalmente a ideia de que o nome do autor não passa, como o nome próprio, do interior de um discurso ao indivíduo real e exterior que o produziu, mas que ele corre, de qualquer maneira, aos limites dos textos, que ele os recorta, segue suas arestas, manifesta o modo de ser ou, pelo menos, que ele o caracteriza. Ele manifesta a ocorrência de um certo conjunto de discurso, e refere-se ao status desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura. O nome do autor não está localizado no estado civil dos homens, não está localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular de ser.

Nessa perspectiva, voltamos para a questão sobre o recorte feito pelos epistemólogos e pelos historiadores. Nos dois casos, os objetivos que os cercam são a descoberta da origem do conhecimento e a origem dos acontecimentos, respectivamente. A arqueologia possui outra proposta, pois, na medida em que a descontinuidade e a superficialidade são fundamentos para essa perspectiva, a ideia de origem, de identidade primeira, ou mesmo de verdade dos acontecimentos serão desconsideradas, abrindo espaço para o processo da construção interessada.

Em todo caso, quando trazemos essa discussão para este trabalho a partir da arqueologia, tanto a epistemologia como a história se aproximam do recorte que aqui utilizamos. Obviamente, não com o intuito de conhecer a origem verdadeira dos acontecimentos, mas sim de compreender o processo de constituição da Geografia no Ensino Superior, os discursos que deram legitimidade para que isso acontecesse e a consequente formação do professor a partir desses saberes institucionalizados. Para que isso seja feito, vemos que tanto a epistemologia como a história passam a fazer parte de um único movimento, que é a arqueologia dos saberes (FOUCAULT, 2008), em que acontecimentos e conceitos são construídos na linguagem de apreensão discursiva, ou seja, como realidade, e não para entender uma realidade (DELEUZE, 2013).

Geografia, escola e sociedades geográficas

Para Saviani (2009), desde os colégios jesuítas até meados do século XIX, o Brasil ainda não havia manifestado uma real preocupação com a questão da formação de professores. O autor vai dizer que tal preocupação surgirá apenas em 1827, com a Lei das Escolas de Primeiras Letras. Mesmo que tal lei estipulasse que o professor fosse treinado para dar aula, ainda assim não se fazia nenhuma referência à questão pedagógica, o que pressupunha “que os professores deveriam ter o domínio daqueles conteúdos que lhes caberia transmitir às crianças, desconsiderando-se o preparo didático-pedagógico” (SAVIANI, 2009, p. 144).

Um dos caminhos para responder aos questionamentos de nossa pesquisa, já apresentados, é considerar a questão institucional. Assim, é possível afirmar que as instituições que disseminavam o conhecimento geográfico no século XIX eram fundamentalmente compostas pelas Sociedades Geográficas e pelas escolas. No Brasil será ainda mais evidente essa lógica, devido à ausência de universidades, pois, como afirmado por Castilho (2008, p. 37), por mais que se tentasse fazer uma reforma na educação do país a partir das propostas modernas do Marques de Pombal, entretanto, “em nenhum país terá havido tanto quanto no Brasil do século XIX uma atitude tão ostensiva, pertinaz e duradoura a se opor à introdução da universidade moderna”. Para o autor, durante grande parte da história do Brasil, inclusive com a chegada da corte portuguesa, o que se privilegiava eram interesses imediatistas de formação, isto é, o pragmatismo e o utilitarismo eram os fundamentos para o preparo de servidores para exercer funções para o Império Português aqui fixado como sede, desconsiderando qualquer ideia de criação de universidade.

Entretanto, mesmo que a universidade não fosse uma realidade no território brasileiro, as ciências da natureza e as ciências sociais, no Brasil, vão construir uma prática própria e particular de existência. Foi por meio de instituições como a Academia Científica do Rio de Janeiro (1772-1779), a Sociedade Literária do Rio de Janeiro (1786-1794), o Museu Nacional e o Jardim Botânico que as ciências foram difundidas no Brasil (FIGUÊIROA, 1998). Contudo, quando falamos da Geografia em particular, a preocupação com este saber era competência do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838, como afirma Pereira (2004, p. 14):

O IHGB contava em sua origem com cinquenta membros ordinários, divididos igualmente entre as seções de história e geografia. De acordo com os estatutos então aprovados, caberia a ele coletar, organizar e arquivar documentos pertinentes à história e à geografia do Brasil, além de incentivar o estudo das mesmas no ensino público.

O IHGB, nesse sentido, passava a delinear os contornos do processo de formação do Estado Nacional. Para que isso fosse possível, tornou-se extremamente necessário produzir uma história e um conhecimento do território brasileiro, atribuindo-lhes o papel de construção da identidade política, social e territorial do Império. A Geografia, nesse processo, acaba por ser uma disciplina auxiliar, na medida em que competia a ela dar suporte a história nacional, dando mostras do valor simbólico conferido ao território nacional e ao quadro natural nas representações da nação (PEREIRA, 2004).

Foi por meio do discurso de crítica ao IHGB, na medida em que as atividades de estudo histórico faziam parte das funções da instituição, que a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (SGRJ) foi criada. Contudo, tal discurso apenas visava a uma justificativa que legitimasse a sua fundação:

Com a criação da SGRJ buscava-se legitimar o conhecimento geográfico a partir de um lugar apropriado, ou seja, resguardando para si um espaço único e exclusivo. Na verdade, o IHGB não negligenciava os estudos geográficos; todavia, seu projeto de atuação estava intimamente ligado às demandas do aparelho estatal comprometido com o projeto de uma “memória nacional”, e à geografia cumpria o papel de auxiliar o IHGB nesta tarefa. (CARDOSO, 2005, p. 83).

Criada em 1883, a Sociedade de Geografia do Rio de janeiro surge com o intuito de resolver os problemas estruturais no Brasil, “como a questão da mão-de-obra, o melhor escoamento para os portos, a construção de vias de comunicação” (CARDOSO, 2005, p. 80), além de conhecer o território brasileiro em toda sua extensão, ainda quase inexplorada, seguindo os modelos da França e da Alemanha, que já possuíam tal conhecimento sobre seus espaços territoriais. Mesmo sob influência do que vinha da Europa, as ideologias predominantes se ajustaram àquilo que se considerava a realidade de um país tropical como o Brasil. Com características pragmáticas e manifesta ausência de uma discussão teórica, as concepções científicas que aqui se difundiram foram releituras do darwinismo social, do neolamarckismo e do positivismo comtiano (MACHADO, 1996).

A Geografia Escolar presente nos poucos colégios existentes no século XIX, ainda que discretamente, passa a receber influência dessas sociedades geográficas, e com isso tem-se a transição de uma Geografia clássica, que visava divulgar uma cultura universal –predominantemente europeia, do “mundo civilizado”, ensinada quase que exclusivamente para os filhos da elite –, para uma Geografia moderna, cujos defensores também almejavam uma educação mais ampliada à população brasileira, de forma a fazer com que o conhecimento geográfico desse uma importante contribuição para a fixação dos ideais de um nacionalismo patriótico (ROCHA, 1998). Ainda assim, essa transição aconteceria por meio de diversos conflitos dentro e fora do contexto escolar.

A “Geografia moderna”, no Brasil, tornou-se notável a partir do começo do Século XX. Delgado de Carvalho e Everardo Backheuser foram fundamentais para um novo momento da Geografia, exercendo influência sobre as instituições escolares e, um pouco mais tarde, sobre a Geografia no Ensino Superior. Um exemplo desse rebatimento nas escolas foi o primeiro curso fundamentado na Geografia moderna oferecido aos professores de primeiras letras, concebido e aplicado em 1926 por Backheuser, contando com a participação de Delgado de Carvalho em 1927 (ANSELMO; BRAY, 2002). “O público que esse Curso Livre visava atingir era constituído por professores primários, que careciam de oportunidades para entrarem em contato com o que Delgado de Carvalho denominou de ‘orientação moderna’ em Geografia” (VLACH, 2004, p. 196), ao atuar no âmbito da Associação Brasileira de Educação (ABE). Souza e Pezzato (2010, p. 80) afirmam que:

No Brasil, um divisor de águas deve ser creditado a Delgado de Carvalho, que, com suas obras mais gerais, como Le Brésil Meridional e Geografia Física do Brasil, pode ser considerado um marco do desenvolvimento geográfico brasileiro. Ressaltando também os livros “didáticos” que esse autor publicou.

Além de Delgado de Carvalho, como enfatizado pelos autores, Backheuser também pode ser considerado determinante não só para a Geografia mas também para a própria educação, pois além de ter sido vice-presidente da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e fundador da Academia Brasileira de Ciências, foi um importante nome para reforma pedagógica escolanovista da década de 1930, fundamentada nos ideais de John Dewey. Ao lado de Delgado de Carvalho, Backheuser pretendia romper com as características extremamente mnemônica e descritiva da antiga Geografia – embora eles não considerassem essa nova Geografia como moderna, tendo em vista que a Geografia, para eles, era uma só, o que mudava era a metodologia –, trazendo um novo olhar sobre a Geografia, de maneira mais científica, mesmo que sob concepções diferentes de ciência (MACHADO, 1996).

Delgado de Carvalho, sob forte influência de Lucien Febvre, devido a sua origem e aos estudos na França, visava ‘explicar’, a partir das individualidades geográficas, as condições possíveis da ocupação humana, desconsiderando a implicação classificatória ou ainda hierárquica do positivismo comtiano. Backheuser, em contrapartida, por uma influência bem diversa, desde as tradições geográficas de Ritter e Humboldt, até as tradições francesas, com Vidal de la Blache e também com William Davies, nos Estados Unidos, lutou para que houvesse uma sistematização do pensamento geográfico – mesmo que existisse uma grande dificuldade para o leitor compreender suas ideias e, sobretudo, as dos autores citados, tendo em vista que não se tinha a prática de fazer citações ou referências às obras do autores utilizados (MACHADO, 1996). Mas foi com a Geografia ratzeliana e por meio da Geopolítica do sueco Kjellén, seu contemporâneo, que Backheuser estabeleceu seus princípios dentro da Geografia brasileira, visando a uma Geografia que fundamentasse a relação das ciências da natureza com as ciências sociais, a fim de interpretar e explicar o território.

Nessa perspectiva, fica evidente, quando se faz a leitura histórica do pensamento geográfico, que a Geografia Escolar se desenvolverá antes mesmo da criação das universidades, e que a influência para que houvesse uma Geografia no Ensino Superior veio de geógrafos que tinham uma forte participação nas sociedades geográficas e científicas. Além disso, esses geógrafos também se destacavam como professores de instituições escolares de referência, a exemplo do Colégio Pedro II, sendo fundamentais para a discussão da educação, diferentemente daquilo que normalmente se pensa, ou seja, de que a Geografia na universidade é anterior à escolar.

Ivor Goodson (1990), por meio de seus estudos sobre a história das disciplinas escolares, num artigo seminal para a área de ensino de Geografia, expõem o que seria a trajetória da disciplina Geografia na Inglaterra. Para ele, há uma grande semelhança na maneira como as diferentes disciplinas vão se formando. Jaehn e Ferreira (2012) vão dizer que a hipótese de Goodson, ao tratar dessa produção das disciplinas e de suas trajetórias históricas, demonstra que sua produção evidencia uma certa progressão (estágios) que vai delimitando o que faz parte da disciplina:

[...] os estudos históricos revelam uma mudança constante das disciplinas, uma vez que saem de um status marginal e inferior no currículo, passam pelo estágio utilitário e por fim se tornam disciplina, dotada de um conjunto determinado e rigoroso de conhecimentos. É um processo que parte de um estágio que primeiramente destaca o conteúdo para, em seguida, constituí-lo em uma forma acadêmica e abstrata, alocando recursos e buscando prestígio e reconhecimento entre os pares e na sociedade, constituindo-se, então, como disciplina. (JAEHN; FERREIRA, 2012, p. 59).

Ainda que muitos estudos curriculares brasileiros questionem essa linearidade que Goodson vai utilizar a partir do modelo de Layton, na medida em que não se pode considerá-los um modelo universal, Lopes e Macedo (2011, p. 119) afirmam que os estudos da história das disciplinas escolares de Goodson “não deixam de considerar o modelo útil para que se perceba um movimento geral das disciplinas escolares”, em que “a introdução de uma disciplina no currículo está vinculada à finalidades pedagógicas e utilitárias, mas sua consolidação depende de sua vinculação a uma tradição mais acadêmica”.

Em meio a essa mutabilidade característica da constituição de uma disciplina, a escola possuirá um papel fundamental para sua consecução, trazendo um forte argumento para que seja ensinada na universidade, desencadeando também uma forte demanda por parte dos professores. Goodson (1990) enfatiza esta necessidade, que surgiu no começo do século XX na Inglaterra, uma vez que o que se pretendia era formar cidadãos – e para isso era necessário que o “ensino de Geografia estivesse exclusivamente nas mãos de geógrafos treinados e que as universidades fossem encorajadas a estabelecer escolas de Geografia” (GOODSON, 1990, p. 238) –, estimulando suas mentes a entender as condições topográficas, as atividades humanas e os domínios britânicos, pois as viagens se tornavam cada vez mais generalizadas.

A questão da universidade

Com a criação das universidades no Brasil, na década de 30, e a constituição da Geografia como disciplina acadêmica, a formação do professor levantaria outros problemas a serem considerados, a saber: qual o papel da universidade e da ciência na formação do professor? Quando falamos do currículo “3+1”, qual a lógica de ensino propagada nos três primeiros anos da formação do professor?

Antes mesmo de problematizar o papel da ciência na formação do professor, é necessário considerar as concepções com que as universidades no Brasil foram forjadas. Voltamos, então, para Wilhelm von Humboldt (irmão de Alexander von Humboldt), que a partir do modelo alemão de ensino e fundamentado no pensamento neo-humanista, estabeleceu uma reforma pedagógica de natureza institucional e filosófica que deu origem à Universidade de Berlim, modelo este que influenciou a criação de universidades no mundo todo (LEMOS, 2011). Pereira (2009, p. 31) afirma que os princípios essenciais postulados por Wilhelm von Humboldt são:

A formação através da pesquisa; a unidade entre o ensino e pesquisa; a interdisciplinaridade, a autonomia e a liberdade da administração da instituição e da ciência que ela produz; a relação integrada, porém autônoma, entre Estado e Universidade; a complementaridade do ensino fundamental e médio com o universitário.

Trazendo uma ideia de universidade que aproximasse a formação universitária da ciência e da cultura (Bildung), o que se pretendia era estreitar a relação da universidade (lugar de ensino e difusão das ciências) com a academia (lugar de pesquisa e ampliação das ciências), o que até então ocorria em separado. Nesse sentido, Wilhelm von Humboldt (2008, p. 193) enfatiza, em seu memorando, que a marcha da ciência ou mesmo a busca pela ciência em si

[...] é mais rápida numa universidade, onde é sempre retomada por uma grande multidão de cabeças ainda mais poderosas, mais vigorosas e mais jovens. Em geral, a ciência como ciência não pode ser verdadeiramente exposta a não ser que seja cada vez de novo espontaneamente retomada, e seria inconcebível que não se devesse deparar então, e até frequentemente, com descobrimentos.

Wilhelm von Humboldt (2008, p.193), nessa perspectiva, afirma que

[...] as ciências foram certamente desenvolvidas tanto pelos docentes de universidade quanto pelos acadêmicos e, na Alemanha, mais pelos primeiros do que pelos segundos, além disso esses homens conseguiram fazer que suas disciplinas progredissem precisamente pelo seu magistério.

De acordo com Pereira (2009, p. 34), para Humboldt, a pesquisa é considerada de tamanha importância que o filósofo “argumenta ser injusto limitar as universidades ao ensino e à divulgação da ciência e postula que, para os professores, o fazer ciência é uma forma de avançar em suas áreas de conhecimento, pois sem ela caberia a eles apenas repetir conhecimentos produzidos em outro lugar”.

Outro fator que fundamenta a universidade humboldtiana e que será antagônico da concepção de universidade francesa, de Napoleão, será a ideia de autonomia da universidade. Paula (2002, p.152) argumenta que:

Enquanto a universidade francesa, desde Napoleão, é mantida e dirigida pelo Estado, tornando-se uma espécie de aparelho ideológico deste, com pequena autonomia frequente aos poderes políticos; a universidade alemã, embora sendo instituição do Estado, por ele mantida financeiramente, conservou uma parte notável do seu caráter corporativo e deliberativo, gozando de liberdade de ensino e pesquisa, nas suas primeiras décadas de funcionamento, no século XIX. Enquanto a intelligentzia francesa possuía forte vínculo com o Estado e com a política napoleônica, os intelectuais alemães mantinham uma posição de maior independência frente aos poderes políticos instituídos.

Pereira (2009, p. 32) esclarece as diferenças entre as universidades de concepção funcionalista – modelo este voltado às necessidades sociais – e as de concepção idealista – mais voltado à pesquisa e detentor de maior autonomia. O último modelo foi cogitado no projeto inicial da USP.

Contudo, embora a USP tenha sido a primeira universidade a cogitar um caráter moderno, concebido a partir dos preceitos norteadores humboldtianos, a Universidade do Rio de Janeiro (URJ), criada em 7 de setembro de 1920, é considerada a primeira universidade brasileira. Ainda que fosse considerada universidade, a URJ “formou-se a partir do agrupamento das instituições do ensino superior” já existentes, juntando, segundo Paula (2002, p. 154), a

Faculdade de Medicina (oriunda dos cursos da Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Hospital Militar do Rio de Janeiro, criado por carta régia, em 1808), a Escola Politécnica (fundada em 1874 a partir dos cursos da Academia Real Militar, existente desde 1810) e a Faculdade de Direito (criada como resultado da fusão, em 1920, da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais com a Faculdade Livre de Direito, ambas fundadas em 1891).

Paula (2002, p.154) ainda ressalta que “no decreto que cria a Universidade do Rio de Janeiro a pesquisa sequer é vislumbrada. Não havia nenhuma preocupação com a atividade cientifica como uma atividade-fim da universidade”, não garantindo, nesse sentido, o que seriam os ideais de uma instituição superior de ensino com propósitos de produção, divulgação e ensino das ciências.

Contudo, a criação da URJ criou um importante debate sobre a universidade no Brasil, debate esse que desencadeou pronunciamentos por parte de componentes que estavam à frente do Jornal O Estado de São Paulo. Castilho (2008, p.76-77) afirma que, além do livro publicado por Júlio Mesquita Filho, intitulado A crise Nacional, no qual se afirma que a nação deveria passar por reformas profundas, e que por isso deveriam ser criadas universidades nas três principais regiões brasileiras, o Inquérito, de Fernando de Azevedo, também foi um marco nesse debate:

Em 1926, a pedido do mesmo Mesquita Filho – que só assumiria a direção do jornal em 1927 –, Fernando de Azevedo elabora um extenso questionário para um inquérito, feito a pedido de o Estado de S. Paulo, sobre os problemas da “educação pública em São Paulo”. As perguntas enunciadas no Inquérito referem-se a todos os aspectos do sistema educacional em todos os seus ramos e em todos os seus níveis, inclusive em relação ao ensino superior. Nesse sentido, a sequência das perguntas termina naturalmente numa questão crucial para aquele momento: “O que pensa da criação de uma universidade em São Paulo, organizada dentro do espírito universitário moderno? ”

Com fortes críticas à URJ e ao seu modelo, que em nada se assemelhava ao “espírito universitário moderno” – ao contrário, tratava-se apenas de justaposições de escolas superiores já existentes –, Fernando de Azevedo, “em termos que lembram o Memorando de Humboldt” (CASTILHO, 2008, p. 78), expõe a necessidade de o Estado de São Paulo se posicionar em relação à questão da ciência e da universidade – não se limitando à transmissão das ciências.

É nesse contexto que, em 1934, a Universidade de São Paulo foi pensada e criada, a partir de preceitos de uma “universidade que os brasileiros jamais puderam aspirar” (CASTILHO, 2008, p. 94). Por meio de um evidente caráter moderno – pelo qual os saberes não deveriam se limitar à qualificação profissional, mas considerar a totalidade dos conhecimentos humanos –, os fundadores da USP planejaram uma universidade em que todos os saberes partiriam de um núcleo comum, que integraria todas as diferentes unidades a partir da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL). Seria na FFCL que se daria a principal formação e onde se cursaria as disciplinas básicas, e só depois de uma boa formação em humanidades que os alunos seriam encaminhados para Institutos localizados no entorno da FFCL. Para que isso pudesse acontecer, tornava-se necessária a construção de uma cidade universitária.

Com esse projeto vindo à tona, diversos professores foram contratados. Em uma entrevista ao jornal da USP, Ruy Mesquita (2004) afirma que seu pai, Júlio Mesquita Filho, dizia que:

[...] na Faculdade de Filosofia – a base da Universidade, onde se estudava ciência pura –, não havia no Brasil nenhum professor em condições de lecionar. Isso fez com que ele convidasse professores da França, através de um grande amigo dele, Georges Dumas, professor da Sorbonne, que selecionou os primeiros docentes da USP. Julio de Mesquita Filho conhecia alguns dos principais homens da Universidade de Paris daquela época porque tinha formação francesa. Ele fez o curso superior no Brasil, mas cursou o primário em Portugal e o secundário, em Genebra, na Suíça.

De acordo com Paula (2002), fizeram parte desta “missão francesa” professores franceses, tais como: Roger Bastide (Sociologia), Claude Lèvi- Strauss (Antropologia), Paul Arbousse Bastide (Sociologia), Fernand Braudel (História), entre outros. Na Geografia, quem se destacou foi o Professor Pierre Monbeig, mestre dos Professores Caio Prado Jr. e Aziz Ab´Sáber. Este último, afirma que, em seus cursos e seminários, Pierre Monbeig trazia a melhor contribuição dos grandes geógrafos franceses de seu tempo, tais como:

Vidal de La Blache, Albert Demageon, Max Sorre, Emmanuel De Martonne, Jean Dresch. Introduziu-nos ao conhecimento dos grandes historiadores, dotados de boa formação geográfica como Lucien Febvre, Marc Block e André Sigfried. Recuperou o melhor das contribuições de Pierre Denis, Capot-Rey, J. J. Juglas, Pierre Deffontaines do então jovem e genial Pierre George. Entre os norte-americanos, enfatizava a importância da obra Carl Sauer, Preston James e Clarence Jones. (AB´SÁBER, 1994, p. 229).

Por mais que se tendesse a uma variedade de autores, o que se predominava na USP eram os autores franceses. O próprio Ab´Sáber (1994, p. 222) enfatiza que: “na época, quase toda a biblioteca nuclear da Geografia Humana era elaborada ou divulgada em francês. As próprias obras e ideias dos grandes mestres alemães e norte-americanos das ciências geográficas chegavam ao Brasil, via língua francesa”.

A Geografia Regional francesa, em detrimento da Antropogeografia ratzeliana, encontrou espaço acadêmico na universidade brasileira. Essa predominância ficou ainda mais em evidência com a contratação de Delgado de Carvalho para assumir a cadeira de História Moderna e Contemporânea do departamento de História da Universidade do Brasil (MENEZES, 2011), no Rio de Janeiro, onde a contratação de professores seguia a mesma lógica da contribuição francesa. Mesmo assumindo a cadeira de História, Delgado de Carvalho também ministrava aulas de Geografia, haja vista que o curso de Geografia foi criado junto com o de História, de maneira unificada, tendo sua separação apenas na década de 1950, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo.

Everardo Backheuser, em contrapartida, como afirmam Anselmo e Bray (2002, p. 117),

[...] não é chamado a compor os quadros da Geografia oficial em nível superior [em nenhum dos dois primeiros cursos de geografia – USP e Universidade do Brasil, atualmente UFRJ]. Somente em 1939, o autor é convidado a assumir as cadeiras de Geografia Humana e de Geografia do Brasil em duas instituições particulares.

Mesmo que ele, junto com Delgado de Carvalho, tenha sido pioneiro no ensino da Geografia moderna a partir dos seus Cursos Livres, essa lógica se devia a uma grande preocupação que Mesquita filho possuía com a escolha dos profissionais que atuariam na USP, profissionais que iriam promover o ‘espírito universitário’:

Ora, éramos irredutivelmente liberais, tão convictamente liberais, que nos julgávamos na obrigação de tudo fazer para que o espírito que respirasse a organização da Universidade se mantivesse exacerbadamente liberal [...] Conservávamos para a França, líder da liberal-democracia, aquelas de que dependia diretamente a formação espiritual dos futuros alunos: filosofia, sociologia, economia política, política, geografia humana, letras clássicas e literatura francesa. As demais – química e história natural – seriam preenchidas por alemães expulsos, ou em vésperas de o ser, de sua pátria pelo hitlerismo. Assim, evitava-se a quebra do sentido liberal da evolução brasileira […] As futuras 'elites' não seriam vítimas da deformação intelectual resultante da prédica, nas cátedras, de teorias esdrúxulas, que repugnavam à índole e às tendências inatas da nossa gente. (MESQUITA FILHO apud ANSELMO; BRAY, 2012, p. 116).

Entretanto, por mais que este “espírito universitário” fosse prioridade na constituição da USP, não foi como de fato aconteceu. Castilho (2008, p. 87) define esse momento de transição da concepção para implementação como uma condução marcada pela total negação do conceito:

Se a passagem do momento da concepção ao da formulação se faz de modo contínuo, na passagem da formulação à implementação sobrevêm acidentes de percurso que custariam caríssimo a todo o desenrolar do projeto e, para usar um eufemismo, em “O pensamento diretor”, Mesquita Filho denuncia como “desvios metodológicos que alteraram fundamentalmente os objetivos que [os fundadores] tinham em vista”.

O Golpe de Estado de 1937, que permitiu a permanência de Getúlio Vargas no poder, foi, sobretudo, o principal fator de interdição da efetivação do ‘espírito universitário liberal’, ou seja, obstou que houvesse, de fato, uma universidade nos moldes modernos. A construção da cidade universitária da USP iniciou-se apenas em 1950, e mesmo assim distorcendo o projeto original. A interdição de escolas profissionais quanto à função cêntrica da FFCL também foi um fator crucial para que o projeto-piloto não se efetivasse. De todo modo, por mais que se tenha distorcido o projeto inicial, a constituição da USP, como bem afirma Ruy Mesquita (2004), foi um projeto fundamental para que se pensasse uma outra lógica de formação no Ensino Superior brasileiro.

O ensino na gênese da universidade brasileira: possíveis transgressões no cerne de um discurso de formação acadêmica.

Neste momento, voltamos à questão sobre o esquema curricular “3+1”, ou seja, à seguinte pergunta: qual o discurso de formação de professores nos três primeiros anos do currículo da licenciatura? Ou ainda: os professores de disciplinas específicas da Geografia possuíam uma linguagem de ensino que considerasse uma episteme voltada para a realidade escolar ou se restringiam à realidade acadêmica?

Antes de fazer a discussão sobre essas perguntas, torna-se fundamental explicitar como surgiu tal currículo, e para isso é indispensável apresentar as trajetórias das modificações curriculares instituídas pelo Decreto nº 39, de 3 de setembro de 1934, pelo Decreto Estadual nº 6.263, de 25 de janeiro de 1934, e, essencialmente, pelo Decreto-Lei nº 1.190, de 4 de abril de 1939, e pelo Decreto-Lei nº 3.454, de 24 de julho de 1941. Não que as mudanças curriculares durante a década de 1930 se resumam a estes Decretos, entretanto há de se considerar estas leis como normas norteadoras das transformações previstas para a licenciatura.

Com a criação da USP, em 1934, como mencionamos anteriormente, os Institutos de Educação (até então restritos à formação dos professores ‘das primeiras letras’), tanto no Distrito Federal como em São Paulo, passaram a incorporar o nível universitário. Saviani (2009, p. 146) afirma que o instituto “carioca foi incorporado à Universidade do Distrito Federal e o paulista foi incorporado a Universidade de São Paulo”. No caso paulista, ou seja, do Instinto Caetano Campos, sua definição é dada pelo art. 5º do Decreto Estadual nº 6.263/1934, nestes termos:

Artigo 5º. - O Instituto de Educação, antigo instituto “Caetano de Campos”, participará da Universidade exclusivamente pela sua Escola de Professores, ficando-lhe, porém, subordinados administrativa e tecnicamente, como institutos anexos, o Curso Complementar, a Escola Secundária, a Escola Primária e o Jardim de Infância, destinados à experimentação, demonstração e prática do ensino e ao estágio profissional dos alunos da Escola de Professores. (SÃO PAULO, 1934).

Nesse sentido, o Instituto de Educação passou a possuir a função de formar os professores de todos os níveis escolares. No caso dos professores da Escola Secundária, as matérias cursadas no Instituto de Educação serviam como complementação dos cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e tais matérias poderiam ser cursadas simultaneamente ao 3º ano do curso (CASTRO, 1974). O § 2º do art. 28 do Decreto-Lei nº 39/1934 afirma que:

Art. 28. [...]

§ 2º - A licença para o magistério secundário será concedida somente ao candidato que, tendo-se licenciado em qualquer das secções ou sub-secções em que se especializou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, haja concluído o curso de formação pedagógica de professores secundários, do instituto. (BRASIL, 1934).

Seria então considerado licenciado, de acordo com o Decreto Estadual nº 6.263/1934, qualquer estudante que concluísse as seções ou subseções que compunham a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, denominadas de “licença cultural”. No entanto, a licença para o magistério seria concedida apenas para o candidato que concluísse posteriormente o curso de formação pedagógica no Instituto de Educação.

A partir da edição do Decreto-Lei nº 1.190/1939, esta concepção foi mudada, pois, para que o estudante pudesse ser ‘licenciado’, tornou-se necessário concluir o curso de Didática no Instituto de Educação. Aos alunos que terminassem o curso das várias seções eram conferidos diplomas de “bacharel”, como determinado no art. 49 do Decreto-Lei nº 1.190:

Art. 49. Ao bacharel, diplomado nos termos do artigo anterior, que concluir regularmente o curso de didática referido no art. 20 desta lei será conferido o diploma de licenciado no grupo de disciplinas que formarem o seu curso de bacharelado. (BRASIL, 1939).

Fica evidente que, para a Geografia e História, o termo “bacharelado” só veio a aparecer a partir de 1939, sendo alterado, de fato, no currículo de 1942, com o qual se diferenciou o licenciado do bacharelado. Nesse caso, o estudante só poderia ser considerado licenciado após o término do bacharelado e do curso de Didática, ou seja, tratava-se do modelo de currículo que ficou conhecido como ‘esquema 3+1’. Foi por meio do Decreto-Lei nº 3.454/1941 que esta lógica de currículo foi disposta e implementada. Como afirma Castro (1974, p. 634), “o curso de Didática não mais poderia ser realizado simultaneamente com qualquer dos cursos de bacharelado, o que alongou a duração dos estudos de licenciatura para quatro anos letivos”.

Em um dos seus artigos, Roiz (2007) apresenta alguns Tabelas (100 e 200), elaborados a partir do Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de 1939-1949, em que demonstra as mudanças desse período de transição de um currículo em que as matérias de educação poderiam ser cursadas simultaneamente com as matérias específicas do curso, para o modelo baseado no esquema “3+1”, no qual as matérias de educação passaram a ser cursadas ao final do curso, como complemento para se ter o diploma de licenciatura.

Quadro 1 – Distribuição das disciplinas do curso de Geografia e História da USP, por ano (1934) 

Ano
Disciplinas Primeiro Ano Segundo Ano Terceiro Ano
1 Geografia Geografia Geografia
2 História da Civilização História da Civilização História da Civilização brasileira
3 Etnologia brasileira Tupi-guarani Tupi-guarani
4 Noções de Tupi-guarani História da Civilização Americana (Inclusive pré-história).

Fonte: Roiz (2007, p. 74).

Quadro 2 – Distribuição das disciplinas do curso de Geografia e História da USP, a partir da reforma curricular de 1942 

Disciplinas Ano
Primeiro Ano Segundo Ano Terceiro Ano Quarto Ano
1 Geografia Física Geografia Física Geografia do Brasil Didática Geral
2 Geografia Humana Geografia Humana História da Civilização Contemporânea Didática Especial
3 Antropologia História da Civilização Moderna História da Civilização brasileira Psicologia Educacional
4 História da Civilização Antiga e Medieval História da Civilização Brasileira História da Civilização Americana Administração Escolar
5 Elementos da Geologia Etnografia Etnografia do Brasil e Língua Tupi-guarani Fundamentos Biológicos da Educação
6 Fundamentos Sociológicos da Educação

Fonte: Roiz (2007, p. 81).

O que antes se tratava de um currículo em que a organização do curso de Geografia e História incorporava as disciplinas, como demonstrado no Quadro 1, posteriormente seria transformado, como pode ser observado no Quadro 2:

Fica bem evidente, na organização curricular acima exposta, que não só as disciplinas de educação foram incorporadas formalmente ao curso, como outras disciplinas também foram divididas. Diversas modificações foram feitas nessa primeira década (1934-1942) do curso de Geografia. Com a criação da USP, em 1934, quem assumiu a cadeira de Geografia foi o Professor Pierre Deffontaines, que logo no ano seguinte seria deixada a cargo do Professor Pierre Monbeig. Em 1938, aconteceu a separação entre a Geografia Física e Humana, quando o Professor Monbeig passou a se concentrar mais na parte Humana, deixando a Geografia Física para o Professor João Dias da Silveira. Além disso, ocorreu outra importante mudança curricular nesse período – sendo mais específico, no período da reforma curricular de 1942 –, que foi a criação da cátedra de Geografia do Brasil, ocupada pelo Professor Aroldo Edgar de Azevedo.

É nessa perspectiva que queremos discutir mais amplamente a segunda questão que colocamos logo no começo deste subcapítulo, sobre como os professores de disciplinas específicas de Geografia na universidade pensavam a questão do ensino de Geografia nas escolas. Entendemos que os Professores Pierre Monbeig e Aroldo de Azevedo exerceram um importante papel não só para a Geografia em um âmbito geral como também para a questão do ensino, tendo em vista as suas pesquisas.

Objetivamos enfatizar, a partir do caso da USP e também dos textos, reflexões e considerações de Aroldo de Azevedo e Pierre Monbeig, a concepção de universidade moderna humboldtiana, sobre a qual começamos a discutir anteriormente. Uma das principais características da universidade moderna é a sua diferenciação da instituição escolar, que Humboldt (2008, p. 189) assim define:

O Estado não deve tratar suas universidades como ginásios, nem como escolas especializadas, nem se servir de sua academia como de consultoria técnica ou científica [...]. Por outro lado, contudo, o principal dever do Estado consiste em organizar suas escolas de modo apropriado a fim de que trabalhem de acordo com os ECS [Estabelecimentos Científicos Superiores]. Isso repousa antes do mais sobre um concreto entendimento das relações que as escolas mantêm com os ECS e sobre a frutífera convicção de que as escolas não são chamadas a antecipar o ensino das universidades, nem as universidades são um mero complemento das escolas. (grifo nosso).

Nessa citação de Humboldt, temos dois pontos fundamentais a serem considerados, que, embora diferentes, não são antagônicos. Mesmo evidente para Humboldt que os estabelecimentos escolares e a universidade fossem diferentes e possuíssem funções distintas, o autor considerava importante a aproximação entre essas diferentes instituições. Por mais que se trate de um texto publicado no ano de 1810, verifica-se a importância que esse discurso tem para a universidade na contemporaneidade.

Com a criação da universidade no Brasil, no século XX, como já destacamos em outro momento, essa concepção serviu como base para o discurso sobre a universidade brasileira. Nesse sentido, como os professores oriundos da tradição humboldtiana pensavam a universidade e a escola e sua possível relação?

Partimos dos pressupostos deixados pelo Professor Pierre Monbeig, que em uma de suas falas muito se aproxima do discurso da formação escolar e da formação acadêmica que Humboldt adota, diferenciando-se também do momento anterior à Geografia no Brasil, (século XIX), em que o ensino secundário era apenas um trampolim para o acesso aos cursos superiores (VLACH, 2004). Para Monbeig (1956, p. 18):

O professor de geografia no curso secundário tem obrigação de ser muito prudente e de não pretender pensar em preparar pequenos geógrafos. Sua posição é a mesma de todos os professores de ginásio, cuja missão não é recrutar especialistas desta ou daquela matéria, mas de colaborar como todos os seus colegas na formação de mentes capazes de pensar e criticar.

Dirigindo-se especificamente à Geografia, mas sem deixar de lado os professores de outras áreas, Monbeig deixa claro o objetivo da formação escolar, em contraponto à formação universitária. Contudo, também fica muito evidente na perspectiva do autor que o que deve ser mudado é principalmente a linguagem ao abordar os saberes geográficos na escola, auxiliando a expansão das funções intelectuais dos jovens. Por isso, para Monbeig, o professor não deveria se ater apenas ao conhecimento mnemônico, focalizando os fatos isolados, uma vez que entedia ser necessário que o objetivo da Geografia se concentrasse, sobretudo, nos complexos geográficos, os quais estavam fundamentados nos mecanismos intelectuais propostos por Henri Baulig:

A primeira fase seria a da explicação. Faz-se mister tomar a palavra no seu sentido etimológico, isto é, desenvolver, desenrolar (explicare em latim designa a ação de desenrolar o rôlo de pergaminho manuscrito). Depois de explicado, o geógrafo deve compreender. Indica que ele deve reunir todos os fatos por ele desenrolados, procurando tomá-los em conjunto, com uma unidade. (MONBEIG, 1956, p. 15).

Por meio do complexo geográfico, o professor deveria ensinar uma Geografia que não se limitasse a decorar ou enumerar os lugares (nomes das capitais, nomes de rios, altura de uma montanha), mas sim abordá-la sem necessariamente usar o termo “complexo geográfico”, de maneira que o aluno pudesse compreender a complexidade das relações humanas e físicas no e com o mundo.

Nesse enfoque, uma das grandes preocupações de Pierre Monbeig dizia respeito não somente à Geografia e à pesquisa mas também ao ensino e a formação do professor, parte do seu olhar crítico para a universidade e para a escola. Miranda (2012, p. 55), ao discutir a atualidade que Monbeig possui para a Geografia e o ensino, articula conceitos de ensino propostos por ele com auxílio da Teoria do Complexo, de Edgar Morin:

Cabe ressaltar ainda que, ao afirmar que aquilo que, no ensino, não permitia desenvolver essas faculdades [intelectuais] mereceria ser abolido dos programas sem o menor escrúpulo, Monbeig adotou uma posição radical em prol de uma didática para o ensino de Geografia cuja centralidade estaria relacionada ao processo da aprendizagem e não apenas ao conteúdo a ser ensinado. E isto por si só também é muito atual, já que vivemos um momento em que a questão do desenvolvimento e da aprendizagem no debate educacional persiste, inclusive devido à contribuição dos avanços da psicologia, da neurociência, da ciência da informação e das ciências tecnológicas. [...] Há aqui a possibilidade de aproximação da posição de Monbeig com as concepções de Edgar Morin também, quando este nos remete a Montaigne que afirmou que “mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia”.

Já formado em Direito, Aroldo de Azevedo se matricula, em 1936, no curso de Geografia e História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, tornando-se aluno do então professor de Geografia Humana Pierre Monbeig. Autor de diversos livros didáticos, sobretudo entre as décadas de 1940 e 1970 (VLACH, 2004), Aroldo de Azevedo também se tornou um importante nome para o ensino de Geografia – não obstante as críticas a algumas incoerências levantadas por Vlach (2004), que questiona a supervalorização que Azevedo dava à Geografia francesa, atribuindo-lhe um caráter neutro, ao passo que a Geografia alemã estaria eivada de “ideologias de facção partidárias”.

Vlach (2004), nesse sentido, também questiona seu discurso, que, segundo a autora, desconsidera a Geografia feita pelos geógrafos brasileiros anteriormente à criação da USP, com a chegada da “missão francesa”:

Em primeiro lugar, Aroldo de Azevedo pareceu ignorar as contribuições e as inovações de M. Said Ali, Delgado de Carvalho e Everardo Backheuser; em segundo lugar, pareceu menosprezar os livros didáticos de geografia (ele mesmo já um autor consagrado de livros didáticos! Ou será que apenas os seus livros eram isentos dos defeitos da “velha geografia”?; em terceiro lugar, considerou a fundação da Universidade de São Paulo, em 1934, como o marco inaugural da geografia científica, o que sugere uma compreensão linear, formal, oficial do processo de institucionalização dessa ciência.

Todavia, há de se considerar o momento em que tais textos foram produzidos. Como vimos anteriormente na citação de Mesquita Filho, nesse momento (décadas de 30 e 40), havia uma forte rejeição ao pensamento alemão, haja vista que reunia, conforme o juiz dos pensadores da época, ideais muitas vezes nacionalistas, ufanistas e influenciados pelo darwinismo social.

Ainda que dado a fortes críticas a outras correntes de pensamento, Aroldo de Azevedo, assim como Backheuser e Delgado de Carvalho, preocupou-se com uma temática que se tornou norteadora para a Geografia vindoura. Como afirma Girotto (2010, p. 150):

A geografia presente neste trecho da obra de Aroldo de Azevedo é herdeira de uma compreensão de ciência que parte da análise crítica para construir uma proposta de superação de determinadas realidades que não são dadas, mas construídas historicamente. Como aponta o autor, há que se fugir do otimismo ingênuo e do pessimismo que não leva a lugar algum. Há que pensar uma Geografia que tenha como centro de sua preocupação um projeto de sociedade.

Ainda assim, Aroldo de Azevedo (1951, p. 15) argumenta que querer conhecer o país e se preocupar com sua extensão e proteção não estaria diretamente relacionado a um orgulho nacional de pertencimento:

Um dos fatos essenciais da geografia brasileira, o que primeiro deve ser posto em realce, é a enorme extensão do nosso país. Já o prof. Pierre Deffontaines, com felicidade, definiu o Brasil como sendo uma Nação-gigante, um verdadeiro continente [...]. Façamos algumas comparações: com seus 8.500.000 Km2, o Brasil é 95 vezes maior que Portugal, 15 vezes a França [...] caberia folgadamente dentro o território europeu, se dele excluíssemos a Rússia [...]. Convém registrar todos esses fatos, não para que nos sintamos ridiculamente orgulhosos, mas para que vejamos neles alguns motivos de preocupação: preocupação ante a cobiça de povos militarmente mais fortes, que adotem uma política expansionista ou imperialista; preocupação pela multiplicidade de problemas e pela impressionante variedade de aspectos de um problema, decorrentes da enorme área territorial que temos a nosso dispor.

No que se refere ao ensino, Azevedo (1957, p. 7) afirmava que o ensino da Geografia não deveria pensar sua renovação apenas considerando os novos métodos, pois o acompanhamento do orientador também era fundamental ao processo de formação do professor e geógrafo:

Ninguém pode, hoje, ter mais dúvidas a respeito das vantagens de renovar os métodos do ensino geográfico, para lhe dar um cunho moderno e racional. Muito já se disse e se escreveu sobre tão importante assunto. Entretanto, não basta a necessidade dessa renovação ou ensinar a Geografia pelos novos métodos. Torna-se preciso fazer a nova Geografia, praticá-la, realizando estudos e pesquisas em que as novas diretrizes estejam bem vindas. Nossa experiência no magistério superior tem-nos ensinado que é preciso acompanhar de perto os alunos em seus trabalhos de pesquisa, orientá-los incessantemente, guiar-lhes os passos de maneira ininterrupta, a fim de que seus trabalhos sejam profícuos e coroados sejam seus esforços. Dentro desse pensamento foi que passamos a lhe fornecer planos mais ou menos detalhados, em que os aspectos essenciais a serem estudados estivessem à vista. Os resultados foram animadores.

Considerações Finais

Após refletirmos sobre as ações desses professores de Geografia das universidades, recordamos aquela questão que levantamos em alguns momentos do texto, propositalmente, às vezes, de maneira repetitiva. Utilizamos dessa estratégia para demonstrar, a partir de uma arqueologia do conhecimento, que consideramos importante a discussão desta questão: qual a lógica de ensino propagada nos três primeiros anos da formação do professor?

Quando olhamos o ensino, ou mesmo a educação, como um discurso histórico arraigado em ações tanto da universidade como da escola, não é possível considerá-lo como uma forma, mas sim como uma concepção de mundo, ao qual traz discursos que fazem as ações do sujeito no seu cotidiano. A arqueologia do conhecimento geográfico nos mostra diversos elementos importantes para entender essa lógica. Sintetizaremos, nesta conclusão, os elementos que discutimos no texto.

Primeiramente, fundamentada na teoria de Goodson (1990), a formação da disciplina Geografia, na academia, é influenciada pelas finalidades pedagógicas escolares, sendo a escola um forte argumento para que a Geografia seja ensinada na universidade. O modelo de Layton utilizado por Goodson presume que a disciplina sai de um status marginal, passa por um estágio em que se torna utilitária e ao final se institucionaliza como um conjunto sistêmico, a partir de um objeto próprio de pesquisa. Esse processo ou movimento é um bom exemplo e resume a delimitação da disciplina Geografia não só no mundo, mas especificamente na realidade brasileira. Partindo desse pressuposto, é equivocado dizer que o conhecimento pedagógico e o conhecimento geográfico são dicotômicos, na medida em que o conhecimento geográfico está presente, a princípio, na instituição escolar e nas Sociedades Geográficas, que também possuíam o papel de propagar esse conhecimento.

Pensando no segundo elemento, com a consolidação da disciplina na universidade, o discurso sobre ensino não é ‘apagado’ da realidade, mas sim adaptado a uma outra realidade, ou seja, à realidade acadêmica, por isso trouxemos as ideias humboldtianas da “tradição” moderna de universidade autônoma. O pensamento de Humboldt é marcado pelo surgimento de um outro paradigma de universidade, que não se limita a uma formação utilitarista para uma determinada função ou profissão, mas abrange um campo maior de pesquisa. A universidade no Brasil irá surgir com esse ideal, e por isso a ideia de ensino e de formação do professor também se aproximará de uma lógica que visa à pesquisa, ainda que se trate de uma pesquisa mais específica, de determinada área.

Contudo, não é possível afirmar que essa lógica de formação da licenciatura afastou a formação na universidade da instituição de trabalho (escola), mas ainda é possível ver que os principais professores da área de Geografia no início do século XX estavam preocupados com a formação do professor de Geografia. Delgado de Carvalho, Pierre Monbeig e Aroldo de Azevedo são alguns exemplos de professores do Ensino Superior que discutiam a formação do professor e a importância da aproximação com a realidade escolar.

Também não se pode afirmar que o conhecimento pedagógico presente no último ano de formação (modelo 3 +1) reduzia ou minimizava a formação do professor, uma vez que esse modelo representava uma concepção de conhecimento atrelado à concepção de universidade vigente naquele momento de criação das universidades brasileiras. A análise dos documentos normativos, bem como dos textos produzidos pelos geógrafos em destaque nesse texto, permite-nos afirmar que não estava na pauta da criação das universidades brasileiras em que momento da formação do professor as disciplinas pedagógicas deveriam entrar nos currículos dos cursos, mas sim o próprio sentido de universidade enquanto espaço de produção de conhecimento. Logo, a ordem e a disposição das disciplinas não ocupavam o centro do debate, mas o próprio sentido de conhecimento que se produzia na universidade. Assim, a formação do professor atravessa esse discurso de conhecimento, e o bom professor a que se almejava era aquele que estava sendo formado nesse novo sentido de universidade, que representava, para os seus defensores, o que havia de mais vanguardista nas recém-criadas universidades brasileiras.

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Recebido: 03 de Junho de 2017; Aceito: 10 de Junho de 2018

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Língua Portuguesa

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