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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.57 no.51 Natal ene./marzo 2019  Epub 13-Sep-2019

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2019v57n51id16074 

Artigos

Trabalho e pedagogia

Trabajo y pedagogía

Wojciech Andrzej Kulesza1 

1Universidade Federal da Paraíba (Brasil)


Resumo

Neste artigo, procura-se analisar o desdobramento histórico da chamada “escola do trabalho” a partir de sua implantação pioneira na Rússia revolucionária, identificando suas relações com a pedagogia ocidental e suas apropriações pela educação brasileira. Relacionando a concepção geral de que o trabalho deve ser contemplado pela escola com o desenvolvimento industrial europeu, percebe-se claramente a vinculação dessa ideia com o aparecimento do movimento renovador na educação a partir da segunda metade do século XIX. As consequências pedagógicas derivadas da inclusão do trabalho como princípio educativo, sintetizado pela fórmula do “aprender fazendo”, estão presentes nas principais tendências pedagógicas contemporâneas, influindo decisivamente na formulação do currículo escolar. Focalizando especificamente a educação básica, identificam-se diversas metodologias do ensino inspiradas por essa orientação que figuram na prática escolar. Por fim, as racionalizações teóricas desenvolvidas são aplicadas para analisar a situação atual da relação entre trabalho e educação na escola secundária brasileira.

Palavras-chave: Educação profissional; Ensino técnico; Ensino médio; Política educacional

Abstract

In this article we search to analyze the historical unfolding of the so-called "school of work" from its pioneer establishment in revolutionary Russia, identifying its relations with Western pedagogy and its appropriation by Brazilian education. Relating the general conception that work should be contemplated by the school with European industrial development, one can clearly see the connection of this idea with the emergence of the renewal movement in education from the second half of the nineteenth century. The pedagogical consequences derived from the inclusion of work as an educational principle, synthesized by the "learning by doing" formula, are present in the main contemporary pedagogical trends, influencing decisively the formulation of the school curriculum. Focusing specifically on basic education (elementary and high school), we identify several teaching methodologies inspired by this orientation that appears in school practice. Finally, the theoretical rationalizations developed are applied to analyze the current situation of the relationship between work and education in the Brazilian high school.

Keywords: Professional education; Technical education; High school; Educational policy

Introdução

Os estudos acerca da relação entre trabalho e educação no Brasil tem conferido particular ênfase aos seus aspectos sociais e econômicos, notadamente devido à centralidade dessa relação para o equacionamento da questão do ensino profissional da juventude, questão candente para a formulação de uma proposta consistente para nosso combalido ensino médio. Comumente, toma-se o trabalho em sua concepção industrial, fabril, e a educação como mecanismo seja de reprodução social, seja de transformação social, recorrendo-se a formulações, teóricas e práticas, elaboradas em diversos contextos históricos nas primeiras décadas do século passado, com raízes profundas tanto no positivismo, como no marxismo. Essas análises partem normalmente de uma relação educador-educando com forte apelo iluminista, para não dizer autoritário, cristalizando assim práticas educativas que vem sendo criticadas pela moderna pedagogia como consequência, aliás, do próprio desenvolvimento das ciências da educação. Paradoxalmente, atualiza-se o tratamento da relação trabalho-educação para dar conta da sociedade brasileira contemporânea, ao mesmo tempo que se mantém a velha pedagogia tradicional justamente contra a qual haviam seinsurgido os educadores que se propunham a inscrever o trabalho como atividade educativa em meados do século XIX.

Procurando caracterizar a relação entre educação e sociedade na modernidade, Mario Manacorda distingue dois aspectos que ele considera fundamentais. Primeiramente, “[...] a presença do trabalho no processo da instrução técnico-profissional, que agora tende para todos a realizar-se no lugar separado ‘escola’, em vez do aprendizado no trabalho, realizado junto aos adultos” (MANACORDA, 1989, p. 304). A divisão do trabalho, essencial para a constituição da grande indústria, ao exigir do trabalhador apenas determinadas operações específicas, inviabilizou a longa e esmerada formação artesanal proporcionada pelas corporações de ofícios. Ainda que o tirocínio do profissional seja efetivado concretamente somente após sua incorporação ao processo de trabalho, convém que, antes disso, ele seja devidamente preparado, como é demonstrado pela extensão e diversidade de formas de treinamento em serviço oferecidas ao escolar. Ao aspar acima a palavra escola, certamente Manacorda estava levando em consideração as diversas iniciativas de instrução técnico-profissional e não as escolas de formação geral, elementares ou médias, responsáveis na Europa pela formação do jovem, inculcando-lhe comportamentos e hábitos apropriados para sua convivênciaem sociedade.

Em segundo lugar, o pensador marxista elenca “[...] a descoberta da psicologia infantil com suas exigências ‘ativas’ [...]” (MANACORDA, 1989, p. 305), que fez com que as brincadeiras infantis se tornassem elementos educativos característicos das escolas novas. A denominação “ativas”, como são muitas vezes designadas essas escolas, além de frisar o papel fundamental do educando no processo de aprendizagem, valorizam seu fazer, remetendo-nos diretamente à categoria trabalho como relação social: no jogo está o embrião da futura sociabilidade da criança. A tensão entre essas duas maneiras do trabalho se fazer presente na educação moderna é claramente assinalada pelo educador italiano: “[...] ora se ignoram, ora se entrelaçam, ora se chocam” (MANACORDA, 1989, p. 305).

Note-se que a classificação dos modos de inclusão do trabalho na escola moderna feita por Manacorda abrange toda a constituição temporal do ser social, a vertente psicológica afetando principalmente as crianças e a vertente produtiva incidindo sobretudo sobre os adultos. Em cada momento da vida, a educação tem que dar conta da relação entre o velho e o novo, entre o homem feito e o recém-nascido, entre a tradição e a inovação. Nesse sentido amplo, ficam esvaziadas de significado dicotomias do tipo educação libertária versus educação conformista, educação conservadora versus educação revolucionária, uma vez que essas dualidades são intrínsecas, constituintes da educação. Na tradição liberal, que considera a sociedade como o conjunto aditivo dos indivíduos, essas oposições constituem antinomias permeadas pela contradição entre a criação humana e sua realização social, entre ser e existir num determinado espaço-tempo. Já na tradição marxista (não positivista, para a qual o indivíduo precisa se curvar necessariamente aos ditames de seus antepassados), procura-se superar dialeticamente essa questão na prática educativa.

A divergência entre uma formação altamente diretiva para a atuação do sujeito num processo já em andamento na sociedade e o seu desenvolvimento autônomo agudizou-se com o avanço da grande indústria engendrado pela acumulação do capital. Devido à mundialização desse processo esse debate se internacionalizou e multiplicaram-se as propostas: desde a metodologia do slojd do dinamarquês Mikkelsen, passando pela arbeitsschule de Kerschensteiner e pela parcialização do trabalho manual do russo Della Vos até a escola politécnica do soviético Pistrak. Entre nós, podem-se reconhecer reflexos nítidos desse debate na trajetória do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, a partir de sua criação no último quartel do século XIX, exatamente onde se movimentavacom maior vigor o vetor de industrialização no Brasil (MORAES, 2003).

Neste artigo procura-se analisar o desdobramento histórico da chamada “escola do trabalho” a partir de sua implantação pioneira na Rússia revolucionária, identificando suas relações com a pedagogia ocidental e suas apropriações pela educação brasileira. Procura-se circunscrever a ideia de uma escola do trabalho ao desenvolvimento da produção por meio da indústria fabril e sua aplicação aos problemas pedagógicos suscitados pelo estabelecimento de uma educação de massas nos Estados nacionais europeus desde o século XIX. As consequências pedagógicas derivadas da inclusão do trabalho como princípio pedagógico fundamental na formulação do currículo escolar são identificadas ao se caracterizar as diversas metodologias do ensino inspiradas por essa orientação. Finalmente, as racionalizações desenvolvidas são utilizadas para analisar a situação atual da relação entre o trabalho e a educação na escola secundária brasileira.

Por uma escola do trabalho

Iniciaremos nossa discussão sobre a dialética entre a autonomia do sujeito e as demandas da sociedade, tomando como exemplo conspícuo a experiência russa, procurando descrever a maneira pela qual os bolcheviques procuraram equacionar a relação entre trabalho e educação nos primórdios do estabelecimento do regime soviético. Na “Declaração sobre os princípios fundamentais da escola única do trabalho” baixada pelo Comitê Central, em outubro de 1918, ou seja, no começo do primeiro ano letivo após a revolução russa, pode-se vislumbrar a solução preconizada pelos educadores militantes. Nesse documento, verdadeiro Plano Nacional de Educação subscrito pelo Comissário do Povo para a Educação, Anatoly Lunacharsky, ao se propor que a escola soviética fosse uma escola do trabalho, apresentam-se justificativas semelhantes àquelas utilizadas por Manacorda, inclusive pelo fato dela ser uma exigência da modernidade em geral, como pode se ler na seguinte passagem:

A nova escola deve ser do trabalho. Para a escola do Estado soviético, que está em processo de transformação do regime capitalista para o socialista, isto é, naturalmente, ainda mais obrigatório do que para a escola dos países capitalistas avançados, ainda que também lá seja percebida tal necessidade, e em algum nível concretizada (LUNACHARSKY, 2017, p. 288-289, grifo nosso).

Em seguida, o documento apresenta “[...] duas razões completamente diferentes [...]” exigindo do ensino sua fundamentação no trabalho. Em primeiro lugar, a psicologia “[...] nos ensina que apenas algo assimilado ativamente é verdadeiramente assimilado [...]”, uma vez que é indubitável que a criança “[...] assimila com extrema facilidade os conhecimentos quando eles lhe são dados em forma de jogos ou trabalho ativo e alegre”. Dessa forma, “[...] o princípio do trabalho conduz a um conhecimento criativo, vivo e ativo do mundo [...]” e, embora ele tenha sido aplicado inicialmente no jardim de infância, “[...] nós devemos exigir o desenvolvimento sistemático do ensino por este mesmo princípio também para os posteriores níveis da escola” (LUNACHARSKY, 2017, p. 289).

Como não poderia deixar de ser, a segunda razão pela qual o trabalho deve fundamentar o planejamento educacional encontra-se nos apelos provenientes do sistema produtivo:

Outra fonte de tendência para a moderna e avançada escola do trabalho é o desejo imediato do estudante em familiarizar-se com aquilo que mais ele precisa na vida, com aquilo que nos tempos atuais joga papel dominante nela, com o trabalho na agricultura e nas empresas em todas suas diferentes formas (LUNACHARSKY, 2017, p. 289, grifo nosso).

Na sequência, o documento procura detalhar o desdobramento da proposta para os diversos níveis de ensino esboçando um currículo em espiral que engloba um conteúdo caracterizado como uma “enciclopédia da cultura”, matéria “[...] cuja metodologia deve ser introduzida nos institutos pedagógicos [...]” e que, “[...] transformada em curso de sociologia com base na evolução do trabalho e das formas econômicas criadas por ele [...], teria a finalidade de [...] constituir o conteúdo da enciclopédia do trabalho [...]” nas escolas secundárias (LUNACHARSKY, 2017, p. 293). Como exposição prescritiva para se atingir uma condição ideal para o conjunto do sistema educacional do país, o documento é notável pela quantidade de questões que aborda, muitas das quais seriam retomadas posteriormente tanto lá como alhures, principalmente por reconhecer os limites da proposta e por não eludir os desafios de sua implantação. Assim, por exemplo, embora defenda uma educação técnica especializada, “[...] protesta energicamente contra qualquer estreitamento específico do círculo da educação do trabalho nos níveis mais elementares [...]” (LUNACHARSKY, 2017, p. 289), uma vez que “[...] o objetivo da escola do trabalho de forma alguma é o treinamento para este ou aquele ofício [...]” (LUNACHARSKY, 2017, p. 290), equacionando adequadamente a falsa dicotomia escola-oficina versus fábrica-escola.

Reportando-se às celebres palavras de Marx sobre a transformação da maldição do trabalho infantil nas fábricas em fonte agradável de conhecimento, a proposta visava “[...] levar o estudante para fábricas e usinas, para estradas de ferro, salinas, a qualquer lugar onde, nas condições locais, ela encontre acesso [...], pontuando claramente que [...] levará [o estudante] não apenas em excursões, não para ver, mas para trabalhar” (LUNACHARSKY, 2017, p. 294). Frisando que a atividade laboral do estudante terá de ser necessariamente acompanhada pelo professor, o documento declara inaceitável que “[...] ele tome formas nocivas para a saúde [...] e que, para não perder seu caráter pedagógico, deverá ser [...] intencionalizado, todo tempo, para a ampliação tanto dos hábitos físicos, como também do conhecimento” (LUNACHARSKY, 2017, p. 294).

Sem descurar tanto da educação física como da artística, a declaração recorre às experiências dos países capitalistas para embasar seus argumentos, como quando contestam os que consideram que o tempo gasto no trabalho prejudicaria o aproveitamento dos alunos, já que “[...] pelo testemunho de pedagogos americanos, economiza-se tempo” (LUNACHARSKY, 2017, p. 291). Novamente, é digno de nota a referência às experiências dos países capitalistas pois, apesar de que “[...] os objetivos da escola nos círculos burgueses são repugnantes [...], merecem atenção [...] alguns dos métodos que seguem alguns dos melhores pedagogos burgueses” (LUNACHARSKY, 2017, p. 301).

Para o que aqui nos interessa, o caminho que leva à superação da antinomia entre a autonomia do estudante e as determinações sociais impostas pelo seu entorno está claramente expresso na declaração. Começa-se por estabelecer que “o princípio da escola renovada é a individualização mais completa possível do ensino”, afastando de imediato qualquer semelhança com o individualismo ao afirmar que:

Por individualização deve entender-se a análise, pelo lado do professor, das inclinações e especificidade do caráter de cada estudante e a adaptação mais completa possível às suas necessidades específicas naquilo que a escola dá a ele e do que ela pede dele (LUNACHARSKY, 2017, p. 297).

Essa diferenciação é importante porque “[...] o individualismo escolar desenvolve o desejo de colocar a si sempre em primeiro plano e usar as outras pessoas para seu propósito [...], enquanto a educação socialista, [...] unindo o desejo da construção dos coletivos psíquicos com a individualização apurada, conduz a que a personalidade tenha orgulho com o desenvolvimento em si de todas as habilidades para servir ao coletivo” (LUNACHARSKY, 2017, p. 298). Assim, a autonomia de ação do estudante se combina harmoniosamente com os pleitos coletivos, levando à construção de uma sociabilidade solidária sem menosprezar o florescimento da personalidade, “a maior preciosidade da cultura socialista”, que deve se desenvolver livremente:

Não temos razão para limitá-la, enganar e moldá-la em formas obrigatórias: a solidez da sociedade socialista não consiste nem na monotonia da caserna, nem no adestramento artificial, nem no engano estético e religioso, mas na real solidariedade dos interesses (LUNACHARSKY, 2017, p. 300).

Retomando a crítica da pedagogia moderna a uma educação que privilegia a formação intelectual, “[...] esquecendo-se da formação do caráter e do desenvolvimento da vontade [...]” (LUNACHARSKY, 2017, p. 299), o documento considera que só a escola do trabalho será capaz de atender a contento esses objetivos. Afastando-se da fragmentação representada pela famosa fórmula positivista da educação intelectual, moral e física, a declaração acosta-se muito mais à formação omnilateral da tradição marxista e à educação integral da pedagogia libertária. Contrapondo-se à preocupação individualista com a carreira futura do estudante, característica da escola burguesa moderna, proclamam-se “[...] os ideais de desenvolvimento dos princípios de solidariedade e sociabilidade nas gerações mais novas” (LUNACHARSKY, 2017, p. 300).

Compreensivamente, a declaração remete para o futuro a realização plena da proposta educacional:

A escola educativa deve procurar eliminar do espírito da criança, o mais possível, aqueles traços de egoísmo que foram herdados pela pessoa do passado e, preparando-a para o futuro, procurar desde os bancos escolares, forjar coletivos fortes e desenvolver no mais alto grau a capacidade para a vivência coletiva e para a solidariedade (LUNACHARSKY, 2017, p. 297).

Acompanhando a tendência da época de atribuir à educação a solução dos graves problemas sociais postos a nu pela Primeira Guerra Mundial, a proposta considera a escola como uma pequena célula social a ser nutrida pelas melhores virtudes humanas para que seus participantes, por esse exercício de democracia e fraternidade, levem esses valores para regenerar o conjunto da sociedade. Utilizando o direito de auto-organização, “[...] as crianças devem participar em toda a vida escolar [...] e, através do exercício da ajuda mútua, contínua e ativa, [...] preparar-se para tornar-se um cidadão” (LUNACHARSKY, 2017, p. 303). Um pouco à maneira da concepção de escola de Dewey como uma sociedade em miniatura, os socialistas russos creditavam à ação educativa de seus militantes o sucesso de seus ideais societários. Por isso, na aplicação do “[...] princípio da profunda unidade com a máxima diversidade [...] na escola, em contraponto ao método individualizado [...] a tarefa mais bonita é a criação do coletivo escolar, soldado com camaradagem sólida e alegre” (LUNACHARSKY, 2017, p. 301). E, como não poderia deixar de ser, uma vez que a proposição é dirigida a toda a humanidade, a concretização da escola do trabalho rompe com os limites geográficos da Rússia socialista: “[...] nós, na própria escola introduzimos aquela grande força coletivizadora, a qual solda e forja a unidade do proletariado moderno” (LUNACHARSKY, 2017, p. 302).

Consequências metodológicas

Para o educador socialista Moisey Pistrak, o trabalho não é simplesmente a inclusão de um conteúdo ou um método a mais na escola, mas a única maneira efetiva de abordar a “realidade atual”, isto é, “[...] tudo o que, na vida social de nossa época, está destinado a viver e a se desenvolver, tudo o que se agrupa em torno da revolução social vitoriosa e que serve à organização da vida nova” (PISTRAK, 2000, p. 32). Rechaçando os que postulam haver uma relação de continuidade entre a pedagogia reformista ocidental, por mais avançada que ela seja, e a escola do trabalho soviética, ele considera que o objetivo principal da educação na Rússia naquele momento, além da construção do Estado socialista, “[...] é a formação de um homem que se considere como membro da coletividade internacional constituída pela classe operária em luta contra o regime agonizante [...]” de modo a abolir de uma vez por todas as classes sociais (PISTRAK, 2000, p. 31). Este educador, na linha de frente da implantação da nova política educacional, escrevendo poucos anos após a Declaração de 1918, radicaliza suas prescrições, concebendo a escola como uma arma ideológica fundamental para a exportação da revolução para o resto do mundo.

Este documento histórico extraordinário, forjado no calor do movimento revolucionário, ilustra perfeitamente bem a magnitude com que a educação é considerada como alavanca do progresso e da promoção social na modernidade. Superando o iluminismo do século XIX, para os educadores do século XX, não basta o esclarecimento das massas por meio da reflexão dos “filósofos”. Querem agora que também arazão dos educandosparticipe ativamente dessa conscientização pois, afinal, estão todos juntos no percurso em direção à construção de uma nova sociedade. E a palavra de ordem - palavra mágica segundo a declaração bolchevique - a informar suas propostas educacionais é trabalho que, apesar da diversidade semântica a ela atribuída, sempre significou transformação, daí sua estreita vinculação com as mudanças sociais tão desejadas. A circulação desse ideário atinge todo o mundo ocidental, como podemos ver pelo enfoque dado a essa questão por um anarquista português da Escola Oficina de Lisboa em 1925:

A escola do trabalho é um elemento indispensável do progresso social. Por quê? Porque nela se conjugam os trabalhos manual e intelectual, de maneira tal que levam ao desaparecimento, no espírito dos indivíduos saídos dessas escolas, do antagonismo ainda existente entre as duas espécies de trabalho (EMÍLIO COSTA apud BARREIRA, 2011, p. 281).

Também entre nós se firma essa concepção progressista, em estreita ligação com os anseios reformistas da educação, como é ilustrado pela monografia com a qual Paschoal Lemme concorreu e foi aprovado em concurso realizado em 1938 para o cargo de técnico em educação do Ministério da Educação:

Os profundos desajustamentos, que atingiram todas as classes sociais após a guerra, produziram um movimento generalizado em direção à escola, à educação. Pedem-se, de todos os lados, à educação e à escola, os remédios para os efeitos desastrosos desse acontecimento doloroso, que para muitos encerrou definitivamente uma época. Em todo o mundo, para atender a esse chamamento angustioso, abre-se o ciclo das grandes reformas escolares (LEMME, 2004, p. 51).

Lemme, desde o início de sua carreira em 1923 (quando foi designado professor-substituto da Escola Profissional Visconde do Rio de Janeiro, no Distrito Federal), por estar envolvido com o ensino dos trabalhos manuais no currículo escolar, muito iria absorver desse debate sobre a escola do trabalho ao longo de sua carreira. Exemplo notável é sua descrição do projeto educacional da República Popular Democrática da Albânia, em plena construção do socialismo em 1960, feita por solicitação da Associação de Intercâmbio Cultural Brasil-Albânia em 1960. O texto começa explicando que sua intenção ao focalizar esse pequeno país, “[...] o menor e menos conhecido do campo socialista [...] é procurar [...] dar aos brasileiros uma impressão do que tem sido o esforço e as conquistas do valente povo albanês no desenvolvimento do ensino, da educação, e da cultura de seu país” (LEMME, 2004, p. 124). Prestes a se aposentar, Lemme talvez quisesse demonstrar que as propostas eram viáveis, pois considerou que sua exposição da experiência albanesa “constitui um estímulo e um exemplo para nós, empenhados na mesma árdua tarefa pelo desenvolvimento econômico e cultural do nosso povo” (LEMME, 2004, p.124).

Mais de 40 anos depois, pode-se perceber nitidamente a repercussão da declaração bolchevique na organização do sistema educacional albanês, tal como relatado por Lemme:

O princípio fundamental da organização é a ligação orgânica do ensino e da educação com o trabalho produtivo. A nova escola deve preparar os alunos para participarem do trabalho produtivo a partir de uma idade determinada e lhes assegurar a formação geral necessária para poder continuar seus estudos superiores. À base desse princípio, devem ser fixadas de maneira justa: a proporção do ensino geral, a do ensino politécnico e a do ensino profissional, combinando o ensino e o trabalho com repouso e o desenvolvimento físico normal das crianças e dos jovens. Assim, a ligação do ensino com a vida, com a produção e com a prática da edificação do novo regime social deve determinar o conteúdo, a organização e os métodos de ensino (LEMME, 2004, p. 128).

Além de ilustrar exemplarmente a íntima relação entre educação e sociedade, o libelo revolucionário russo de 1918 nos ajuda a perceber os desafios historicamente postos aos métodos da pedagogia em todo o mundo ocidental, bem como sua dependência teórica dos objetivos educacionais perseguidos por determinada política educacional. No caso da escola do trabalho soviética são notáveis as tentativas de substituir o ensino por disciplinas pelo ensino por “complexos”, entendidos como resultado da integração dos conteúdos em torno de três eixos principais, natureza, trabalho e sociedade (onde o trabalho tem um papel central), adaptados a cada faixa etária e local da escola.

A pedagoga Nadezh da Krupskaya, esposa de Lenin, quando estava à frente do órgão científico-pedagógico responsável por subsidiar a implementação da proposta socialista, foi uma das principais educadoras a desenvolver essa metodologia na escola soviética (KRUPSKAYA, 2017). Como ela argumentava antes mesmo da revolução de 1917, a ideia da proposta socialista é transformar a escola, considerada como uma “escola de ensino”, na qual lida-se com o conhecimento pelo conhecimento, um conhecimento desinteressado da realidade e do estudante, numa “escola do trabalho”, atenta a tudo que se passa na sociedade (KRUPSKAYA, 2017).

No mundo ocidental, “o método de projetos” do estadunidense Kilpatrick e os “centros de interesse” do belga Decroly foram propostas afins que surgiram na mesma época em que se engendrava a proposta socialista. O diálogo dos educadores russos com o ocidente, ao menos no início da década de 1920, era intenso, como pode se constatar pelo internacionalismo presente na bibliografia da seminal carta metodológica sobre o ensino por complexos elaborada pela seção científico-pedagógica do Conselho Científico Estatal da URSS em 1924. Além de traduções russas de obras de Dewey e Ferrière lá se encontra também a versão russa da obra do pedagogo português Faria de Vasconcelos publicada em 1915, Une école nouvelle em Belgique (KRUPSKAYA, 2017).

Às voltas essencialmente com as dificuldades metodológicas em ministrar um ensino individualizado no interior da rigidez do ensino graduado em classes supostamente homogêneas, essas abordagens acabaram por questionar os próprios conteúdos presentes no currículo, aproximando-se assim da proposta socialista. Contemporaneamente, as propostas de interdisciplinaridade e de temas transversais se baseiam em princípios metodológicos semelhantes ao “método de complexos”, pois todas elas objetivam superar as limitações do tradicional ensino por disciplinas. Pode-se ter uma ideia das dificuldades de implantação de propostas curriculares baseadas nesses princípios pela experiência concreta dos Ginásios Vocacionais paulistas na década de 1960 (CHIOZZINI, 2014).

A apropriação da escola do trabalho pela educação brasileira

Ao provocar a pedagogia, esses reptos metodológicos obrigaram os educadores a repensar suas práticas ao tentar conformar os ditames teóricos com a realidade educacional em que atuavam. Podemos identificar vestígios da “escola do trabalho” nas proposições e experiências educacionais de muitos países, principalmente no que tange ao assim chamado ensino técnico ou profissional. No Brasil, cumpre assinalar a proposição pioneira de Rui Barbosa, frequentador das grandes exposições internacionais realizadas durante a segunda metade do século XIX, incentivando o ensino do desenho na escola, tendo em vista sua aplicação na indústria. Em oposição às artes liberais, ligadas preferencialmente às atividades intelectuais, Rui Barbosa pregava o desenvolvimento das artes mecânicas, envolvendo o trabalho manual, instrumentalizadas na modernidade pelo desenho industrial, em plena voga abolicionista (BARBOSA, 1882). Associada ao ensino intuitivo através das lições de coisas, esse plano de ação faria com que o desenho, principalmente o estudo das formas, tradicionalmente incorporado ao ensino de geometria, migrasse para a disciplina de trabalhos manuais, até então reduzida às atividades relacionadas com a economia doméstica.

Vê-se assim como as exigências de uma escola ativa acabaram por introduzir na educação, não o trabalho industrial da modernidade, mas sim formas próprias do trabalho artesanal. Do ponto de vista social, esse retrocesso se concretizou na criação por decreto federal, em 1909, de escolas de aprendizes artífices destinadas aos “desfavorecidos da fortuna”, “[...] imbuídas do velho preconceito que emprestava à aprendizagem de ofícios a feição secular que a destinava aos pobres e aos humildes [...]” (FONSECA, 2010, p. 91), na tentativa de ainda fazer vigorar as suplantadas relações escravistas de trabalho. Foi necessário um longo e penoso processo, protagonizado tanto pelo empresariado como pelos engenheiros e técnicos para sua transformação em escolas industriais após a revolução de 1930.

Convertidas posteriormente em escolas técnicas de ensino médio e centros de formação tecnológica, essas escolas profissionais estão na origem dos atuais Institutos Federais de Educação Tecnológica (IFETs). É interessante observar que nas comemorações do centenário das escolas de aprendizes em 2009, os IFET institucionalizados no ano anterior pelo governo federal, foram induzidos a assumir essa hereditariedade, configurando uma genealogia que mantém constantes as relações sociais que determinaram sua criação. A mera possibilidade dessa identificação entre instituições tão díspares é uma demonstração inequívoca da permanência na sociedade brasileira de concepções acerca da relação entre trabalho e educação gestadas nos primórdios da industrialização no Brasil, notadamente o caráter de assistência social atribuído às instituições de ensino profissional (KULESZA, 2014).

Mas a introdução de formas de trabalho artesanal não se limitou às escolas de aprendizes, estendendo-se a toda a escolarização primária através da inclusão de variadas formas de “trabalhos manuais” nas escolas de formação geral. Prova disso é que a primeira instituição de formação de professores para ensinar os ofícios nas escolas de aprendizes, para substituir os mestres artesãos requisitados inicialmente para essa função, a Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Braz criada no Distrito Federal em 1917, além da “[...] instrução e preparo de professores, mestres e contramestres” para as escolas profissionais, tinha por finalidade também a formação de “[...] professores de trabalhos manuais para as escolas primárias” (CARDOSO, 2013, p. 56).

Como a feminização do magistério já havia praticamente se estendido à maioria das escolas primárias nessa época, essa escola, originalmente destinada à formação de pessoal docente para as escolas de aprendizes masculinas, acabou por se tornar uma escola majoritariamente feminina, inclusive suscitando a criação de seções femininas nas escolas de aprendizes, acompanhando o movimento mundial de profissionalização da mulher gerado após o fim da primeira guerra mundial. Por outro lado, as professoras primárias formadas por essa escola iriam propagar o princípio do “aprender fazendo” durante as reformas escolanovistas de Carneiro Leão e Fernando de Azevedo na década de 1920, no Rio de Janeiro.

O engenheiro e professor da Escola Politécnica, Carlos Barbosa de Oliveira, primo de Rui Barbosa e um dos fundadores da Associação Brasileira de Educação, imbuído das concepções da pedagogia moderna, procurou aplicá-las na Wenceslau Braz, de 1924 a 1931. Consciente do preconceito generalizado em relação ao trabalho manual, Barbosa de Oliveira, que caracterizava a escola que dirigia como uma “escola de trabalho”, considerava que uma de suas finalidades era justamente contribuir para eliminar esse preconceito. Assim, no seu relatório de 1926 dirigido aos seus superiores no Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio ele proclama taxativamente: “[...] urge educar no Brasil a opinião pública favoravelmente às profissões manuais, elevando o exercício dessas profissões ao nível das intelectuais” (OLIVEIRA apud CARDOSO, 2013, p. 61).

Influenciado pela ideologia liberal, o engenheiro, mesmo sem querer, ao dizer que é preciso nivelar por cima as duas profissões, exibe o mesmo preconceito que quer combater, pois, para haver equidade, é preciso que se faça uma identificação entre o trabalho das profissões manuais e o trabalho das profissões intelectuais. Compare-se com o que escrevia Gramsci no cárcere em 1932:

[...] é preciso convencer a muita gente que também o estudo é um ofício e muito cansativo, com seu treino específico não apenas intelectual e sim também muscular nervoso: é um processo de adaptação, é um hábito adquirido com esforço, monotonia e também sofrimento (GRAMSCI apud NOSELLA, 1992, p. 120).

Essas divergências vão se acentuando à medida que as máquinas e equipamentos tendem a substituir o trabalho físico do homem. A ação física iniciada pelo apertar de um botão de uma máquina, por exemplo, é desvalorizada frente ao resultado provocado, equivalente ao mesmo trabalho realizado manualmente durante um dia inteiro. O trabalho intelectual de decidir o momento de apertar o botão de um mecanismo supera em importância qualquer esforço físico necessário para realizar determinado trabalho. Contrariamente à valorização do trabalho manual proposta por Barbosa de Oliveira, é o trabalho intelectual que é cada vez mais valorizado, simplesmente por que é mais produtivo para o capital. Entretanto, a divisão do trabalho, característica da produção na sociedade capitalista, separa radicalmente a decisão de apertar o botão da realização efetiva desse ato, reservando cada vez mais essas ações a classes distintas da sociedade.

As transformações no mundo do trabalho repercutiram nos sistemas educacionais que, basicamente, se organizaram para oferecer uma educação popular para as massas, associada a uma formação superior para as elites. A importância crescente do domínio da produção, desenvolvida sob os olhos e as mãos dos trabalhadores, impôs que se fizesse uma distinção entre uma formação científica e outra meramente técnica, exatamente para impedir que o controle da produção caísse nas mãos de subalternos. Desde então, a escola capitalista abandonou o projeto iluminista de fornecer uma formação integral, humanista e científica, para se voltar cada vez mais para uma formação conectada diretamente com as demandas do mercado.

Esse processo, apesar da diferenciação das escolas de uns e de outros, dirigia-se a atualizar o mecanismo de reprodução social desempenhado pela educação na sociedade, minimizando as potencialidades de mobilidade social abertas pela escolarização, mantendo, e até mesmo ampliando, as desigualdades sociais. Como resultado, comprometeram-se primordialmente os jovens, que lutam por reverter esse quadro em busca de conquistar sua maioridade no mundo do trabalho. Por isso, o palco principal dessa luta é a escola média ou secundária, própria dessa idade da vida. Como depositários dos projetos de futuro da sociedade, as proposições e ações dos jovens encontram guarida em setores progressistas da sociedade, fazendo avançar a discussão a respeito do modo como deve ser conduzida a integração da escola secundária com o mundo do trabalho.

A problemática atual da relação entre educação e trabalho no Brasil

Ao voltarmos nossa atenção para o nosso ensino médio, veremos que ele está enredado, desde finais do século passado, no dilema entre formação geral, o tradicional ensino secundário propedêutico ao ensino superior, ou formação profissional, estruturada em função do mercado de trabalho. Nesta situação, a formação profissional tem sido considerada descontextualizada da realidade do aluno e superficial na abordagem dos conteúdos e deficiências, em menor ou maior grau, compartilhadas com a formação geral e resultantes das mesmas carências, desde o financiamento até à política de formação de professores, passando pela precariedade das condições de trabalho docente. A breve tentativa de suprimir essa distinção por meio da Lei n. 5692, de 11 de agosto de 1971, que tornou a profissionalização compulsória no ensino secundário, ou de segundo grau, como a lei o denominou, e que indicava até uma “iniciação ao trabalho” no ensino de primeiro grau, só serviu para distinguir ainda mais os dois modos de formação.

Para agravar esse quadro, a permanência de uma formação profissional paralela à educação pública, também financiada pelo Estado, mas dirigida pelos empresários, é uma evidência flagrante das distorções no equacionamento da relação entre trabalho e educação pela sociedade brasileira.Essa formação colateral, inicialmente concretizada nos últimos anos da ditadura Vargas por meio do Serviço Nacional de Aprendizagem industrial (SENAI), foi posteriormente, ampliada para outros setores da economia, constituindo hoje o chamado “Sistema S”. O atual programa do SENAI, “Aprendiz Legal”, marca veiculada insistentemente pela Fundação Roberto Marinho nas redes de televisão, além de oferecer uma saída legal para burlar a restrição do trabalho infantil a partir dos 14 anos, mostra bem o descaso dos empresários com a formação geral do trabalhador, pois, para o ingresso no programa é exigida apenas uma indefinida escolaridade no ensino fundamental ou médio, sem se prever, muito menos estimular, a sua continuidade.

Recente trabalho analisando as políticas públicas relativas à educação e ao trabalho dos jovens sucessivamente aplicadas no Brasil mostra que elas sempre mantiveram a característica dominante de “assistir” aos jovens trabalhadores, menosprezando sua formação, tanto geral como profissional (VELOSO, 2015). Isso porque a educação profissional no ensino secundário brasileiro tem sido direcionada principalmente aos jovens provenientes das famílias de baixa renda, como se educação se conjugasse somente com trabalho assalariado e não com o trabalho em geral. Essa diferenciação escolar caminha pari passu com a desigualdade social, podendo-se distinguir currículos distintos em nossas escolas de acordo com a origem socioeconômica dos alunos.

A perversidade dessa diferenciação curricular está em favorecer a escolarização superior da parcela socioeconômica melhor aquinhoada da população, reservando a precária formação profissional para os menos afortunados. A recente reforma do ensino médio sancionada pelo governo por meio da Lei federal nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, exacerbou essa distinção ao propor um itinerário exclusivamente profissional de formação após uma base comum extremamente precária no que se refere às ciências. Ao definir possíveis itinerários de formação baseados em habilidades e competências, e não no conhecimento oferecido pelas diversas disciplinas científicas, suprimiu-se simplesmente a dicotomia curricular, determinando um tipo de formação para alguns e outra para a maioria, logo que os estudantes ingressarem no ensino médio.

Esse modo escabroso de contemplar uma “educação para todos”, pressupõe uma flexibilização curricular que permita atender alunos dos mais diversos estratos sociais matriculados na grande variedade de nossas escolas, públicas e privadas, satisfazendo os interesses mais díspares. Sem nenhum exagero, podemos dizer que essa reforma instituiu o ensino médio-flex: funciona para qualquer aluno, de qualquer escola, atendendo a qualquer objetivo. As modificações nas Diretrizes Curriculares do Ensino Médio exigidas pela reforma, inclusive autorizando a formação a distância, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação e homologadas pelo Ministério da Educação em 20 de novembro de 2018, reafirmaram com mais ênfase essa orientação.

Todavia, para que a reforma do ensino médio entre efetivamente em vigor em 2019 será necessária a aprovação da Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio, a qual vem encontrando forte resistência da comunidade de educadores, que teme que o anteprojeto elaborado pelo governo seja imposto pela força. O evidente alinhamento doutrinário da atual reforma com o neoliberalismo a serviço dos interesses do capital financeiro internacional mostra mais uma vez como as questões fundamentais em discussão na sociedade afetam diretamente a educação, fazendo da pedagogia, numa sociedade democrática, um espaço político de discussão e encaminhamento dos projetos de sociedade em disputa.

Esperamos que estas nossas reflexões possam contribuir afirmativamente com a luta para que a escola possa cumprir melhor o seu papel formativo, equacionando adequadamente a relação entre trabalho e pedagogia. Como escreveu Cesar Callegari (2018), repercutindo, um século depois, a declaração revolucionária russa de 1918, desejamos um ensino que possa contribuir cabalmente para “desenvolver valores como liberdade, solidariedade, respeito à diversidade, trabalho colaborativo, o apreço à democracia, à justiça e à paz”.

Considerações finais

A poesia e a arte continuam a desvendar lógicas profundas e insuspeitadas do inconsciente coletivo, do cotidiano e do destino humano. A ciência é apenas uma forma de expressão desta busca, não exclusiva, não conclusiva, não definitiva (MINAYO, 1994).

No contexto de hospitalização, conforme foi apresentado, vários são os fatores que podem influenciar no tratamento e na recuperação de crianças e adolescentes hospitalizados. Os resultados do estudo demonstraram que as atividades de produção de textos e estórias, no contexto hospitalar, desde que adequadas ao perfil e às necessidades das crianças e adolescentes internados, poderá favorecer, emocionalmente, a pessoa hospitalizada.

O estudo, ao manter os “erros” apresentados pelas crianças e adolescentes, como por exemplo, a criança nº 5 (7 anos) - Betofe, e o adolescente nº 7 (14 anos), mauvada, permite verificar o grau de dificuldades quanto à escrita, em relação a algumas crianças e adolescentes internados.

A indicação dos resultados referente à Escala de Faces, demonstrando que uma maior parte das crianças e adolescentes indicou as letras A e B, com exceção do participante nº 2, aponta para a possibilidade de que, embora não tenha sido objeto de avaliação do presente estudo, propiciar ambientes mais alegres e lúdicos poderá refletir nos resultados clínicos de pacientes hospitalizados durante o tratamento.

Observou-se, durante a pesquisa, uma interação positiva, destacando-se alguns princípios básicos relacionados a uma sociedade mais humanizada como, por exemplo, o cuidado e a preocupação de um paciente com o outro, demonstrando a cooperação o cuidado com ao próximo. Dessa maneira, se pôde reconhecer que os profissionais da área da educação e da saúde podem contribuir, de forma significativa, no contexto hospitalar.

Durante o estudo, percebeu-se, também, que a grande maioria dos pacientes se mostrou mais feliz após a realização das atividades, e que a pesquisa favoreceu amizades, construídas durante os encontros entre os pacientes e seus acompanhantes. Em um livro cujo título é “Sorria Você Está Sendo Curado”, o autor considera que:

O riso pode nos ajudar a reduzir o incômodo da dor, aliviando-a por meio da liberação de endorfina, substâncias naturais com propriedades analgésicas produzidas pelo próprio organismo. As endorfinas são chamadas de ‘opiáceos endógenos’ porque contêm uma ação analgésica (opiáceos) que alivia a dor e são formados dentro do nosso corpo (endógenos) (PINTO, 2008, p. 22).

O teatro de objetos, pelos resultados obtidos, demonstrou-se como um recurso interessante quando se trata de amenizar os traumas causados nas crianças e adolescentes, diante dos instrumentos que são usados no tratamento, diariamente, e que, geralmente, causam dor e desconforto. Segundo Bowlby (1995), os pacientes hospitalizados passam por três fases. No princípio, revoltam-se com a internação pelos procedimentos invasivos. Depois, entram em um processo de apatia no hospital, e, por fim, com a formação de vínculos com a equipe médica e paramédica, começam a substituir o sentimento de revolta e apatia por afetividade e aceitação a esses cuidados que estão sendo oferecidos. Logo, surge a importância da intervenção de atividades, para minimizar as sequelas do processo de internação e aumentar a interação entre paciente e todos os envolvidos.

Conforme apontado por Parente (2007), a manipulação dos objetos, baseada nesse tipo de atividade, permite uma relação entre o manipulador e o objeto manipulado, e o presente estudo apresentou como resultado, por meio da produção de textos, a possibilidade de ressignificação de objetos de procedimentos hospitalares, além do uso comum.

Embora, não fosse objetivo do estudo apresentar e discutir variáveis mais específicas em relação às dimensões subjetivas, os participantes, ao identificarem objetos de procedimentos hospitalares como luvas, seringas e máscaras, entre outros, puderam ressignificá-los como personagens com base nas próprias histórias.

Ao convidar crianças e adolescentes a participar do estudo foi criado um ambiente relacional de forma natural entre os participantes internados e seus respectivos acompanhantes. Os pacientes participaram das atividades propostas de forma integrada durante os oito encontros. Alguns pacientes apresentaram uma timidez inicial, mas, no decorrer da pesquisa, se mostraram mais integrados e confiantes.

Em nenhum momento, as crianças e adolescentes foram exigidos a participar das dinâmicas, sendo utilizadas atividades para o desenvolvimento da coordenação motora fina na produção de textos e manuseio dos materiais durante as atividades e o teatro de objetos.

A atividade teatro de objetos reforça a importância de os hospitais disponibilizarem salas próprias para atividades lúdicas, já que essas atividades poderão diminuir o estresse causado aos pacientes e, ao mesmo tempo, o medo de usarem medicações, seringas, e outros procedimentos comuns no ambiente hospitalar.

Os resultados apresentados na pesquisa corroboram as conclusões de Moraes, Buffa e Moti (2009), ao indicarem atividades variadas no contexto hospitalar como música, teatro e literatura, a fim de propiciar ambientes lúdicos nesse contexto, pois, durante o presente estudo, as crianças, os adolescentes e os familiares começaram a se conhecer, trocando informações e estabelecendo relações de amizade e ajuda mútua.

Pesquisas que tenham por objetivo avaliar o estado emocional de crianças e adolescentes hospitalizados precisam ser desenvolvidas em estudos que considerem o tratamento para além do uso de medicação, ou seja, que verifiquem os resultados obtidos a partir da utilização de remédios para as doenças físicas e, da mesma forma, atividades e ambientes alegres para as dificuldades emocionais.

Entre os vários aspectos que podem ser considerados, a expressão de si no contexto hospitalar é algo que pode servir como indicador sobre suas percepções e sentimentos em relação a esse processo de difícil gestão para pacientes e familiares.

As atividades lúdicas e expressivas são, de modo geral, prazerosas para os pacientes, pois permitem a evocação de experiências, emoções e memórias afetivas de pacientes e familiares. A distração, a mudança de foco e a alegria são possibilidades de mudança na atmosfera hospitalar que podem corroborar até como a possibilidade de uma recuperação mais rápida.

De acordo com Leão, Bussotti, Aquino, Canesin e Brito (2005), a utilização de atividades alegres como, por exemplo, a música no contexto hospitalar pode propiciar ambientes mais descontraídos, destacando-se que essas oficinas podem ser consideradas estratégias para otimizar as condições emocionais e físicas de crianças e adolescentes hospitalizados.

A pesquisa espera contribuir para novos estudos em que crianças e adolescente, ao enxergarem seringas, agulhas, máscaras, materiais e objetos do contexto hospitalar, por meio da ressignificação esses objetos, possam os imaginar para além da dor e do sofrimento como personagens ressignificados por meio de suas histórias e textos.

Atualmente, há uma crescente demanda por estudos e pesquisas interdisciplinares que possam, efetivamente, a partir dos objetivos e metodologias desenvolvidas, contribuir, de maneira significativa, para produções dialógicas entre as diferentes áreas do conhecimento. Há um consenso de que o conhecimento é relacional, portanto, objetivo e subjetivo concomitantemente, em função da complexidade que envolve o homem e, no século XXI, há a necessidade de pesquisas que possam contribuir, efetivamente, para a construção dessa nova trama do conhecimento.

O uso da Escala de Faces de Andrews (MCDOWELL; NEWELL, 1996) é indicado, principalmente, em função do contexto de hospitalização, no qual, muitas vezes, a verbalização é algo difícil, seja pelo uso de medicação, pela falta de disposição para conversar ou outros motivos. O objetivo do estudo foi verificar as emoções de crianças e adolescentes, internados em uma clínica pediátrica antes e após atividades lúdicas.

Independentemente de estarem hospitalizados ou não, crianças e adolescentes são definidos como indivíduos que necessitam de um acompanhamento e orientações educacionais e nesse contexto de hospitalização em especial, geralmente encontram-se bastante fragilizados. A promoção de atividades de contação e a produção de histórias podem ser utilizadas como estratégias para a promoção, nesses estudantes, do interesse e manutenção quanto às atividades de leitura e escrita no contexto hospitalar. Conforme apresentado nos resultados, observa-se que há crianças com fragilidades relacionadas a produção de texto, conforme foi detectada pela transcrição na íntegra. Diante disso, as atividades além de propiciarem um ambiente mais lúdico poderão auxiliar na identificação de algumas fragilidades textuais de crianças e adolescentes hospitalizados.

É necessário apontar que, também, figurou como um dos principais objetivos a proposição de ressignificação dos objetos e recursos materiais relacionados à saúde encontrados em ambulatórios e hospitais como luvas, máscaras, seringas, toucas e etc.

Educar, na atualidade, significa reaprender a olhar no exercício de acolher e relacionar. As redes de trocas devem ser desenvolvidas e estruturadas, baseadas nas diversidades sociais, culturais, econômicas entre outras, que reunidas edificam e estruturarão toda a base de toda a humanidade. Dessa forma, não cabe a manutenção e continuação de grupos isolados em seus campos de conhecimento, muitas vezes fechados para as necessidades que já ultrapassaram suas portas.

Sabe-se que a interlocução entre as diversas áreas do conhecimento é algo complexo, já que, como aponta Morin (2014, p.15), referindo-se a divisão das ciências e do trabalho relacionado à Educação Transdisciplinar, que tal fato desencadeou um "[...] confinamento [...] e despedaçamento do saber".

A educação é uma área de conhecimento caracterizada por multiplicidades de abordagens e relações com as demais áreas do conhecimento científico. No contexto da educação e relação hospitalar, há, sem dúvida, uma especificidade ambiental no que se refere à contraposição entre doença e saúde, tornando-a, a educação, um elemento extremamente importante para se tratar sobre as questões educacionais, sobretudo no que tange às relações humanas.

Acredita-se que este estudo possa contribuir para que outras pesquisas sobre as emoções e percepções das crianças e adolescentes hospitalizados possam ser desenvolvidas, reconhecendo que o estado emocional dos pacientes internados poderá influenciar na recuperação física assim como a inserção de atividades lúdicas e alegres no ambiente hospitalar.

A pesquisa demonstrou que é possível transformar o isolamento em união e a tristeza em momentos de descontração, promovendo a esperança de um futuro de saúde para além da doença, podendo contribuir para o desenvolvimento de relações mais humanizadas no contexto hospitalar. Nesse espaço do imaginário, uma luva, uma máscara e os objetos do ambiente hospitalar poderão se tornar o que a imaginação das crianças e adolescentes desejarem, na promoção de uma ressignificação de objetos, situações e sonhos.

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Recebido: 25 de Novembro de 2018; Aceito: 04 de Dezembro de 2018

Prof. Dr. Wojciech Andrzej Kulesza

Universidade Federal da Paraíba (Brasil)

Centro de Educação

Grupo de Pesquisa Ciência, Educação e Sociedade

Pesquisador do Centro de Pesquisa em História da Educação (GEPHE/UFMG)

E-mail: kulesza@gmail.com

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