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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.57 no.52 Natal abr./jun 2019  Epub 13-Sep-2019

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2019v57n52id15883 

Artigos

A dialética entre a normatização e a interpretação: a autoridade docente na modernidade líquida de Bauman

The dialectics between normatization and interpretation: the teaching authority in the net modernity of Bauman

La dialética entre la normatización y la interpretación: la autoridad docente en la modernidad líquida de Bauman

Altair Alberto Fávero1 
http://orcid.org/0000-0002-9187-7283

Junior Bufon Centenaro1 
http://orcid.org/0000-0003-3046-3885

1Universidade de Passo Fundo (Rio Grande do Sul, Brasil)


Resumo

O presente ensaio tem por escopo compreender, a partir de Bauman (2001; 2007; 2008; 2010), a autoridade docente na transição da modernidade sólida para a modernidade líquida, ou seja, de uma educação legisladora para uma educação intérprete. O problema que norteará este estudo é o seguinte: quais os desafios emergentes decorrentes da modernidade líquida à autoridade docente? Trabalha-se com a hipótese de que os vários desafios estão numa relação dialética entre a normatização (característica da modernidade sólida) e a interpretação (característica da modernidade líquida). Trata-se de uma pesquisa bibliográfica ancorada no método analítico-hermenêutico como percurso de análise. Os resultados do estudo indicam que a autoridade docente, na modernidade líquida, possui suas especificidades e desafios numa dialética entre o ofício de normatizar (oferecer conhecimentos basilares e direcionar um processo formativo) e o de interpretar (compreender as relações cambiáveis, diferenças culturais, novos hábitos).

Palavras-chave: Bauman; Autoridade docente; Modernidade líquida; Formação de professores

Abstract

The present essay aims to understand from Bauman (2001; 2007; 2008; 2010), the teaching authority in the transition from solid modernity to net modernity, that is, from a legislative education to an interpreter education. The problem that will guide this study is the following: what emerging challenges arise from net modernity to the teaching authority? We work with the hypothesis that the various challenges are in a dialectical relationship between normatization (characteristic of solid modernity) and the interpretation (characteristic of net modernity). It is a bibliographical research anchored in the analytical-hermeneutical method as a course of analysis. The results of the study indicate that the teaching authority in net modernity has its specific characteristics and challenges in a dialectic between the job of standardizing (offering basic knowledge and directing a formative process) and interpreting (understanding exchangeable relations, cultural differences, new habits).

Keywords: Bauman; Teaching authority; Net modernity; Teacher training

Resumen

El presente ensayo tiene por objeto comprender, a partir de Bauman (2001; 2007; 2008; 2010), la autoridad docente en la transición de la modernidad sólida a la modernidad neta, es decir, de una educación legisladora para una educación intérprete. El problema que guiará este estudio es el siguiente: ¿Cuáles son los desafíos emergentes derivados de la modernidad neta a la autoridad docente? Se trabaja con la hipótesis de que los diversos desafíos están en una relación dialéctica entre la normatización (característica de la modernidad sólida) y la interpretación (característica de la modernidad neta). Se trata de una investigación bibliográfica anclada en el método analítico-hermenéutico como recorrido de análisis. Los resultados del estudio indican que la autoridad docente, en la modernidad neta, posee sus especificidades y desafíos en una dialéctica entre el oficio de normatizar (ofrecer conocimientos básicos y dirigir un proceso formativo) y el de interpretar (comprender las relaciones cambiantes, diferencias culturales, nuevos hábitos).

Palabra-claves: Bauman; Autoridad docente; Modernidad neta; Formación de profesores

Introdução

“Modernidade Líquida” é a metáfora de Zygmunt Bauman para explicar e compreender a sociedade contemporânea. Com uma extensa e profícua obra, o sociólogo polonês tornou-se um insistente observador das minúcias do projeto inacabado da modernidade. Reconheceu que o conceito de “pós-modernidade”, empregado por muitos intelectuais, inclusive por ele, no final do século passado e na primeira década do presente século, não representava o modo de vida que se buscava conceituar. O principal significado de “pós-modernidade” é que a modernidade já não existe, está encerrada, teve um ponto final. A modernidade, enquanto projeto, buscou a consolidação de uma sociedade estável, sólida, livre de desgraças e desvios, uma constituição perfeita da organização social. O horizonte moderno não realizado de um progresso linear para tudo, confirma que o projeto não terminou, ele ingressou numa outra fase, que Bauman definiu como modernidade líquida;“[...] aquela forma emergente de vida, aquela forma que era moderna de uma maneira radicalmente diferente daquilo que havíamos testemunhado (e que havíamos participado) antes” (BAUMAN, 2010, p. 12).

A metáfora da “liquidez” toma o lugar de “pós-modernidade” em sua teoria a partir da publicação de Modernidade Líquida em 20001. A humanidade entrou num modo de vida que está enraizado na contingência, na incerteza e na imprevisibilidade, o que denota a passagem da função solidificadora da modernidade (modernidade sólida) em seu estágio anterior para a perpétua conversão em líquido, o permanente estado de liquidez dos tempos presentes. “Esses tempos em que nossas vidas estão sendo escritas” (BAUMAN, 2010, p. 13). Os escritos de Bauman são significativos para o campo educacional, por possibilitarem estudos e pesquisas para discutir a educação contemporânea a partir de suas reflexões acerca dos tempos líquido-modernos. Se na modernidade sólida a educação escolar é apresentada como uma instituição que possui objetivos e fins a concretizar, na modernidade líquida, as profundas transformações reverberam na escola, que passa a ser confrontada com uma realidade muito diferente daquela em que foi planejada.

O objetivo de nosso estudo é compreender, a partir de Bauman (2001; 2007; 2008; 2010), a autoridade docente na transição da modernidade sólida para a modernidade líquida, ou seja, de uma educação legisladora para uma educação intérprete. O problema que norteará nossa pesquisa é o seguinte: quais os desafios emergentes impostos pela modernidade líquida à autoridade docente? Nossa hipótese aponta que os vários desafios estão numa relação dialética entre a normatização, característica da modernidade sólida, e a interpretação, elemento regado pela modernidade líquida. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica ancorada no método analítico-hermenêutico, tendo como referenciais as obras de Bauman: Modernidade Líquida (2001), Vida Líquida (2007), Sociedade Individualizada (2008) e Legisladores e Intérpretes (2010).

Para responder de forma satisfatória ao problema proposto, organizamos o artigo em três partes. Inicialmente, faremos uma retomada do perfil da escola na modernidade sólida, como uma “fábrica” a serviço do império da ordem. Na sequência, apresentaremos a reconfiguração da autoridade docente com a insurgência da modernidade líquida, e as novas demandas à escola. Por fim, problematizaremos a autoridade docente nos tempos líquido-modernos perante a dialética entre normatização e interpretação, destacando perspectivas para a atuação docente a partir do pensamento de Bauman.

A escola como “fabricação da ordem” e o problema da autoridade

A modernidade sólida firmou-se pela constituição de um mecanismo de controle social, que tinha no timão os intelectuais e o poder do Estado. Bauman (2010) denomina os intelectuais modernos da ilustração europeia como legisladores e ao Estado atribui-lhe o ofício de jardineiro. Esse recurso metafórico é explicado pelo sociólogo da seguinte maneira: os intelectuais ou participantes da République des Lettres eram

[...] uma série heterogênea de romancistas, poetas, artistas, jornalistas, cientistas e outras figuras públicas que sentiam ser responsabilidade moral sua, e seu direito coletivo, interferir de modo direto no processo político por meio da influência que exerciam sobre as mentalidades da nação e moldar as ações de seus líderes políticos (BAUMAN, 2010, p. 15).

O Estado moderno, a partir do século XVI, centralizou em si o controle social, dadas as proporções das mudanças no modo de vida europeu pós-feudalismo. Se o modelo anterior de vigilância coletiva distribuía as atribuições aos grupos para controlarem-se trivialmente entre si, o Estado moderno reuniu essas forças para transformar, segundo Bauman (2010, p. 78) “[...] culturas selvagens em culturas jardins”. A metáfora indica que a sociedade precisa dos cuidados do jardineiro, pois qualquer distração poderia permitir o crescimento das ervas daninhas (a desordem) na sociedade jardim. Ao adágio estado jardineiro, explica:

O que na verdade aconteceu na etapa inicial da Era Moderna foi a falência dos agentes tradicionais de poder de vigilância. O controle disciplinar não podia, portanto, ser exercido da forma trivial, como no passado. Ele agora se tornara visível, um problema a ser cuidado, algo a ser projetado, organizado, gerenciado e acompanhado de modo consciente. Era necessário um agente novo, mais poderoso, para desempenhar a tarefa. Esse novo agente era o Estado (BAUMAN, 2010, p. 67).

Segundo Almeida; Gomes; Bracht (2009, p. 23), “Para utilizar de uma linguagem metafórica, eliminar as plantas inúteis dos jardins significava segregar ou deportar as substâncias ou elementos dissonantes do projeto inicial do jardineiro”. Estabelecida a ordem, também se estabelece aquilo que é legítimo e ilegítimo no jardim (sociedade). A constituição desse ordenamento é descrita por Bauman como “[...] síndrome poder/conhecimento”, que se formou a partir do conjunto de dois desenvolvimentos então novos no início da modernidade. Por um lado “[...] a aparição de um novo tipo de poder estatal, com os recursos e a vontade necessários para modelar e administrar o sistema social segundo seu estilo preconcebido de ordem” e, por outro, “[...] a instituição de um discurso de relativa autonomia e autoadministração capaz de gerar esse modelo, completado pelas práticas exigidas” (BAUMAN, 2010, p. 17).

Bauman lança um olhar crítico à contradição da intelectualidade iluminista que preconizava a busca pela autonomia, liberdade, disseminação do conhecimento, porém, por outro lado, assumia um papel legislador, com um modelo de racionalidade única por base, estabelecida pelos próprios intelectuais e letrados. Em síntese, a modernidade sólida em seu estágio inicial foi marcada pela transferência para o Estado da função pastoral, antes exercida pela Igreja, de reorganizar e administrar a ordem social; esse novo mecanismo disciplinador e vigilante do Estado foi conscientemente pensado pelos intelectuais para regular a vida social. Assim estava selado o casamento entre os intelectuais legisladores (que tinham a ordem como tarefa) e o poder estatal que exercia na prática o controle social.

Transformar-se em membros verdadeiros da orgulhosa espécie humana, era um processo que deveria ser guiado por aqueles que conversam com a Razão (intelectuais) e, portanto, sabem o que exige o interesse comum da espécie humana. Para Bauman (2010, p. 100-101), “[...] o imenso potencial de humanidade não se pode realizar sem a ajuda de mediadores que interpretem os preceitos da Razão e atuam segundo eles, estabelecendo as condições que tornarão os indivíduos aqueles desejados, ou os obrigarão a seguir sua vocação humana”.

Nesse contexto, a escola assumiria uma função bem localizada no projeto moderno sólido de educar as pessoas para a civilização, que tinha seus horizontes traçados pelos intelectuais. Civilizar a selvageria era a palavra de ordem, e a escola recebeu essa função de levar uma sociedade caótica e desorganizada (repleta de ervas-daninhas) em direção a uma sociedade livre das ambivalências, refugos e caos. A escola representou um projeto de responsabilidade da sociedade em conjunto, e do Estado, para garantir comportamento em direção a um projeto racional. Nesse sentido, “educação” e “escolarização” estavam diretamente associadas pelo compromisso estabelecido de que, as instâncias todas deveriam educar para o aprimoramento do projeto do Estado. Nas palavras de Bauman (2010, p. 101), “[...] de forma alguma a educação era vista como uma área separada da divisão social do trabalho; ao contrário, ela era função de todas as instituições sociais, um aspecto da vida cotidiana, um efeito total de projeção da sociedade segundo a voz da Razão”.

Apesar desse engajamento social para tornar as pessoas melhores “membros da espécie”, a escolarização possuía atribuições específicas, ao lado das fábricas, hospitais, manicômios, prisões. Sobre este aspecto é importante a seguinte afirmação:

A escola era a sede a partir da qual se universalizava os valores utilizados para a integração social, e os intelectuais (professores e/ ou educadores), encarnação da própria universalidade desejada pelo jardineiro supremo, eram as únicas pessoas capazes de fornecer a receita àquelas pessoas incultas e vulgares do que seria uma vida correta e moral (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009, p. 48).

Com o esfacelamento do poder hereditário da nobreza francesa a partir do século XVII, rompeu-se o ideal de excelência da classe abastada, baseado na hereditariedade e linhagem e ganhou força uma noção de poder aliada ao conhecimento, ou seja, a aquisição de legitimidade e excelência vinham pela instrução. Esses lances poderiam ser feitos pela educação e passar pelas mãos de professores e a escola, torna-se “[...] a etapa decisiva do caminho para a vertu” (BAUMAN, 2010, p. 55). O conhecimento era algo a ser conquistado e a escola passou a ser local de formar as pessoas. Os professores e a instituição escolar no plano dos intelectuais iluministas estavam num lugar especial. A eles cabia assegurar a ordem, a civilidade, os bons costumes, a superação das tendências selvagens do ser humano. Como espaço de afinar os sujeitos ao projeto da ordem moderna, a escola passou a repugnar a desordem, a ambivalência, o caos, as vozes dissonantes daquilo que era o modo universal e identitário promovido pelo Estado.

Em seu interior, a instituição escolar não tolerou a presença do indesejável, do estranho, do diferente e tratou de tentar consertá-los, colocá-los na ordem universal das coisas. Entretanto,

Nos casos em que a assimilação forçada não obtinha o sucesso desejado, ou esses estranhos eram silenciados ou então expurgados dos muros escolares (vamos pensar aqui na situação dos negros, homossexuais, doentes mentais, enfim, todas as minorias que destoassem da tradição inventada pelo Estado jardineiro). É por isso que podemos dizer que o projeto de escolarização moderno não reservou nenhum lugar as diferenças e as múltiplas formas de vida e tradições culturais que até ela chegava (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009, p. 49, grifos dos autores).

Estava nas mãos dos educandários o poder e a autoridade de fornecer as bases para que os sujeitos obtivessem uma cultura universal, que estava alinhada por coincidência com os desejos organizadores e ordenadores dos legisladores (professores/intelectuais) e dos jardineiros modernos (Estado/governantes). Bauman ao se dirigir às questões mais internas da escola sólida destaca que houve “atenção relativamente pequena” ao “[...] conteúdo da educação postulada e [...] a metodologia mais amplamente considerada, e absolutamente inesperada, foi a vigilância” (BAUMAN, 2010, p. 105). A autoridade pedagógica dos diretores e professores das escolas surgiram com o ideal de supervisão e imposição de disciplina. A faceta autoritária da escola da modernidade sólida apresentava-se no propósito de que a educação é para ensinar a obedecer.

Perante isso, a crítica estendida às contradições da intelectualidade iluminista estão inseridas na direção de que a escola como responsável por levar o esclarecimento aos sujeitos, não cumpria tal tarefa, pois “[...] não era o saber transmitido aos educandos, mas a atmosfera de adestramento, rotina e previsibilidade total sob a qual a transmissão do saber seria conduzida, eis a condição que mais importava” (BAUMAN, 2010, p. 107). O radicalismo pedagógico dos Lettres revelou o ímpeto de legislar, organizar e regulamentar, e não a disseminação do conhecimento e o acesso as “luzes” da razão. Evidentemente, que essa contradição parece incompreensível, em virtude do projeto iluminista da Era da Razão, de domínio das ideias e do conhecimento pelos sujeitos independente de suas posições sociais; todavia, nos lembra Bauman que a crise do século XVII, estava justamente na falência dos meios de controle social comunais. Com a expansão das cidades na modernidade, os mecanismos de controle do período anterior já estavam inadequados, fazendo os poderosos e ricos da época pensarem algo para conter as ameaças à segurança da ordem social

[...] a partir da experiência da presença de ‘pessoas livres’ - uma população móvel, sem-teto, vagabunda, a turba, a ralé, o mobilevulgus, les classes dangereuses; de que a ameaça percebida e para dissipar o medo que dela emanava tomou a forma de práticas políticas, mais bem resumidas como a passagem das culturas selvagens para uma cultura-jardim (BAUMAN, 2010, p. 109, grifos do autor).

A centralização do poder de controle nas mãos do Estado demandou de um tipo novo de expert, com uma importância crucial para o funcionamento do sistema: o supervisor/professor. Enquanto profissional teria a grande tarefa de modelar e modificar o comportamento humano, fazendo os sujeitos “andarem na linha” e tomando ações preventivas com relação a atitudes desordeiras, erradas, fora dos limites da considerada “vida civilizada”. Um mundo orientado pelas ideias necessitava de um Estado com educação, e essa era uma convicção do iluminismo. “Civilizar era engajar-se num esforço vigoroso para transformar o ser humano por meio da educação e da instrução” e o “projeto civilizador era, na sua essência mais íntima, um esforço para suprimir toda relatividade, portanto toda pluralidade de modos de vida” (BAUMAN, 2010, p. 131-132).

A produção de corpos dóceis e disciplinados mostrava o caráter profundamente legislador da escola, que buscava a homogeneidade, uma moral forçada para ser universalmente engolida. A escola recebeu o estatuto de preparar e educar para toda a vida. A aprendizagem era algo duradouro e sólido, acompanharia o sujeito por toda a vida, pois a sociedade estava meticulosamente ordenada e inerte às contingências, mudanças, ambivalências, etc. A transição para a modernidade líquida causou uma forte crise na instituição escolar, e, por sua vez, na autoridade docente. Ocorreu segundo Bauman, a falência do papel do Estado como agente único da promoção da ordem social e o rompimento do casamento entre os intelectuais e o Estado, bem como a ascensão do mercado como agente regulador. A partir disso, problematizaremos a reconfiguração da autoridade docente nos tempos líquidos.

Descentralização da autoridade escolar: a reconfiguração do papel docente

Com as transformações moderno-líquidas, a modernidade sólida e o modelo de escola gestado nela, entram em crise. A “era da certeza” dos intelectuais legisladores e do Estado disciplinador entrou em declive, desestabilizando as ambições de universalizar os costumes e hábitos dos “civilizados”. A modernidade líquida ao ingressar, “[...] tenta se conciliar com uma vida sob condições de incerteza permanente e incurável” (BAUMAN, 2010, p. 167). O mundo contemporâneo permeado por rápidas transformações tecnológicas criou outros mecanismos de administração social, não sendo mais uma exclusividade do Estado tal tarefa. À crise de confiança no papel do Estado, somou-se o “destrono” dos intelectuais que forneciam as bases seguras para a ação reguladora do Estado, sendo assim, nas palavras do sociólogo: “[...] o mundo contemporâneo é impróprio para os intelectuais como legisladores” (BAUMAN, 2010, p. 170). O divórcio entre os intelectuais e o Estado causou um rompimento da construção prévia da verdade, universalidade e certeza do conhecimento, ou seja, não está mais ao alcance do Estado por meio de seu poder, legitimar realidades previamente estruturadas pelas classes intelectuais.

Embora ainda hoje os Estados exerçam algum grau de soberania (inclusive seu direito de incluir/excluir), reconfigurando-a conforme as forças do mercado, não existem mais entusiastas ao nosso redor impressionados com o sonho de uma engenharia social total, a partir dos esforços concentrados nas mãos de um Estado ordenador (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009, p. 50).

Para Bauman, os pontos de orientação para levar a vida no mundo sólido, “[...] os empregos, as habilidades, as parcerias humanas, modelos de propriedade e decoro, visões de saúde e enfermidade, valores que se pensava valer a pena serem perseguidos e os meios comprovados de persegui-los [...]” (BAUMAN, 2008, p. 160), dentre outros, uma vez estáticos e certos, agora estão em fluxo. Os tempos líquido-modernos mais parecem jogos concomitantes com regras mudandoa todo instante durante seu andamento. Ter sucesso na vida depende da velocidade com que os seres humanos se livram de hábitos antigos, para buscar outros mais novos. Há na modernidade líquida uma certa ojeriza a tudo aquilo que estabeleça padrões fixos, duráveis, estáveis, simplificadores; “[...] o melhor de tudo é não se incomodar com a questão dos padrões; o tipo de hábito adquirido [...] é o hábito de viver sem hábitos” (BAUMAN, 2008, p. 161).

Com a “queda” dos intelectuais legisladores, que forneciam ao Estado as verdades e certezas para a cultura jardim e reciprocamente recebiam legitimidade do poder estatal para executar o projeto de civilizar e tornar racional a sociedade, aparece juntamente com as incertezas líquido-modernas, um novo papel para os lettres, que Bauman (2010) definiu metaforicamente como intérpretes. Os intelectuais passaram a ter a tarefa de lutar contra homogeneização do conhecimento, da verdade, das certezas, com a mesma energia que os predecessores, pelo absolutismo universal da razão iluminista. Embora, o mundo contemporâneo esteja permeado pelo pluralismo, não se pode ignorar que relativismo e absolutismo coexistem como tendências bem demarcadas no discurso intelectual (BAUMAN, 2010). Diferentemente do intelectual legislador, o da modernidade líquida:

Trocando em miúdos, [...] se resume à arte da conversação civilizada. Este é, naturalmente, um tipo de reação ao conflito permanente de valores para o qual os intelectuais, graças às suas habilidades discursivas, estão mais bem preparados. Falar com as pessoas em vez de brigar com elas; entendê-las em vez de repudiá-las ou aniquilá-las como mutantes. [...] A arte da conversação civilizada é algo de que o mundo pluralista necessita com premência (BAUMAN, 2010, p. 197).

Diante dos horrores do século XX, o mundo contemporâneo começou a olhar com desconfiança para as “boas intenções” da intelectualidade da razão universal, tanto filosófica quanto científica. Com o avanço das ideias pluralistas, em que as diversas culturas passaram a ser integradas e aceitas como válidas, verdadeiras e importantes, saiu de “moda” o intuito legislador de moldar todos na mesma versão cultural. Os intelectuais redirecionam seu ofício para compreender e interpretar a diversidade de uma sociedade que por muito tempo buscou uniformizar os pensamentos, os comportamentos, os valores, os corpos. Nesse ínterim, a instituição escolar e a autoridade docente também foram deslocadas e dispersadas de sua origem solidificadora. Na medida em que as diferentes formas de vida foram aceitas, perdeu-se a noção obsessiva da escola sólido-moderna de impor ordem a uma realidade caótica, e descentrou seu exclusivo compromisso de selecionar alguns valores homogêneos com a legitimidade estatal. Nesse sentido, a variedade de culturas deixou de ser um problema a combater e as escolas com o cessar das ambições ordenadoras dos estados modernos, “[...] deixaram de figurar como ‘templos’ de conversão e mobilização ideológica das tradições inventadas pelo Estado, pois ele abriu mão da missão civilizadora de criar hierarquias e promover modelos culturais considerados como superiores aos demais” (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009, p. 51, grifos dos autores).

Ocorre então a ascensão da escola e da autoridade docente como intérpretes. A escola moderno líquida e, por conseguinte, o ensino superior, estão sendo desafiados a se constituírem em espaços abertos à pluralidade e multiplicidade cultural presentes na sociedade. Os estranhos, diferentes, indesejáveis, à margem da “cultura jardim” recebem a oportunidade de ingressar no processo educacional, serem escutados, compreendidos, promovidos, diferentemente de outrora, onde eram tratados como ervas daninhas. Minorias étnicas, religiosas, de gênero, não seriam mais tratadas como anomalias de uma sociedade civilizada, de um projeto ordenador homogêneo.

Os professores, nesse contexto de fluidez constante, de geração de informações plurais, de numerosas descobertas e invenções, deixam de ser a única fonte de conhecimentos duráveis, aqueles que perduram a vida inteira. A qualidade do profissional era medida conforme sua competência de fornecer aos alunos conhecimento de valor duradouro. Em tempos de internet a escola e professores não possuem a posse mais legítima do saber e a sociedade líquida, na leitura de Bauman, não cria expectativas com relação aos saberes duradouros para uma vida inteira. Está sempre mais difícil sustentar a tese de que as instituições de todos os níveis de ensino sejam guardiãs “[...] do saber que melhor representa o mundo ou então do local em que se busca uma cultura mais elevada (ALMEIDA, GOMES e BRACHT, 2009, p. 68). As novas fontes de autoridade tornaram-se muito mais habilidosas em disseminar suas mensagens, orientadas majoritariamente pelos interesses do mercado.

O docente está defrontado pela transição de uma aprendizagem para toda a vida (escola sólido-moderna) para uma aprendizagem ao longo da vida (exigência líquido-moderna). Uma sociedade que fez da liquidez seu paradigma, rechaça o tipo de ordem social sólida e imutável. Nas palavras de Almeida; Gomes; Bracht (2009, p. 65), “[...] isso representa, [...] um duro golpe para a educação escolarizada [e para a autoridade docente], exatamente porque o processo formativo, moldado a maneira da modernidade sólida, visava uma educação que era feita sob medida [...]”, para uma organização social de rotina e ordem, que não é bem vista na contemporaneidade.

A descentralização da autoridade docente não resulta apenas de erros ou equívocos das teorias educacionais. Em seu escrito “Educação: sob, para e apesar da pós-modernidade”, publicado na obra A Sociedade Individualizada (2008, p. 163), Bauman alega que a crise da autoridade docente está relacionada com “[...] a dissolução universal das identidades, com a desregulamentação e a privatização dos processos de formação de identidade, com a dispersão das autoridades, a polifonia das mensagens de valor e a subsequente fragmentação da vida que caracteriza o mundo em que vivemos”. O mundo do lado de fora da escolarização, e, até mesmo do ensino superior, cresceu de forma diferente daquela em que os professores e as instituições educativas estavam preparados. Com isso, os docentes pretendem oferecer a educação como um produto durável, sólido e para toda a vida, mas a sociedade líquida, agora não mais habituada com essa demanda vira as costas a esta oferta.

Na modernidade líquida, a educação passou a ser compreendida como antessala do mercado de trabalho. Diversos países têm orientado suas reformas educacionais em todos os níveis para o mercado de trabalho (NUSSBAUM, 2015) e de acordo com as habilidades que ele requer, que não são de longo prazo, mas voltadas para a aprendizagem de novos hábitos a todo momento. Esse fator também está diretamente ligado a descentralização da autoridade docente, porque o professor que pretende trabalhar numa perspectiva de uma educação para toda a vida depara-se com as exigências do mercado, de uma aprendizagem ao longo da vida, caracterizada pela constante mudança dos hábitos. “Um corpus bem definido e logicamente congruente de destrezas e hábitos adquiridos, com a experiência que só o ‘longo tempo’ poderia fornecer, não é mais visto como vantagem no corrente sistema produtivo” (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009, p.66). Isso significa que os sujeitos necessitam de preparação para a flexibilidade, ou seja, saber abandonar com rapidez hábitos do presente para que haja adaptação imediata aos novos. Dessa maneira, as exigências do mercado colocam em xeque a própria necessidade do docente, pois “[...] a formação profissional a curto prazo, orientada diretamente aos empregos e obtidas nos cursos flexíveis e em equipe de aprendizagens autodidatas, são muito mais atraentes do que a educação à moda antiga” (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009, p.67, grifo nosso).

Com relação a esse aspecto, falando diretamente sobre o ensino superior, Bauman problematiza a questão de habilidades terem curta duração, desaparecendo em menos tempo do que aquele necessário para adquiri-las:

O treinamento profissional de curto prazo, had hoc, administrado pelos empregadores e orientado diretamente para os empregos em vista, ou os cursos flexíveis e os (rapidamente atualizados) kits ‘aprenda sozinho’ oferecidos no mercado pela mídia extra universitária, tornam-se mais atrativos (e, na verdade, uma escolha mais razoável) do que uma educação universitária totalmente nova, que não é mais capaz de prometer, muito menos garantir, uma carreira vitalícia (BAUMAN, 2008, p. 168).

O docente, a escola e a universidade não possuem mais o saber “sagrado” a transmitir, já não são infalíveis. Nesse sentido, a relação com o conhecimento também muda diante dos projetos de caráter flexível e efêmero. Os estudantes não deveriam apegar-se ao conhecimento, e muito menos seguir comportamentos por ele propostos, pois foi transformado em informação, e a velocidade com que as informações chegam e “somem” é enorme. O próprio conhecimento torna-se descartável, passível de ser jogado fora e substituído. O conhecimento que é traduzido como informação “[...] guarda relação com o hábito de tomar café: só é bom quando forte e quente, esfriando rapidamente antes que seu gosto possa ser saboreado e avaliado por completo” (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009, p. 68).

Na modernidade líquida os conselheiros que apresentam várias possibilidades de seguir na vida são melhor quistos que o professor preocupado em oferecer uma única opção, já bastante congestionada. Esses conselheiros, na visão do Bauman, sustentados pela sociedade de consumo, apresentam-se com mecanismos de sedução em substituição a repressão de outros tempos mais sólidos. O poder de repressão da escola moderno sólida é substituído pelo da sedução, pelas vias da sociedade de consumo e o docente já não possui tanta força de determinação e nem consegue seduzir. Os conselheiros, segundo Almeida; Gomes; Bracht (2009, p. 69) “[...] em suas interpretações do ‘bem viver’, oferecem àqueles que os procuram o saber fazer, ser ou viver, não ‘o saber’ que os educadores da modernidade sólida pretendiam divulgar e eram bons em transmitir, de uma vez por todas, aos seus alunos”. A autoridade docente entra numa crise profunda com todos esses elementos, que provocaram na modernidade líquida o aparecimento de muitas outras fontes de autoridade.

Nesses “novos tempos”, a escola não é mais o único espaço de aprender e adquirir a cultura ideal e o professor não é mais a única autoridade para ensinar. A aquisição de conhecimentose habilidades está bastante pulverizada, vários agentes da sociedade educam, ensinam, treinam, preparam as pessoas. Numa ótica de formação humana, enraizada nos vários aspectos da vida da humanidade, seria extremamente saudável que os vários espaços sociais educassem e ensinassem. Por outro lado, corre-se o risco de um relativismo extremo, onde tudo passe a contar como educação, como experiência formativa do ser humano. É por este viés, que Bauman alerta que os espaços da sociedade líquida, onde a todo momento se aprende e desaprende, podem estar operando numa lógica mercantil que não necessariamente leve em consideração o humano como centro do processo formativo.

O ponto nevrálgico apontado por Bauman, com relação a descentralização da autoridade docente, é que, as novas fontes de autoridade estão estreitamente orientadas pela dinâmica do mercado. Na modernidade líquida, “[...] é o mecanismo do mercado que agora toma a si o papel de juiz, de formulador de opinião, de verificador de valores, [...], os intelectuais foram desalojados até na área que por vários séculos parecia constituir seu domínio monopolista de autoridade - a área da cultura em geral” (BAUMAN, 2010, p. 172). A antiga aliança dos intelectuais com o Estado ordenador, com capacidade de legitimar e universalizar o discurso sobre a verdade, o gosto, passou para o mercado e seu poder de juiz, formador de opinião, formulador de valores, de critérios para o bem e o mal, beleza e feiura, sucesso e fracasso, etc. Outro aspecto, aponta que no mercado não há um centro de poder único e nem a pretensão de criá-lo, pois o que define a hierarquia é a notoriedade, o quanto algo que é pronunciado é notado e seguido por outras pessoas: “[...] falam de mim, logo existo!” (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009, p. 70). A já desacreditada autoridade docente em conduzir a lógica da aprendizagem, disputa sem muitas chances de vitória, com as sedutoras e atraentes mensagens dos famosos, artistas, esportistas, políticos, outsiders, entre outros.

Ocorre que, o docente, antes pertencente a um sistema escolar formal rígido e coletivo quanto a sua formação e estrutura, agora está diante da privatização dos processos de formação e sua subordinação ao mercado, ao trabalho e às múltiplas vozes que se auto intitulam autoridades dispostas a educar e tornar as pessoas mais felizes e bem-sucedidas. Tudo isso nos aponta que o slogan “educação para toda a vida” da modernidade sólida está em crise, juntamente com o ideal de autoridade docente gestado na escola moderno-sólida; e, emerge assim, uma perspectiva de “educação ao longo da vida”, que em tempos moderno-líquidos exige novas reflexões acerca da autoridade docente. Sobre isso dedicaremos o próximo tópico.

A docência na perspectiva da interpretação e da formação humana na modernidade líquida

Como bem descreveu Bauman, da mesma forma que o discurso intelectual se deslocou da tarefa de legislar para a de interpretar, o discurso formativo da escola passou por consequências inesperadas, pois está frente a um imenso desafio existencial: como oferecer uma aprendizagem para toda a vida se a todo momento são exigidas novas habilidades e conhecimentos em uma realidade de constantes transformações, literalmente em estado líquido? O que expomos nos tópicos anteriores não é nada empolgante para o sistema escolar e para o modelo de autoridade docente tradicional. Os conhecimentos são rapidamente desvalorizados e descartados, as biografias pessoais e projeções profissionais para o futuro atravessam profundas incertezas e inseguranças, as instituições tradicionais como a escola e a universidade passam por lamaçais de precarização pelas reformas sociais e econômicas promovidas pelo mercado, que submetem os indivíduos à lógica do consumo globalizado.

Nesta trilha de problematização outros questionamentos poderiam ser apresentados: qual o futuro da escola e da docência numa cultura marcadamente consumista? É possível construir processo de autonomia na escola quando esta é invadida pela lógica de mercado? O professor tem diante de si um aluno que se compreende como indivíduo ou como consumidor? Apresentaremos alguns desafios da docência e da instituição escolar diante daquilo que Bauman apresenta como “tarefa de interpretar”, ou de aprender ao longo da vida, na sociedade líquida. Mais que isso, a dialética entre a tarefa de normatizar (legislar) e a de interpretar (compreender). Em nossa análise, apostamos que por estas vias pode-se pensar uma autoridade docente que sobreviva aos tempos líquido-modernos, deixando-se banhar por eles. Para uma melhor organização didática, destacamos três desafios à docência e a escola: a) a escola precisa assumir a direção do processo com autonomia e flexibilidade; b) pensar a autoridade docente em vias de reflexão e investigação; c) a escola como espaço de discussão e busca da justiça social.

A escola como espaço flexível para construir processos de autonomia

Torna-se cada vez mais claro que os processos educacionais estão sendo orientados para atender as demandas do mercado. A advertência de Nussbaum (2015, p. 4) é contundente ao alertar que “[...] os países logo estarão produzindo gerações de máquinas lucrativas, em vez de produzirem cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios”. As instituições escolares estão se moldando a lógica de mercado e admitindo que se não acompanharem o “andar da carruagem” perderão espaço, importância e sua função. Esse desespero mercadológico, chamado por Bauman de “tornar a necessidade virtude”, leva os formuladores das políticas educacionais e os intelectuais, a aderirem ao jogo da oferta e da procura.

Numa tentativa desesperada de fazer da necessidade uma virtude, ou de roubar a cena, os intelectuais, coletivamente degradados pela competição do mercado, convertem-se em promotores zelosos de critérios de mercado na vida universitária: este ou aquele curso ou projeto é bom se tem uma boa abertura para o mercado, se vende bem - e a capacidade de vender (‘encontrar-se com a demanda’, ‘satisfazer as necessidades do potencial humano’, ‘oferecer os serviços que a indústria demanda’) deve ser o critério supremo dos currículos, cursos e títulos adequados (BAUMAN, 2008, p. 173).

Essa citação pode muito bem ser direcionada para a educação básica, onde se voltam muitos projetos de reformas educacionais inspiradas pelas demandas e necessidades do mercado e da indústria. O perigo de tornar as instituições escolares e as próprias universidades em meros complementos das demandas de treinamento, para garantir as necessidades do mercado, pode se agravar se estas não assumirem direção de seu próprio processo. Não se trata de resgatar o ideal legislador da modernidade sólida em que escola era a principal responsável para formular o tecido social. Dizer que a escola deve assumir a responsabilidade de definir a direção do seu próprio percurso é defender a posição que há questões além daquelas exigidas pelo mercado, que não podem sair do horizonte formativo dos seres humanos. É nesse sentido que a formação de sujeitos autônomos e críticos constitui-se como tarefa imprescindível da escola, ao mesmo tempo que necessita ser suficientemente flexível para reconhecer que em tempos-líquidos, as vozes e autoridades podem vir de vários lugares.

Na transição da modernidade sólida para a líquida, os espaços não formais de aprendizagem acentuaram-se consideravelmente, conforme vimos anteriormente. Inevitavelmente a educação formal “[...] não pode mais deixá-los de lado, já que marcam cada vez mais o comportamento, o hábito e, em última instância, as influências extra institucionais no processo de socialização” (FLICKINGER, 2009, p. 77). Por isso, a flexibilidade é ponto decisivo para as instituições da educação formal, desde que seja com autonomia.

O sujeito da modernidade líquida muda num tempo mais curto daquele necessário para consolidar hábitos, rotinas e formas de agir (BAUMAN, 2007), e a escola, tendo-o a sua frente, deve exercer seu papel de educar nessa transitoriedade de momentos e experiências que ele vive. Bauman (2007, p. 21) recupera uma tese de Richard Rorty, que “[...] definiu como objetivos desejáveis e realizáveis dos educadores, as tarefas de agitar os garotos e instigar dúvidas nos estudantes sobre as imagens que eles têm da sociedade a qual pertencem”. Isso pode significar preparar os alunos para a vida líquida, para a era da incerteza, mas, sobretudo, instigá-los a duvidar da imagem que possuem de si próprios e da sociedade em que vivem, superando consensos forçados, verdades imutáveis, o a própria lógica do consumo, que atrai as vidas. Em síntese, a docência na modernidade liquida pode ser flexível e autônoma por não decretar o que é certo e verdadeiro, mas por ajudar os educandos a encarar com sobriedade e reflexão o mundo cambiável em que se vive.

A autoridade docente emana da reflexão e da investigação

A modernidade líquida, ao desestabilizar os conhecimentos imutáveis, colocou em crise a autoridade docente que tinha o poder de transmitir tais conhecimentos que perdurariam por todo o sempre. A negação desta lógica moderno-sólida e a insurgência de uma aprendizagem ao longo da vida, na modernidade líquida, pode nos levar a encontrar elementos positivos das condições líquido-modernas. Para Flickinger (2009, p. 68), a reorganização e deslocamento dos lugares da produção do saber para além das instituições tradicionais, “[...] representam apenas algumas consequências de um processo econômico-social que não se satisfaz mais com um determinado estoque de conhecimentos disponíveis”. A nova noção de aprendizagem tem como pauta “[...] romper com a regularidade, flexível o bastante a ponto de permitir libertar-se de velhos hábitos e com uma enorme capacidade de reorganizar experiências episódicas e fragmentárias em pautas anteriormente pouco familiares” (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009, p. 71). Embora seja paradoxal, a regularidade é não haver regularidade ou continuidade.

Diante disso, pressupõe-se que os processos formativos não estão mais completamente dados a priori, instaurados de forma definitiva nas instituições tradicionais, mas envolvidos numa trama bastante complexa e permeável pelas condições dos tempos líquidos da contemporaneidade. Isso significa que a docência precisa fazer as pazes com a incerteza diariamente fabricada e com a ambiguidade, além dos diversos pontos de vista e a inexistência de autoridades infalíveis e seguras (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009). Fazer as pazes com a incerteza não significa abrir mão de elementos duradouros e essenciais para a formação humana em nome de um relativismo extremado, sem direção, mas reconhecer que este ambiente de pouca estabilidade pode promover um processo reflexivo permanente. Algo de instigante que nos aparece nesses tempos cambiáveis é que “[...] no lugar de conhecimentos objetivos e de habilidades instrumentais exige-se uma competência reflexiva[...]”, de questionar as certezas antes construídas e de redefinir, sempre de novo, o papel supostamente estável” (FLICKINGER, 2009, p. 68). Na sociedade de consumidores, a ambivalência entre ser e parecer ser dificulta que os indivíduos se voltem para si mesmos, ampliado o desafio docente para o exercício da reflexão, como base da formação.

O segundo desafio, consiste então, em compreender a docência na modernidade líquida em vias de reflexão e investigação, ou seja, conceber o professor como um agente reflexivo e investigativo. Trata-se de conceber os educadores como aqueles que assumem uma autoridade dentro daquilo que Bauman definiu como interpretação. Interpretar é a marca do trabalho intelectual e profissional do educador da modernidade líquida, que necessita superar em grande medida a autoridade verticalista do professor com relação à “massa” de aprendizes. Além de ser um sujeito que compreende, também torna-se autor de sua própria prática pedagógica, na medida em que investiga seu próprio fazer pedagógico e se torna capaz de pensar a educação e não somente reproduzir e aplicar mecanicamente ações planejadas por outros. Segundo Almeida, Gomes e Bracht (2009, p. 89), “[...] isso representa um duro golpe nas pretensões proselitistas ainda existentes no campo educacional, que continuam a insistir na posse da verdade e, por consequência, da prática educativa que, inexoravelmente levaria até ela”.

Criar possibilidades para o “professor reflexivo” tem desafiado enormemente os condutores de processos de formação docente inicial e continuada, num cenário de precarização das relações de trabalho no campo educacional. Educadores com acúmulo de contratos, excessiva carga horária, baixos salários, precárias condições estruturais das instituições de ensino, amedrontados por projetos como o “escola sem partido”, estão visivelmente desesperançados com relação a possíveis melhorias num futuro próximo. Os educadores necessitam de espaço e tempo para que possam exercer sua docência de forma reflexiva e investigativa tendo em vista aperfeiçoamento constante de sua própria prática. Isso vai na contramão das reformas trabalhistas, orientadas sobretudo pelos interesses empresariais, que estão em curso na atualidade e que reduzem direitos e fragilizam o trabalho docente. Por isso, as instituições educacionais, os gestores da educação pública e privada, se almejam profissionais reflexivos, investigativos e qualificados deverão fazer resistência a mercantilização exacerbada da educação. Caso contrário, a profissão docente se tornará apenas um “bico”, e sendo assim, já sabemos que os rumos da docência, nessas condições, serão pouco promissores.

A escola como espaço de discussão e promoção da justiça social

Observou-se que a escola da modernidade sólida era seletiva, eletista e classificatória. Não era uma escola para todos e ficou marcada por excluir grupos que não estavam de acordo com o perfil estabelecido. Pobres, deficientes físicos, pessoas com transtornos mentais, negros, homossexuais e doentes, tornaram-se como que “ervas daninhas” que precisavam ser eliminadas do jardim civilizatório. Com a escola líquido-moderna, a ambivalência, a diferença, os anteriormente excluídos, poderiam ter seu espaço, pois, a vida passou a ser compreendida de modo mais plural. As instituições educativas passaram a ter papel importante na busca por justiça social e superação de desigualdades sociais, econômicas, de gênero, acesso aos direitos básicos. Contudo, a escola dos tempos líquido-modernos ainda não conseguiu se efetivar de fato como um lugar de educação para todos e um espaço de superação da injustiça. Continuamos tendo uma escola excludente, classificatória, dual, discriminatória, de dominação branda. Para Bauman (2010, p. 227), “[...] o novo modo de dominação se distingue pela substituição da repressão pela sedução, do policiamento pelas relações públicas, da autoridade pela propaganda, da imposição da norma pela criação de necessidades”. A ligação dos indivíduos à sociedade se dá pela capacidade de consumo, portanto, é o mercado quem assumiu as rédeas do controle dos projetos de vida. O poder de excluir e incluir está em suas mãos (mercado). Os que não conseguem acompanhar o fluxo das necessidades criadas por esse novo agente de controle, tornam-se os novos reprimidos (BAUMAN, 2010).

A marginalização e a pobreza na contemporaneidade líquida, em última análise, parece ser produto da emancipação do capital em relação ao trabalho. “Hoje, o capital não emprega o restante da sociedade no papel de trabalho produtivo; mais precisamente, o número de pessoas que ele de fato assim emprega torna-se cada vez menor e menos significante” (BAUMAN, 2010, p. 243). O capital, de outro lado, emprega as pessoas como consumidoras, não mais em função do trabalho estritamente. As novas massas de pobres aumentam pelo mundo todo, vítimas da não inclusão no emprego do consumo. São os refugos humanos, numa linguagem baumaniana. Inevitavelmente, o trabalho docente na modernidade líquida não pode ignorar a discussão e a busca por justiça social, assim como a formação ética dos sujeitos. A promessa da autenticidade individual, ou autonomia, tão bem defendida pelo iluminismo é dissipada pela “[...] privatização crescente das preocupações individuais [...] e pela [...] diminuição na participação em assuntos públicos” (BAUMAN, 2010, p. 258). A precarização do público, do espaço de relação entre os seres humanos, enquanto membros de uma mesma nação, comunidade ou grupo, acarreta profundas injustiças e desigualdades.

Talvez uma das tarefas intransferíveis dos docentes diante desse contexto é oportunizar aos alunos processos formativos que os tornem conscientes da massiva carga de mercadorização imposta ao sistema educacional. A velha pretensão instrumental de educar somente para o mercado de trabalho não se sustenta, pois o educando não irá somente trabalhar ou consumir; ele terá uma teia vital bastante complexa e multidimensional para lidar. Por isso, as escolas são desafiadas a “[...] prover meios adequados a fins orientados para a pessoa; e no processo, expor as limitações da razão instrumental, restaurando a autonomia da comunicação humana e a criação de significados orientados pela razão prática” (BAUMAN, 2010, p. 259). Trata-se de retomar o projeto de autonomia iluminista em contextos líquido-modernos, de voltar a colocar o ser humano no centro do processo formativo, de ressignificar a autoridade docente e da escola, para a emancipação dos sujeitos. Em outras palavras, o projeto moderno está inconcluso, e cabe aos docentes, intelectuais e instituições formativas levá-lo a sua realização.

Considerações finais

O presente ensaio buscou compreender e problematizar a partir de Zygmunt Bauman (2001; 2007; 2008; 2010) a autoridade docente na transição da modernidade sólida para a modernidade líquida. Na modernidade sólida a marca da autoridade docente caracterizou-se pela normatização ou legislação, enquanto que na modernidade líquida prepondera a interpretação e a aceitação da pluralidade na instituição escolar.

Com o declínio do estado enquanto regulador de todos os aspectos da sociedade, fragilizou-se o papel da escola sólida em criar um ordenamento social estável, sem ambivalências. A instituição escolar passou nos tempos líquidos a aceitar a ambivalência, as diferenças, a pluralidade, perdendo consideravelmente seu caráter de instrumento regulador a serviço do Estado. Bauman faz o diagnóstico de que é o mercado quem assume, em boa parte, a tarefa de definir os padrões e hábitos, estando, portanto, a escola defrontada com esse novo agente tão forte quanto o Estado dos tempos sólidos. Essa transição não se constitui como algo tranquilo, pois a escola passou a conviver com condições muito diferentes daquelas em que foi criada. A função normatizadora da escola entra em crise ao passo que as diferenças, as ambivalências, contingências e pluralidades começam a serem aceitas.

A escola da modernidade líquida passou a conviver com a descentralização da autoridade docente, pois os professores deixaram de abrigar a fonte única do saber, dos valores, das regras a assimilar para uma sociedade organizada. Surgem múltiplas autoridades, vozes e a modernidade líquida não está interessada em uma formação para toda a vida, mas ao longo da vida.

Desse modo, a autoridade docente, na modernidade líquida, possui suas especificidades e desafios numa dialética entre o ofício de normatizar (oferecer conhecimentos basilares e direcionar um processo formativo) e o de interpretar (compreender as relações cambiáveis, diferenças culturais, novos hábitos). Os desafios apontados de uma docência pautada na interpretação e na busca pela formação humana; de um espaço escolar flexível para a construção da autonomia; e da autoridade docente com base na reflexão e na investigação, indicam possibilidades dialéticas entre as necessidades formativas que perduram para toda a vida e as que são situadas ao longo da vida dos sujeitos. O ideal iluminista de emancipação e de racionalidade continua sendo válido, da mesma forma que procede uma autoridade docente com capacidade de levar esse projeto adiante, pois a escola e a docência são indispensáveis para a emancipação dos seres humanos em tempos líquido-modernos.

Nota

1A obra Legisladores e intérpretes, foi publicada originalmente em 1987. Em 2010, por ocasião da tradução para a língua portuguesa, Bauman dedicou um prefácio exclusivo para tal publicação explicando as razões teóricas que o levaram a abandonar a terminologia “pós-modernidade” e o emprego de “modernidade líquida” para evitar interpretações equivocadas a respeito disso.

Referências

ALMEIDA, Felipe Quintão; GOMES, Ivan Marcelo; BRACHT, Valter. Bauman & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica. 2009. [ Links ]

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. [ Links ]

BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. [ Links ]

BAUMAN, Zygmunt. Sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Tradução José Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. [ Links ]

BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2010. [ Links ]

FLICKINGER, Hans-Georg. A dinâmica do conceito de formação (bildung) na atualidade. In: CENCI, Angelo Vitório; DALBOSCO, Claudio Almir; MÜHL, Eldon Henrique (Org.). Sobre filosofia e educação: racionalidade, diversidade e formação pedagógica. Passo Fundo: Editora Universidade de Passo Fundo, 2009. [ Links ]

NUSSBAUM, Martha Criven. Sem fins lucrativos: porque a democracia precisa das humanidades. Tradução Fernando Santos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015. [ Links ]

Recebido: 03 de Novembro de 2018; Aceito: 10 de Janeiro de 2019

Prof. Dr. Altair Alberto Fávero

Professor Titular da Universidade de Passo Fundo (Rio Grande do Sul, Brasil)

Faculdade de Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação

Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Superior (GEPES/CNPq)

Integrante da Rede de Estudos sobre Educação (Repes/Furg)

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-9187-7283

E-mail: altairfavero@gmail.com

Mestrando Junior Bufon Centenaro

Universidade de Passo Fundo (Rio Grande do Sul, Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Faculdade de Educação

Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Superior (GEPES/Cnpq)

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-3046-3885

E-mail: junior.centenaro@bol.com.br

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