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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.57 no.52 Natal abr./jun 2019  Epub 13-Sep-2019

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2019v57n52id16014 

Artigos

Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler: um contexto de comunidade de aprendizagem1

Barefoot on the Ground One Also Learns to Read campaign: a context of Learning Community

Campaña De Pie en el Suelo También se Aprende a Leer: un contexto de Comunidad de Aprendizaje

Fernanda Mayara Sales de Aquino1 
http://orcid.org/0000-0002-5362-6694

Rosa Aparecida Pinheiro2 
http://orcid.org/0000-0002-4910-4842

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)

2Universidade Federal de São Carlos (Brasil)


Resumo

Este artigo objetiva discutir os espaços socioeducativos da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a ler’ como lugares de formação política e cultural pertencentes a um contexto de Comunidade de Aprendizagem. Para tanto, como procedimentos metodológicos, utilizamos narrativas de formadores da Campanha em conjunto com fontes documentais, como o Relatório Cultura Popular e De pé no Chão (1963) e a Proposta para criação do projeto ‘Meios informais de educação’ (1961). Para a leitura das fontes, utilizamos o conceito de Comunidade de Aprendizagem (TORRES, 2003) e de ato educativo como ato político (FREIRE, 1987; 2006). Pelas análises, compreendemos que, na Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler, as aprendizagens acontecem, além das salas de aula, ou seja, nos espaços socioeducativos - com a criação das praças de cultura, bibliotecas populares, museus e galeria de arte se coadunam com os princípios de uma Comunidade de Aprendizagem no processo educativo percebido como ato político interligado ao contexto cultural.

Palavras-chave: Memória; Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler; Comunidade de Aprendizagem; Formação

Abstract

This article aims to discuss the socio-educational spaces of the "Barefoot on the Ground One Also Learns to Read campaign, as places of political and cultural formation belonging to a Learning Community context. To do so, as methodological procedures, we used narratives of the campaign formers in conjunction with documental sources such as the "Popular Culture Report and Bare Foot on the Ground (1963) and the proposal for the creation of the Informal Means of Education project" (1961). In order to interpret the sources, we use the concept of Learning Community (TORRES, 2003) and of the educational act as a political act (FREIRE, 1987; 2006). From the analysis, we understand that, in the Barefoot on the Ground One Also Learns to Read campaign, the learning takes place in addition to the classrooms, that is, in of the socio-educational spaces with the creation of cultural squares, popular libraries, museums and art galleries that are consistent with the principles a Learning Community in the educational process, perceived as a political act interconnected with the cultural context.

Keywords: Memory; Barefoot on the Ground One Also Learns to Read campaign; Learning Community; Formation

Resumen

Este artículo objetiva discutir los espacios socioeducativos de la campaña De Pie en el Suelo También se Aprende a Leer como lugares de formación política y cultural pertenecientes a un contexto de la Comunidad de Aprendizaje. Para eso, como procedimientos metodológicos, utilizamos narrativas de los formadores de la campaña en conjunto con fuentes documentales como el Informe Cultura Popular y De Pie en El Suelo (1963) y la propuesta para la creación del proyecto Medios Informales de Educación (1961). Para la lectura de las fuentes utilizamos el concepto de Comunidad de Aprendizaje (TORRES, 2003) y de acto educativo como acto político (FREIRE,1987; 2006). Por los análisis, comprendemos que, en la campaña De Pie en el Suelo También se Aprende a Leer, los aprendizajes ocurren además de las clases, o sea, en los en los espacios socioeducativos - con la creación de la plazas de cultura, bibliotecas populares, museos y galerías de arte se corresponden con los principios de una Comunidad de Aprendizaje en el proceso educativo percibido como acto político interconectado al contexto cultural.

Palabras-clave: Memoria; Campaña De Pie en el Suelo También se Aprende a Leer; Comunidad de Aprendizaje; Formación

Introdução

Os espaços socioeducativos da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ são lugares de formação política e cultural pertencentes a um contexto de Comunidade de Aprendizagem (CA), visto que é identificada por Torres (2003) como uma comunidade humana que, sistematicamente organizada, constrói o seu próprio projeto educativo e cultural. Ao traçarmos uma analogia entre a ‘Campanha de Pé no Chão...’ e a noção de Comunidade de Aprendizagem nos orientamos pela perspectiva da escuta sensível (SILVA, 2018) das narrativas de participantes dessa Campanha e na leitura das fontes documentais, quais sejam: Relatório Cultura Popular e De pé no chão (1963) e do Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP). Embora a Proposta para criação do projeto ‘Meios informais de educação’ (1961) não seja especificamente sobre a Campanha, é utilizado porque, por meio dele, se compreende toda a lógica de criação dos espaços socioeducativos no contexto dos movimentos de Educação Popular - pois, por sua leitura, percebemos que as ações realizadas em Natal seguiam o mesmo modelo e organização dessa ação educativa. Mesmo não tratando especificamente de Natal, enquanto fonte documental, é importante para a compreensão sobre os espaços socioeducativos como política, também desenvolvida na capital do Rio Grande do Norte por meio da Diretoria de Democratização e acesso à Cultura da Prefeitura na época em questão.

As fontes documentais pesquisadas são ricas em informações sobre a criação de espaços socioeducativos em experiências de educação popular - acampamentos escolares, praças de cultura, bibliotecas populares, galeria de arte, museus - e nos oferecem indícios (GINZBURG, 1986) que permitem situar esses espaços em um contexto de Comunidade de Aprendizagem no Brasil. Tal concepção é possível porque a noção desse contexto é perpassada pelos eixos: escolar/extraescolar, espaços comunitários e relação com a variedade de sentidos e objetivos atribuídos à aprendizagem

[...] como proposta de política educativa, centrada em uma estratégia de desenvolvimento e transformação educativa e cultural em nível local, com o cidadão como protagonista e tendo em vista o desenvolvimento local e o desenvolvimento humano (TORRES, 2003, p. 2).

Na experiência brasileira, a criação dos espaços socioeducativos no contexto da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ ocorre durante a segunda gestão (1961-1964) do então prefeito Djalma Maranhão, na década de 1960. Esse político se firma na conjuntura natalense com um pensamento de esquerda, nacionalista, voltado para causas sociais, em defesa da escola pública e de uma educação popular. Durante a sua gestão, foi desenvolvida uma política de democratização da cultura a partir da criação da Diretoria de Documentação e Cultura (DDC), realizado um trabalho de divulgação e revitalização do folclore e folguedos populares através de uma galeria de arte, museu de arte popular, bibliotecas populares, praças de cultura, apresentações teatrais etc. A identificação de Djalma Maranhão com a cultura popular repercutiu na ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, observada em diálogo com educadores a partir da afirmação de seu posicionamento quanto às questões da cultura popular, como aponta Araújo (2011): “[...] ele fazia questão de que a cultura do Rio Grande do Norte, a cultura de Natal tivesse presente nos educandos da Campanha” (MARLENE ARAÚJO, 2011).

No tocante à estrutura da própria ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, podemos observar a valorização dos saberes e das manifestações culturais dos educandos e da sua comunidade nos diversos espaços de ensino-aprendizagem, destacando os acampamentos escolares. Esses conjuntos educativos foram compostos por um galpão circular, onde aconteciam as festividades do bairro e as reuniões de pais e educadores, e por galpões em forma retangular, onde funcionavam as salas de aulas e uma pequena sala de alvenaria que servia como diretoria, secretaria, almoxarifado etc. Nas dependências desses acampamentos escolares, existiam aviários e hortas, que permitiam a produção da merenda escolar para as turmas de crianças, que funcionavam durante o dia. No período noturno, eram oferecidas aulas de alfabetização para os adultos, que, em geral, eram pais das crianças que estudavam no mesmo acampamento pela manhã ou à tarde.

Essas ações remetem à compreensão de um ato educativo social, no qual a relação entre educação e cultura popular espelha uma educação no sentido amplo - como uma intervenção educativa que atua no cotidiano de uma comunidade e tem seus sujeitos como protagonistas no processo de desenvolvimento local e na busca dos direitos da população, nesse caso, direito à educação e cultura. A ideia dos acampamentos escolares partiu dos moradores do bairro das Rocas devido à falta de recursos financeiros, por parte da prefeitura, para a construção de prédios escolares. Quanto à proposição de criação dos acampamentos de palha por parte dos moradores das Rocas, assim afirma a professora Margarida Cortez: “Numa das reuniões dos comitês alguém sugeriu que se fizessem escolas de palha de coqueiro [...]”. (MARGARIDA CORTEZ, 2011). No Relatório ‘Cultura Popular e De pé no chão’ apresentado pela Prefeitura de Natal no 1º Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular no Recife, em 1963, consta que os operários da Prefeitura não souberam construir o primeiro acampamento. Por isso, foram chamados os pescadores do ‘Canto do Mangue’, praia das proximidades da comunidade envolvida, conhecedores da técnica da ‘virada’ e da ‘armação da palha’.

Pesquisar a memória dos espaços socioeducativos da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ nos possibilita entender como as políticas públicas delimitam o campo onde os sujeitos atuam para resolver problemas ou propor ações no âmbito público. Essa reflexão demonstra também que a noção de participação que perpassa a Campanha é edificada em um processo anterior imbricado às suas ações educativas. Em sua concepção, as aprendizagens não se restringem às salas de aula, mas acontecem na organização física dos espaços públicos - com a criação das praças de cultura, bibliotecas populares, museus e galeria de arte - e na promoção das práticas culturais dos cidadãos nesses e com esses espaços.

Na concretização dessas aprendizagens ampliadas, notamos as ações educativas da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ interligadas aos espaços da cidade e observamos a intencionalidade do desenvolvimento da sociabilidade dos sujeitos educandos. Nessa experiência, a educação percebida como ato social está interligada ao contexto cultural no qual se constrói, e no entendimento de cada sujeito envolvido com seus comportamentos sociais e processos cognitivos.

A memória dos espaços socioeducativos na ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’

O pensar sobre as propostas, que foram desenvolvidas há mais de cinco décadas de utilização dos espaços educativos inerentes à educação e cultura nos espaços societários, em uma ação anterior ao conceito ‘Comunidade de Aprendizagem’, bem como ações culturais e formação de educadores na relação do pedagógico e do político, auxilia o entendimento de nosso percurso histórico. Em um espaçotempo de imersão na construção da abordagem freireana, que surge como resposta contra a opressão e exclusão de amplos segmentos da sociedade brasileira, ligamo-nos a propostas atuais defensoras de uma práxis da não exclusão e não opressão por meio do diálogo (FREIRE, 1987; 2006). Como processo dialógico, analisar e compreender as práticas socioeducativas no contexto da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ possibilita não apenas pensar o presente em termos de democratização da educação e dos espaços culturais, mas também projetar ações educativas futuras.

Para essa discussão, nos fundamentamos em um referencial freireano que, situado no âmbito da Educação Popular, nos legou o conceito do ato educativo como ato político, da educação para todos, considerando seus saberes prévios e suas condições socioeconômicas e culturais. Esses fundamentos, atualmente disseminados, prescindem de uma reflexão sobre as práticas socioeducativas da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, pois é significativo ter sido esta uma das primeiras experiências de sistematização de uma ação de Educação Popular no Brasil - na qual a formação do sujeito não se restringe às classes de alfabetização, mas é fomentada, também, por meio da constituição de praças de cultura, galeria de arte, bibliotecas populares e museu de cultura popular.

Nesse movimento, destacamos a memória da ‘Campanha' enquanto espaço de ponderações em torno dos espaços culturais construídos pela prefeitura de Natal, na primeira metade dos anos de 1960, bem como da formação cultural e política promovida por esses espaços e pelas relações que os sujeitos estabeleciam no e com eles. Por ter sido o Estado do Rio Grande do Norte (RN), nessa década, lugares de experiências significativas na área da Educação de Adultos - como ‘As Quarenta horas de Angicos’, a ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ e as ‘Escolas Radiofônicas’, este se torna local em potencial para implementação de ações educativas com configurações inovadoras. A ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, como ação de alfabetização de crianças, jovens e adultos, ocorrida no período de 1961 a 1964, nos evidencia que os saberes escolares na relação de ensino e aprendizagens, nos processos de alfabetização não são os únicos que formam os/as alunos/as da Campanha, nem os/as professores/as e os/as alunos/as, mas os únicos que ensinam e aprendem. Os espaços não escolares fazem parte do todo da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ e são potencialmente lugares de formação cultural e política.

Podemos conhecer, com base em documentos e narrativas sobre práticas de educadores e educadoras participantes dessa Campanha, elementos que nos fazem entender a continuidade dessa alfabetização em outros espaçostempos, bem como a cidade de Natal - berço da Campanha - como uma comunidade propulsora de aprendizagens diversas. As aprendizagens se constituem tanto na relação dos alunos e alunas em sala de aula quanto em suas vivências na cidade, uma vez que, como já apontado, os espaços criados, pela Prefeitura de Natal no contexto da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, foram resultado de uma política de democratização da cultura executada pela Diretoria de Documentação e Cultura (DDC) da gestão do então prefeito Djalma Maranhão. Nesse sentido, afirmam Soares e Fávero (2009):

Um conjunto de parque infantil, praças de esportes (vôlei, basquete e futebol de salão) e uma biblioteca faz a “Praça de Cultura” que, em última instância, é complementação das “escolinhas” ou dos “Acampamentos” que se localizam próximos. Em 1962 foram construídas dez praças das quais duas com as bibliotecas em pleno funcionamento. A praça, neste caso, deixa de ser somente um ornamento urbanístico para ser um instrumento de cultura popular. (SOARES; FÁVERO, 2009, p. 143).

Para compreendermos as dimensões formativas em um contexto de ‘Comunidade de Aprendizagem’, com base em suas premissas, em nosso trabalho, as práticas, comportamentos, gestos de atores sociais nos espaços socioeducativos da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ foram investigadas especialmente por meio das memórias narradas dos alfabetizadores e em fontes documentais sobre a ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ e o Movimento de Cultura Popular do Recife.

Os educadores da ‘Campanha de Pé no Chão...’, hoje, pessoas com mais de sessenta anos, se constituíram narradores da pesquisa no momento em que nos contaram sobre suas experiências na referida Campanha na década de 1960. Na fala, por exemplo, do professor João Raimundo de Oliveira Sobrinho ele afirma: “[...] as coisas não são mais como antigamente. Você veja que antigamente o menino não respondia professor, não [...]” (JOÃO OLIVEIRA SOBRINHO, 2011). Compreendemos esse processo de acordo com as considerações de Benjamin (2012) quando defende que narrar envolve a faculdade de intercambiar experiências. Quando os sujeitos narram, eles estão intercambiando/trocando/relacionando experiências e essas imprimem marcas em suas narrativas, bem como se movem com naturalidade no tempo, realizando processos de idas e vindas entre passado e presente. Os professores/as da ‘Campanha de Pé no Chão...’ que colaboraram para o desenvolvimento da pesquisa foram: João Raimundo de Oliveira Sobrinho, Josemá Azevedo, Margarida de Jesus Cortez e Marlene Araújo.

João Raimundo de Oliveira Sobrinho estudou no Senai e Rotary Club, onde fez o exame de admissão para o ginásio. A fim de trabalhar na Campanha, em decorrência da sua admiração pelo prefeito Djalma Maranhão e suas propostas, o professor João realizou um teste e, aprovado, fez um curso de formação no Centro de Formação de professores. Posteriormente, o referido professor ministrou aulas para crianças no período diurno e, em seguida, para adultos no Acampamento Escolar das Quintas, no bairro das Quintas, no período noturno, pois preferira o trabalho com os adultos. A turma de adultos do professor citado chegou a ter uma média de 30 alunos que, como já apontado, em sua maioria, eram pais de crianças que estudavam no mesmo acampamento, porém no período matutino ou vespertino.

Josemá Azevedo era estudante do curso de Engenharia Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) no período da ‘Campanha de Pé no Chão...’. Nessa época também fora envolvido com Juventude Universitária Católica (JUC), sendo atuante nos movimentos sociais e de cultura popular à época da Campanha. O seu trabalho como docente nessa Campanha está associado ao uso das formulações freireanas para alfabetização em Natal, sendo ele coordenador de círculos de cultura e alfabetizador. Atuou como alfabetizador no Círculo de Cultura de Nova Descoberta no período noturno e foi, também, responsável pelo processo de interiorização da Campanha. Para esse trabalho, fundamentado nas teorizações freireanas, o professor Josemá participou do curso ministrado por Paulo Freire em Natal no ano de 1963.

Margarida Cortez, por sua vez, participando em São Paulo de um curso de especialista em educação para América Latina, com a profa. Dra. Déborah Ellis da Universidade de Nova York (1959), foi chamada para a ‘Campanha de Pé no Chão...’ para trabalhar como Coordenadora Pedagógica da ‘Campanha’ no Centro de Formação de Professores, além de formadora nos cursos de emergência oferecidos pelo Centro de Formação.

A professora Marlene Araújo, após sua conclusão da Escola Normal de Natal, passou a lecionar numa turma de 5° ano primário, no período noturno da Escola de Demonstração do Centro de Formação de Professores da ‘Campanha de Pé no Chão...’. Sua turma era formada de 43 alunos, entre jovens e adultos. Além do trabalho em sala de aula, a professora Marlene também atuou, simultaneamente, no setor de pesquisa da ‘Campanha’.

A narrativa dos/as professores/as da Campanha é a representação que dela fazem os participantes da pesquisa que vivenciaram suas experiências de aprendizados em seus diferentes espaçostempos e, por terem trajetórias de vida singulares, atribuem sentidos e interpretações também singulares. Entendemos que as memórias narradas e os documentos evidenciados forneceram indícios que nos ajudam a apreender e compreender a constituição das relações socioeducativas em espaços não escolares da ‘Campanha'.

A concepção que adotamos neste estudo nos remete ao conceito de memória com base nas abordagens cognitiva e pragmática, que segundo Ricoeur (2007, p. 71), “[...] se reúnem na operação da recordação; o reconhecimento que coroa a busca bem-sucedida designa a face cognitiva da recordação, ao passo que o esforço e o trabalho se inscrevem no campo prático.” O trabalho com a memória nos espaços socioeducativos da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ considera o passado reconhecido em sua preteridade, por participantes da Campanha e moradores da cidade de Natal na década de 1960, como esforço empreendido por eles/as e por nós na reconstituição dessa memória quando da ressignificação das narrativas e da leitura das fontes documentais.

A memória é, também, entendida como um dos meios fundamentais de abordar os “problemas do tempo e da história” (LE GOFF, 2013) e representa possibilidades de lutas e de emancipação na medida em que valoriza, neste caso, os saberes e práticas das classes populares. Segundo Le Goff (2013), historicamente a memória coletiva foi posta em disputa nas lutas das forças sociais pelo poder. “Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas.” (LE GOFF, 2013, p. 390). A investigação sobre os espaços socioeducativos da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende’ a Ler’ se insere na perspectiva dos trabalhos que buscam valorizar as memórias de grupos e indivíduos que interrogam a “memória oficial”, instituída na época a partir da exclusão de práticas educativas emancipatórias. Nesse caso, memória de uma experiência educativa marcada pelos valores democráticos de participação e valorização da cultura popular, uma vez que a ‘Campanha de Pé no Chão...’ foi uma experiência de alfabetização e escolarização que teve como base um projeto de sociedade democrática.

Ao produzir narrativas de suas práticas vivenciadas, os educadores da ‘Campanha de Pé no Chão...’ difundem suas convicções, saberes e valores, expressando suas experiências vividas no espaçotempo dessa Campanha. Entendemos a partir de Oliveira (2010), as narrativas como processos de produção de discursos nos quais os sujeitos percebem, compreendem e expressam o que acreditam existir - no caso em questão aquilo que os educadores creem ter vivenciado na ‘Campanha’. Esquadrinhamos nas narrativas dos educadores sua verdade circunstancial, vivida, efetiva, concreta, fundamentados numa concepção de narrativas como visão singular a respeito do que foi vivido outrora que,

[...] é um ‘saber-dizer’ exatamente ajustado a seu objeto [...] Então se poderiam compreender as alternâncias e cumplicidades, as homologias de procedimentos e as imbricações sociais que ligam as ‘artes de dizer’ as ‘artes de fazer’: as mesmas práticas ora se produziam num campo verbal ora num campo gestual; elas jogariam de um ao outro, igualmente táticas e sutis cá e lá, fariam uma troca entre si - [...] das astúcias da história vivida às da história narrada (CERTEAU, 1994, p. 153).

A partir do “saber-dizer” de suas vivências, recorremos ao depoimento oral dos educadores para, com base em suas narrativas, compreendermos a constituição e as relações estabelecidas nos espaços socioeducativos da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’. Nessa construção, tomamos como fonte a memória individual dos participantes, apesar de entendermos que essas memórias individuais têm origem e são inspiradas no grupo que corresponde a todos quantos fizeram parte da Campanha. Para aprimorar nosso olhar nessa relação e no que concerne à evocação da memória, dialogamos, também, com Halbwachs (1990) na defesa que a memória individual existe sempre a partir da memória coletiva, visto que todas as lembranças são constituídas no interior de um conjunto.

Utilizamos narrativas do/as educador/es Josemá Azevedo e da educadora Marlene Araújo, cedidas ao Núcleo de História e Memória da Educação de Jovens e Adultos (NUHMEJA-RN). A memória desses educadores nos permite conhecer sobre os espaços não escolares da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, para além do que já foi escrito pela história oficial, e traçarmos relações com as conceituações de Comunidade de Aprendizagem. A busca do conhecimento com base nessas narrativas pode contribuir para revalorização das vozes, nas quais a recorrência à memória viva, ao passado vivido por esses educadores, nos consente entrever as escolhas realizadas no passado, compreender melhor o presente e vislumbrar possibilidades de reflexão em futuras ações educativas e usos dos espaços socioeducativos.

A política de democratização da cultura popular no âmbito da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’

Entre as ações desenvolvidas no contexto da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, em 1962, foi criado o Centro de Formação de Professores, para preparar cursos de formação de educadores que iriam trabalhar na Campanha. Esse Centro de Formação promoveu, em 1963, o 1° Congresso de Cultura Popular, que representa um marco no processo de democratização e valorização da cultura popular em Natal. Foi pensado e organizado com objetivo de difusão da cultura popular e politização, dimensões indissociáveis na medida em que estão comprometidas com o processo de valorização cultural, transformação e conscientização política das classes populares. A programação do Congresso, na íntegra, era assim constituída:

Dia 21 de abril: Instalação do Congresso e inauguração do ‘Fórum de Djalma Maranhão’ - 17:30h.- 21:00h. - Teatro Alberto Maranhão - Peça de teatro - ‘O Processo de Tiradentes em nosso Tempo’ - júri sob a responsabilidade do Centro de Cultura Popular de Natal.

Dia 22 de abril: Dia da Educação - programações sobre a educação popular, através da Campanha ‘De Pé no Chão Também se Aprende a Ler’. Lançamento do ‘Livro de Literatura para Adultos De Pé no Chão’.

Dia 23 de abril: 17:00h., Galeria de Arte - Exposição do pintor Raul Córdula da Paraíba. Dia 24 de abril: 20:00h., Fórum de Debates - Palestra do crítico Luís Costa Lima, do SEC da Universidade do Recife, sobre ‘Cultura e Alienação’.

Dia 25 de abril: 20:00h., Fórum de Debates - Palestra do crítico cinematográfico - Willes Leal, da Paraíba.

Dia 26 de abril: lançamento do segundo volume de ‘Viola de Desafio’.

Dia 27 de abril: Exposição, na Galeria de Arte, de artesanato e arte popular. - 20:00h. Palestra de Newton Navarro, sobre ‘Arte Popular’.

Dia 28 de abril: Inauguração do Teatrinho do Povo, no bairro do Alecrim com a encenação da peça ‘Pedro Mico’ e exibição de Jograis da Universidade da Paraíba.

Dia 28 de abril: 16:00h. Conferência da professora Edna Lott.

Dia 29 de abril: Galeria de Arte - Lançamento dos ‘Cadernos do Povo Brasileiro’ pelo editor Ênio Silveira - 20:00 h. Debate, com Ênio Silveira, sobre ‘O Problema do Livro’.

Dia 30 de abril: Lançamento, na Galeria de Arte, do disco da UNE ‘O Povo Canta’ - Debate sobre ‘Reforma Agrária’.

Dia 1 de maio: Exibição de documentários: ‘Aruanda e Cajueiro Nordestino’, por Linduarte. - 16:00h. Concentração operário-estudantil-camponesa. - Coro Falado: ‘Poemas para liberdade’ (SOARES; FÁVERO, 2009, p. 147-148).

A estrutura do programa do Congresso configura o pensar da formação em uma magnitude que ainda hoje é almejada, em uma amplitude pedagógica, política e cultural interligada. A articulação com as tradições e valorização dos saberes populares aponta também a Educação em uma intensidade de significação não de um local ou grupo social, mas no imbricamento de pensares que dialogam em diversas manifestações artísticas e políticas entre sujeitos produtores de conhecimentos. Destacamos na programação a existência de espaços voltados para eventos culturais e de valorização da cultura popular, bem como o uso sistematizado desses espaços na cidade. Segundo Marques (2015), esses espaços foram resultados de uma política de democratização da cultura desenvolvida pela Prefeitura de Natal por meio da sua Diretoria de Documentação e Cultura. Conforme assinalado anteriormente, o pensamento nacionalista de Djalma Maranhão e a sua identificação com as causas populares tornam a sua gestão comprometida com a valorização da cultura local. Nesse sentido, destacamos a fala do professor Josemá Azevedo:

[...] era uma coisa importante que o prefeito Djalma dava uma atenção especial a essa área da cultura, em que nós tínhamos todos [...]. Então quando a gente tinha a oportunidade se apresentava a esse grupo alguma coisa dessa natureza. [...] a gente mostrava que capoeira faz parte da cultura, o menino soltando pipa. Tudo isso é cultura. Era importante mostrar e a valorização dessas coisas. Coisas que em geral pertence ao universo dessas pessoas (JOSEMÁ AZEVEDO, 2011).

[...]

Uma das coisas que a gente tinha por objetivo também era fazer com que eles valorizassem isso e que era uma coisa importante da nossa vida, da vida deles, esses autos populares (JOSEMÁ AZEVEDO, 2011).

Com base nas falas do professor Josemá, ressaltamos a concepção de cultura que fundamenta as suas práticas, pois, na afirmação que cultura é inclusive o menino soltando pipa, podemos recorrer ao conceito de cultura sustentado por Roger Chartier, como cultura sendo um esquema de percepções e representações comuns ao conjunto de uma sociedade ou de um determinado grupo. Para esse autor, pensar a cultura “[...] exige concebê-la como um conjunto de significações que se enunciam nos discursos ou nos comportamentos aparentemente menos culturais” (CHARTIER, 1990, p. 67). Logo, ao nos referirmos às relações que os sujeitos estabelecem com e nos espaços não escolares da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, consideramos como cultura todas as suas atividades, discursos e expressões desenvolvidas.

Espaços socioeducativos da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’

Eu me dediquei de corpo e alma, sobretudo porque eu queria que as pessoas fossem alfabetizadas, [...]. Quem é professor sabe disso. Se você é professor porque você está empenhado, está comprometido sabe que alfabetização não é só saber ler as letras ou as palavras. É muito mais que isso né? É um abrir de mente para o mundo, é a tal coisa de ler o mundo como fala Paulo Freire [...]. Nós que queremos ser profissionais da educação estamos sempre comprometidos com essa questão, a questão da cultura, a questão do envolvimento das pessoas no desenvolvimento social, no processo de habilitação para se entrosar como cidadão (MARAGARIDA CORTEZ, 2011).

As práticas de educadores e educadoras da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ apontam elementos que nos fazem compreender compartilhamentos do processo de alfabetização em outros espaçostempos na cidade de Natal − como uma comunidade propulsora de diversas aprendizagens. Como já referenciado, destacamos a Galeria de Arte, o Teatrinho do Povo e o Museu de Arte Popular Câmara Cascudo, bem como as praças de cultura e as bibliotecas populares.

A Galeria de Arte foi construída durante a administração do prefeito Djalma Maranhão, funcionando todos os dias para visitação do público e oferecendo mostras de arte popular, fotografia e pintura de artistas locais e nacionais. Segundo Soares; Fávero (2009, p. 162) “Suas portas abertas ao Povo mostram, no talento e na inspiração dos nossos expositores, a mensagem viva e atual da inteligência brasileira”. O teatrinho do Povo que consistiu em mais uma das iniciativas da política de democratização e incentivo à cultura, objetivava levar ao povo a diversão pela arte, privilegiando peças de autores regionais. Nesse contexto, o Museu de Arte Popular Câmara Cascudo, que havia sido criado na primeira administração de Djalma Maranhão quando foi prefeito nomeado, recebeu novos incentivos para a sua organização e abertura para visita ao público.

As praças de cultura e as bibliotecas populares são também demarcações fortes na organização da Campanha, pois, por meio de narrativas de educadores/as da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, é perceptível o processo de efervescência político-cultural pelo qual passava a cidade de Natal com a construção desses espaços culturais, bem como evidências das relações de complementaridade entre a ação de alfabetização e escolarização da ‘Campanha’ e a construção e os usos dos espaços não escolares no contexto da política educacional da gestão do prefeito Maranhão.

Ele corria essa Natal toda ... de Rocas-Quintas, Quintas-Rocas, em todos os festejos de Natal ele estava presente - nos Banbelôs, no Boi de Reis - [...] e ele fazia questão de que as escolas tomassem conhecimento... Você conversava com qualquer um aluno maior dos nossos e eles sabiam falar de Boi de Reis, faziam o comentário geral do ‘como’ ‘por que”. Ele fazia questão que a cultura do Rio Grande do Norte, a cultura de Natal tivesse presente nos alunos da Campanha (MARLENE ARAÚJO, 2011).

Nessa lógica, foram criadas praças de culturas com base na experiência do Movimento de Cultura Popular (MCP) de Recife que, segundo Ribeiro (2008), eram periódicas ou permanentes. A principal diferença entre ambas é que a praça de cultura periódica funcionava somente para eventos como Feira de Livros e Festivais de Folclore, enquanto as praças de cultura permanentes eram dotadas de estrutura que funcionava permanentemente, tais como a Biblioteca Popular. Sobre os objetivos das referidas praças, o Relatório da Subcomissão Praças de Cultura especifica:

  • a) desenvolvimento da consciência crítica do povo para possibilitar a emersão mais autêntica de suas aspirações culturais e políticas, através da promoção de debates e discussões em grupo, que levem à superação de uma condição de homem como objeto de cultura.

  • b) a formação em cadeia de novos agentes de cultura popular, saídos do meio do povo a partir da descoberta de seus líderes.

  • c) ser um ponto de convergência e intercâmbio dos diferentes instrumentos e meios de comunicação e conscientização como: teatro, cinema, rádio, TV, imprensa, música popular, livros e folhetos, artes plásticas, cartazes e outros que possam existir (SOARES; FÁVERO, 2009, p. 303).

Essas ações educativas visavam mobilizar nas pessoas o senso crítico e a criatividade tornando os momentos nas praças de cultura espaçotempo de formação cultural e visibilização da cultura popular, através do incentivo à participação e criação, por parte dos grupos populares, de expressões culturais que mobilizassem peças teatrais, música, cinema e as mais variadas linguagens. “Em 1962 foram construídas dez praças, das quais duas com bibliotecas em pleno funcionamento. A praça, neste caso, deixa de ser somente um ornamento urbanístico par ser um instrumento de cultura popular”. (RELATÓRIO CULTURA POPULAR E DE PÉ NO CHÃO, 1963, p. 20).

No tocante às Bibliotecas Populares, estas foram construídas em formato de barracas feitas de madeira que funcionavam como postos de empréstimos de livros, diariamente, no período vespertino e noturno. Os acervos das referidas bibliotecas foram constituídos através de campanha que incentivavam a população à doação de livros com o seguinte tema: ‘O livro que está sobrando na sua estante é o livro que está faltando nas mãos do povo’. Em suas narrativas, os educadores/as da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ discorrem sobre a criação e o acesso da população às bibliotecas populares:

Uma coisa muito importante que havia eram as bibliotecas. Havia a biblioteca central que era no Centro de Formação de Professores e havia as bibliotecas em alguns acampamentos. A questão de as bibliotecas não terem sido organizadas em todos os acampamentos é porque não deu tempo. Havia a biblioteca Castro Alves, me parece que era nas Rocas, e Monteiro Lobato. Então essas bibliotecas eram frequentadas pelas crianças e o curioso é que não sumiam livros; eles levavam os livros e traziam (MARAGARIDA CORTEZ, 2011).

[...]

Tinha as bibliotecas de bairro; tinha a Biblioteca Central, que era na Praça André de Albuquerque; e tinha ainda uns carros, umas Kombis abertas que passavam pelas ruas emprestando livros [...] Só sei que era bastante utilizada, bastante utilizada mesmo (MARLENE ARAÚJO, 2011).

[...]

Natal naquela época tinha umas bibliotecas públicas e uma biblioteca volante (que passava pelos bairros), que era um programa de Djalma [...] E tinha algumas, que a gente chamava de biblioteca, na realidade eram umas espécies de centros de empréstimo [...] então como aquilo era feito de pessoas simples [...] as pessoas tinham acesso fácil (JOSEMÁ AZEVEDO, 2011).

[...]

As bibliotecas volantes, elas eram colocadas em uma região da cidade, por exemplo, nas quintas. Eram um caixote grande com vários livros e aí essa biblioteca ficava, digamos, dois meses ali. As pessoas pediam livro emprestado, liam e traziam de volta. Depois essa biblioteca mudava para outro bairro e assim havia rodízio dessas bibliotecas, era uma coisa fantástica isso. Agora essa questão dessas bibliotecas era coordenada pelo setor de Cultura. Havia um departamento de cultura que era coordenado por Mailde Pinto, então era ela que fazia essa distribuição e esse rodizio dessas bibliotecas, mas isso era uma coisa fantástica. Porque você veja, eu pergunto: quantas bibliotecas, hoje, nós temos na nossa cidade? (MARAGARIDA CORTEZ, 2011).

[...]

Eles faziam uma programação [...] A biblioteca volante era num carro, normalmente era uma rural. Trazia uma rural, aí trazia aquela parte e trazia aquele bocado de livro e chegava e montava aquilo ali. Tudo livro já usado, era tudo livro assim, de leitura do estilo deles e tudo livros usados. O pessoal doava. Era tudo nesses termos assim, não tinha nada negócio sofisticado não (JOÃO OLIVEIRA SOBRINHO, 2011).

[...]

A comunidade podia tirar livro emprestado e as professoras, elas também tiravam livros porque havia livros didáticos e paradidáticos nessas bibliotecas. Elas tiravam os livros, liam e devolviam e havia uma movimentação muito grande. Agora como esses livros foram adquiridos? A gente sabe que naquela época havia muitas pessoas semianalfabetas. Então eu me lembro que Mailde fez uma solicitação à comunidade perguntando que livros eles gostariam de ler ou que a biblioteca tivesse e ela não teve retorno porque as pessoas, muitas pessoas eram analfabetas então elas não tinham nem como solicitar os livros para ler. Então esses livros foram adquiridos mediante doação, muitas pessoas que tinham livros doaram para essas bibliotecas e a doação foi grande. Havia muita doação para organizar essas bibliotecas, não só as bibliotecas volantes, mas as bibliotecas que funcionavam junto a alguns acampamentos (MARAGARIDA CORTEZ, 2011).

Assim, as bibliotecas populares foram criadas no contexto da política de valorização da cultura popular da prefeitura de Natal, contando com a participação da população no processo de execução dessa política na medida em que os/as moradores/as foram, também, responsáveis pela criação e manutenção dos acervos das bibliotecas através de doações e do uso dos acervos de forma a garantir a sua continuidade. Essa autoria-cidadã, no desenvolvimento e manutenção das bibliotecas populares por parte da população, lhes permitiu a construção de um sentimento de pertencimento à cidade e de seus bens culturais. O fato de as bibliotecas terem sido “bastante utilizada, bastante utilizada mesmo” pode ser considerado um desdobramento da política de valorização da cultura e democratização da leitura - que tinha em sua execução as marcas do próprio povo e nas quais os sujeitos se reconheciam e encontravam sentido.

Ressaltamos, ainda, a importância das bibliotecas populares para a formação e prática das próprias professoras da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’. Quando a professora Margarida Cortez afirma “A comunidade podia tirar livro emprestado e as professoras, elas também tiravam livros porque havia livros didáticos e paradidáticos nessas bibliotecas. Elas tiravam os livros, liam e devolviam [...]” fica evidente que as bibliotecas eram importantes não somente para os/as alunos/as da Campanha, mas para o corpo de educadores que, no caso da professora Marlene Araújo, buscava desenvolver sua prática pedagógica na inter-relação com as bibliotecas.

Os livros das bibliotecas eles poderiam utilizar [...] eles iam à biblioteca que, no caso da minha sala era vizinho, escolhiam o livro e traziam. E eles faziam a leitura [...] eu fazia algumas perguntas sobre o conteúdo daquele livro e eles faziam o debate (MARLENE ARAÚJO, 2011).

Além do acesso aos livros do acervo, a população também tinha a possibilidade de fazer a leitura de recortes de jornais locais e do Rio de Janeiro, que eram fixados em um mural na parte externa de cada biblioteca (RIBEIRO, 2008). As bibliotecas populares constituídas como espaços não escolares, no âmbito da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, possibilitavam a incorporação e democratização da leitura e redimensionava a relação dos espaços de aprendizagem na comunidade local - constituindo um todo no qual os espaços perdem as fronteiras para a produção de conhecimento entre pares - conceito base de uma Comunidade de Aprendizagem.

Nessa perspectiva da aprendizagem em significados diferenciados, destacamos a formação cultural que oportunizou o surgimento de “[...] não somente uma nova rede escolar, mas também uma completa organização cultural da cidade de Natal” (GERMANO, 2010, p. 144). Como apontado, a cidade se torna, assim, propulsora de aprendizagens aos seus moradores e, neste. Nesse sentido, entendemos a cidade de Natal, à época da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, como uma Comunidade de Aprendizagem que, em articulação com a escola, oferta educação formal, não formal e informal.

A professora Marlene Araújo, em sua narrativa, revela a consciência que tinha da existência de um contexto de efervescência política e cultural na cidade, bem como as possibilidades de integração que havia nesse contexto com o processo de ensino aprendizagem no contexto escolar.

Dramatizações, apresentações de corais [...] poderiam ser dentro de uma aula se eu fizesse um planejamento [...] e seria avaliado [...]. Se você falasse com qualquer um dos nossos alunos eles sabiam falar do Boi de Reis, faziam um comentário geral de como e por que (MARLENE ARAÚJO, 2011).

Há, na cidade de Natal, no período de 1961 a 1964, uma inter-relação entre a administração municipal e a participação popular, ambos convergindo para proposição de uma educação pública numa perspectiva de educação popular, preocupada com a transformação social e a valorização da cultura local dos educandos. A cidade, além das aulas formais nas turmas de alfabetização, também contribui para uma formação mais ampla dos educandos. Cabe-nos ressaltar que os educandos, quando assegurados do direito à alfabetização na ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, tiveram a oportunidade de continuar a aprender em outros espaçostempos. Havia uma preocupação, por parte dos idealizadores da Campanha, de, além de ofertar o ensino da leitura e da escrita, possibilitar aos aprendizes a promoção da sua cultura e o diálogo com a cultura universal.

Conclusão

A realização e a expansão dos atos educativos por diversos espaçostempo e da amplitude de ocupação do território, nessa experiência, nos possibilitam uma analogia entre a ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ e as Cidades Educadoras como ambientes de Comunidades de Aprendizagem. Se pensamos uma Cidade Educadora como um território educativo no qual os diversos espaços, tempos e sujeitos são agentes do processo educacional - em uma intencionalidade política, no sentido de ação entre homens, apontado por Arendt (1997), podemos atribuir à cidade de Natal, durante a ‘Campanha de pé no chão também se aprende a ler’, esse atributo. Os depoimentos e documentos nos trazem a multiplicidade dos espaços de ensino e aprendizagem da ‘Campanha de Pé no Chão...’ além dos acampamentos escolares, em um contexto social educativo amplo, em que toda a cidade é propulsora de formação e aprendizagens significativas aos seus moradores e cidadãos, tanto referentes aos aspectos de alfabetização e escolarização quanto de formação cultural.

Ao nos direcionarmos pelas narrativas dos alfabetizadores, nas quais as memórias se evidenciam, constituímos os indícios que nos orientaram na constituição de pontos de similaridade entre os acontecimentos da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ e as relações socioeducativas em espaços em uma Cidade Educadora. Ao rememorar suas práticas educativas, os educadores retomaram as contribuições de um pensar de inovações educativas que, hoje, ainda buscamos implementar.

O reconhecimento dos espaços não escolares da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, além do que já foi escrito pela história oficial, pela percepção de quem os vivenciou nos possibilita apreender a força das ações educativas impregnadas dos sentidos de seus produtores. Essa constituição de saberes a partir das experiências de vida é a base para a constituição de Comunidades de Aprendizagem e Cidades Educadoras, na integração de atividades sociais e culturais no processo educativo.

Ao delinearmos as dimensões de uma Cidade Educadora (GADOTTI, 2006), percebemos que já há mais de cinco décadas essa concepção foi possível na ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ e o pouco que ainda caminhamos para uma sociabilidade igualitária. Podemos, pelas narrativas e pesquisa documental, notar a integração de conhecimentos, favorecendo o compartilhamento de aprendizagens e o investimento na formação para que os sujeitos possam atingir sua máxima potencialidade.

Ao compreendermos a ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’ em um contexto de Cidade Educadora, consideramos também levar a efeito o imbricamento entre as instituições educativas formais (como as construções para aulas) não formais (como organização intencional fora dos espaços escolares nas bibliotecas, praças, museus) e informais (nos coletivos de discussão, folguedos e ações comunitárias) em uma ação integrada na aprendizagem de todos os cidadãos - compreendendo o território como uma grande plataforma de experimentação nos espaços culturais de interação entre os educandos. Essa concepção estava já integrada no projeto político da cidade, na definição de prioridades de formação com seus objetivos e recursos sendo explanados desde a constituição da ‘Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a Ler’.

Essa analise demonstra o aspecto inovador da referida Campanha, que, no projeto de valorização da cultura na concepção da educação, como um bem social dinâmico, constituída coletivamente em diversos espaços educativos, se antecipa a experiências dinamizadoras das Cidades Educadoras atuais, na produção de aprendizagens comunitárias em um processo permanente de formação integral de cada habitante como um sujeito autônomo que interage em seu coletivo.

Notas

1O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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Recebido: 23 de Novembro de 2018; Aceito: 10 de Dezembro de 2018

Doutoranda Fernanda Mayara Sales de Aquino

Programa de Pós-Graduação em Educação (Brasil)

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Grupo de Pesquisa Aprendizados ao Longo da Vida

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-5362-6694

E-mail: fernandamsaquino@gmail.com

Profa. Dra. Rosa Aparecida Pinheiro

Universidade Federal de São Carlos (Brasil)

Departamento de Educação e Ciências Sociais

Programa de Pós-Graduação em Educação

Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Narrativas Educativas, Formação e Trabalho Docente - NEPEN

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-4910-4842

E-mail: rosapinheiro115@gmail.com

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