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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.57 no.52 Natal abr./jun 2019  Epub 13-Sep-2019

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2019v57n52id17150 

Artigos

Educação e Democracia: os desafios das Universidades Públicas1

Education and Democracy: the challenges of Public Universities

Educación y Democracia: los desafíos de las Universidades Públicas

Maria da Conceição de Almeida1 
http://orcid.org/0000-0003-1850-5288

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)


Resumo

O artigo expõe alguns cenários das sociedades atuais no que diz respeito à universalização do sistema capitalista por meio da imposição de um modelo monocultural e produtivista (Vandana Shiva; Claude Lévi-Strauss; Isabelle Stengers). No interior desse processo, a educação formal e a gestão acadêmica dos conhecimentos e das ciências têm se distanciado de seus ideários mais nobres no que tange a uma formação integral dos cidadãos: o cultivo da inteligência e da criatividade para imaginar e construir um mundo mais justo e marcado pela diversidade de formas de ser e viver. Somente pela recusa ao modelo empresarial-produtivista, que compromete a imaginação radical (Nuccio Ordine; Norval Baitello Júnior), as universidades públicas poderão reencontrar o lugar que as distingui das universidades-empresas. As universidades públicas podem e devem ultrapassar o processo exclusivamente técnico-científico de formação para o mercado que leva a uma regressão da democracia (Edgar Morin).

Palavras-chave: Instituições Federais de Ensino Superior; Democracia; Educação; Complexidade

Abstract

The article exposes some scenarios of current societies regarding the universalization of the capitalist system through the imposition of a monocultural and productivist model (Vandana Shiva; Claude Levi-Strauss; Isabelle Stengers). Within this process, formal education and academic management of knowledge and science have distanced themselves from their noblest ideals as regards the integral formation of citizens: the culture of intelligence and creativity to imagine and build a fairer world happen and marked by the diversity of ways of being and living. Only by rejecting the business-productivist model, that compromises the radical imagination (Nuccio Ordine; Norval Baitello Júnior), public universities will be able to find the place that distinguishes them from university-companies. Public universities can and must overcome the exclusively technical-scientific process of market formation that leads to a regression of democracy (Edgar Morin).

Keywords: Federal Institutions of Higher Education; Democracy; Education; Complexity

Resumen

El artículo expone algunos escenarios de las sociedades actuales en lo que se refiere a la universalización del sistema capitalista por medio de la imposición de un modelo monocultural y productivista (Vandana Shiva; Claude Lévi-Strauss; Isabelle Stengers). En el interior de ese proceso la educación formal y la gestión académica de los conocimientos y de las ciencias se han distanciado de sus idearios más nobles en lo que concierne a una formación integral de los ciudadanos: el cultivo de la inteligencia y la creatividad para imaginar y construir un mundo más justo y marcado por la diversidad de formas de ser y de vivir. Solamente por el rechazo al modelo empresarial-productivista, que compromete la imaginación radical (Nuccio Ordine; Norval Baitello Júnior), las universidades públicas podrán reencontrar el lugar que las distingue de las universidades-empresas. Las universidades públicas pueden y deben superar el proceso exclusivamente técnico-científico de formación para el mercado que conduce a una regresión de la democracia (Edgar Morin).

Palabras clave: Instituciones Federales de Enseñanza Superior; Democracia; Educación; Complejidad

Para começar

No atual cenário brasileiro (e planetário), nada mais pertinente do que o tema “Educação e Democracia” sugerido pela ANPED e acolhido para o Seminário de Avaliação e Planejamento do CE deste ano de 2019. Pelo que entendi do colega Jeferson, esta mesa deveria se ater a uma reflexão mais paradigmática e alargada sobre o tema “Educação e Democracia: os desafios da universidade pública”, de modo a nutrir as diversas atividades de natureza mais pragmática que aconteceram nesses quatro dias.

A partir desse entendimento, compartilho algumas reflexões que julgo importantes para problematizar a missão e os desafios das universidades públicas na regeneração da cultura democrática tão enfraquecida nos tempos atuais.

Para ultrapassar a ‘civilização da beterraba’

Na sua crítica contundente aos descaminhos da ocidentalização do mundo e a imposição de um padrão cultural único, Claude Lévi-Strauss disse certa vez que poderíamos chegar um dia a ter que nos servir de um único cardápio, um único prato. Chamou a isso de “civilização da beterraba”. Como se fosse um visionário, o filósofo e antropólogo prefigurou o que vivemos hoje. Chamemos de americanização ou de ocidentalização do mundo, estamos vivendo hoje a imposição, consolidação e expansão de um cenário esquisito e perverso: somos todos levados a conjugar cultura, ciência, história no singular. O projeto capitalista, que de forma persistente e obstinada investe na consolidação da educação nos modelos do mercado, constitui uma regressão cultural no que se refere à formação integral do homem. Escutamos repetidamente que atualmente vivemos na “sociedade do conhecimento” quando, de fato, todas as sociedades humanas foram e são sociedades do conhecimento.

Por outro lado, nas sociedades modernas, a educação formal tem sido identificada como a chave, o caminho e a senha para a construção de um novo horizonte social. Essa avaliação é em parte desmedida e ufanista, além de cobrar das instituições educacionais, dos professores e estudantes uma missão que excede às suas possibilidades. Por outro lado, a ideia de que a educação formal é a responsável maior pelos destinos do mundo exime as outras instâncias políticas e sociais de suas responsabilidades com a idealização e construção de outra sociedade - mais justa e igualitária.

Uma avaliação que não devemos julgar necessariamente pessimista dá conta de que, diante dos descaminhos da civilização atual, não há retrocesso possível - nem ecológico, nem propriamente humano e cultural. Essa é a posição da filósofa da ciência, a belga Isabelle Stengers, em seu livro No tempo das catástrofes (2015).

Longe, entretanto, de sugerir que cruzemos os braços, e valendo-se de pensadores como Gilles Deleuze, Félix Guattari, Michel Foucault e Karl Marx, Isabelle sugere argumentos e estratégias políticas que ainda podem reduzir os efeitos de uma catástrofe final. São essas as principais estratégias sugeridas por ela: a) dizer a verdade ao poder; b) recusar a concepção segundo a qual os governantes são nossos representantes. Num tom irônico exemplar, diz que nosso sentimento em relação aos governantes deve ser de “piedade”, numa alusão explícita a desclassificá-los; c) negar o estatuto de verdade aos conceitos de progresso, desenvolvimento sustentável, entre outros. Para Stengers, em vez de aceitarmos o lugar de crítica ao desenvolvimento e defendermos o “decrescimento”, devemos assumir o lugar de “opositores ao crescimento”; d) recusar, mesmo criticamente, o lugar de interlocutores dos empresários e seus prepostos técnicos. Por fim, e como argumento central, sugere restituir à ciência o seu dever e o seu poder de nomear as coisas e os fenômenos: “Nomear não é dizer a verdade, e sim atribuir àquilo que se nomeia o poder de nos fazer sentir e pensar no que o nome suscita” (STENGERS, 2015, p. 37).

Para a autora, é fundamental que procedamos ao que ela chama de “uma operação pragmática”, com vistas a enfrentar a “lenda dourada” do capitalismo construída pela trindade “Empresário-Estado-Ciência”, que se constitui nas “três cabeças de um mesmo monstro” (STENGERS, 2015, p. 37, 60, 61).

Esses são alguns itens de uma agenda que Isabelle cobra dos cientistas, educadores, intelectuais. Se é necessário que empreendamos “uma operação pragmática” de enfrentamento ao capitalismo, é crucial termos em vista uma operação paradigmática - sem a qual qualquer pragmatismo se torna ineficaz.

Assim, afastar-se da concepção de que os conceitos são ferramentas de trabalho puramente analíticas e inocentes e refletir sobre a força política dos conceitos são desafios para todos nós. Para exemplificar tal argumento, compartilho a seguir um exemplo que vivi de perto, e isso para demonstrar que nenhum conceito é inocente.

Nos anos do governo Sarney (1985 a 1990), procedeu-se a uma reformulação do conceito de “função social da terra” no Censo Demográfico. E por que era importante reformular esse conceito? Porque nessa época os trabalhadores rurais capitaneados e apoiados pelas forças progressistas dos sindicatos e líderes comunitários reivindicavam a reforma agrária. Enquanto alguns intelectuais estavam ao lado desses movimentos populares, outros intelectuais, de mãos dadas com os tecnocratas do governo federal, estavam tratando de reformular o conceito de função social da terra como uma estratégia eficaz para evitar a reforma agrária. Ou seja: enquanto alguns de nós estávamos com os trabalhadores reivindicando a distribuição das terras não cultivadas e mantidas como reserva de mercado, outros de nós trabalhavam ‘tecnicamente’ nos gabinetes e alamedas da Câmara e do Senado para calar a indignação social que se estendia pelas ruas do Brasil. E resolveram pela metamorfose de um conceito. Explico: pelos documentos que tratavam da matéria, a definição de terras passíveis de desapropriação e redistribuição resguardava para esse fim aquelas que caracterizassem latifúndios, mesmo que os lotes de terra não fossem conjugados e contínuos, mas pertencessem a um mesmo proprietário. Ora, quando se pôs uma transparência no mapa do Brasil, para saber quais terras seriam distribuídas aos trabalhadores rurais, percebeu-se que grande parte dessas terras, e no caso específico do Maranhão, eram terras pertencentes a José Sarney. O que fazer? Só uma coisa poderia ser feita para interditar a reforma agrária naquela época. Com destreza e talento criativo, os intelectuais que emprestavam sua inteligência ao poder modificaram o conceito de função social da terra. Passaram a ser consideradas passiveis de redistribuição apenas aquelas terras que se caracterizassem como latifúndio por sua extensão em continuidade. Como a palavra “contínua” substituiu a palavra “descontínua”, ficou mais uma vez abortada a reforma agrária em nosso país.

Assim como o conceito de função social da terra, outros tantos dos quais nos valemos como educação, formação, cidadania, diversidade cultural, gênero, inclusão, etc., precisam ser problematizados por nós como condição de fazer acontecer uma democracia das ideias e da ação.

Sociedade, Universidade e Educação

As culturas científica e humanista andam doentes e isso não parece ser um fenômeno estritamente local e nacional. Se essa afirmação faz sentido, somos nós, construtores privilegiados de narrativas sobre o mundo, quem devemos pautar e levar a cabo uma reflexão fundamental, corajosa e imaginativa. Não devemos nos omitir frente à inteligência tecnoburocrática do Estado, ávida por diagnósticos quantitativos e produtivistas, por planos de metas obscuros e, sobretudo, pelo esvaziamento de utopias realistas e fundadoras de futuros possíveis. Pautar essa reflexão e dar conta dela é tarefa nossa. E, mais do que isso, cada vez que pelas redes sociais participamos - mesmo que criticamente ou em oposição - das pautas impostas pelos tecnocratas da inteligência, estamos a legitimar ou não uma pauta que não é a nossa.

Por outro lado, a instituição universitária apresenta um estado de enfermidade difusa, como se fosse uma virose inespecífica e de difícil diagnóstico: fragmentação produzida por áreas de saberes não comunicantes; perda da hegemonia na produção de novos conhecimentos; primazia da exigência de produtividade a todo custo e em detrimento do bem pensar; pragmatismo que se consagra nos objetivos de formar profissionais para o mercado; secundarização do cultivo da inteligência; ensino a distância como protocolo que mal disfarça a sanha de incluir todos no mesmo e único código de decifração dos problemas do mundo; privatização homeopática das universidades públicas; e, sobretudo, a perda da autonomia universitária pela ingerência externa da esfera do jurídico em todas as atividades.

A descabida invasão do jurídico em todas as esferas da sociedade (até nos espaços mais fugazes) expressa a face necrosada da gestão do domínio político em sua dimensão ampliada. Para Morin, “Quanto mais técnica torna-se a política, mais regride a competência democrática” (MORIN, 2000, p. 19). Isso tem respingado na instituição universitária comprometendo uma ecologia das ideias e uma democracia cognitiva - base da democracia social. Nas palavras de Edgar:

[...] o processo técnico-científico atual - processo cego, aliás, que escapa à consciência e à vontade dos próprios cientistas - leva a uma grande regressão da democracia. Assim, enquanto o expert perde a aptidão de conceber o global e o fundamental, o cidadão perde o direito ao conhecimento. A partir daí a perda do saber, muito mal compensada pela vulgarização da mídia, levanta o problema histórico, agora capital, da necessidade de uma democracia cognitiva (MORIN, 2000, p. 19).

Estamos diante da inversão do papel da instituição universitária em relação à sociedade maior: em vez de se manter como um topoi capaz de gestar um ideário social, um modelo reduzido de conviver amorosamente na diferença e diversidade de ideias, as universidades, de modo geral, são acometidas por uma pedagogia do mimetismo que as amesquinha e fragiliza.

Esse mimetismo, agora também nutrido pela economia de mercado, se expressa da forma mais virulenta na construção do conhecimento. É disso que fala Vandana Shiva no livro Monocultura da mente (2003). Na sua crítica ao desastroso desenvolvimento econômico, diz Shiva que, ao invés de a fábrica seguir o exemplo da floresta (parcimônia, tempo de maturação lenta da vida), acontece o inverso: é imposto à floresta o modelo da fábrica - produção em série e sem limites.

Guardadas as devidas singularidades, esse parece ser o mimetismo entre a universidade e a gestão capitalista da sociedade. Para Nuccio Ordine (2016, p. 107), “[...] as instituições de ensino foram transformadas em empresas”. Aqui são consagrados os binômios universidade-empresa e alunos-clientes, conforme o título da segunda parte do livro A utilidade do inútil - um manifesto (2016). Nas palavras do filósofo italiano, “[...] no cerne dessa nova concepção, a tarefa ideal dos diretores e reitores parece ser especialmente a de produzir diplomados e titulados para inseri-los no mundo do mercado” (ORDINE, 2016, p. 107).

Quanto aos professores, Ordine expõe como que uma fotografia em preto e branco, por demais conhecida de todos nós:

Passam seus dias a preencher formulários, fazer cálculos, produzir relatórios (às vezes inúteis) para estatísticas, tentar enquadrar as rubricas dos orçamentos cada vez mais minguados, responder questionários, preparar projetos para obter míseros aportes, interpretar normas ministeriais confusas e contraditórias. Assim, o ano acadêmico corre veloz ao ritmo de uma incansável métrica burocrática que regula o funcionamento de conselhos de todo tipo (de administração, de departamento, de cursos de graduação e pós-graduação) e de intermináveis reuniões de assembleias e colegiados (ORDINE, 2016, p. 107).

No interior de um cotidiano assim, cabe a pergunta: ainda há lugar para a utopia democrática nas universidades? No interior de um cotidiano que dificulta, ou mesmo impede reflexões fundamentais, que dimensão pedagógica do difícil exercício democrático estamos a compartilhar com os estudantes? Para Ordine, nenhuma profissão poderia ser exercida de modo consciente se as competências técnicas que ela exige não estivessem subordinadas a uma formação cultural mais ampla, capaz de encorajar os alunos a cultivarem autonomamente seu espírito e a possibilitar que expressem livremente sua curiositas. Equiparar o ser humano exclusivamente com sua profissão seria um erro gravíssimo: em todo ser humano há algo de essencial que vai muito mais além de seu próprio “ofício”. Sem essa dimensão pedagógica, ou seja, totalmente afastada de qualquer utilitarismo, seria muito difícil, no futuro, continuar a imaginar cidadãos responsáveis, capazes de abandonar o próprio egoísmo para abraçar o bem comum, expressar solidariedade, defender a tolerância, reivindicar a liberdade, proteger a natureza, defender a justiça... (ORDINE, 2016).

Numa direção complementar à de Nuccio Ordine, Edgar Morin expressa suas ideias a respeito da relação entre a reforma do pensamento e a democracia. Daí porque reafirmo sempre que o pensamento complexo é uma politização do pensamento. Diz Edgar Morin:

A reforma do pensamento é uma necessidade democrática fundamental: formar cidadãos capazes de enfrentar os problemas da sua época é frear o enfraquecimento democrático que suscita, em todas as áreas da política, a autoridade dos expert, especialistas de toda ordem que restringem, progressivamente, a competência dos cidadãos. Estes são condenados à aceitação ignorante das decisões daqueles que se pressupõem sabedores, mas cuja inteligência é míope, porque fracionária e abstrata. O desenvolvimento de uma democracia cognitiva só é possível com uma reorganização do saber; e esta pede uma reforma do pensamento que permita não apenas isolar para conhecer, mas também ligar o que está isolado e nela renascer, de uma nova maneira, as noções pulverizadas pelo esmagamento disciplinar: o ser humano, a natureza, o cosmo, a realidade (MORIN, 2000, p. 103-104).

Uma pergunta trans-histórica poderia ser enunciada: será que a rotina fabril levada a cabo por nós, hoje, se assemelha em alguma escala aos cenários vividos por Thomas More quando, em 1516, idealizou outro mundo e publicou sua Utopia? ou quando Tommaso Campanela, em 1623, publicou Cidade do Sol?; ou ainda quando, em 1627, Francis Bacon tornou pública sua Nova Atlântida?

É importante resistir aqui à tentação em responder tais perguntas pelas vias de um historicismo ou de um sociologismo estreitos: ‘Ah, trata-se de contingências sócio-históricas distintas!’ Tal resposta negaria a força imaginativa radical das obras de Cornelius Castoriadis, especialmente As Encruzilhadas do Labirinto (em 6 volumes, de 1978 a 1999); a trilogia de George Balandier - O Contorno, A desordem e O Dédalo (vinda a público entre 1985 e 1994), e a tetralogia de Michel Serres - Hominescência, O Incandescente, Ramos e Narrativas do humanismo (publicadas no original entre 2001 e 2006). Talvez seja mais sensato admitir o crescente esgotamento do fluxo imaginativo provocado pelo ritmo maquínico do trabalho intelectual, o modelo volátil da sociedade da informação em rede, e o espírito quantitativo e empresarial das ideias que invadiram (por imposição de sobrevivência, ou por consentimento) as instituições universitárias.

Certamente, as ideias de preguiça, em Boris Cyrulnik, e de juvenilização, em Edgar Morin, poderiam servir de bons remédios para a enfermidade do pensamento universitário contemporâneo. Falemos disso, mesmo que rapidamente.

Boris Cyrulnik, em Memória de macaco, palavras de homem (1993), ao criticar a insuficiência dos métodos nas ciências, reconhece na preguiça uma qualidade importante para a construção do conhecimento científico. Diz ele: “Deduzir, explicar, concluir depressa demais são atitudes que o etólogo desconfia. O etólogo deve possuir uma qualidade fundamental: a preguiça”. (CYRULNIK, 1993, p. 68).

O que afirma ele para o etólogo pode ser expandido para a arte de pensar bem em todas as áreas de conhecimento.

Sobre a ideia de juvenilização, faço uma pequena digressão para melhor entendimento. De acordo com Edgar Morin, em O enigmado homem (1979), foram provavelmente os adolescentes hominídeos que, brincando com pedras e com sons, descobriram o fogo e inventaram as palavras. E mais. Para Morin, o estado de ser da adolescência, a princípio um intervalo biossocial entre a criança e o adulto, se amplia, com a nossa evolução, num estado criativo da condição humana. Nas suas palavras:

[...] certas características da adolescência, como a amizade, o prazer do jogo, o gosto pelo novo, até mesmo a aptidão inventiva, são mantidas cada vez mais na idade adulta e a juvenilização torna-se um fenômeno antropológico (MORIN, 1979, p. 75).

No livro Maio de 68: a brecha, livro que Morin compartilha a autoria com Claude Lefort e Cornelius Castoridadis, temos já a afirmação da pulsão criadora do adolescente.

Maio de 68 encarnou profundas aspirações, nutridas, sobretudo, pela juventude estudantil. Aspirações que os jovens sentem e das quais se esquecem quando são domesticados pela vida que os integra ao mundo. Aspirações de mais liberdade, autonomia, fraternidade, comunidade. Totalmente libertário, mas sempre com a ideia fraternal onipresente. Os jovens combinaram essa dupla aspiração antropológica que brotou em diferentes momentos da história. Creio que a importância histórica de Maio de 68 é grande por tê-la revelado. Maio de 68 é da ordem de uma renovação desta aspiração humana que reaparece de tempos em tempos e que ainda reaparecerá sob outras formas (MORIN, 2018, p. 17).

Em minha tese de doutorado (ALMEIDA, 2001), desloco esse fenômeno antropológico (a ousadia e o desejo de liberdade) para falar do professor, do pesquisador. Sugiro que a juvenilização é o estado de ser do intelectual e, por consequência, cabe a nós a liberdade e a ousadia da criação, tanto quanto a resistência aos interditos sociais, sejam eles de gênero ou propriamente políticos e sociais.

Cabe perguntar: estamos nós, professores e pesquisadores, cedendo a um perverso imperativo que nos faz passar da infância para a velhice sem deixar fluir a pulsante e bem-vinda desordem, criatividade e insubordinação que caracterizam a adolescência? Estamos nós impedidos de viver o que há de mais sublime na condição humana, ou seja, o direito de sonhar, de criar utopias? Como conciliar as propriedades da juvenilização e da preguiça com os desesperos produtivistas de mais artigos, mais pontuação, mais qualis? Como nós, educadores, estamos lançando mão de estratégias (de método, conceitual, de atitudes em sala de aula) capazes de metamorfosear o impulso de contestação e agressão dos jovens em ações de solidariedade, amizade, compartilhamento nas diferenças? Será que é suficiente os protocolos jurídicos para que aceitemos as diferenças, respeitemos os outros em suas diversas formas de ser, viver, amar?

Sintetizemos provisoriamente, e por meio de quatro sintomas, a enfermidade difusa pela qual passa o pensamento nas instituições universitárias.

  1. Insuficiência das interpretações científicas para compreender os complexos fenômenos e problemas da sociedade atual. Estamos diante de uma alternativa: ou borramos as fronteiras entre as disciplinas e áreas do conhecimento, ou permaneceremos cada vez mais míopes para compreender os complexos problemas da educação, da política, dos sujeitos, das intolerâncias e fobias sociais.

  2. Dissintonia entre os saberes escolares e universitários e a realidade que vivemos. Isto é, o fluxo da vida fora da academia é exponencialmente mais dinâmico e mutante do que as interpretações congeladas no ensino formal. Estamos diante de uma alternativa: ou as universidades públicas tomam para si o propósito de politizar o pensamento, as ciências e a educação ou não teremos um vetor de distinção entre as IES públicas e privadas.

  3. Deficiência do processo educacional. Os conhecimentos compartilhados nas escolas e universidade não correspondem a uma formação integral dos indivíduos. Por outro lado, os conhecimentos estritamente técnicos estão aquém daqueles que as empresas oferecem aos que ingressam no trabalho.

  4. Incipiente formação filosófica, ética e política. Essa deformação dificulta a criatividade, o espírito de responsabilidade social, o sentimento de cidadania, o cuidado com o patrimônio cultural que recebemos de presente das antigas gerações e, sobretudo, embota a faculdade para imaginar novos mundos, outras formas de ser e de viver.

Esses sintomas de fato já estavam em flutuação e foram explicitados ou intuídos por meio de cenários mais abrangentes, e por pensadores que, na concepção de Giorgio Agamben, podem ser chamados de “contemporâneos” - uma vez que foram e são capazes de enxergar o mundo para além das luzes do seu tempo.

Para isso, certamente, é fundamental sermos rigorosos, sem sermos rígidos; obstinados sem sermos obsessivos; ousados, sem sermos narcisistas e autocentrados.

Dito de outro modo, a intolerância cognitiva e a recusa em admitir vizinhanças, conexões, dependências e complementaridades entre os territórios disciplinares das ciências são incompatíveis com os princípios da autocrítica e da razão aberta esperados do conhecimento científico. Interrogar as nossas verdades é necessário, mesmo que seja difícil e às vezes perigoso. Michel Foucault compreendeu muito bem o preço a pagar pelo exercício intelectual audaz e insubmisso, quando afirmou que, por vezes, pensar se torna um “ato arriscado”. Na mesma direção, Gilles Deleuze reafirma as palavras de Herman Melville que se vale da metáfora dos mergulhadores para falar do pensamento. Diz Melville:

[...] gosto de todos os homens que mergulham. Qualquer peixe pode nadar perto da superfície, mas é preciso ser uma grande baleia para descer a cinco mil milhas ou mais... Desde o começo do mundo os mergulhadores do pensamento voltam à superfície com os olhos injetados de sangue (MELVILLE apud DELEUZE, 1992, p. 129).

Ao nome de Isabelle Stengers podemos acrescentar outros tantos, como Serge Latouche, Mia Couto, Daniel Munduruku - além dos Manifestos das artes que, por vezes, disseram a verdade ao poder de forma mais direta, corajosa, lúdica, radical e estética do que os livros e artigos acadêmicos: Dadá, Antonin Artaud, Aby Warburg, o Manifesto Surrealista, o Manifesto Antropofágico e daí por diante.

Para caminhar em direção à reinvenção da universidade como espaço de reabilitação da difícil prática democrática e de um imaginário fundador e projetivo, talvez seja necessário desnudar a ciência de seu ilusório jaleco da razão patológica que, de fato, ela nunca vestiu quando foi construída por pensadores insubmissos e inaugurais.

Com esse propósito, escutemos Norval Baitello Júnior, Henri Atlan, Freeman Dyson e George Steiner.

Sugiro que imaginemos, por meio de fragmentos das ideias desses pensadores, que estamos a identificar substâncias capazes de produzir um medicamento que cure - ou pelo menos reduza - as causas difusas da enfermidade de um pensamento ressecado de imaginação imaginante. A quantidade de cada substância para compor o medicamento fica por conta de cada um de nós. Essa alquimia pode vazar e dar novas texturas políticas ao planejamento de nossas metas, propósitos, objetivos e atividades no nosso cotidiano acadêmico.

Para uma imaginação radical e menos tecnológica

Em seu último livro A carta, o abismo, o beijo: os ambientes de imagens entre o artístico e o midiático (2018), Norval Baitello é enfático ao afirmar:

Para captar o impreciso e o crepuscular, de nada adianta os modernos monstros da mais avançada tecnologia que desvendam tudo, queimando os delicados objetos da noite, desnudando e desfazendo seus mistérios, quebrando os encantos e encantamentos das cenas crepusculares (BAITELLO JÚNIOR, 2018, p. 42).

Se o dia é necessário, também o são a noite e o crepúsculo. E se a noite tem sido vista como o reino do sinistro e do amedrontador, foi porque o homem fugiu de si mesmo no processo civilizatório invasivo do império da luz. As imagens noturnas são interiores, enquanto as diurnas estão fora de nós (BAITELLO JÚNIOR, 2018, p. 41).

[...]

A perda gradual da luz diurna traz consigo o ganho de outra luz, sem dúvida mais complexa, que é a luz crepuscular, a luz que não se vê com os olhos, mas que é perceptível apenas aos outros sentidos do homem, (como) a audição, o tato, o olfato, o paladar e a propriocepção. E a perda total da luz do dia traz consigo, por exemplo, o ganho infinito do ouvir atento e do tato cuidadoso e quente (BAITELLO JÚNIOR, 2018, p. 41).

[...]

Quanto mais enxergamos, mais nos tornamos reféns da luz do dia. Quanto mais vemos, mais nos tornamos ávidos pelas imagens e dependentes delas. Quanto mais olhamos para as imagens externas, menos enxergamos nossas imagens internas e menos ainda geramos nossas próprias imagens (BAITELLO JÚNIOR, 2018, p. 42).

Em A serpente, a maçã e o holograma (2010), Baitello Júnior narra alguns dos polêmicos Seminários do Celeiro criado por Harry Pross numa aldeia do sul da Alemanha entre os anos de 1984 e 1993. Interessa sobremaneira a descrição que ele faz de um desses Seminários:

Uma das polêmicas mais notáveis e emblemáticas ocorreu entre Flusser e Romano. Vilém Flusser, discorrendo sobre os encantos dos novos recursos técnicos a serviço da comunicação, afirma: “Já não existe nenhuma diferença entre uma maçã e o holograma de uma maçã”. Vicente Romano, opositor declarado e ferrenho da visão encantada pelos novos meios e suas consequências, imediatamente responde: ‘A partir deste justo momento podemos celebrar um alegre e prazeroso cessar-fogo em nossas renhidas disputas e divergências. Está solucionado definitivamente o motivo para as (nossas) desavenças”, diz Romano, e conclui: ‘você pode comer o holograma que eu fico com a maçã’. (BAITELLO JÚNIOR, 2010, p. 64-65).

Por meio de perspectiva distinta, Henri Atlan, em O útero artificial (2006), e Freeman Dyson, em Mundos imaginados (1998), reafirmam e aprofundam o mesmo argumento do parasitismo mútuo entre ciência, mito e ficção. Para Atlan, “O mito e a ficção antecipam largamente, pela imaginação, as produções mais espantosas, presentes e futuras, da ciência e da técnica” (ATLAN, 2006, p. 26). Por sua vez, Dysson confessa: “Descobri que a ficção científica é mais esclarecedora do que a ciência para compreender como a tecnologia é vista por pessoas situadas fora da elite tecnológica” (DYSON, 1998, p. 75)

As considerações de Atlan e Dyson se atêm à ressonância imaginativa entre duas importantes obras da história da cultura científica e humanística. Cito: o pequeno livro, intitulado Dédalo ou a ciência e o futuro (1923), do geneticista J. B. S. Haldane, e o romance de ficção Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley. Não se constituindo uma ressonância imaginativa fortuita, é mais correto afirmar: as ideias projetivas do geneticista Haldane sobre as ciências foram, nas palavras de Atlan, “a fonte de inspiração direta” (Atlan, 2006, p. 21) para a obra ficcional Admirável mundo novo. “Nove anos depois de Dedalus, Aldous Huxley, que era seu amigo, publicou seu Admirável mundo novo”, completa Freeman Dyson (1998, p. 94).

Onde estaria o limite entre ciência e ficção? Tudo indica que as fronteiras entre ciência, utopia, mitos e ficção sempre estiveram borradas! Se o mito de Dédalo é acionado ao mesmo tempo pela biologia e pelo romance de ficção no caso em questão, não é, entretanto, difícil compreender conforme nos assegura Atlan, que Haldane apresenta não uma ficção, mas um conjunto de predições sobre a evolução das ciências e das técnicas e sobre os efeitos desta evolução nas sociedades humanas, nos costumes e nas crenças (ATLAN, 2006).

Estamos aqui, parece, diante de um fluxo imaginativo, ficcional e utópico não domesticado e sempre disposto a emergir na cultura científica. O mais curioso, no caso da ressonância entre Haldane e Huxley, é que não é a ficção que serve de iluminação para a ciência, mas o inverso: é a ciência que serve de fonte para o imaginário da ficção.

Dito de outro modo, podemos ser parcialmente otimistas no que diz respeito ao lugar das utopias nas universidades. É isso que se pode depreender dos argumentos de George Steiner em Nostalgia do Absoluto (1974). Vejamos.

Logo nas primeiras páginas do livro, o autor se refere a uma “secagem” das fontes mítico-religiosas na “[...] nossa visão ocidental da identidade humana e da nossa função no mundo” (STEINER, 2003, p. 12). “Em maior ou menor grau, o núcleo religioso do indivíduo e da sociedade foi degenerado até se transformar numa convenção social” (STEINER, 2003, p. 12).

Para Steiner, entretanto, um núcleo mítico poderoso habita o coração de três grandes teorias sociais consagradas pelas ciências humanas. O marxismo, o estruturalismo e a psicanálise são para ele, não propriamente teorias científicas, mas se constituem em três grandes mitologias que, de certa forma, repõem “[...] a secagem que afetava o próprio centro da moral e da intelectualidade ocidentais” (STEINER, 2003, p. 12). E mais.

As grandes mitologias que têm vindo a ser construídas no Ocidente desde o inicio do século XIX não são apenas tentativas de preencher o vazio deixado pela decadência da teologia e do dogma cristãos. São em si, uma espécie de teologia substituta (STEINER, 2003, p. 14, grifo do autor).

Continua George Steiner:

[...] para merecer o estatuto de mitologia, no sentido que tentarei dar-lhe, uma doutrina ou um sistema de pensamento de natureza social, psicológica ou espiritual deverá satisfazer certas condições (STEINER, 2003, p. 13).

São essas, para ele, as três condições para um sistema de ideias ser considerado uma mitologia: a) ter pretensões de totalidade; b) expressar uma “revelação ou diagnóstico súbito”; e c) desenvolver “[...] a sua própria linguagem, seu próprio idioma característico, o seu próprio conjunto de imagens emblemáticas, insígnias, metáforas, cenários dramáticos” (STEINER, 2003, p. 13-14).

Além de satisfazer essas condições, as mitologias devem se alimentar de uma referência simbólica fundadora - para Steiner, em Marx, é a figura de Prometeu; em Lévi-Strauss é o Jardim do Éden; e em Freud é Moisés.

Se abrimos mão das verdades ortodoxas da ciência - sobretudo das noções de objetividade e da primazia da razão - compreenderemos as reflexões de George Steiner não como uma desclassificação do marxismo, do estruturalismo e da psicanálise, mas como um elogio ao pensamento mais imaginativo e retotalizador próprio às Grandes Narrativas sobre o mundo, a sociedade e a espécie humana.

Para restaurar a imaginação nas Universidades Públicas

Quando se está disposto a problematizar as certezas e verdades unitárias das ciências; quando se abre mão do conforto das dogmáticas convicções teóricas e disciplinares que agem como ansiolíticos do pensamento; quando a vontade de saber, longe da arrogância, recusa a vontade de poder; e, sobretudo, quando se concebe a incerteza, o inacabamento e a incompletude como princípios de um conhecimento que dialoga com o imponderável e os mistérios do mundo, aí estão em ação o pensamento complexo, uma ciência da complexidade, uma atitude interrogativa de natureza transdisciplinar.

Como educadores, podemos nos cobrar o desafio de fazer diversificar nossas experiências noológicas e nossos estados do ser, tanto quanto os estados de ser e pensar dos estudantes com os quais convivemos. Dessa parceria e cumplicidade na experimentação cognitiva, certamente advirão, com mais fluxo, desvios individuais e coletivos grávidos de UTOPIAS que nos curem da enfermidade do ressecamento da imaginação. Conforme lembra Edgar Morin no Método III, “[...] toda renúncia ao conhecimento empírico/técnico/racional conduziria os humanos à morte; (igualmente) toda renúncia às suas crenças fundamentais desintegraria a sociedade” (MORIN, 1989, p. 144).

Os horizontes do pensamento complexo supõem o compromisso com a ‘civilização das ideias’, a democracia e a refundação de uma humanidade por meio das quais homens, mulheres e crianças sejam mais felizes. Tal projeto supõe recusas, imaginação, ousadia e utopia por parte das universidades públicas. Talvez nisso resida a filigrana que nos distingue das Universidades-Empresas.

É crucial abrirmos mão de uma formação prioritariamente técnica para, com vigor, alimentar sonhos de futuro com justiça social, igualdade na diversidade, democracia. Nossas salas de aula poderiam facilitar a experimentação de estratégias de pensar e imaginar sociedades diferentes das nossas.

Talvez assim fosse mais fácil às crianças e aos adolescentes compreenderem que nada está dado à partida; que a sociedade se metamorfoseia constantemente; e que, como inventores de utopias - esse oxigênio noológico que nos transporta para um futuro imaginado e desejado - podemos sim fazer de nossos corpos veículos de acontecimentos capazes de desviar a humanidade da barbárie civilizatória que está em construção; que, por outro lado e ao mesmo tempo, a palavra não basta, não substitui a ação e a experiência, isto é, a experimentação corpórea de uma semântica do bem viver que pode estar adormecida nos porões do inconsciente.

O modelo fragmentado de ciência dá sinais de esgotamento, desde meados do século passado, mas ainda resiste. Não podemos nos omitir diante da formulação de utopias empresariais e mercadológicas em franca expansão e realização. Refiro-me às predições de um futuro marcadamente virtual, em rede, digital. Em outras palavras, o sistema capitalista está a nos impor a consagração da “escalada da abstração”. Norval Baitello Júnior sumaria assim (por meio das ideias de Vilém Flusser) essa perspectiva de negação do espaço, da matéria, do corpo:

A escalada da abstração, ou a escada da abstração elaborada por Flusser parte, portanto, da percepção do espaço e das formas de ocupação do mundo. A cada degrau ocorre uma redução, uma perda espacial - a cada passo reduz-se uma de suas dimensões. Abstrair significa subtrair (BAITELLO JÚNIOR, 2010, p. 53).

Vivemos sob o signo da incerteza, todos sabemos. Não é possível predizer com exatidão o que acontecerá com as Instituições de Ensino Superior, com o mundo e conosco - em nenhum domínio. Daí a força das utopias - para o bem ou para o mal. As atuais e insistentes predições de uma sociedade absolutamente em rede e a completa resolução de todos os problemas humanos pela mediação da hiper-tecnologia respondem aos ilusórios sonhos da razão embrutecida e do cálculo.

Já se disse que uma mentira, de tão repetida que é, se torna verdade até para o próprio narrador. Isso vale igualmente para a projeção de sonhos de futuro. Podemos dizer que o enfraquecimento da imaginação radical e das utopias nas universidades públicas deixa um vazio que tem sido preenchido pelo perverso e injusto sistema capitalista.

Em síntese, é urgente regenerar o topoi de pensamentos mais imaginativos, criativos, utópicos. É urgente pautar uma reflexão fundamental que ultrapasse as pautas tecnocratas indigentes, insuficientes, misteriosas, empobrecidas e perigosas que nos são impostas pelas mídias, pela classe empresarial e, sobretudo, pelos discursos fanáticos, estéreis e histéricos. É urgente que as universidades públicas assumam a missão de politizar o pensamento. E isso até mesmo para que as ciências e a educação possam fazer jus ao lugar de destaque que ocupam nas sociedades (sobretudo as ocidentais) e cumpram o que se espera de sua função social: dizer a verdade ao poder; instigar um pensar bem; fazer das ciências e das universidades instrumentos capazes de restaurar práticas sociais, pessoais e cognitivas mais libertárias e democráticas.

1Palestra em Mesa Redonda na Abertura do Seminário de Avaliação e Planejamento do Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 5 fev. 2019.

Referências

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Recebido: 15 de Fevereiro de 2019; Aceito: 18 de Março de 2019

Profa. Titular Maria da Conceição de Almeida

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM/UFRN)

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-1850-5288

E-mail: calmeida17@hotmail.com

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