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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.57 no.54 Natal out./dez 2019  Epub 10-Fev-2020

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2019v57n53id18235 

Artigos

A educação rural concebida por Renato Sêneca Fleury em meados da década de 1930

The rural education conceived by Renato Sêneca Fleury in the mid-1930s

La educación rural concebida por Renato Sêneca Fleury a mediados de la década de 1930

Macioniro Celeste Filho1 
http://orcid.org/0000-0001-8798-9891

1Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Brasil)


Resumo

O artigo estuda a concepção de educação rural formulada por Renato Sêneca Fleury em meados da década de 1930. Autor de vasta obra didática, não via contradições entre a educação escolarizada no campo e os princípios de educação ativa da Escola Nova. Assim, a sua abordagem constitui-se como possibilidade interpretativa de uma Escola Nova rural. É objetivo do atual trabalho apresentar analiticamente as propostas educacionais sobre a educação rural brasileira, envolvendo o homem do campo, concebidas por Renato Fleury. Os procedimentos metodológicos utilizados privilegiaram a análise de sua principal obra teórica sobre o tema, o livro Educação rural, de 1936. Com propósitos ilustrativos, o artigo exemplifica como isto ocorreu em trechos do instrumento de letramento publicado por ele em 1935, o livro Na roça: cartilha rural para alfabetização rápida. Os textos de outros autores que estudaram a produção de Renato Fleury subsidiaram a análise aqui executada.

Palavras-chave: Educação rural; História da educação; Cartilha de alfabetização; Escola Nova no campo

Abstract

The article studies the conception of rural education formulated by Renato Sêneca Fleury in the mid-1930s. Author of a vast didactic work, he saw no contradiction between school-based education in the countryside and the principles of active education of the New School. Thus, his approach constitutes the interpretative possibility of a rural New Education. The objective of the present work is to present analytically the educational proposals about the Brazilian rural education, involving the country man, conceived by Renato Fleury about. The methodological procedures used here favored the analysis of his main theoretical work on the subject, the book Rural education, of 1936. For illustrative purposes, the article exemplifies how this occurred in excerpts of the literary instrument published by Renato Fleury in 1935, the book In the countryside: rural booklet for fast literacy. Texts of other authors who studied the production of Renato Fleury subsidized the analysis performed here.

Keywords: Rural education; History of education; Literacy booklet; New School in the countryside

Resumen

El artículo estudia la concepción de educación rural formulada por Renato Sêneca Fleury a mediados de la década de 1930. Autor de vasta obra didáctica, no veía contradicciones entre la educación escolar en el campo y los principios de educación activa de la Escuela Nueva. Así, su enfoque constituye una posibilidad interpretativa de una Escuela Nueva rural. El objetivo del presente trabajo es presentar analíticamente las propuestas educativas sobre la educación rural brasileña, involucrando al hombre rural, concebido por Renato Fleury. Los procedimientos metodológicos utilizados privilegiaron el análisis de su principal obra teórica sobre el tema, el libro Educación rural, de 1936. Para fines ilustrativos, el artículo ejemplifica cómo esto ocurrió en extractos del instrumento de alfabetización publicado por él en 1935, el libro En el campo: cartilla rural para la alfabetización rápida. Los textos de otros autores que estudiaron la producción de Renato Fleury subsidiaron el análisis aquí ejecutado.

Palabras clave: Educación rural; Historia de la educación; Cartilla de alfabetización; Escuela Nueva en el campo

Introdução

Em meados da década de 1930, o educador e teórico da educação rural Renato Sêneca Fleury publicou uma importante contribuição didática à escolarização do meio rural brasileiro. Foram lançados, em 1935, Na roça: cartilha rural para alfabetização rápida. E, em 1936, os três livros de leitura complementares a esta cartilha, assim como o livro Educação rural, que expunha as bases teóricas e de concepção de escolarização campesina idealizada pelo autor nessas obras. Todos pela editora Melhoramentos.

É propósito do atual trabalho apresentar de que maneira Renato Fleury, um destacado produtor de materiais didáticos, concebia a educação rural brasileira. Proveniente do magistério rural, professor de grupo escolar interiorano, diretor de ginásios em importantes cidades paulistas e articulado com uma editora consolidada na publicação de livros destinados à escolarização infanto-juvenil, este escritor e docente é exemplar no que o pensamento educacional paulista pretendia para o homem do campo. É objetivo desse trabalho apresentar analiticamente as propostas de educação rural formuladas pelo autor. Para tanto, será privilegiado o estudo de seu livro Educação rural, de 1936. Os procedimentos metodológicos de análise desta obra serão acompanhados de interlocução com outros estudos sobre Renato Fleury e sua produção de material didático destinado à educação rural em meados da década de 1930.

Nascido em 1895, Renato Sêneca Fleury formou-se na Escola Normal de São Paulo em 1912. Lecionou, então, em diversas escolas rurais no interior paulista, tornando-se professor do Grupo Escolar de Sorocaba, em 1915. É a partir desta experiência no magistério que Renato Fleury publicou pela Companhia Melhoramentos seu primeiro livro didático em 1920, intitulado Quadros para o ensino intuitivo. Sua parceria com a Melhoramentos será mantida por muitos anos. Nessa editora, foi um dos organizadores de sua Biblioteca Infantil. Renato Fleury foi prolixo produtor de cartilhas de alfabetização e de livros didáticos. Escreveu literatura infantil, diversos artigos para jornais, livros de leitura, obras sobre personagens históricos e muitos outros materiais com enfoque na educação. O auge de sua produção didática ocorreu entre meados da década de 1930 e meados da década de 1940 (MESSENBERG, 2012). Seu maior sucesso editorial foi o livro de letramento com o título Na roça: cartilha rural para alfabetização rápida. Publicada pela Companhia Melhoramentos, essa cartilha teve, ao menos, 133 edições entre 1935 e 1957 (MESSENBERG, 2012). Depois de dirigir ginásios estaduais em São Carlos, Itu e Ribeirão Preto, Renato Fleury radicou-se em Sorocaba, na década de 1930, onde atuou como importante intelectual e educador. Em 1935 e 1936, quando da publicação dos livros sobre educação rural, o autor era professor da Escola Normal de Sorocaba. Renato Fleury faleceu em 1980.

Do campo para as cidades

A década de 1930 é marcada pelo temor do êxodo rural das populações campesinas em direção às nascentes cidades industriais. Esse fenômeno não ocorreu apenas no Brasil. Frente a tal situação, muitos intelectuais propuseram, então, que a educação rural fosse um dos instrumentos de fixação do agricultor no campo. Em 1936, a Conferência Internacional de Instrução Pública, ocorrida em Genebra, destacava que.

A Conferência Internacional de Instrução Pública considera que a classe camponesa constitui em diversos países uma reserva física e moral, cuja integridade deve ser preservada a fim de impedir o êxodo rural e o despovoamento do campo. As condições da civilização moderna e o progresso das técnicas agrícolas permitem estabelecer no campo uma vida melhor e mais confortável (BRASIL, 1965, p. 10).

Foi exatamente nesse mesmo ano de 1936 que Renato Fleury publicou seu livro Educação rural. Nele, o autor citou João Toledo para chamar a atenção sobre o êxodo rural no Brasil.

Começa, deste modo, a vida urbana a exercer decidida atração: tem encantos mais vivos, suscita emoções mais enérgicas. Aí talvez a causa de um êxodo manifestado no campo, nos últimos tempos, contrariando as tendências primitivas. Os que conseguem uma pequena economia vão estabelecer-se nas cidades; os rapazes que sabem ler procuram aí uma colocação qualquer (TOLEDO, 1925, p. 30-31).

Segundo Renato Fleury, o êxodo rural provocava a decadência econômica e moral dos povos que não conseguiam fixar o agricultor no campo.

O êxodo dos campos é fenômeno social que pode ser considerado fator preponderante da decadência dos povos. O progressivo abandono dos trabalhos agrários, que constituíram em todos os tempos a pedra angular das nações, o embasamento de sua grandeza, deve ser encarado sempre com o maior pessimismo, como sintoma alarmante de sombrio futuro (FLEURY, 1936, p. 5).

O autor elaborou uma visão bastante catastrófica do crescimento das cidades. Ele usou duas referências históricas da Antiguidade para ressaltar, dramaticamente, as consequências do êxodo rural. Tal êxodo teria sido responsável pela decadência das civilizações do Egito Antigo e também provocado a queda do Império Romano.

É sabido que o êxodo dos campos, responsável pela queda irremediável das grandes dinastias que floresceram às margens do rio Nilo, também responde pela decadência do Império Romano. Enquanto os nobres se dedicaram ao cultivo do solo, havido então no maior apreço e considerado sumamente honroso, tal como entre os povos orientais, Roma conservou seu esplendor e poderio. Mas quando esse mister passou definitivamente para as mãos do escravo, tornando-se desprezível e sendo tido como ocupação servil, deu-se a migração dos camponeses para as cidades, formaram-se os latifúndios e Roma não pode resistir (FLEURY, 1936, p. 6).

Para situar referências compatíveis de observação do êxodo rural no século XX, Fleury toma como exemplo os Estados Unidos contemporâneo.

No princípio do século presente havia, nos Estados Unidos, perfeito equilíbrio da balança demográfica, que acusava, para as zonas rurais, 50% da população total. Entretanto, a formidável expansão das indústrias, que se localizavam preferencialmente nas cidades, atraiu para elas grande parte da gente do campo, o que se tornou um problema verdadeiramente angustioso para a grande nação do norte. […] Hoje, nos Estados Unidos, o que mais se procura é radicar o homem do campo à terra, ao seu trato de chão, impedindo-se, pela educação rural, a deslocação dos trabalhadores agrários para as cidades (FLEURY, 1936, p. 5-6).

Se os Estados Unidos, importante paradigma de desenvolvimento nas primeiras décadas do século XX, estavam tentando fixar o homem do campo no mundo rural, seria de bom alvitre que o Brasil fizesse o mesmo.

Renato Fleury tinha aversão às metrópoles. Para o autor, eram lugares de depravação moral. Ele não as denominava assim, mas as grandes cidades eram, por excelência, o local da luta de classes, pois nelas os contrastes sociais se tornavam mais evidentes.

O urbanismo, flagelo da civilização, uma das maiores causas do desequilíbrio econômico das populações, fator de miséria que leva ao crime e aos delitos sociais, às revoluções, à anarquia, precisa ser resolvido no Brasil. Urbanizar, mas com limitações bem estudadas. Criar, porém, cidades monstros, com milhões de habitantes, é fomentar as desgraças das populações, com atirá-las à luta insana e ao trabalho mal remunerado; é afogá-las no ambiente físico deletério da atmosfera viciada, e no ambiente espiritual horroroso da depravação; é jogar o homem contra o homem, como inimigos irreconciliáveis, mercê da concorrência fatal e tremenda; é contrastar o rico e o pobre, o andrajo e a seda, a fome e as jóias, o porão imundo e o palácio luminoso; o trabalho pesado e o ócio que afronta; a honra e a prostituição, tudo ombro a ombro, nas avenidas, nos jardins, nas ruas, nos próprios templos religiosos! (FLEURY, 1936, p. 9-10).

A consequência apavorante do êxodo rural e o decorrente crescimento das cidades industriais era a proliferação das ideias revolucionárias e da ideologia comunista, também chamada pelo autor de “sovietismo”.

Os grandes conglomerados humanos, essas cidades imensas cujas populações ascendem a centenas de milhares, são os ninhos onde proliferam as ideias revolucionárias extremistas, que hão sacudido nosso próprio país, tão contrário, por sua índole visceralmente liberal-democrática, às ideologias rubras. […] Há, no campo, mais igualdade de condições sociais, que nas cidades se desnivelam chocantemente. […] O sovietismo é fruto deteriorado da revolta que tais desigualdades suscitam entre os desfavorecidos da fortuna. E é nas metrópoles que os contrastes se tornam chocantes, agravando-se momento a momento. Quando não chegaram ainda aos ouvidos do nosso homem da roça sequer as primeiras murmurações do comunismo, já o nosso operário da cidade conhece-lhe a ideologia e promove agitações, desde as greves até os conflitos armados que ensanguentam a pátria (FLEURY, 1936, p. 11-12).

Para Renato Fleury, a degradação moral das metrópoles, aliada à maior visibilidade dos contrastes sociais no mundo urbano, propiciariam a revolução comunista. Na década de 1930, este era um temor socialmente compartilhado pelas elites ocidentais. A Intentona Comunista ocorrera no ano anterior à publicação do livro citado. Portanto, o medo do comunismo no Brasil tinha motivos palpáveis. O que poderia conter o comunismo? O estímulo à agricultura e à preservação da pacífica tranquilidade do trabalho honesto do camponês, longe da depravação urbana.

Aos pendores urbanistas que continuam a desviar, aqui e algures, considerável porcentagem dos homens do campo para as atividades citadinas, é, pois, necessário contrapor, decididamente, por todos os meios, o sentimento de apego à gleba, de amor ao trabalho rural, de estima pela natureza. É preciso despertar nas gerações novas a simpatia pelas ocupações campesinas, a dedicação pelos animais, a admiração profunda pelos esplendores da natureza, o desejo de uma vida simples e calma, consagrada ao pacífico e nobilitante labor diuturno, ao ar livre, sem a enervante e perigosa agitação das metrópoles, e aos reconfortadores momentos de descanso e paz do corpo e do coração, indispensável a quem labuta e que o trabalho outorga ao honesto obreiro (FLEURY, 1936, p. 6-7).

Para o autor, é aí que se encontrava o papel a ser exercido pela educação rural. Impedir o êxodo rural não era visto por ele como uma questão econômica, mas, privilegiadamente, uma questão educacional:

A ruralização, que, em última análise, outra coisa não é senão impedir a migração do trabalhador agrário para as cidades, com desenvolver, nas populações, o pendor pelas atividades rurais, apresenta-se, evidentemente, como obra puramente educativa (FLEURY, 1936, p. 3).

A ação do magistério nas escolas rurais foi concebida pelo autor como importante arma para defender a democracia no Brasil e para conter a proliferação do comunismo no país.

Ante a ameaça extremista que pesa sobre o povo nacional, faz-se um sincero e nobre apelo ao magistério, pois mais uma vez se reconhece e proclama que a verdadeira arma de combate é a educação e só a escola vencerá o perigo, com impedir os efeitos da propaganda vermelha pela contrapropaganda e simultânea exaltação dos verdadeiros ideais democráticos (FLEURY, 1936, p. 25).

Renato Fleury tinha uma visão muito negativa das metrópoles. Percebia os contrastes sociais então existentes. No entanto, para o autor, isso era menos angustiante no campo. As diferenças cotidianas entre a vida de um próspero fazendeiro e um humilde agricultor, segundo sua percepção, eram pequenas. O fato não geraria cobiça ou inveja ao honesto camponês. Para que tal situação fosse preservada, era necessária a expansão e melhoria da educação rural. Tal processo educativo teria a função de proteger a cultura rural. Cultura como cultivo do campo e cultura como mentalidade camponesa. Na concepção orgânica de sociedade agrária do autor, essas duas faces da cultura estavam intrinsecamente entrelaçadas.

A escola rural

Fleury tinha uma visão orgânica da escola rural. Ela seria como uma célula social a interagir com a comunidade, assim como a célula humana permite a interação com os fluidos do organismo, condicionando uma vida saudável. Da mesma maneira que a membrana celular impede que substâncias tóxicas entrem no organismo, a escola rural protegeria a mentalidade campesina da absorção de ideias revolucionárias, típicas das grandes cidade.

Figure-se um filtro à entrada da escola. Por esse filtro ela absorve o que é útil e bom, captado no ambiente social a que serve; o que é inútil e mau não atravessa o filtro. A sociedade só pode penetrar na escola naquilo que tem de aproveitável, de necessário, suscetível sempre de aperfeiçoamento. O meio age, o organismo escolar reage, melhorando-o. Eis aí a escola no seu papel ativo, renovador, construtor. Já não lhe cabe a passividade em face das injunções do meio; nem lhe compete segregar-se deste, como quisto implantado no organismo coletivo, funcionando à parte, artificiosamente, sem corresponder às necessidades reais, mas criando necessidades fictícias, sobre bases abstratas, que em nada correspondem aos problemas da vida (FLEURY, 1936, p. 14-15).

Nessa concepção, a escola não propiciaria a saúde do organismo social se ela fosse um ente artificial, isolado da interação orgânica do meio comunitário. Nessa abordagem, situa-se a crítica que Fleury fez às Escolas Normais. Elas eram desconectadas do meio rural, funcionando à parte, criando necessidades fictícias, próprias do mundo urbano. Enfim, um quisto implantado no organismo coletivo campesino. Já que na época não era viável a criação orgânica de Escolas Normais rurais, ao menos se deveria ruralizar as Escolas Normais urbanas.

Não será tão necessário criar escolas normais rurais. Nas escolas existentes, mediante ligeiras modificações de matérias e programas, a criação de cursos de ruralismo dará os melhores resultados, uma vez que sejam elas dotadas de áreas suficientes para práticas agrárias. Essas áreas não precisam ser ao lado da própria escola, mas em qualquer ponto suburbano de fácil acesso, de vez que dentro das cidades será quase impossível obtê-las. […] Adaptem-se, pois, as escolas normais, ruralizando-as; delas sairão, proximamente, levas de educadores com formação genuinamente nacional, ou seja, com essa mentalidade ruralista, que é histórica, pois dela nasceu a pátria, que é nossa. E esse professorado, assim visceralmente ruralista, o que significa profundamente brasileiro, estará apto para ambientar as escolas populares que lhes forem confiadas, na cidade ou no campo, sempre lhes dando essa alma agreste que as populações citadinas também devem ter, porque se é preciso fixar o homem da roça à gleba não é menos necessário destruir na gente das cidades o fetichismo das avenidas (FLEURY, 1936, p. 41-42).

Deve-se ressaltar o uso que o autor fazia de conceitos como mentalidade ruralista, ambientar as escolas populares à alma agreste, destruir o fetichismo do mundo urbano. O êxodo para as cidades, e a inadequação da educação rural em contê-lo, eram vistos por Fleury como uma questão cultural.

No entanto, o autor percebia que a concentração de terras também contribuía para a migração para as cidades. Assim, embora propusesse que a educação rural fosse fundamental a manutenção do homem no campo, também defendia que uma melhor distribuição da posse da terra seria fundamental para conter o êxodo rural. Renato Fleury (1936), citando João Toledo, idealizava o campo como, preponderantemente, constituído por pequenos proprietários rurais.

A subdivisão das grandes propriedades rurais, em lotes, tornando fácil a aquisição de uma pequena área pelo colono, é talvez o melhor modo de fixação deste; a abertura de estradas de rodagem e a construção de estradas de ferro, com transportes rápidos e baratos, são outro meio de interessar o povo na cultura da terra; as comunidades e o embelezamento das moradias rurais, que as crônicas, as novelas, o jornalismo e a propaganda escolar podem favorecer, criando gosto e apego pelas coisas da natureza, suavizam a vida da roça. Se enveredássemos por este caminho, realizando tais melhoramentos, reavivaríamos nossas velhas tendências agrícolas e pastoris; os que viessem às cidades entregar-se-iam a novo gênero de vida, mas produtiva sempre, desafogando os orçamentos e os escritórios de intermediários de negócios. A terra é boa e pode produzir de tudo, para o consumo interno e para abarrotar os mercados estrangeiros. Só assim seremos verdadeiramente ricos e independentes (TOLEDO, 1925, p. 31).

Ao idealizar a posse da terra no Brasil entre pequenos proprietários, Fleury destacou a baixa remuneração paga ao professor rural. Existe uma ideia muito original na obra de Renato Fleury, a propriedade da terra se concentrava em posse de latifundiários. O professor rural não era remunerado de maneira condigna. Sua proposta era compensá-lo com lotes de terra. Esta é a conciliação das duas percepções de Fleury sobre o problema agrário brasileiro, o cultural e o econômico. Isto é, transformando o professor rural em pequeno proprietário de terras, seria viabilizada a permanência do professor no campo. Ele seria o exemplo a ser seguido na constituição de pequenos proprietários rurais. Com educação rural apropriada e pequenos proprietários camponeses, cessaria o êxodo rural e o campo poderia ser modernizado. Seria o início do sonho do meio rural brasileiro equacionado entre pequenos e médios proprietários.

Com remuneração quase sempre abaixo do medíocre para o professorado primário, o país só poderá contar com professorado abaixo do medíocre, cuja obra educativa, evidentemente, estará por sua vez também abaixo do medíocre. Ora, é o mais nítido sinal da estagnação mental do Brasil o fato de pagar miseravelmente ao educador primário. Enquanto essa situação não mudar, nosso problema educacional mais se agravará (FLEURY, 1936, p. 26).

O autor defende, então, que se remunerasse complementarmente os professores rurais efetivamente dedicados à educação campesina com a propriedade de pequenos lotes de terra. Propunha-se uma espécie de reforma agrária pactuada entre o Estado e os latifundiários.

E aqui lembramos, de passagem, a doação pelo Estado, de acordo com os municípios e os particulares, de áreas de terra cultivável ao professor rural, após certo número de anos de efetivo exercício, facultando-se-lhe meios para construção de casa própria; ou, pelo menos, a concessão de facilidades para adquirir uma propriedade. A radicação do colono assegura-se, principalmente, desde que se torne proprietário, ainda que modesto. Da mesma forma o professor se radicará no meio rural (FLEURY, 1936, p. 29).

Ao transformar o professor rural num pequeno proprietário de terras próximas à escola sob sua incumbência, com auxílio para a construção de sua moradia, ele efetivamente se fixaria no campo. Era uma abordagem divergente das fracassadas granjas escolares, propostas em 1933 pelo Código de Educação do Estado de São Paulo. No lugar do Estado, seria o professor, proprietário da terra e da sua moradia, a possibilitar a fixação docente no meio rural. Resolvida a permanência do professor no campo, o autor descreveu como deveria ser a educação rural.

As escolas rurais precisam ter feição puramente agrícola e prática; seus trabalhos devem ter por base a cultura da terra e a criação. Devem constituir-se em núcleos que orientem e promovam a realização dos interesses dominantes da zona a que servem, econômicos, higiênicos e sociais, a fim de valorizar o homem do campo, o sertanejo, o nosso caipira; e nacionalizar o filho do colono alienígena. […] Cercados para criações, campos de cultura, pequeninos bosques e pomares plantados pelas crianças, rudimentares oficinas de trabalhos manuais relacionados com as lides campesinas, museus organizados pelos alunos, excursões, combate a endemias, proteção a plantas e animais, implantação de hábitos sãos, aulas ao ar livre etc., eis ao acaso alguns pontos que demarcam nitidamente os rumos da educação rural. O trabalho manual, o cultivo de terras e ensaios de criação em geral (aves, abelhas, bicho da seda, coelhos etc.) serão atividades comuns a toda escola da roça, sem o que não haverá ensino rural (FLEURY, 1936, p. 39-40).

A escola rural, ao lidar com técnicas de cultivo agrícola e com oficinas de trabalhos manuais, realizaria as atribuições dela desejadas. Isto é, seriam satisfeitas as demandas econômicas, de saúde pública e de adequação social do camponês nativo, o caipira, simultaneamente à nacionalização dos descendentes dos imigrantes estrangeiros. Este seria o projeto de modernização do campo concebido pelo autor. Os princípios da educação ativa, foco privilegiado por Fleury em sua visão da Escola Nova, seriam os instrumentos de formação das novas gerações de pequenos agricultores. O camponês, através do trabalho, já se constituía como alguém ativo em sua relação com a terra. A Escola Nova rural sistematizaria de maneira mais eficiente tal relação. Modernização da produção agrícola, constituição de pequenos proprietários rurais, resolução dos problemas enfrentados cotidianamente pelos camponeses e a Escola Nova estavam intrinsicamente articulados na visão de Fleury sobre o papel a ser desempenhado pela educação rural. Tal modernização ocorreria através de um articulado plano de educação rural composto por cinco objetivos.

Finalidades da educação rural

Renato Fleury não teorizava a educação rural de maneira apenas abstrata. Ele produziu relevantes materiais didáticos imbuídos pela sua concepção das finalidades educativas que o campo necessitava. Foi um sucesso editorial. Como mencionado anteriormente, sua cartilha Na roça..., publicada desde 1935 pela Companhia Melhoramentos, contou com 133 edições até 1957. Renato Fleury estabeleceu claramente os objetivos da sua concepção de educação rural.

Esbocemos, agora, um ligeiro plano de educação rural. Os fins em vista são:

a) econômicos: fixação das populações rurais, aumento da produção e da riqueza;

b) higiênicos: saúde, conforto no lar;

c) técnicos e culturais: aperfeiçoamento dos métodos de trabalho e formação das elites agrárias;

d) cívicos: sentimento de brasilidade, tradições, deveres do cidadão;

e) morais: família, crenças religiosas, conduta moral (FLEURY, 1936, p. 75).

O plano educacional rural concebido por Renato Fleury consta das estratégias temáticas do material didático elaborado por este autor Segundo Elenira Garcia,

Percebe-se que o objetivo desta cartilha [Na roça...] ia muito além do que o autor revelou. O livro não cumpria apenas a função do ensino rápido e fácil de leitura, mas a cada lição tencionava incutir nas crianças valores, hábitos, que julgavam não estarem presentes no seu cotidiano. A seleção dos assuntos, as ilustrações, a organização, a forma simples como estabelece o diálogo com a criança integram-se na finalidade de incutir um modelo de organização da vida considerado sadio, producente e correto. É visível a exaltação ao trabalho e à higiene que se faz presente nas lições. […] Pautando-se na função social da escola rural - fixar o homem no campo - procurava-se engrandecer o trabalho braçal, a tranquilidade da vida campestre, a riqueza e a beleza da natureza. Nesse empreendimento, procurava-se disfarçar a representação preconceituosa do campo, do trabalho rural, buscando transmitir para aquela criança, através das lições, a importância daquele trabalho para a nação e tentando fazê-la acreditar que não havia preconceito contra aquele tipo de trabalho (GARCIA, 2006, p.144 e 146).

Conforme o plano de educação rural proposto por Renato Fleury, pode-se exemplificá-lo com algumas das lições da cartilha Na roça... São apenas alguns elementos sucintos encontrados no material didático elaborado pelo autor. Eles serviriam de fio condutor para o professor rural para que ressaltasse o papel dessa temática em suas aulas. Seria a escola rural e seu corpo docente que aprofundariam a abordagem educacional para o campo nas questões envolvendo a modernização das atividades agrícolas, segundo cinco propósitos.

Econômicos: fixação das populações rurais, aumento da riqueza, como consta na Figura 1:

Fonte: Fleury (1955, p. 27).

Figura 1 A fazenda 

Na visão de Fleury, não havia conflitos entre o grande proprietário de terras e o pequeno agricultor. Com a economia de recursos, o pequeno agricultor poderia se tornar um fazendeiro. A vida seria feliz fazenda.

Higiênicos: saúde, conforto no lar, como consta na Figura 2:

Fonte: Fleury (1955, p. 36).

Figura 2 O bicho-de-pé 

Na cartilha, há vários outros exemplos de prevenção a doenças e de recomendações quanto à higiene desejável ao homem do campo.

Técnicos e culturais: aperfeiçoamento dos métodos de trabalho e formação das elites agrárias, como consta na Figura 3:

Fonte: Fleury (1955, p. 28).

Figura 3 No galinheiro 

O pequeno agricultor era concebido pelo autor como um empreendedor que acumularia bons ganhos.

Cívicos: sentimento de brasilidade, tradições, deveres do cidadão, como consta na Figura 4:

Fonte: Fleury (1955, p. 47).

Figura 4 Nossa terra 

Para Renato Fleury, os imigrantes estrangeiros e os brasileiros natos eram todos equivalentes, desde que trabalhassem muito e respeitassem a lei. Um dos trabalhos mais úteis ao Brasil era o cultivo dos campos.

Morais: família, crenças religiosas, conduta moral, como consta na Figura 5:

Fonte: Fleury (1955, p. 44).

Figura 5 O trabalho 

O trabalho no campo foi apresentado por Renato Fleury como idílico, capaz de propiciar a boa formação moral do agricultor. Estes cinco exemplos da cartilha Na roça... servem como ilustração da proposta de educação rural e sua apresentação em materiais didáticos, elaborados pelo autor.

Educação rural e Escola Nova

Segundo uma das principais estudiosas da cartilha Na roça..., Cyntia Messenberg (2012, p. 74), “[...] em todas as referências de textos ou em todos os livros que localizei, escritos por Renato Fleury, consta na capa, a informação ‘Orientação do Prof. Lourenço Filho’.” Foram 21 livros com adaptações de contos de fada e folclóricos, sobretudo orientais, feitas por Renato Fleury. Messenberg se referia à Biblioteca Infantil, de 100 volumes, da Companhia Melhoramentos, da qual Lourenço Filho era o editor. No livro Educação rural, Renato Fleury cita diretamente Lourenço Filho como a base de seus postulados sobre o papel da escola no campo. Foi sob supervisão de Lourenço Filho que a Melhoramentos editara em 1935 a cartilha Na roça... Assim também, em 1936, os três livros de leitura complementares a esta cartilha e o livro Educação rural. Isso demonstra uma filiação editorial e intelectual de Renato Fleury a Lourenço Filho. Este apadrinhamento persistirá por décadas. O livro de Renato Fleury (1953), Proezas na roça, ganhou o primeiro prêmio Jabuti de Literatura Infantil, em 1959. Esse livro teve o prefácio escrito por Lourenço Filho. Messenberg (2012) destacou que

Renato Fleury teve seu livro prefaciado por Lourenço Filho, mostrando novamente a proximidade e o contato que tinha com ele. Segundo Lourenço Filho, no prefácio que escreveu, em 1953, Proezas na roça: “Pertence a uma espécie de narrativas, que se vão tornando raras, em que o escritor põe muito de sua vida, entretecendo-a, porém de natural e sentida poesia. [...] Há um tema central neste livro, à primeira vista, tão despretensioso: é o de profundo desequilíbrio entre a economia rural e a dos meios urbanos, os quais, com o seu ilusório esplendor, a tantos jovens arrasta para uma existência medíocre se não miserável. Por que não alertá-los, por que não levá-los a meditar sobre condições e circunstâncias, por que não dizer-lhes uma palavra prudente e amiga, a fim de que possam consultar suas verdadeiras inclinações e capacidades? (LOURENÇO FILHO apud FLEURY, 1953, p. 5).

A principal referência para Renato Fleury de uma Escola Nova rural é o livro do educador cubano Alfredo Miguel Aguayo (1935), Didática da Escola Nova. No entanto, além desse autor, Fleury tenta aproximar Sud Mennucci e Lourenço Filho. Para Fleury, eles são complementares. Por exemplo, Fleury cita Sud Mennucci para esclarecer o papel do docente na educação no campo e, cinco linhas depois, relaciona a interlocução com Mennucci a uma referência a Lourenço Filho sobre o papel social da escola.

É provável que Sud Mennucci tenha percebido e aprovado esta aproximação. O livro de Fleury foi muito elogiado na Revista do Professor, dirigida por ele, na sessão de Bibliografia Pedagógica.

O volume do professor Fleury [Educação rural] é, assim, mais que um estudo alentado numa síntese do estado atual do problema, síntese feita com sagacidade e com inteligência, e que seria de ótima política se fosse adotado nos cursos de formação profissional das Escolas Normais, não só do Estado [de São Paulo], mas do Brasil, porque focaliza a apaixonante questão, sem demasiar-se em detalhes e sem perder-se no cipoal das controvérsias (BIBLIOGRAFIA PEDAGÓGICA, 1936, p. 26).

No mesmo número desta revista foi publicado um artigo de Renato Fleury sobre as relações entre ciência e filosofia, no qual uma das referências era Lourenço Filho. Assim, é possível que a obra de Renato Fleury tivesse o propósito de desembaraçar o cipoal das controvérsias entre Sud Mennucci e Lourenço Filho sobre a educação rural e a Escola Nova, resultando daí uma visão rural da Escola Nova.

Na abordagem de Renato Fleury, o que unia Alfredo Aguayo, Sud Mennucci e Lourenço Filho na proposta de uma Escola Nova rural era a didática necessária ao camponês, denominada por esses autores pelo termo de educação ativa. A educação ativa, além de procedimento pedagógico, deveria mudar as relações não só de aprendizagem, mas também da escola com a comunidade de seu entorno. Para tanto, deveria extrapolar as atividades exclusivas de sala de aula.

Cabe [à escola] a tarefa de, educando a criança, promover-lhe o progresso em todos os sentidos; mas é de seu dever também agir diretamente sobre a população adulta, que precisa beneficiar-se de suas luzes. Essa a função socializadora da escola, a sua projeção, larga, fúlgura e fecunda. Se no ambiente íntimo promoverá o trabalho em comunidade, as atividades em cooperação, a instituição de associação de alunos (clube agrícola, caixa escolar, cooperativa, caixa econômica, biblioteca, agremiações esportivas etc.), no ambiente social esse dever socializador não é menos necessário. As ‘Associações de pais e mestres’ são o meio de dar cumprimento à tão elevada missão (FLEURY, 1936, p. 84).

A educação ativa, como ilustrado pela Figura 6, abrangeria diversas atividades:

Fonte: Rios (1936, p. 35).

Figura 6 Cooperativa do Grupo Escolar de Itararé. 

Essa fotografia consta do Relatório da Delegacia Regional do Ensino de Itapetininga, cidade próxima a Sorocaba, onde atuava Renato Fleury, exatamente no mesmo ano do lançamento de seu livro sobre educação rural. Ela mostra de maneira ideal as atividades de educação ativa em Itararé, outra cidade do sudoeste paulista sob influência cosmopolita de Sorocaba. A foto registra as ações da Cooperativa Escolar. Nela, o elemento agregador das atividades era seu Banco Cooperativo, disposto numa estante ao fundo da foto, com cofres para seis empreendimentos que a escola deveria exercer em relação à comunidade de entorno e que extrapolavam o ensino em sala de aula. Na imagem, do lado esquerdo da estante, constam os cofres destinados à caixinha escolar, ao cinema educativo e ao escotismo. Do lado direito, está o cofre destinado ao Jornal das Crianças, com espaço na estante para outros dois cofres que se encontram na balaustrada à frente da fotografia. Em primeiro plano, à direita, alunos abastecem o cofre destinado à biblioteca. À esquerda, já com as cestas vazias da venda dos produtos cultivados pelos próprios alunos, outros estudantes depositam recursos desta venda no cofre destinado ao Clube Agrícola. Trata-se de um importante registro fotográfico de como se concebia as incumbências de uma escola ativa para além da sala de aula. Em gestão compartilhada com a comunidade, seriam promovidas as atividades de uma caixinha escolar, para arrecadação de recursos que abastecessem o empório escolar, que consta de outra fotografia desse mesmo relatório. Nele, havia material escolar e didático a preços acessíveis aos alunos. Parte do dinheiro arrecadado servia para a confecção do Jornal das Crianças, órgão da escola a conectá-la à comunidade com informações, notícias, estudos literários e científicos de seus membros. Coletava-se verbas para que os alunos pudessem ir ao cinema, com finalidades didáticas.

O escotismo escolar também merecia recursos. Para a biblioteca, subsidiava-se a compra de literatura infantil. Boa parte dos recursos arrecadados provinha de trabalhos manuais executados pelos alunos, com destaque para aqueles feitos na horta comunitária da escola, geridos pelo seu Clube Agrícola. Todos esses empreendimentos eram registrados pelos próprios alunos, para a contabilidade do Banco Cooperativo.

Há uma conexão direta entre os Clubes Agrícolas e Renato Fleury. Nos relatórios do Ministério da Agricultura, pesquisados por Sonia Mendonça (2007), consta que o material didático elaborado por Fleury era utilizado nos Clubes Agrícolas incentivados por esse ministério. A autora não detalhou se a cartilha Na roça... e os livros complementares de leitura destinados à população campesina eram comprados pelo Ministério da Agricultura junto à Editora Melhoramentos e fornecidos aos Clubes Agrícolas. Ainda é bastante desconhecida a ação do Ministério da Agricultura na década de 1930 no que se refere à educação rural em escolas sob gestão do Ministério da Educação e Saúde Pública.

A educação ativa valorizada por Renato Fleury tinha por característica principal atividades fora de sala de aula, como as de cultivo do campo, como mostra a Figura 7. Nesse mesmo relatório, há outras fotografias a exemplificar ações educacionais ao ar livre.

Fonte: Rios (1936, p. 34).

Figura 7 Clube Agrícola do Grupo Escolar de Itararé. 

Renato Fleury é um exemplo de autor de material didático que recuperou a herança do ensino intuitivo, agora encampado pela Escola Nova, pela concepção de educação ativa. Ele publicara um livro sobre o tema em 1920. Para tanto, a educação rural seria um fio condutor apropriado para a percepção empírica da realidade. Na Escola Nova rural, a educação ativa ocorreria através da educação pelos sentidos.

Se o Criador nos deu os sentidos não foi, por certo, para que os poupemos, sobrecarregando os órgãos da audição… E que uso proveitoso poderemos deles fazer senão sentindo, por todos os meios, o esplendor da natureza e a magnificência da vida? Entretanto, a maioria dos homens existe sem viver. Poucos, realmente, os que se detêm mais longamente a contemplar um céu de luar, porque o homem comum ainda é muito pequenino para sentir a grandeza dessa maravilha. Raro o que, passando por uma estrada, retarda-se por dois minutos para sentir o perfume e tatear a delicadeza das pétalas de uma flor, que sempre vê com indiferença e não conhece. Ora, é preciso ensinar largamente a observar, despertando-se na criança o hábito de sentir o mundo que a cerca e interpretá-lo. Só assim aviva-se-lhe a mente, o caráter se lhe robustece e o coração beneficamente se lhe enflora, para a frutificação da virtude (FLEURY, 1936, p. 72).

Não se tratava de um processo apenas educacional, mas de concepção de humanidade. Observar o mundo através dos sentidos, empiricamente, fortalecia as capacidades intelectuais da criança. Mais do que isso, lhe formava o caráter positivamente, possibilitando a bondade e resultando num homem virtuoso. A educação rural propiciaria tal formação. Para tanto, a educação ativa tinha que extrapolar a sala de aula.

Como compreender a escola rural enclausurada numa sala, apertada entre filas de carteiras? […] Ensino ao ar livre, conquista ocasional e oportuna de conhecimentos diretos em contato fecundo com os seres, ação real interessada, em liberdade disciplinada, tudo fundamentado nas coisas da terra, plantas e animais, eis as diretrizes que se impõem à educação rural. […] Ora, este prazer espiritual é a maior necessidade da criança. Ela precisa da alegria para se desenvolver plenamente. Sem esse encanto não há verdadeira educação, cujo mais alto ideal é a felicidade, que a expansão da alma pode em grande parte assegurar (FLEURY, 1936, p. 73-74).

A educação rural concebida por Renato Fleury tinha propósitos bastante ambiciosos. Pretendia que o processo educacional, perpassado pela alegria infantil em observar através dos sentidos o mundo em redor, provocasse a expansão da espiritualidade humana e trouxesse felicidade a quem se educasse de maneira espontânea. O homem, organicamente enraizado no campo, sensível à natureza, seria feliz. Por que migrar para as cidades?

Considerações finais

A modernidade industrial urbana, opção de desenvolvimento adotada pelo grupo getulista que chegara ao poder nos anos 1930, ainda causava muito desconforto em meados dessa década. Não era para menos. Ocorrera uma revolução contra os mandatários detentores da força agrária interiorana em 1930. Uma tentativa frustrada de retomada do poder pelas elites paulistas em 1932. Uma possibilidade de golpe militar/tenentista/comunista em 1935. Isso, sem mencionar as reviravoltas institucionais europeias, como a que ocorria na Alemanha desde 1933. Era muita instabilidade para quem convivera por muitos anos com a paz laboriosa do ordeiro campo brasileiro. O mundo era por demais instável nessa década decisiva para o país. Não é de se estranhar que muitos intelectuais se mostrassem reticentes frente tal modernidade.

Para quem provinha do campo, o mundo urbano poderia ser percebido como a causa de tanta instabilidade. O que fazer? Preservar a sociedade rural que ainda era preponderante no país. Alguns educadores que repercutiram tal postura, como Renato Fleury, não eram apenas reacionários. No caso, esse escritor de livros didáticos também pretendia a modernização, mas a modernidade alicerçada no desenvolvimento do campo. Renato Fleury era, portanto, um educador que propunha alternativas ao desenvolvimento calcado no desenraizamento do camponês e sua exploração degradante na sociedade industrial e urbana. Sua visão orgânica de cultura e de sociedade pressupunha a harmonia entre o humano e o meio social em que ele se desenvolvia. As pequenas e médias cidades, como polos de sinergia com o mundo rural, seriam mais apropriadas à prosperidade do país. Como conciliar modernidade, desenvolvimento e harmonia social? A resposta elaborada por Renato Fleury foi a de que se deveria investir maciçamente na educação rural dos brasileiros. Para o autor, o principal aspecto da Escola Nova a ser implantada no campo era sua proposta de educação ativa. Através dela, o camponês teria a percepção da educação como algo próximo de seu cotidiano de trabalho. Contudo, não apenas para repetir o existente, mas para modernizá-lo no que se refere aos seus aspectos técnicos, econômicos e sociais. O resultado desejável seria a constituição de pequenos proprietários de terra, com anseios de eficiência na produção agrícola. A educação rural articularia tais fatores da vida no campo.

Renato Fleury, educador experiente, não formulou propostas somente teóricas no intuito de equilibrar modernidade, desenvolvimento e harmonia social, mas trabalhou na elaboração de materiais didáticos que viabilizassem sua opção de desenvolvimento social e econômico. Sendo a Escola Nova a referência de modernidade educacional, por que não conceber uma Escola Nova rural? Foi o que Renato Fleury fez, enfatizando as características de educação ativa quase como sinônimo do escolanovismo. Com este enfoque, propôs uma Escola Nova capaz da modernização do mundo rural brasileiro. Ele idealizou o campo no país como lugar de pequenos e médios proprietários de terra, com a presença de pequenas e médias cidades. Sob as diretrizes da Escola Nova, o professor rural seria um desses pequenos ou médios produtores rurais de cultura. Novamente, cultura em seus múltiplos sentidos de concepção. Renato Fleury foi um dos paradigmas de um intelectual orgânico do meio rural brasileiro. Sua educação rural era uma alternativa viável ao desenvolvimento nacional. No entanto, como se sabe, a modernidade urbana e industrial prevaleceu como a forma econômica e de organização social predominante no país.

1No âmbito deste artigo, não coube uma discussão historiográfica sobre a produção de livros didáticos no Brasil. Como introdução ao tema, entre muitos outros estudos, recomenda-se o texto de Kazumi Munakata (2016), Livro didático como indício da cultura escolar.

2Este texto é fruto parcial de pesquisas do projeto Formação e Trabalho de Professoras e Professores Rurais no Brasil: PR, SP, MG, MT, PE, PI, SE, PB, RO (décadas de 40 a 70 do século XX), coordenado pela Profª. Drª. Rosa Fátima de Souza, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus Araraquara, e financiado pelo CNPq.

Referências

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Recebido: 10 de Julho de 2019; Aceito: 16 de Agosto de 2019

Prof. Dr. Macioniro Celeste Filho, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”(Campus Bauru, Brasil), Departamento de Educação da Faculdade de Ciências, Programa de Pós-Graduação em Docência para a Educação Básica da Faculdade de Ciências - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Campus Bauru, Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Campus Marília, Brasil), Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Cultura e Instituições Educacionais (GEPCIE), ORCID ID: http://orcid.org/0000-0001-8798-9891. E-mail: marciocelestefilho@gmail.com

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