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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.57 no.54 Natal oct./dic 2019  Epub 10-Feb-2020

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2019v57n54id18043 

Artigos

Ensino de gramática: saberes e práticas mobilizados por um professor de língua portuguesa

Grammar teaching: knowledge and practices mobilized by a Portuguese language teacher

Enseñanza de gramática: conocimientos y prácticas movilizados por un profesor de lengua portuguesa

Rafaella Sales da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-0845-080X

Alexsandro da Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-1943-8227

1Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco (Brasil)

2Universidade Federal de Pernambuco (Brasil)


Resumo

O artigo analisa os saberes e as práticas mobilizadas por um professor de língua portuguesa do 9º ano do ensino fundamental ao ensinar gramática/análise linguística. Apoiamo-nos, por um lado, em discussões sobre o ensino de gramática/análise linguística e, por outro, em reflexões referentes aos saberes e às ações docentes. Trata-se de um estudo qualitativo, desenvolvido por meio do uso dos seguintes procedimentos: seção de grupo focal, observação em sala de aula e entrevistas. Os dados analisados apontaram que as ações do professor observado ao ensinar gramática parecem ter recebido influência de suas experiências como aluno da Educação Básica e de experiências vividas no exercício da ação docente, que assumiam um peso maior que os conhecimentos das novas orientações para o ensino gramática a que teve acesso. Quanto ao uso do livro didático, o professor não se sujeitava ao que era apresentado, mas produzia encaminhamentos diferentes.

Palavras-chave: Ensino de gramática; Saberes docentes; Ação docente; Livro didático

Abstract

The work aims to understand the knowledge and practices assembled by a teacher of Portuguese language to 9th grade students in Elementary school when teaching Grammar/linguistic analysis. On the one hand, it is relied on discussions about the teaching of Grammar/analysis linguistic, on the other hand on reflections referent to the learnings and to the docent actions. This is a qualitative study, developed through the use of the following procedures: section of focus group; classroom monitoring and interviews. The analysed data indicated that the actions of the observed teacher by teaching grammar, seem to be influenced by their experiences as a pupil of basic education and lived experiences in the exercise of their teaching, whom undertook greater pressure than the didactic knowledge, the teacher was not subject to what was introduced to him or her, yet produced unlike referral.

Keywords: Grammar teaching; Docent learning - Docent action; Didactic book

Resumen

El articulo analisa los conocimientos y práticas movilizadas por um profesor de lengua portuguesa em salas de clases novinas del enseñaza fundamental quando se ensena gramática/ analesis linguestico. Apoyamo-nos, de uma manera discuciones a respecto de la enseñaza de gramática e analesis linguestico e de outra manera reflexiciones referentes a los conocimientos e las acciones de enseñaza. Es um estúdio de qualitat em desenvolvimiento por médio de el uso los seguintes procedimentos sección de grupo de enfoque, observación e entrevistas. Los datos analizados apunteron que las acciones del profesor al enseñar la gramática nos parecen haber recebido influencia de sus experiencias quando él era, niño, alumno de las salas de clases fundamentales e de sus experiencios vividas en sus clases que tenian necesedad de su atención mayor com relacion as sus próprios conocimientos de los nuevas orientaciones para la enseñaza de gramática a que tive acesibilidad. Quanto lo uso do livro didático, el profesor non estuvo sujeto a lo que se presentó, pero produjo diferentes referencias.

Palabras clave: Enseñanza de la gramática; Profesores Del conocimiento; Acción profesor; Libro de texto

Introdução

Nós últimos quase 40 (quarenta) anos, o ensino de gramática tradicional tem sido, no Brasil, alvo de críticas sistemáticas pela sua concentração na memorização de regras e de taxonomias. Desde então, defende-se um deslocamento desse ensino para a reflexão sobre a língua, articulada à leitura e à produção textual. Essa perspectiva relaciona-se ao surgimento da “prática de análise linguística”, proposta inicialmente por Geraldi (2012) em substituição à “antiga gramática tradicional”. Entretanto, muitos professores têm sentido dificuldade para desenvolver um ensino voltado à análise e à reflexão sobre a língua.

Neste artigo, decidimos ampliar nossa compreensão sobre o tema analisando os saberes mobilizados e as práticas desenvolvidas por um professor de língua portuguesa dos anos finais do ensino fundamental, no ensino de gramática/ análise linguística. Consideraremos aspectos relacionados a diferentes momentos da vida do docente participante do estudo, inclusive antes dele se tornar professor.

Exporemos, em um primeiro momento, reflexões sobre o ensino de gramática/análise linguística e sobre os saberes e as ações docentes. Em seguida, apresentaremos o percurso metodológico utilizado no estudo desenvolvido, assim como os principais resultados e conclusões obtidos.

Ensino de língua portuguesa no Brasil: da gramática tradicional à prática análise de linguística

Durante o período do Brasil Colônia, até meados do século XVIII, o objetivo da escola era alfabetizar. Em 1759, com a Reforma Pombalina, o ensino de português tornou-se obrigatório no currículo. Todavia, seguiu a tradição do estudo do Latim, por meio do estudo da gramática, e dar aulas de língua portuguesa, portanto, significava, às vezes ainda significa, ensinar regras gramaticais e fazer exercícios de classificação e de análise sintática (SOARES, 2013).

Com efeito, a partir, sobretudo, dos anos 1980, com o avanço das ciências linguísticas, difundiu-se uma nova concepção de língua: a sociointeracionista. Nela, a língua é compreendida como uma atividade interativa e não apenas comunicativa, que se materializa de forma funcional e contextualizada. É nessa conjuntura que surge a perspectiva de trabalho apresentada, inicialmente, por Geraldi (2012): a prática de análise linguística.

A proposta inicial centralizava a reflexão sobre a língua a partir das próprias produções dos alunos, mas contribuições de outros autores a ampliaram. No momento atual, considera-se que a prática de análise linguística contempla igualmente a análise dos textos e dos gêneros circulantes socialmente e dos seus contextos de produção/recepção, assim como a reflexão sobre a norma linguística de prestígio social realmente usada. Percebe-se, com isso, que o eixo didático “análise linguística” envolve aspectos discursivos, textuais e normativos (MORAIS, 2002; MORAIS; SILVA, 2007; MENDONÇA, 2006).

A considerar o longo período no qual a escola se guiou pela tradição gramatical, a partir do ensino de regras prescritivas e de classificações de palavras e de orações, prefigura-nos não ser tão simples “desvencilhar-se” dessa tradição tão enraizada na instituição escolar. Na tentativa de compreender as práticas de ensino de gramática/análise linguística desenvolvidas no cotidiano escolar pelos professores em vez de simplesmente julgá-las como adequadas ou inadequadas, apoiar-nos-emos na discussão sobre saberes e ações docentes, que apresentaremos na seção a seguir.

Saberes e ações docentes: perspectivas e reflexões

Os saberes docentes são plurais e não só adquiridos nas instituições de ensino de formação de professores. Desse modo, Tardif (2008) afirma que os saberes docentes podem ser caracterizados a partir da sua natureza heterogênea, podendo ser tipificados como profissionais, disciplinares, curriculares e experienciais.

Esses saberes, que não atuam em oposição, constituem uma amálgama de vários saberes que os professores integram às suas práticas e com os quais mantêm diferentes relações. No entanto, são principalmente os saberes experienciais adquiridos no exercício da ação docente que orientam os docentes nas decisões tomadas em seu trabalho cotidiano, incluindo a (re)interpretação das prescrições a eles direcionadas.

Para Tardif e Raymond (2000), uma boa parte daquilo que os docentes assimilam sobre o que é ser professor advém da sua própria história de vida. À vista disso, explicam que a imersão vivida por esses profissionais no contexto escolar antes mesmo de iniciarem o trabalho origina uma gama “[...] de conhecimentos anteriores, de crenças, de representações e de certezas sobre a prática docente” (TARDIF; RAYMOND, 2000, p. 216-217). Ora, o que se tem ciência hoje é que essa herança mantém-se forte e estável ao longo dos anos.

Essa compreensão permite considerarmos que os professores não são guiados apenas pelos discursos oficiais. Chartier (2007) explica que, quando os docentes se deparam com esses discursos, selecionam neles as informações que consideram úteis para a realização de suas ações. Por conseguinte, não estão, de modo geral, muito preocupados, por exemplo, em se tratando do livro didático, com a concepção de língua ou de gramática adotada pelo manual, mas com as atividades oferecidas e se elas atendem às suas demandas cotidianas, facilitando o desenvolvimento de seu trabalho.

Outro aspecto que precisamos ponderar é que os professores se valem de “táticas” para consumir os discursos oficiais, que representam as “estratégias” (CERTEAU, 1998). As táticas são acionadas nas “maneiras de fazer” que “burlam” ou “reinterpretam” as orientações oficiais. Isso permite-nos entender que os docentes não são inertes aos discursos oficiais, mas ao contrário, reinterpretam-nos ancorados em seus saberes e a partir daquilo que consideram pertinente para o exercício de suas ações em sala de aula.

A partir dessas discussões, concordamos, portanto, que as ações dos professores não se manifestam como uma aplicação exata, retilínea das inovações propostas pelos órgãos oficiais ou instituições de formação, não obstante, são uma mescla de diferentes saberes, com forte destaque para os saberes experienciais e pré-profissionais. A perspectiva que adotamos não é e nem poderia ser determinista, pois aquilo que os professores fazem na sala de aula não é resultado direto e exclusivo de sua história pessoal (sobretudo escolar) ou das experiências que desenvolveu ao longo do tempo do exercício de seu trabalho. Porém, não podemos negar que tais saberes constituem um pilar fundamental das práticas de ensino e, muitas vezes, parecem ter um peso maior que aqueles oriundos de outras fontes.

Percurso metodológico

As análises apresentadas foram desenvolvidas, sobretudo, a partir de uma abordagem qualitativa, permitindo-nos ir além da observação controlada e da presumida objetividade analítica. Ademais, esse tipo de abordagem não exclui a quantitativa, porque não há dicotomia.

Os dados apresentados são oriundos principalmente de observação e de entrevistas, mas apresentamos também alguns recortes de uma sessão de grupo focal com um grupo de sete (7) professores de língua portuguesa dos anos finais do ensino fundamental. As análises exibidas correspondem à observação das práticas de ensino de um desses docentes - que será nomeado de Pedro -, acompanhada de entrevistas semiestruturadas.

O docente tinha, à época da geração dos dados, 44 (quarenta e quatro) anos de idade e 15 (quinze) anos de experiência de ensino. Ele tem formação em Letras, concluída no ano de 2006 em uma instituição pública federal, além de pós-graduação (lato sensu) em Literatura Brasileira, cursada em instituição privada e concluída em 2010. Atuava como professor concursado em uma escola pública da rede municipal de ensino de Caruaru-Pernambuco, lecionando língua portuguesa em turmas dos anos finais do ensino fundamental.

As observações na sala de aula foram desenvolvidas em uma turma do 9º (nono) ano, na qual o docente tinha seis (6) aulas semanais, cada uma com duração de 50 (cinquenta) minutos. Observamos dez (10) dias de aulas dele nessa turma, que correspondem a 19 (dezenove) aulas, independentemente do eixo de ensino abordado nelas. Realizamos gravação em áudio e anotações em um diário de campo para registro e posterior análise dos dados produzidos.

Com o objetivo de compreender melhor as ações desenvolvidas pelo professor na sala de aula, realizamos quatro (4) entrevistas, ao longo das observações, sobre os objetivos das aulas ministradas, as dificuldades encontradas pelo docente, entre outros aspectos que pudessem auxiliar na compreensão de suas ações. Ao término das observações, efetuamos 1 (uma) entrevista semiestruturada final para o esclarecimento de mais alguns aspectos sobre as práticas observadas.

O procedimento de análise dos dados utilizado foi a análise temática do conteúdo (BARDIN, 2011). A categorização analítica apresentada a seguir foi construída de maneira indutiva, considerando as especificidades do nosso objeto de estudo.

Resultados e discussões

Ensino tradicional de gramática: uma relação conflituosa entre experiências pré-profissionais e práticas atuais de ensino

Por meio dos dados produzidos durante a sessão de grupo focal e da entrevista final, constatamos que o professor Pedro parecia ter uma relação conflituosa com o ensino de gramática tradicional. Em um dos depoimentos concedidos pelo docente na entrevista final, ele relatou um pouco suas experiências nas aulas de língua portuguesa à época em que era estudante:

Prof. Pedro: Tradicional... era bem tradicional, na época [refere-se à época da escola], que era estrutura mesmo, a estrutura formada para você dizer como é que era. A::... tanto é que, quando eu comecei a dar aula em pré- vestibular, eu não comecei com gramática, com português; eu perdi muita oportunidade de português, só que eu via que eu não tinha jeito para a língua portuguesa. Tô começando ainda, tô engatinhando ainda na área, a verdade é essa... [...] Então, assim, ah, é, eu perdi muita, muita oportunidade em pré-vestibular que ganha muito bem. [...] eu não tive, eu não tive [professores] que me fizeram gostar, me APAIXONAR pela disciplina... Entendeu? (PEDRO, 2016).

A análise desse depoimento parece indicar que as experiências com a gramática vivenciadas na escola pelo professor Pedro, foram marcadas por uma metodologia tradicional de ensino. Essas experiências teriam desencadeado nele uma resistência a lecionar “Português”, disciplina historicamente considerada como sinônimo de ensino de gramática, o que o fez, inclusive, perder oportunidades de emprego porque ele “não tinha jeito para a língua portuguesa”.

Para ilustrar a relação conflituosa do professor Pedro com o ensino de gramática, apresentamos mais um trecho no qual ele conta como eram as aulas de língua portuguesa na época que estava na escola e sobre a “desconstrução” que viveu ao ingressar no curso de Letras. É o que revela o fragmento a seguir:

[...] porque a gente vem de uma, de uma normatização terrível, né...? Porque nós viemos de realidade, a gente vem de uma... de uma normatização terrível, né? Que nós, que nós... eu vim disso, eu vim disso... desse, desse, olha, o certo é esse, toma. Ou você fala assim ou você tá todo errado... Aí, você em uma universidade, no curso de Letras, tem o primeiro contato [com discussões da Linguística]... é a desconstrução (PEDRO, 2016).

A partir dessa declaração de Pedro, percebemos que, ao ingressar na universidade, a concepção de gramática prescritiva o acompanhava. Dessa forma, a graduação foi um momento de desconstrução daquilo que havia assimilado como aluno e de aproximação das novas orientações para o ensino de língua portuguesa. Entretanto, isso parece não ter sido suficiente para abalar o que o professor concebia como ensino de gramática.

Buscando estabelecer possíveis relações entre essas experiências pré-profissionais do professor e as suas práticas de ensino atuais, destacamos que durante os dez (10) dias de aulas observadas, o professor Pedro explorou análise linguística/gramática em oito (8) deles, o que representa um percentual de 80%. Desse total, cinco (5) dias foram dedicados, unicamente, ao ensino de gramática, o que representa 50% do tempo total das aulas dedicadas ao eixo já mencionado, e três (3) contemplaram também o eixo de leitura de textos.

Esse investimento escasso no ensino de leitura de textos pode ter alguma relação com as experiências do professor Pedro como aluno. Observemos o fragmento abaixo:

Prof. Pedro: Mas na minha época era somente gramática. [...] Do começo ao fim (refere-se às aulas)... Você tinha depois de substantivo, vinha lá adjetivo, depois vinha artigo, depois vinha numeral, ou seja, havia uma sequência gramatical para ser aprendida. A parte de leitura, é, é, vamos lá, na nossa época éramos mais leitores, embora nós não temos muito acesso ao livro, mas acho que, pelo menos, falo por mim, a minha curiosidade por leitura, ela vem desde criança, mas eu só tive o despertar da leitura depois da universidade, mas, durante a minha fase escolar, eu lia muito pouco, eu lia pouco (PEDRO, 2016).

Consonante a leitura desses dados, as experiências do professor Pedro foram fortemente marcadas pelo ensino de gramática tradicional, com investimento no estudo das classes de palavras e pouca ou quase nenhuma presença da leitura de textos. Tivemos a impressão de que, para Pedro, o gosto pela leitura pode ser despertado independente do incentivo da escola, como demonstra o trecho “na nossa época éramos mais leitores, embora nós não temos muito acesso ao livro”.

Embora suas experiências com a aprendizagem de gramática na época da escola não tenham sido agradáveis, a universidade aparenta ter oportunizado uma experiência positiva, não com a gramática, mas com a literatura, que, segundo ele, era mais interessante que o estudo da primeira, conforme exposto a seguir:

Eu consegui em literatura [...] Pra mim, assim... O que eu sou hoje é literatura [...] Poxa, foi o meu caso, como eu falei. Eu, uma vez que eu tava no curso de Letras, até o finalzinho do primeiro período, eu não sabia o que eu queria, aí aparece um tal de Gabriel Almeida... Gênio é... Gênio. [...] Deu um clique em mim... [...] forma como ele apresentou... então pra gente foi mágico, pra mim foi mágico. [...] Pronto, abriu a minha mente (sic) das portas pra literatura... Até hoje, ensino gramática... Mas a minha paixão é literatura (PEDRO, 2016).

Como já pontuamos, embora o professor Pedro tenha dito que sua paixão era literatura, não priorizou a leitura literária em suas aulas, pois o maior tempo das aulas observadas era dedicado ao ensino de gramática. Como um dos conteúdos propostos no livro didático adotado pela escola para o nono (9º) ano referia-se ao estudo dos versos e seus recursos musicais, ele reservou um espaço das aulas para tratar sobre a teorização desses aspectos. Entretanto, a dedicação maior não foi com a compreensão leitora ou a apreciação estética da literatura. Desse modo, presumimos que as experiências pré-profissionais da época que ele era aluno parecem ter tido um peso mais forte que as vivenciadas durante a formação profissional do curso de Letras. Na verdade, o professor declarou ter se apaixonado pela literatura, mas o ensino de língua portuguesa praticado por ele era marcado intensamente pelo estudo da gramática tradicional e não pela leitura literária.

Essa constatação nos alerta para o fato de que não podemos compreender as mudanças e “resistências” às alterações nas aulas de língua portuguesa sem considerarmos a história de vida dos professores como alunos e como docentes no ambiente escolar (TENÓRIO; SILVA, 2014), uma vez que os saberes desses profissionais são plurais e oriundos de fontes diversas, inclusive da experiência pré-profissional (TARDIF; RAYMOND, 2000).

Cientes dessa realidade, perguntamos ao professor Pedro se suas experiências como aluno influenciaram suas práticas de ensino de gramática. Com o propósito de responder essa indagação, ele nos contou uma situação vivenciada quando era estudante da antiga oitava série (atualmente 9º ano). Sobre isso, declarou:

[...] qualquer professor que não disser que sua prática de aula não sofreu influência do passado, ele tá mentindo... e carrega, a gente tem marcas de professores nossos, entendeu, Rafaella? A gente carrega isso o tempo todo. Então, ou seja, o/o assunto como período composto por coordenação e subordinação, eu tenho trauma disso, cara. Por quê? Eu fui chamado ao quadro no/no/no, numa aula dessa aí, fui chamado ao quadro. A professora era um tipo de/de/de carrasca que assim, ela/ela/ela abriu uma pressão psicológica. Eu vou ser bem sincero com você. Você sabe disso: eu não sou um professor [de português], eu não sou um professor [de português], ou seja, eu sou professor de português, sim... mas dizer pra você que eu tenho prazer de ensinar esse conteúdo, prazer como eu tenho de literatura, eu não tenho não... Eu tenho pra mim que é por causa dessa... Não só desse trauma, porque assim, eu come... é, pode ser, é, pode ser que isso seja da, a influência maior... essa chamada ao quadro oral que eu tive há muito tempo. Eu não sei como eu tirei nove e meio, mas eu tirei... ((imita a professora)) isso aqui: como é que é isso aqui? ... E eu calado, né, tremendo que só... (PEDRO, 2016).

Esse depoimento parece ratificar, mais uma vez, que o professor Pedro não gosta de gramática, porque teve uma experiência traumatizante com ela, mas a ensina por obrigação, por força da tradição, e acaba reproduzindo, de certo modo, o que vivenciou como aluno, mesmo que de forma inconsciente. Parece que, para o docente, não haveria outro modo de ensinar gramática para além daquele legitimado pela tradição. Conforme ele informou durante a realização do grupo focal, ao perguntarmos sobre um dos conteúdos mais importantes no ensino de língua portuguesa, destacou a sintaxe, mas logo a seguir relativiza essa declaração ao dizer: “claro, não vou tirar também o bom mérito da análise textual”.

Essa declaração do professor Pedro é curiosa, porque seu trauma estava relacionado exatamente ao estudo da sintaxe (período composto por coordenação e por subordinação), mas é justamente essa parte da gramática que ele considera como uma das mais importantes. Ademais, como vimos, ele informou que não gostava de ensinar esses conteúdos, porém a preocupação dele com a sintaxe está em sintonia com a seleção de conteúdos que privilegiou durante as suas aulas, que envolveram também morfologia (estrutura e formação de palavras), versificação e concordância nominal. Percebe-se, com isso, que os objetos de ensino privilegiados nas aulas observadas remetem a conteúdos clássicos do ensino da gramática tradicional escolar.

O ensino de gramática por meio da sequência metodológica conceito/regra + exemplo + exercício

Na maior parte das aulas observadas, ao ensinar gramática/análise linguística, o professor Pedro recorreu à sequência metodológica “apresentação de conceito/regras, seguida de exemplos e de exercícios”. Essa sequência apareceu em sete (dias) dos dez (dias) dias observados . Salientamos que, embora tenha iniciado uma dessas aulas com a leitura de poemas, o foco do estudo foi a estrutura de um soneto, seguindo a ordem conceito + exemplos + exercício.

A título de exemplo, destacaremos como o estudo sobre estrutura e formação de palavras foi proposto pelo professor Pedro. Antes de iniciar esse estudo, o docente conversou com os alunos e declarou que os conteúdos que seriam estudados a partir daquele momento (estrutura e formação de palavras, concordância e regência) eram “os assuntos mais pesados”. Em seguida, apresentou o conceito de estrutura e formação de palavras e expôs exemplos, conforme podemos observar a seguir:

Prof. Pedro: Senhores, a partir de hoje, os assuntos, até o final, serão assuntos os mais pesados para vocês... Então, então, necessitaremos da maior atenção possível dos senhores. É a parte que mais cai em provas, IFPE [Instituto Federal de Pernambuco], muitos concursos, ENEM::. Vocês irão ver a parte de/de concordância, regência. São assuntos fáceis que demandam algumas regras::, mas com a prática:: dá pra aprender facinho::. Primeiro que nós vamos ver, tá aí, oh, estrutura, estrutura e [formação::...

Al. 1: [Das palavras::

Prof. Pedro: [das palavras ((alunos conversam))... Oh, estrutura:: e formação:: das palavras ((escreve no quadro)). Pessoal, não é um assunto difícil; tem muita informação, certo? [...] Pessoal, estrutura::..., estrutura vem de base, num é? Algo sustenta... tá ok? E formação... é dá que exatamente... como o nome diz: a forma. Então, todas as nossas palavras, elas têm uma base pra conter uma forma... tudo que nós falamos, as palavras: da, da, do nosso idioma têm, não todas, mas a maioria delas... quase todas, se brincar, têm essas características... palavras como... formar, certo? Ela tem um radical, certo? Ela tem uma vogal temática... e ela tem uma desinência. Isso se tratando de:: verbo. Porém:: pra nós, nesse momento, o que/o que vai interessar:: é isso [aqui::: ((escreve a palavra no quadro))

Al. 2: [É o radical.

Prof. Pedro: É o radical. A partir de um radical:: eu posso formar outras palavras. Por exemplo, da palavra, do radical “form”, já fiz uma aqui, oh: ... formar, [formação... ((escreve no quadro))

Al. 3: Formação, formarei.

Al. 1: Formalizar.

[...] ((leem a definição trazida pelo livro didático na página cento e quarenta e três)).

Alunos: “INFORMA O SIGNIFICADO BÁSICO DA PALAVRA”

Prof. Pedro: Informa:: o sig-ni- fi- ca- do ((fala de forma bem enfática)) básico da palavra. Compreendeu isso aí ou não? (PEDRO, 2016).

Ao findarmos as observações, questionamos ao professor Pedro se frequentemente seguia nas suas aulas o percurso “apresentação de conceitos/regras + exemplos + exercícios”. Ele nos explicou o seguinte:

Prof. Pedro: Costumo utilizar dessa forma, porque é uma... é... acredito que é uma forma de você ampliar o assunto... Não começar diretamente com o... é ao quadro, diretamente ao quadro, é direto ao quadro. Explicação geral. Essa abordagem geral vai dar uma abordagem geral do conteúdo, tendo essa abordagem maior do conteúdo. Eu penso que fica mais, mais, mais é::... é... é... é uma forma de você já... de você apresentar pro aluno... a abordagem... quase que completa, né? Depois... no começo, quando ele vai ter essa análise, essa análise geral. Então, com os exercícios, com a explicação no quadro, eles já vão ter uma noção um pouco maior... Então, eu sempre procuro fazer dessa forma. Apresento o assunto, explico e... depois parto pra [prática...

Rafaella: [Dos exercícios?

Prof. Pedro: [Dos exercícios... exatamente (PEDRO, 2016).

Como podemos observar, o professor Pedro afirmou conduzir suas aulas a partir da sequência “apresentação de conceitos/regras + exemplos + exercício”s. Para ele, essa forma de ensinar permitiria que o conteúdo fosse ampliado.

Embora o professor Pedro tenha declarado que teve contato com as novas orientações para o ensino de língua, ao analisarmos as aulas observadas, percebemos que elas eram guiadas por uma sequência metodológica mais voltada para o ensino da gramática tradicional. Chartier (2007) explica que os docentes não mudam de uma hora para outra, pois são perseverantes em seu modo de ensinar. Desse modo, as inovações são experimentadas, testadas, perpetuadas ou deixadas de lado em função de preceitos práticos e não teóricos (CHARTIER, 2007).

Quando entrevistamos o professor Pedro e perguntamos sobre o porquê de a maior parte de suas aulas estarem concentradas no ensino de gramática, ele informou estar mais preocupado em cumprir os conteúdos. O fragmento a seguir é ilustrativo:

Prof. Pedro: É, porque assim, como eu te falei, a gente, a gente, querendo ou não, a... essa linha tradicional/ essa linha tradicional ainda é muito usada, isso é tradição... não tem nada, não tem nada de evolução aí. Muitas escolas ainda trabalham essa questão de... na maioria as públicas... trabalham essa questão de conteúdos gramaticais [...] Como eu falei, a gente tem que seguir um conteúdo, tem que seguir uma linha. É meio que difícil trabalhar a leitura com o aluno. Eu, se fosse o aluno, no dia que fosse só trabalhar leitura... Aí é que tá, esse é o grande problema, o material não. O material não... Aí vem a outra questão... (PEDRO, 2016).

Os dados supracitados revelam que o professor Pedro tinham consciência de que seguia uma metodologia tradicional de ensino. Inclusive, em uma de nossas conversas, identificou-se como praticante dessa metodologia. O depoimento ainda parece indicar que o professor está “preso” à tradição gramatical e, por isso, tem de ensinar com base nela, mesmo que não goste, como discutimos anteriormente, e tem que seguir o conteúdo programático. Situação semelhante foi percebida na pesquisa de Neves (1990), na qual se observou que os professores, apesar terem tomado consciência das críticas relativas ao ensino da gramática tradicional, mantinham aulas sistemáticas de gramática como um protocolo imprescindível de seu papel. Quase trinta anos depois, os dados do nosso estudo sugerem que essa perspectiva parece ainda vigorar.

Outro elemento que destacamos é que o professor Pedro justifica o espaço dado aos conteúdos da gramática tradicional pela ausência de material para explorar a leitura nas aulas. Sendo assim, investe nos conteúdos gramaticais, declarando que não haveria outra maneira de ensiná-los. Ainda analisando a citação apresentada, chamou-nos atenção o trecho “se fosse o aluno, no dia que fosse só trabalhar leitura...”, no qual ele interrompe o que estava dizendo. Parece que ele queria dizer que “voltaria para casa”, caso a aula envolvesse apenas leitura. É como se ele considerasse que o ensino de português só tivesse legitimidade para os alunos com o ensino de gramática tradicional.

Considerando os dados apresentados, entendemos que os professores tendem a optar por práticas que proporcionam segurança ao seu saber-fazer. Outro aspecto que precisamos considerar é que, muitas vezes, essas práticas estão ancoradas em suas experiências escolares como estudantes - que são combinadas aos saberes profissionais e experienciais construídos durante a carreira − e mantidas ao longo dos anos. Assim, não podemos desejar que alterem suas práticas, repentinamente, pois isso seria negar a sua própria identidade (MENDONÇA, 2006).

Uso de fichas de atividades de gramática com formato semelhantes às de cursinho pré-vestibular

A maior parte do tempo de experiência do professor Pedro era como professor de “cursinho pré-vestibular”. Diante disso, aprendeu a trabalhar por meio de fichas, conforme podemos observar no extrato a seguir:

Prof. Pedro: Você viu, eu tocava muito:: no assunto disso, olha, pessoal, isso cai em concurso, isso cai no IF. Oh, pessoal, isso costuma muito cair em provas, em provas. Num sei se é porque a minha formação, a minha formação... a minha formação... meu trabalho foi pré-vestibular... Então, essa linguagem já vem comigo há muito tempo... De pré-vestibular, o terceiranista e outros que já tenham terminado o segundo ano que estejam no pré-vestibular, você tem que bater nessa tecla: Olha, pessoal, pessoal, oh, é assim... isso cai assim... (PEDRO, 2016).

Diante dessa declaração, percebemos que durante as suas aulas, o professor Pedro tinha a preocupação de informar aos alunos os conteúdos que eram cobrados em concursos e nas provas de vestibular, e a linguagem usada por ele era típica de professor de cursinho pré-vestibular. Conforme declaração do próprio docente, ele supõe que essa prática seja o resultado de sua formação e de sua experiência em cursinhos pré-vestibulares.

As práticas do professor Pedro, no ensino de gramática/análise linguística, demonstravam estar, em parte, ancoradas nos saberes experienciais adquiridos durante o tempo em que lecionou em cursinhos pré-vestibulares. Ele parece ter consciência disso e suas aulas refletem essa perspectiva e, no fragmento acima, o docente evidencia isso ao dizer: “Você viu, eu tocava muito:: no assunto disso, olha, pessoal, isso cai em concurso, isso cai no IF. Oh, PESSOAL, isso costuma muito cair em provas, em provas”.

A ênfase nas provas também pode estar relacionada, de certa forma, a uma estratégia de controle da turma. Além disso, percebemos que, embora lecionasse em uma turma do nono ano (9º ano) do ensino fundamental, sua linguagem era de cursinho, isto é, dos preparatórios para vestibular. Os dados sugerem que ele guarda a memória da época de vestibulares, associada aos atuais concursos e, por exemplo, não se refere às avaliações externas atuais, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica- SAEB, o Sistema de Avaliação da Educação Básica de Pernambuco- SAEPE e a Prova Brasil, inclusive feitas pelo nono ano (9º ano). Na verdade, a preocupação reside nos concursos, inclusive no do IFPE, que tem como público-alvo os concluintes do nono (9º) ano.

As atividades utilizadas pelo professor Pedro estavam em sintonia com esse foco nos concursos, como podemos observar na atividade ditada para os alunos, sobre concordância nominal, conforme exposto a seguir:

Quadro 1 Exercícios retirados da internet- relativo à "concordância nominal" 

1) Assinale a alternativa em que ocorreu erro de concordância nominal.
a) livro e revista velhos b) aliança e anel bonito
c) rio e floresta antiga d) homem, mulher e criança distraídas
2) Assinale a frase que contraria a norma culta quanto à concordância nominal

Fonte: http://professorricardoandrade.blogspot.com.br

A atividade exibida não foi a única utilizada pelo professor Pedro durante as aulas observadas. Ao ensinar o conteúdo “estrutura e formação de palavras”, o docente ditou para os alunos o exercício a seguir:

Quadro 2 Exercício retirado da internet- relativo à "estrutura e formação de palavra de palavras" 

1. Indique o processo de formação das palavras abaixo por meio do seguinte código:
   
1- Prefixação a) enraizar ( )
2- derivação b) refazer ( )
3- Sufixação c) clareza ( )
4- derivação imprópria d) rosa-claro ( )
5- prefixação e sufixação e) pontiagudo()
6- composição por justaposição f) a busca ( )
7- parassíntese g) amável ( )
8- composição por aglutinação h)conhecimento ( )
  i) prever ( )
  j) o castigo ( )
  k) desonrado ( )
  l) anoitecer ( )
  m) subumano ( )
  n) sexta-feira ( )
  o) o falar ( )

Fonte: http://www.professorandresan.com.br

Alguns fatores podem estar relacionados ao uso das fichas com questões de concursos e de vestibulares: por um lado, os docentes tendem a mobilizar, conforme já discutido, experiências vividas (nesse caso, como professor de cursinho e como aluno da educação básica), mesmo inconscientemente(TARDIF, 2008; CHARTIER, 2007); por outro, o uso dessas atividades facilitava a sua prática (CHARTIER, 2007), como nos informou durante a realização da entrevista:

Rafaella: É... Os conteúdos de gramática/análise linguística abordados na prova que você aplicou e em alguns dos exercícios desenvolvidos em sala de aula apresentavam formato de questões de vestibular e concursos. Qual o motivo dessa escolha?

Prof. Pedro: Boa pergunta, porque assim: Ah... como você, como já falei pra você, eu não costumo preparar prova... num é?... Porque acho que isso tá, acho não isso dá um trabalho muito grande... Então, pra facilitar bastante, já que tá... há... uma certa dinamicidade de conteúdos para ser abordado e essa pressa de entrega, né? Prazo, aquela coisa toda. Então, quando eles, quando a escola pede o prazo, geralmente, é com uma ou duas semanas de antecedência... [...] E eu não costumo perder tempo para elaborar prova não. Então, eu vou lá, pego questões, monto, realmente, da internet, de vestibulares (PEDRO, 2016).

Com base nos dados apresentados, percebemos que o formato das questões escolhidas pelo professor Pedro objetivava que os alunos pudessem se familiarizar com as questões de concurso e de vestibular. Todavia, o docente não privilegiava questões de interpretação de texto ou discursivas que também são examinadas, de modo geral, em concursos e nos vestibulares. Esses dados parecem sugerir que a compreensão predominante é a de que o ensino de língua portuguesa se restringe quase que exclusivamente ao ensino de conceitos e regras.

Além desses fatores, o docente declarou que o uso dessas questões facilitava as suas práticas. Chartier (2007, p. 155) explica que as escolhas pedagógicas não acontecem apenas fundamentadas “[...] em considerações técnicas, mas também em princípios, isto é, por adesão a valores. Esses não se fundam cientificamente, mas em normas éticas relacionadas a concepções de educação e do trabalho do professor”. Logo, inferimos que, além da influência dos saberes experienciais da época na qual era professor de cursinho, Pedro privilegiava questões com formato de concurso e de vestibular, pois elas facilitavam a organização de seu trabalho pedagógico.

O uso do livro didático nas aulas de gramática/análise linguística

Ao refletirmos sobre as “maneiras de fazer” do professor Pedro ao utilizar o livro didático adotado pela escola que lecionava, consideraremos que suas práticas são influenciadas pelos saberes adquiridos antes de sua formação, durante ela e também no exercício da vida profissional.

Para desenvolvermos a análise das práticas do professor Pedro no que refere ao uso do livro didático, consideramos os dados gerados durante a sessão de grupo focal, bem como as observações das aulas e as entrevistas. Um dado importante, que emergiu em meio às interações do grupo focal, diz respeito à frequência da utilização do livro didático durante as aulas. O professor Pedro nos informou que tem um jeito próprio de trabalhar e, considera que o manual limitava a prática. Logo, utiliza-o sempre como o último recurso: “Eu uso primeiro a... muito exercício, com ficha. O livro didático é, por último, sempre por último”.

Nesse contexto, interessou-nos saber com que frequência Pedro utilizava o livro didático e como o manipulava para atender ao seu saber-fazer no eixo de ensino gramática/ análise linguística. Nos dez (10) dias que observamos as práticas dele, foi notado que usou o livro na maioria de suas aulas. Dos dez (10) dias observados, ele o utilizou em seis (60% dos dias observados), embora não fizesse manuseio dele do início ao fim. O livro adotado pela escola era Português: linguagens, de Cereja e Magalhães (2012).

De acordo com o Guia do Livro Didático do Programa Nacional do Livro e do Material Didático- PNLD/2014 (BRASIL, 2013), a obra apresenta, de modo geral, uma mescla de abordagens de ensino, isto é, ora desenvolve um trabalho de inovação, ora de conservação do antigo tratamento destinado à gramática. Como a escolha do livro didático pode estar relacionada à maneira como os professores preferem ensinar e em sintonia com os seus saberes, perguntamos se Pedro participou do processo de escolha do manual. Eis o que nos informou:

Rafaella: [... Ele não foi escolhido por tu... esse livro?

Prof. Pedro: Foi, foi por nós professores [...] A primeira opção. [...]

Rafaella: Tu achas que ele facilita o trabalho?

Prof. Pedro: Acho... que entre todos os outros, Rafaella, é o melhor. [...] Ele traz a abordagem, a abordagem textual, uma explicação bem prática, embora […] Já os outros... [...]

Rafaella: Tu achas que ele vem com o conceito pronto, né? [Com a regra...

Prof. Pedro: [Com o conceito e, e, e a/ a/ o destrinchar desse conceito é bem prático... [...] Diferente dos outros, os outros você olha tá lá o conceito, mas faltam [há] buracos, faltam coisas para preencher mais o conceito. [...]

Rafaella: É... o que você acha dos conteúdos e das atividades do eixo de gramática/análise linguística propostas por esse livro didático?

Prof. Pedro: Como eu te falei: ele é bem, ele é bem, aborda de uma forma muito fraca... de fácil aprendizagem... (PEDRO, 2016).

Embora Pedro tenha nos contado não gostar de trabalhar com o livro, ele analisava positivamente o material, pois expunha “uma explicação bem prática...” A “explicação prática”, citada por ele, refere-se à seção do livro chamada de “Conceituando”, que apresenta os conceitos gramaticais, embora antes proponha atividades para os alunos “construírem” o conceito. Ele também comparou esse manual a outros e disse que entre os outros, esse seria mais completo por causa da apresentação dos conceitos. Inferimos que a apresentação dos conceitos o agradava, pois atendia à maneira como ele gostava de ensinar, por meio da exposição de definições, como vimos.

Durante as nossas observações, o professor Pedro geralmente iniciava a aula apresentando os conceitos gramaticais e, para isso, utilizava, muitas vezes, a parte do livro didático denominada “Conceituando”. Nesses momentos, explicava e dava exemplos aos alunos e, em seguida, aplicava exercícios, conforme vimos na seção anterior. Para compreendermos melhor essa dinâmica utilizada pelo docente no manuseio do livro e ao ensinar gramática/análise linguística, apresentaremos algumas situações observadas durante suas aulas.

Com relação à utilização do livro pelo professor Pedro para ensinar o conteúdo de estrutura e formação de palavras, notamos que, após fazer uma introdução inicial do assunto, os alunos leram a parte denominada “Conceituando” (Figura 1) do livro didático, conforme exposto a seguir:

Fonte: Cereja e Magalhães (2012, p. 143).

Figura 1 Seção “Conceituando” do livro didático Português: linguagens relativas ao conteúdo “Estrutura e formação de palavras” 

À medida que os alunos liam em voz alta essa parte do livro, o professor Pedro explicava e apresentava exemplos. Nesse processo, percebemos que ele descartou a atividade anterior ao “Conceituando”, chamada de “Construindo o conceito”, preferindo trabalhar diretamente com as definições. O docente optava por dirigir o estudo da língua por meio de tópicos gramaticais, por intermédio da exposição de conceitos e, para tanto, utilizava a parte do livro didático que os apresentava. A partir daí, ao “consumir” o manual, subvertia a ordem imposta por ele (CERTEAU, 1998), optando por um jeito próprio de usá-lo.

Tais dados nos remetem aos resultados apresentados pelas pesquisas desenvolvidas por Tenório e Silva (2014) e Tenório (2013), as quais constataram que os professores investigados, embora utilizassem o livro didático escolhido pela escola na qual lecionavam, não o utilizavam na sequência de atividades propostas. Essa postura dos professores nega a acusação de passividade ante os produtos “impostos”.

Diante dessa constatação, ao analisarmos a maneira como o professor usava o livro didático, notamos que ele não se sujeitou ao que foi apresentado. Logo, produziu encaminhamentos diferentes daquilo que foi instituído. Assim, alterou a proposta imposta e se apropriou do manual da maneira como achou viável para o desenvolvimento do seu trabalho. Inferimos que essa manobra realizada por ele ao descartar a “parte reflexiva” do livro, optando diretamente pela “parte descritiva”, possa constituir, em parte, o resultado daquilo que viveu como aluno e das experiências que consolidou ao longo de sua atuação docente.

Na ocasião em que as atividades atendiam ao seu saber-fazer, isto é, quando o livro apresentava o estudo da língua por meio de tópicos gramaticais e exercícios focados na identificação e classificação, o professor as consumia, como foi o caso dos exercícios (Figura 2) do livro didático, exibidos a seguir:

Fonte: Cereja e Magalhães (2012, p. 144-145).

Figura 2 Exercícios do livro didático Português: linguagens relativos ao conteúdo “Estrutura e formação de palavras” 

Conforme o Guia do Livro Didático do PNLD/2014 (BRASIL, 2013), o manual Português: linguagens (CEREJA; MAGALHÃES, 2012), além de apresentar exercícios com um enfoque mais estrutural, também explorava atividades de reflexão sobre a língua em uso. Todavia, podemos observar que o professor Pedro descartava essas atividades, optando apenas pelas de identificação e de classificação.

É interessante ressaltar ainda que o livro didático definia os conteúdos que eram ministrados nas aulas, conforme apontou o professor durante a realização da entrevista. Vejamos:

Rafaella: Você costuma seguir a ordem de conteúdos de gramática/análise linguística apresentada nesse recurso didático... do livro?

Prof. Pedro: Sim, porque é... faz parte do programa...Tá dentro... a sequência é essa. Então, nós temos que seguir essa, essa, a sequência do livro. Agora dizer pra você que eu fico só com o livro, não. […] O que eu costumo mais usar em relação ao livro é a sequência gramatical... a sequência gramatical...

Rafaella: Os textos, não? A sequência gramatical?

Prof. Pedro: Aí é que tá. Você tocou em um ponto interessante: os textos é:: ... geralmente, eu uso em uma eventualidade... Tipo assim: poxa, eu tô muito avançado. Então, eu vou dar um recuo, aí nesse recuo... Pessoal, vamos ler esse material aqui... Leiam e respondam tal... e depois eu respondo com eles... É dessa forma que eu faço (PEDRO, 2016).

Salientamos que a definição dos conteúdos ministrados nas aulas ocorrer a partir do livro didático não é uma exclusividade das práticas do professor Pedro, pois os docentes participantes das pesquisas de Tenório e Silva (2014) e Tenório (2013) também agiam dessa forma. Entendemos que o livro didático é um instrumento importante para decisão sobre o que ensinar. No entanto, isso não significa que as práticas desses profissionais sejam limitadas por esse recurso.

No caso de Pedro, conforme nos informou na entrevista, embora o livro definisse os conteúdos, ele só utilizava a parte desse material que o interessava, que, nesse caso, era a sequência gramatical clássica dos conteúdos de gramática para antiga oitava (8ª) série, pois, geralmente, descartava as atividades de leitura e de interpretação de textos- o importante era dar conta dos conteúdos gramaticais, pois a leitura de texto só seria contemplada quando tais conteúdos estivessem “adiantados”. Ainda sobre o fato de o professor Pedro seguir a ordem dos conteúdos, acreditamos que ele a fazia porque era conveniente para ele - os conteúdos gramaticais e a sequência pareciam corresponder às suas expectativas -, pois burlava outras prescrições do manual.

Esses dados parecem sugerir que, apesar de o livro influenciar o que é realizado em sala de aula, ele não é suficiente para alterar as práticas dos professores. Proporcionar unicamente um material inovador aos professores não é suficiente para alterar as ações deles.

Considerações finais

Quando consideramos o conjunto de dados produzidos no grupo focal, na observação das aulas e nas entrevistas, compreendemos que, embora o professor Pedro tenha tido uma experiência conflituosa com a gramática, suas experiências revelam que não é fácil desvencilhar-se da tradição gramatical, pois, consciente ou inconscientemente, as suas experiências pré-profissionais aparentam exercer, de algum modo, interferências nas suas escolhas em sala de aula.

Nesse sentido, apesar de ter afirmado não gostar de ensinar gramática, as aulas do professor Pedro eram marcadas por um grande investimento em conteúdos da gramática tradicional e por uma abordagem metodológica pautada na sequência apresentação de conceito/regra+ exemplo+ exercício. Além disso, ele denominava-se como praticante de uma metodologia tradicional de ensino.

Isso é reforçado com o uso de fichas de exercícios com formato de questões de vestibular e pelo modo como o professor usava o livro didático, optando pelas atividades que apresentavam um formato de identificação e de classificação de estruturas, embora o material também propusesse o estudo da língua a partir de uma perspectiva de análise e reflexão.

Entendemos, assim, que não basta apenas apresentar aos professores as novas orientações oficiais para o ensino de língua. É necessário proporcionar formação continuada de qualidade e dar tempo para que se adaptem às novidades e adaptem-nas, tendo em vista que suas ações não correspondem a uma aplicação direta dos discursos oficiais, e os docentes optam, com razão, por práticas que lhes possibilitam segurança.

Considerando as discussões gerada a partir da análise desse trabalho, assim como as dos trabalhos com os quais dialogamos, podemos afirmar que é necessário debatermos e investigarmos mais sobre o ensino de gramática/análise linguística. Desenvolver o ensino da língua a partir de uma perspectiva de análise e reflexão ainda causa conflito para muitos professores. Isso ocorre, muitas vezes, pelas tensões iniciadas na formação inicial, bem como pela ausência de um processo de permanente de formação continuada. Desse modo, entendemos ser necessário avançarmos na discussão sobre o tratamento da prática de análise linguística e, ademais, promover uma parceria entre a academia e os variados modos de fazer dos professores.

Por fim, reforçamos que essa tentativa de entender as práticas do professor Pedro, por meio da análise de seus saberes e práticas sobre ensino de gramática/análise linguística não objetiva limitar a discussão ao que ele deixou de fazer ou ao que ele (não) deveria ter feito, tendo como parâmetro uma idealização teórica. Em uma perspectiva distinta, objetivamos colaborar para a apreensão sobre como os professores mobilizam os seus diversos saberes e práticas no cotidiano escolar, tentando compreendê-los e não os julgar.

1Com o objetivo de manter o anonimato, usamos um nome fictício.

2Transcrição fonética: [ ] falas intercaladas; [ ] acréscimo de uma parte ao texto para melhor compreensão; [...] supressão de extrato; indica que as palavras ou expressões foram ditas exatamente da maneira que como estão escritas; (( )) introdução de uma pequena explicação sobre o contexto do extrato transcrito; :: falas alongadas; ... pausas curtas; “ ” introdução de um termo em destaque.

3Essa sequência não foi observada apenas em três (3) dias de aula, dos quais dois (2) foram dedicados à exibição de vídeos motivacionais, com o objetivo de desenvolver a autoestima dos estudantes e um (1) dia à correção da prova da terceira unidade.

Referências

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Recebido: 13 de Junho de 2019; Aceito: 23 de Setembro de 2019

Prof. Ms. Rafaella Sales da Silva, Escola de Referência em Ensino Médio Nicanor Souto Maior (Brasil), (Caruaru, Pernambuco), Secretaria de Educação Estadual de Pernambuco (Brasil), ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-0845-080X. E-mail: sales_rafaella@hotmail.com

Prof. Dr. Alexsandro da Silva, Universidade Federal de Pernambuco (Brasil), Centro Acadêmico do Agreste (Caruaru, Pernambuco), Programa de Pós-Graduação em Educação Contemporânea, Centro de Estudos em Educação e Linguagem (Recife, Pernambuco), Grupo de Pesquisa: Didática da Língua Portuguesa, ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-1943-8227. E-mail: alexs-silva@uol.com.br

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