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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.57 no.54 Natal out./dez 2019  Epub 10-Fev-2020

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2019v57n54id18585 

Artigos

Para uma cartografia de infâncias queer no currículo escolar

For a queer childhood cartography in the school curriculum

Para una cartografía de las infancias queer en el currículo escolar

João Paulo de Lorena Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-4855-0197

Marlucy Alves Paraíso1 
http://orcid.org/0000-0002-3542-4650

1Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil)


Resumo

Infâncias queer, desidentificadas dos padrões de gênero e sexualidade instituídos, estão presentes no currículo escolar, aquecem nossas pesquisas e docências, incendeiam nossas certezas e enchem o território curricular de chispas incandescentes e incontroláveis. Este artigo, instalando-se nos estudos do campo curricular de perspectiva pós-crítica, tem como objetivo discutir o mapa do fazer cartográfico, desenhado para a realização de uma pesquisa de mestrado, que investigou as resistências e os modos de vida forjados pelas crianças queer e suas infâncias - que chamamos de “fogueirinhas”- no currículo dos anos iniciais do ensino fundamental, de uma escola pública de Belo Horizonte. Para cartografar infâncias queer, faz-se necessário entrar em um jogo de experimentação de posturas brincantes e inventivas, em um devir-criança, que nos possibilite desmantelar a lógica adulto-centrada e criar procedimentos de pesquisa mais sensíveis aos movimentos minoritários dessas infâncias.

Palavras-chave: Currículo; Infâncias queer; Cartografia; Percursos metodológicos

Abstract

Queer childhood, unidentified from established gender and sexuality standards, are present in the school curriculum, warm our research and teaching, ignite our certainties and fill the curriculum territory with incandescent and uncontrollable sparks. This article, based on post-critical perspective curricular field studies, aims to show the map of cartographic designed to conduct a master's research that investigated the resistances and lifestyles forged by queer children and their childhood, which we call “litte bonfires” in the curriculum of the early years of elementary school, at a public school in Belo Horizonte. To map queer childhood it is necessary to enter into a game of experimentation of playful and inventive postures, in a becoming-child attitude, that enables us to dismantle adult-centered logic and create research procedures more sensitive to the minority movements of these childhood.

Keywords: Curriculum; Queer childhood; Cartography; Methodological pathways

Resumen

Las infancias queer, no identificadas a partir de las normas establecidas de género y sexualidad, están presentes en el currículo escolar, calientan nuestra investigación y enseñanza, encienden nuestras certezas y llenan el territorio curricular de chispas incandescentes e incontrolables. Este artículo, basado en estudios de campo curriculares de perspectiva poscrítica, tiene como objetivo discutir el mapa cartográfico, diseñado para realizar una investigación de maestría, que investigó las resistencias y los estilos de vida forjados por los niños queer y su infancia, que llamamos "pequeñas hogueras", en el currículo de los primeros años de la escuela primaria, en una escuela pública de la ciudad de Belo Horizonte. Para mapear las infancias queer, es necesario entrar en un juego de experimentación de posturas lúdicas e inventivas, en un devenir-niño, que nos permita desmantelar la lógica centrada en adultos y crear procedimientos de investigación más sensibles a los movimientos minoritarios.

Palabras clave: Currículo; Infancias queer; Cartografía; Vías metodológicas

Introdução: um mergulho no “mar de fogueirinhas” de um currículo escolar

Eduardo Galeano, em O livro dos Abraços (2017), conta a história de um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, que conseguiu subir aos céus. Quando voltou, disse que tinha visto lá de cima a vida humana e que, para nossa surpresa, somos um mar de fogueirinhas. Explica: “Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores” (GALEANO, 2017, p. 13). Do mesmo modo, cada fogueira possui uma intensidade diferente:

Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo (GALEANO, 2017, p. 13).

Buscamos inspiração no conto de Galeano (2017) para dizer que este artigo opera com a compreensão sobre a existência de diferentes infâncias, assim como da infância em suas diferenças. Partimos, desse modo, da premissa de que não há uma infância universal e a-histórica, vivenciada por todas as crianças do mesmo modo. O que há é uma multiplicidade de infâncias, tecidas nas tramas singulares das experiências cotidianas, dos encontros, dos agenciamentos, das composições e das experimentações. No currículo estudado, que subsidia este artigo, o objetivo foi de cartografar as resistências e os modos de vida forjados por crianças que não correspondem às normas de gênero e sexualidade instituídas socialmente. A pesquisa mostrou que cada uma dessas crianças vive de modo singular a experiência de deslocamento, monstruosidade e criação que atravessa as suas infâncias queer. Suas histórias, contudo, se encontram na medida em que a luta pela sobrevivência atravessa e mobiliza os diferentes caminhos cavados por elas.

Este artigo tem como objetivo discutir o mapa do fazer cartográfico, desenhado para a realização de uma pesquisa de mestrado que investigou as resistências e os modos de vida forjados pelas crianças queer e suas infâncias, que chamamos de “fogueirinhas”, no currículo dos anos iniciais do ensino fundamental, de uma escola pública de Belo Horizonte. Mas, claro, trata-se de um mapa aberto e incompleto, desenhado com um objetivo duplo: apresentar as crianças que fizeram parte da pesquisa e, ao mesmo tempo, explicar os procedimentos utilizados para o fazer cartográfico. Afinal, um mapa, na perspectiva aqui trabalhada, é “[...] aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 30). Isso significa que “[...] um campo que está sendo mapeado não se encontra fechado, acabado [...] e está sempre aberto a outras construções e significações” (PARAÍSO, 2004, p. 284). Nesse sentido, enquanto esboçamos um mapa, as narrativas produzidas por nós e pelas crianças queer “[...] não param de movimentar-se[...] e podem estar [...] criando outros contornos [...]” e atribuindo outros sentidos às questões curriculares (PARAÍSO, 2004, p. 284) e às suas próprias histórias.

De acordo com Paraíso (2010, p. 17), “[...] cartografar um currículo é construir um mapa aberto dos seus segmentos (poderes e territórios) e dos seus pontos de desterritorialização (por onde um currículo foge e faz fugir)”. Selecionamos, para desenhar esse mapa aberto, o conto de Galeano (2017) e algumas linhas de força traçadas durante a experiência de inserção no campo investigado. Entendemos experiência como aquilo “[...] que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (LARROSA, 2002, p. 21). Trata-se de uma posição de afetação e abertura intensiva, de “[...] uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental” (LARROSA, 2002, p. 24). Desse modo, ao nos colocarmos como pesquisadores para cartografar os territórios grávidos de possibilidades de um currículo escolar, foi necessário entrar no jogo da experimentação, desfazer e refazer caminhos planejados e mergulhar em um mar de intensidades variadas produzidas pelas crianças queer (PRECIADO, 2013; SILVA, 2018) e suas infâncias multicores, que nos afetaram e nos deslocaram de várias maneiras.

A “cartografia” - também chamada de “[...] esquizoanálise, micropolítica, pragmática, diagramatismo, rizomática” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 146) -, prática investigativa de natureza aberta, inspirada na produção de Gilles Deleuze e Félix Guattari, é aqui entendida como “[...] uma caixa de ferramentas, uma análise das linhas, espaços, devires, acontecimentos, variações contínuas [...]” (PERRONE, 2009, p. 63), que opera em movimento contínuo, experimentando e explorando territórios variados. A cartografia persegue linhas e seus traçados, faz movimentar as coisas e o pensamento, e se atém aos encontros e suas produções. Em um território, seja ele qual for, há toda uma geografia, “com linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fuga” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 18). Tais linhas “[...] são elementos constitutivos das coisas e dos acontecimentos [...]” (DELEUZE; GUATTARRI, 2011, p. 22) e, por isso mesmo, são constitutivas do currículo e das crianças da escola pesquisada.

As linhas de uma cartografia, com efeito, são muitas, infindáveis, “[...] multiplicam-se a cada novo olhar, sempre fogem antes de serem pegas” (OLIVEIRA, 2014, p. 289). Em sua tipologia, Deleuze e Guattari (2011) chegam a falar, utilizando a imagem de um livro, que em todas as coisas “[...] há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 18). As primeiras, linhas de territorialização, são aquelas que operam tentando definir, classificar, estratificar, dar uma rota segura ou uma essência estática a um território. Já as segundas, linhas de fuga, são linhas de desterritorialização, pelas quais a resistência é produzida e a vida escapa. Nessas linhas, tudo é “[...] partida, devir, passagem, salto, demônio, relação com o de fora” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 50).

Deleuze explica que uma cartografia “é uma análise militante”. Desse modo, assume uma posição de luta contra o “fascismo do poder” (DELEUZE, 2013, p. 30). Relacionando-se com o fora, a cartografia aproxima a forma de se fazer pesquisa ao modo como a vida se dá. Trata-se de uma maneira de pesquisar que não está desvinculada da prática. Isso porque, para Deleuze, não há dicotomia entre pensamento e ação, tudo é “[...] relação com o fora, fluxo contra fluxo, máquina com máquinas, experimentações [...]” (DELEUZE, 2013, p. 18). Só o pensamento, na relação com o caos, pode criar modos de existência. Pensar, nessa perspectiva, é fazer rebelião, tender ao infinito. Pensar é o contato com o fora; e o fora é o espaço da diferença, daquilo que foi amaldiçoado e expulso pela razão clássica por não se deixar capturar pela identidade, do subterrâneo que insiste e se impõe porque faz parte da ordem da vida.

Ao tomar a cartografia como um modo de fazer pesquisa, este artigo entende, como as pesquisas pós-críticas também o fazem, que não se pode ter um método ou caminho apriorístico - que é anterior à experiência - para realizar as investigações. As metodologias, nas pesquisas pós-críticas, são construídas no decorrer do percurso, “[...] buscando inspiração em diferentes textos, autores/as, linguagens, materiais, artefatos [...]” (PARAÍSO, 2014, p. 34-35), estando sempre “à espreita” de uma inspiração que pode vir dos mais variados lugares, como o cinema, a literatura, a música e a poesia. Na nossa experiência como cartógrafos/as, por exemplo, foi preciso um movimento contínuo de reinvenção de procedimentos e estratégias e, não poucas vezes, aquilo que havia sido planejado sofreu alterações. Foi preciso estar aberto/a ao encontro e às suas possibilidades. Ocupar a posição de um corpo permeável para pesquisar e ser afetado. Escutar e ser escutado/a, em um movimento povoado por expectativas, alegrias, medos, angústias e estranhamentos. Afinal, ir a campo é fazer parte do mapa e, no nosso caso, não conseguimos passar pelo fogo de fogueirinhas tão intensas e variadas sem, de alguma forma, sermos tocados/as aquecidos/as e, por vezes, queimados/as.

Nesse sentido, as linhas cartografadas, ao contrário do que pode parecer, não possuem linearidade e, tampouco, funcionam de modo circular. São rizomáticas. Cada uma trabalha nas outras, interagindo entre si como em um emaranhado. Sendo assim, “[...] não param de se misturar [...], se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra” (DELEUZE; GUATTARI, 1997.). Isto porque um rizoma “[...] não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 43). O argumento desenvolvido neste artigo é o de que para cartografar infâncias queer faz-se necessário entrar em um jogo de experimentação de posturas brincantes e inventivas, em um devir-criança que nos possibilite desmantelar a lógica molar adulto-centrada e criar procedimentos de pesquisa mais sensíveis aos movimentos moleculares dessas infâncias. A criação, nessa perspectiva, é parte constitutiva da pesquisa, tendo em vista que “[...] pesquisar é criar, e criar é problematizar” (CORAZZA, 2004, p. 27).

Para abordar algumas premissas gerais da cartografia e, ao mesmo tempo, desenhar um mapa de como a cartografia foi realizada, este artigo, a partir daqui, será divido em duas partes. Na primeira, reativamos memórias, percursos, linhas traçadas e registradas no diário de campo da pesquisa realizada, que mostram os caminhos e descaminhos percorridos até chegar à escola pesquisada. Na segunda parte, por sua vez, desenhamos algumas linhas do mapa cartografado, apresentando as crianças queer que povoam os territórios do currículo investigado, bem como os procedimentos cartográficos construídos para perseguir os seus rastros e mapear os seus percursos intensivos. Ao fazer isso, mostramos que, para mergulhar no mar de fogueirinhas intensivas de uma pesquisa, é preciso forjar procedimentos cartográficos capazes de cultivar os encontros e estar atento às sensações e aos “afectos”, deslocando-nos, constantemente, no entre-lugar do fogo, que não podemos “[...] medir senão com [nossas] emoções, e exprimir da maneira a mais oblíqua e indireta naquilo que escrev[emos]” (DELEUZE, 2013, p. 20). Antes de prosseguirmos, contudo, é importante informar que, por razões de ordem ética, os nomes das crianças e adultos que são mencionados neste artigo foram substituídos por nomes fictícios, preservando o anonimato dos/as participantes.

Entre caminhos e descaminhos: linhas e traçados de uma cartografia

Os caminhos de uma cartografia não são retilíneos, unívocos ou demasiadamente seguros. Eles não estão dados de antemão e, tampouco, podem ser considerados previsíveis. Em Cantares, o poeta espanhol Antonio Machado escreveu: “[...] caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar [...]” (MACHADO, 2009, s./p.). Inspirando-nos neste poema, afirmamos que uma cartografia é também um caminho que se constrói na medida em que nos aventuramos em percorrê-lo. Suas linhas e traçados misturam-se, conectam-se, produzindo um mapa de possibilidades, que sempre dá lugar ao novo e ao inesperado. Nesse mapa, há sempre espaço para a inquietude, o desejo, os medos, as dúvidas, as descobertas, as alegrias, as frustrações. Trata-se de um mapa em movimento. Isso porque é sempre possível traçá-lo de um outro modo, pegar uma outra rota, forjar um outro caminho.

Quando iniciamos o caminho da pesquisa cartográfica que subsidiou este artigo, uma primeira pergunta-problema nos atravessou: Que escola cartografar? Pensávamos nas dificuldades que poderíamos enfrentar para encontrar um campo fértil para a pesquisa, onde fosse possível mapear as resistências e os modos de vida forjados pelas infâncias queer. Foi então que, a partir de um trabalho de formação docente em gênero e sexualidade, desenvolvido pelo Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual (NUGDS), da Secretaria Municipal de Educação (SMED) de Belo Horizonte, decidimos fazer contato, na expectativa de uma possível indicação de escola.

Trocamos alguns e-mails com um dos dirigentes do NUGDS, e agendamos uma reunião. Fomos recebidos/as com muito entusiasmo por Júlio e Marta, ambos servidores/as da SMED. Durante o nosso encontro, conversamos sobre as motivações para a pesquisa e Júlio nos contou que, ao longo do ano letivo, o NUGDS, por ser uma referência em questões de gênero e diversidade sexual para as escolas de Belo Horizonte, recebe muitas ligações de diretores/as, professores/as e demais profissionais da educação, preocupados/as com o comportamento de algumas crianças que são vistas, no ambiente escolar, como apresentando um problema relativo aos seus corpos, expressões de gênero e sexualidades. Perguntamos se nos sugeririam alguma escola para a pesquisa e Marta nos contou que algumas escolas já estavam em contato com o Núcleo, solicitando ajuda. Citaram algumas delas e nos passaram os seus respectivos contatos e endereços. Chamou-nos a atenção o que disseram sobre a segunda escola que nos apresentaram: “Parece que estavam tendo problemas com alguns alunos dos anos iniciais, acho que 4º ou 5º ano. Alguns meninos estão usando maquiagem, burlando as normas [...]” (Registro de conversa informal com Júlio e Marta, junho de 2016).

A conversa com a equipe do NUGDS foi muito importante para a escolha do campo a ser cartografado. Fizemos uma opção pela segunda escola, considerando o episódio narrado por Júlio e Marta em nossa conversa. Fizemos contato com a escola e fomos recebidos, alguns dias depois, pela supervisora pedagógica dos anos iniciais do ensino fundamental, para quem explicamos sobre a pesquisa. “A pesquisa de vocês tem a ver com homossexualismo?”, indagou a supervisora. “De certa forma, por compreender questões de gênero e sexualidade no currículo escolar, tem sim!”, respondemos surpresos pela pergunta e, em seguida, explicamos brevemente que o termo adequado é homossexualidade. “É porque aqui na escola tem um menino que aparenta ser homossexual. Já veio até travestido para a escola”, explicou a supervisora, dando a entender que estávamos na escola certa. Isso nos lançou à espreita e fez com que decidíssemos acompanhar a turma do 5º ano do ensino fundamental, na qual estava o aluno "sob suspeita”.

Nas primeiras semanas de campo, pusemo-nos a pensar sobre os procedimentos que utilizaríamos para conversar com essas crianças, conhecê-las a partir de suas próprias narrativas e não somente por meio do olhar estrangeiro dos/as professores/as e supervisão pedagógica, que as classificavam a partir de suas concepções de mundo generificadas. Na medida em que mergulhávamos no mar de fogueirinhas do currículo pesquisado, “[...] em contato direto com as pessoas e seu território existencial [...]” (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 56), percebíamos que algumas das ferramentas que havíamos preparado aprioristicamente não eram adequadas para cartografar os “processos em curso” (BARROS; KASTRUP, 2015) e as variações intensivas produzidas por eles. Sem os cuidados e procedimentos necessários, corre-se o risco de se queimar ao aproximar-se do fogo. Lembramo-nos, então, de um (des)conselho de uma pesquisadora-curriculista: “Não podemos ficar reféns dos procedimentos de pesquisa que dominamos e que muitas vezes nos dominam. Seguir um caminho por demais conhecido dificulta que saiamos do seu traçado prévio” (PARAÍSO, 2014, p. 43). É preciso reinventar os métodos, ressignificar os procedimentos, deixar-se tocar, na experiência do sensível, pelo campo.

Quando estamos em campo, a tentação de chegar com tudo pronto e planejado nos confere um lugar de segurança e controle. Temos medo dos descaminhos, a sensação de estar perdido/a ou de não chegar a lugar algum nos aflige. Os instrumentos que carregávamos em nossas mochilas de cartógrafos/as não eram suficientes quando iniciamos as primeiras entrevistas semiestruturadas áudio gravadas com as crianças da escola pesquisada e constatamos que muitas delas não levavam muito a sério aquele encontro, respondendo a primeira coisa que lhes passava pela cabeça. Na maioria das vezes, a resposta era simplesmente “sim” ou “não” e por mais que tentássemos instigá-las a falar, não dava certo. Algumas crianças pareciam ter vergonha de falar, ficavam com a cabeça baixa e respondiam timidamente àquilo que era perguntado, do modo mais breve possível. Outras, repetiam a resposta do/a colega, já que as entrevistas aconteciam em pequenos grupos de quatro ou cinco alunos/as.

Foi então que, durante o recreio, enquanto observávamos um grupo de crianças brincando com um jogo de cartas, surgiu a ideia de um procedimento de pesquisa brincante, uma espécie de jogo. Fomos para casa, naquele dia, construindo essa ideia e, aos poucos, ela começou a tomar corpo (REGISTRO DE DIÁRIO DE CAMPO, 2016). Na semana seguinte, conversamos com a professora Rita sobre a possibilidade de retomar as entrevistas com as crianças a partir do primeiro grupo. Explicamos que o método utilizado não estava funcionando e que havíamos pensado em outro. Como só dois grupos do 5º ano haviam sido entrevistados, a professora não relutou e reelaboramos juntos o calendário. Partindo da premissa que “cartografar é acompanhar processos” (BARROS; KASTRUP, 2015), foi necessário, nesses momentos de parada e recriação dos procedimentos investigativos, apostar que a “[...] processualidade se faz presente em cada momento da pesquisa. A processualidade se faz presente nos avanços e nas paradas, em campo, em letras e linhas, na escrita, em nós” (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 73).

Os procedimentos de pesquisa de uma cartografia brincante

O primeiro procedimento de pesquisa que construímos a partir de nossas experimentações em campo foi nomeado de rodas lúdicas de conversa, e consistiu em um programa televisivo de entrevistas, no qual éramos os entrevistadores e as crianças as convidadas especiais. No corredor onde nos reuníamos para as entrevistas, criamos um espaço imaginário de um programa, onde as janelas tornaram-se câmeras escondidas, o aparelho celular que utilizávamos para as gravações virou um microfone e os/as alunos/as celebridades do universo escolar. Foucault (2013) chama de “heterotopias” as criações desses lugares outros, contraespaços inventados dentro de um lugar, mas “[...] que são absolutamente diferentes: lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-los ou purificá-los” (FOUCAULT, 2013, p. 20). Para o filósofo, as “crianças conhecem perfeitamente esses contra espaços, essas utopias localizadas”. É o “fundo do jardim”, “o celeiro” ou até mesmo “a grande cama dos pais”, onde

[...] se descobre o oceano, pois nela se pode nadar entre as cobertas; depois, essa grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as molas; é a floresta, pois pode-se nela esconder-se; é a noite, pois ali se pode virar fantasma entre os lençóis (FOUCAULT, 2013, p. 20).

Nesse sentido, a pesquisa cartográfica aproxima-se do conceito foucaultiano de “heterotopia”, porque nela faz-se necessário cair na linha de fuga de um devir-criança para inventar espaços outros e desenhar linhas imaginárias dentro do território a ser explorado. Espaços heterotópicos que nos possibilitem carto-brincar com as crianças ou brincar cartografando, escapando à lógica adulto-centrada de fazer pesquisa.

Na primeira parte das rodas lúdicas de conversa, as crianças se apresentavam e eram motivadas a contar a sua história a partir de um jogo de cartas que preparamos. As cartas eram divididas por eixos temáticos e cada uma delas continha uma pergunta-chave ou uma pista para direcionar a conversa. “Fale para o público que está nos acompanhando em casa um pouco de você”, “O que você mais gosta de fazer?”, “Qual é a sua aula preferida? Por quê?”, “Você tem amigos/as na escola?”, “Como é a sua família?”, “Você tem uma religião?”, “O que você mais gosta na escola?”, “O que você não gosta na escola?”, eram algumas das perguntas presentes nas cartas. A partir delas, outras perguntas e assuntos iam sendo colocados livremente.

Os/as entrevistados/as também podiam fazem perguntas uns aos outros e, na maioria das vezes, acrescentavam informações sobre a vivência na escola a partir da fala dos/as seus colegas. Na segunda parte do programa, que chamamos de “falando sobre o mundo de hoje”, passamos uma cesta com palavras-chave escritas em pequenas tiras dobradas de papel. As palavras eram: “amor”, “amizade”, “família”, “preconceito”, “racismo”, “homofobia”, “brinquedos de meninos e de meninas”, “trabalho”, “ser menino”, “ser menina”, “medo”, “sonhos”, “desafios”, “sexualidade”, “religião”, “violência”, “igualdade”, “diversidade” e “diferenças”. Quando as crianças demonstravam que não sabiam o significado da palavra, nós explicávamos, de modo que pudessem entender e opinar sobre o assunto. Na maioria dos grupos, quando alguém não entendia, uma outra criança, que conhecia o significado da palavra, explicava para os demais, não era necessária uma intervenção. O programa terminava com um apelo: “Vocês têm 1 minuto para deixar uma mensagem para as outras crianças, adolescentes e para os adultos que estão nos acompanhando em casa”. Depois disso, finalizávamos agradecendo aos/às convidados/as.

Foi por meio das rodas lúdicas de conversa, mas também de alguns diálogos informais durante o recreio e em sala de aula, das observações e da partilha sensível dos dias em campo, que pudemos conhecer e sermos contagiados pela força da história de Gabriel, Douglas, Laiane, Rodolfo e Luíza. Nos nossos encontros, pudemos entender, intensamente, o texto de Galeano (2017), que retomamos aqui. Alguns fogos “[...] incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chega perto pega fogo” (GALEANO, 2017, p. 13). Em cada conversa que tínhamos, nas expressões que os seus rostos iam assumindo na medida em que narravam as suas histórias, nas brincadeiras performáticas durante o recreio, nos ditos que escutávamos sobre essas crianças, sentíamo-nos incendiados por sensações díspares, capazes de mobilizar em nós alegrias e tristezas, esperança e dor, conforto e sofrimento.

Nesse jogo cartográfico de criação de um mapa das infâncias desviadas, fez-se necessário fazer das sensações também um procedimento metodológico. Para Deleuze e Guattari (2010), um bloco de sensações é sempre “um composto de perceptos e afectos” (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Isto porque, em uma pesquisa cartográfica, entra-se na ordem dos encontros. Um corpo, “[...] ao se encontrar com o meu, compõe-me. Composição aqui significa que as relações presentes naquele corpo se unem às minhas de tal forma que ambos os corpos se conservam e se prosperam” (IAFELICE, 2015, p. 47-48).

Os “afectos”, na perspectiva teórica em que este artigo está instalado, podem ser entendidos como devires, “[...] ora eles nos enfraquecem, quando diminuem nossa potência de agir e decompõem nossas relações (tristeza), ora nos tornam mais fortes, quando aumentam a nossa potência” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 73-74), produzindo em nós alegria. Nesse sentido, ao desenhar o mapa desta pesquisa, imersos/as na experiência produzida pelo encontro com fogueirinhas de intensidades variadas, por diversas vezes, precisamos interrogar: que encontros são capazes de produzir nessas infâncias alegria, multiplicando as cores de suas chamas, fazendo a vida fagulhar como fogueira? Que encontros, em contrapartida, diminuem e apagam as intensidades produzidas por essas infâncias, produzindo dor, sofrimento e exclusão? Desse modo, para desenhar as linhas constitutivas das infâncias queer, objeto da pesquisa cujo caminho metodológico apresentamos neste artigo, foi necessário permanecer à espreita, sensível às sensações e aos “afectos” mobilizados nos nossos encontros com as crianças e suas narrativas.

Um terceiro procedimento metodológico que utilizamos no fazer cartográfico desta pesquisa foi a produção de um diário de campo. A redação nesse diário consistiu em observar o dia a dia das atividades escolares, registrando em um caderno as falas, ações, imagens, expressões corporais, conversas informais com os/as alunos/as e as professoras, disposição dos objetos, de espaços e tempos. Mas também as sensações, percepções e “afectos”. Em alguns momentos, quando sentíamos algum incômodo ou resistência por parte daqueles/as que eram observados/as ou quando o registro concomitante à observação atrapalhava o desenvolvimento da pesquisa, como foi o caso das conversas informais, optamos em não registrar nada, fazendo o registro posteriormente, na escola (durante algum momento livre) ou quando chegávamos em casa. Todas as anotações foram consentidas, por meio de um documento assinado previamente, por aqueles/as que foram observados/as. Quando estávamos em sala de aula, desde o primeiro dia, posicionamo-nos, na maior parte do tempo, em carteiras no fundo da sala ou na lateral, com o objetivo de que a nossa presença não atrapalhasse o andamento das aulas e que pudéssemos ter uma visão mais panorâmica da turma, facilitando os registros das linhas e traçados das crianças queer em sala de aula.

Mas, quem são, afinal, essas crianças-fogueirinhas? Antes de prosseguirmos, gostaríamos de apresentá-las brevemente, sabendo de antemão que suas vidas e histórias, tal como o fogo, escapam por todos os lados e não podem ser capturadas por uma narrativa única. Desse modo, buscando inspiração nos/as contadores/as de história, rabiscamos aqui apenas algumas das múltiplas nuances das vidas dessas crianças, que, certamente, terão continuidade nos efeitos produzidos ao longo deste e de outros encontros sempre abertos que o/a leitor/a encontrará.

Gabriel é um menino negro, de corpo esguio, e tem 11 anos. Mesmo não sendo um aluno considerado exemplar, Gabriel gosta de estudar, é comunicativo e está sempre com um sorriso largo no rosto, fazendo com que ganhe a simpatia de grande parte de sua turma ainda no primeiro ano do ensino fundamental, quando chega à escola cartografada. O seu jeito alegre, divertido como fogo solto e livre, sempre com uma brincadeira ou piada a fazer, chama a atenção das suas professoras, que o consideram o “palhaço” da turma, aquele que sempre está rindo de tudo e de todos, provocando gargalhadas mesmo entre os/as mais sérios/as e tímidos/as.

Gabriel chegou à escola com 7 anos, um ano mais velho que a maioria das outras crianças que ingressavam com ele no primeiro ano do ensino fundamental. Isso, segundo conta, se explica porque sua família precisou se mudar diversas vezes, algumas delas de um bairro para o outro e, duas vezes, de uma cidade para outra, por ocasião de algumas dificuldades que, na época, não o explicaram. Nos seus primeiros dois anos, o pequeno Gabriel experimentara as alegrias de uma infância comum e feliz, recheada de brincadeiras e aventuras, quase sempre acompanhadas da admiração, do riso solto e do carinho dos/as seus/suas colegas e professoras, talvez por ser o aluno mais velho da turma e ter se tornado uma referência nos momentos de diversão durante o recreio, dado o seu jeito brincalhão e espalhafatoso. Mas ele não imaginava que aquilo que nesses primeiros anos era motivo de alegrias, diversão e popularidade, se transformaria, posteriormente, em um território de tristezas, dores e exclusão.

Foi no terceiro ano, quando Gabriel tinha completado 9 anos, que ouviu pela primeira vez, por causa do seu jeito de ser, a palavra bicha. “Mulherzinha”, “bicha”, gritaram-lhe dois garotos durante o recreio, enquanto ele brincava de pular corda com as meninas. Mesmo sem entender plenamente o que significava essas palavras, sabia que era alguma coisa ruim e se tratava de uma ofensa. Gabriel revidou com um empurrão em um deles, e todos foram levados para a sala da coordenação. Por que teria o seu jeito alegre, divertido, solto, brincalhão e comunicativo - que antes era motivo de popularidade entre meninos e meninas -, se tornado, repentinamente, motivo de zombaria e agressão? Gabriel não entendia o que havia de errado com ele, para ser chamado de “bicha” e “mulherzinha”. Naquela tarde, aparentemente comum, o pequeno Gabriel teve, pela primeira vez, a sua masculinidade questionada. De repente, aquele fogo intenso, cheio de vida, cores e alegria, que carregava consigo, foi ameaçado pela frieza do preconceito e da discriminação.

Nesse mesmo período, as linhas da história do pequeno Gabriel começam a se encontrar com as de outras crianças de sua turma. Laiane, Luíza, Rodolfo e Douglas, assim como Gabriel, também sofrem os efeitos de não corresponderem às normas estabelecidas para os seus corpos infantis. Laiane é uma menina branca, tem 10 anos e traz no rosto um sorriso largo e espontâneo. Gosta de se maquiar, sempre está com brincos grandes e alguma pulseira, e diz que “por já ter corpo de mulher” sofre preconceito e é chamada de “piriguete” por algumas meninas do 5º ano. A posição de sua turma em relação a ela é conflituosa. Ao mesmo tempo em que é vista como uma menina bonita e extrovertida por algumas crianças, também já foi chamada de “sapatão” e “Maria homem”. Isso pelo fato de não gostar de brincar com o que as outras meninas brincam e andar sempre com o Gabriel e outros meninos. “Sou a melhor amiga do Gabriel, a gente sempre tá junto nas bagunças”, afirma enquanto dispara uma gargalhada.

Seu jeito descontraído e de bem com a vida passa a impressão de força e altivez, como uma fogueira intensa, que nunca experimenta adversidade. Confessa que nem sempre foi assim. “Eu era muito calada no 1º e 2º ano, e ligava muito pra o que falavam de mim”, explica. “Hoje eu não ligo mais, sabe? Todo mundo tem que viver como quer”, conclui lançando os braços para a frente como se quisesse sinalizar liberdade. Sempre muito falante e destemida, conta que já chegou a defender Gabriel e Rodolfo, quando outros meninos os chamavam de “mulherzinha”. “Alguns meninos têm medo de mim porque sou maior que eles”, diz com ar de riso. Sua relação com as professoras, contudo, sempre foi marcada por um certo incômodo em relação ao seu comportamento e postura. Não poucas vezes precisou escutar que “menina não fala gritando”, “você já está virando uma mocinha, precisa se comportar melhor”, entre outras coisas. No 4º ano, chegou a ser chamada de “espalhafatosa” por uma professora e, sem saber o que era isso, ao chegar em casa, perguntou a sua mãe que, no dia seguinte, procurou a escola, colocando-a de castigo ao saber do seu “mau comportamento”.

Luíza, “a Beyoncé da escola”, nas palavras do Gabriel, que sempre a chama assim, é uma menina negra e tem 10 anos. Assim como Gabriel e Laiane, está na escola pesquisada desde o 1º ano do ensino fundamental. Questionada sobre o apelido que faz referência a uma diva pop e mulher negra norte-americana, diz que “isso é coisa do Gabriel só porque eu gosto de cantar e pareço um pouco com a Beyoncé”. Luíza tem um jeito tímido, gosta de estudar e de cantar quando está entre os/as seus/suas amigos/as. Gosta de música pop, mas seus ritmos preferidos são “funk e sertanejo”. Em uma de nossas conversas, conta que já sofreu racismo por sua cor de pele. “Uma vez me disseram que além de macaca, eu sou sapatão”, diz com lágrimas no rosto. Sua história, nesse sentido, conecta-se com a do Gabriel, na medida em que o racismo se agencia à violência de gênero, produzindo a abjeção de um modo distinto em relação às crianças brancas.

Luíza gosta de futebol e de vôlei. Nas aulas de educação física, destaca-se como uma das melhores jogadoras. É uma das poucas meninas que faz questão de sempre participar dos jogos de futebol. Como, na escola pesquisada, atividades físicas diferenciadas acontecem concomitantemente, a maioria das meninas do 5º ano preferem brincar de queimada e/ou pular corda. “Muita gente acha que futebol é coisa de menino”, explica, enquanto franze a testa em expressão de desacordo. Luíza tem a simpatia e admiração de muitos meninos de sua turma, que “acham legal” meninas jogarem futebol. Mas, ao mesmo tempo, sofre uma espécie de desprezo das outras meninas que não gostam de jogar. “Só Laiane, que é doida também, é minha amiga na sala. As outras meninas têm medo de jogar futebol porque acham que os meninos vão bater forte, sabe? Tipo chutar. Como eu não tenho medo, elas ficam falando de mim”, desabafa enquanto conversamos.

Douglas, por sua vez, é um menino branco e tem 10 anos. Gosta de desenhar e, no primeiro dia em que nos encontramos, nos mostrou o seu caderno de desenhos. “Quando eu crescer quero ser um artista”, explicou. Ao contrário das outras crianças do seu grupo de amizade, ingressou na escola pesquisada já no 3º ano, quando sua família se mudou do interior para Belo Horizonte. É considerado pelas professoras um menino “doce e educado”, às vezes “delicado demais” e que “não sabe se proteger”. Fogueirinha de fogo suave e repleto de cores, Douglas gosta de “coisas alegres”. “Gosto muito das roupas das meninas, queria ter uma coleção de vestidos de princesa em casa, mas meus pais não iriam deixar”, nos confidencia em uma de nossas conversas. Ao nos contar isso, lembramo-nos de uma edição da Revista Nova Escola (fev. 2015). Na semana seguinte, durante uma roda lúdica de conversa, mostramos ao grupo a capa da revista, intitulada “Vamos falar sobre ele?”, e Douglas assume em seu rosto uma feição de tristeza, seus olhos enchem-se de lágrimas.

Apontando com o dedo para o pequeno Romeo, garoto que aparece vestido de princesa na capa da revista, Douglas fica em silêncio por alguns instantes e, logo em seguida, diz: “eu sou como ele. Gosto dessas coisas alegres, dessas cores”. Douglas, assim como o pequeno Gabriel, também tinha o costume de vir maquiado para a escola. A professora Rita conta que, logo quando ele ingressou na escola, trazia na mochila um kit de maquiagem e, junto com Gabriel, se maquiava e maquiava outras crianças. Coisa que a supervisora Renata omitiu ou se esqueceu de comentar na nossa primeira conversa, quando nos apresentou ao Gabriel, apontando-o como o menino afeminado da maquiagem. Para Douglas, o mais legal na escola são as aulas de arte, porque pode brincar com tintas, desenhar e recortar papéis. Conversando com ele sobre os episódios da maquiagem, ele explica que não entende porque meninos não podem se maquiar, não podem usar algo que, para ele, é tão bonito. Acrescenta que chegou a ser “xingado por outros meninos” e “até por meninas” quando perceberam que ele passava “pó” e um batom de sua mãe em seu rosto. Por “ser gordinho e ter os peitos grandes”, Douglas conta que também o chamam de “mulherzinha”. Sua história, como a de tantas outras crianças, é atravessada por classificações, nomeações e violências, que querem capturar o seu corpo, aprisionando a sua fruição, estancando os seus devires.

Rodolfo, de todas as fogueirinhas, é a de fogo mais brando e suave. Carrega em seu corpo uma simplicidade discreta, quase frágil e, ao mesmo tempo, a firmeza de um olhar que demonstra já ter, mesmo tão pequeno, experimentado a dureza da vida. Rodolfo é um menino branco, tem 10 anos e estuda na escola pesquisada desde o 1º ano. Seu jeito tímido, de alguém que fala muito pouco, é apontado pelas professoras como a maior dificuldade de sua trajetória escolar. “Ele já teve muita dificuldade de socialização. Antigamente, não tinha amigo nenhum. Não conseguia criar vínculo”, explica a professora Rita. “Era agredido por outros meninos no intervalo o tempo todo. Diziam que ele era lerdo, delicado feito menina, lento, não o respeitavam. A gente sempre tinha que intervir de alguma forma”, acrescenta Renata, supervisora dos anos iniciais do ensino fundamental. Um certo dia, Laiane, a fogueirinha espevitada e “mãe do grupo”, decidiu se aproximar de Rodolfo e começar a construir, aos poucos, uma relação de amizade com ele, trazendo-o, posteriormente, para o seu grupo de amigos/as. Rodolfo conta que Laiane, Gabriel, Luíza e Douglas são os seus “melhores e únicos amigos”, porque fora da escola só fica em casa e não tem amizade com outras crianças. Explica que essa aproximação “com Laiane e os seus amigos” não foi fácil, porque “quando comecei a andar com ela um menino da sala, o Arthur, inventou que eu estava namorando com o Gabriel, e ela estava ajudando”. Mas, por outro lado, diz que está muito feliz porque hoje tem amigos/as.

As histórias e narrativas das crianças-fogueirinhas, suas infâncias queer, são fagulhas de resistência e criação. Desde os seus corpos desviados da norma de gênero e sexualidade, essas crianças resistem e forjam saídas para que a vida passe em sua multiplicidade. Por meio da amizade queer, utilizada como uma estratégia de resistência, é possível existir em um currículo que, não poucas vezes, é insensível e violento aos modos de vida que não correspondem às tradicionais modulações da heterocisnormatividade. Ser uma criança viada não é fácil! É preciso coragem, criatividade e força para performar “modos transviados de existir [...] e, assim, [...] inventar um espaço outro” para sobreviver [...] às diversas violências investidas [...]” pelo poder (SILVA, 2018, p. 271). É preciso cultivar encontros capazes de afirmar a vida com a irreverência das cores de fogueirinhas que não param de se espalhar, provocando incêndios em currículos, práticas curriculares, pedagogias e instituições escolares. O que aprendemos com essas crianças e com o percurso da pesquisa que realizamos? É o que mostraremos no tópico a seguir.

Considerações finais

As crianças-fogueirinhas que povoam as páginas deste artigo nos ensinaram que a vida sempre resiste... E resiste nos bons encontros. Naqueles encontros capazes de desafiar os poderes estabelecidos, que “[...] têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 75). A vida resiste na amizade, nas pequenas contestações, no riso solto, nas confidências entre amigos/as, na coragem de contar a sua história. Cada criança desta pesquisa, cada história narrada com cores e intensidades diferentes, cada sorriso, lágrima, movimento, grito, voz, atesta que “[...] apesar de todos os poderes que insistem em mostrar a infertilidade das coisas, as dificuldades da vida, as faltas de saídas , as cercas dos currículos [...], o solo que pisamos é fértil, assim como a vida é grávida de nascimento e o currículo prenhe de possibilidades” (PARAÍSO, 2018, p. 49).

Para cartografar suas infâncias e os movimentos de criação e resistência produzidos por elas no currículo escolar, fez-se necessário uma certa preparação, produzir para nós mesmos/as corpos atentos, sensíveis, estranhos e abertos à intensidade dos encontros. Isso porque, em uma cartografia, o pensamento não deve estar separado do corpo, não deve cindir das paixões, das sensações e dos “afectos”. Nesse processo, “[...] o acolhimento da surpresa e do imprevisto” (PASSOS; KASTRUP; TEDESCO, 2014, p. 10) foi parte indissociável do modus operandi que nos acompanhou enquanto cartógrafos/as que decidiram se aventurar nos territórios das infâncias queer. Para isso, uma disposição contínua ao deslocamento, à mudança e à ressignificação dos métodos e procedimentos foi indispensável. Afinal, “uma cartografia [é sempre] “[...] reversível, modificável, passível de ser colorida de todas as maneiras [...]” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 133) e, assim como as chamas das fogueirinhas multicores que cartografamos, nela tudo é centelha, faísca, devir.

Um/a pesquisador/a cartógrafo/a em educação e currículo precisa estar atento/a à vida que se anuncia e se costura no território investigado. Seu trabalho cheira à vida, como ela se torna e pode se tornar, a vida em seu porvir. A aventura que realizamos na pesquisa que subsidiou este artigo teve o cheiro, o sabor, as cores, as velocidades, os perigos e as sensações das brincadeiras de criança. O que fizemos, nesse sentido, foi um agenciamento às vidas das “crianças que não fazem a pedagogia da boa imagem” (RODRIGUES; PRADO; ROSEIRO, 2018, p. 15). Crianças que ainda nos assustam, colocando sob risco as nossas convicções e nos interpelam a vê-las, escutá-las, senti-las, protegê-las e a entrar com elas no jogo da diferença. Essas crianças, com suas infâncias queer, seus “corpos lânguidos, afeminados, extravagantes, debochados; corpos sumidouros” (RODRIGUES; PRADO; ROSEIRO, 2018, p. 15) estão em muitos lugares, aparecem e somem, às vezes, se escondem e retornam a aparecer de uma outra forma. Elas também estão nos currículos escolares e não cessam de criar e resistir.

Referências

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Recebido: 28 de Agosto de 2019; Aceito: 18 de Outubro de 2019

Prof. Ms. João Paulo de Lorena Silva, Colégio Padre Eustáquio (Brasil), Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil), Pesquisador no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Currículos e Culturas, ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-4855-0197. E-mail: joaopaulopalmas@gmail.com

Profa. Titular Marlucy Alves Paraíso, Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil), Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Currículos e Culturas, Vice-presidente da Associação Brasileira de Currículo, ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-3542-4650. E-mail: marlucyparaiso@gmail.com

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