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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.55 Natal ene./marzo 2020  Epub 29-Ene-2021

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n55id19125 

Artigo

Jornada de trabalho e docência: uma análise da hora-atividade na rede estadual do Piauí

Working hours and teaching: an analysis of hour-activity in Piauí state public school network

Jornada de trabajo e docencia: un análisis de la hora-actividad en la red estatal de Piauí

Adriana e Silva Sousa1 
http://orcid.org/0000-0002-3613-0208

Dante Henrique Moura2 
http://orcid.org/0000-0001-8457-7461

1Universidade Estadual do Piauí (Brasil)

2Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (Brasil)


Resumo

Este estudo tem como objetivo analisar os desdobramentos da instituição da hora-atividade no trabalho do professor do ensino médio da rede estadual do Piauí, dentro do contexto das principais políticas educacionais implementadas no Brasil nas décadas de 1990, 2000 e 2010. Para isso, realizou-se uma revisão de literatura, com auxílio de uma pesquisa documental, sobre a jornada de trabalho dos professores da educação básica no país e as políticas educacionais que regulamentam a hora-atividade. Em seguida, analisam-se os dados de entrevistas semiestruturadas realizadas com dois gerentes das Gerências Regionais de Educação da Secretaria de Estado da Educação do Piauí, 20 professores de ensino médio e um integrante do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Básica Pública do Piauí. Os resultados mostram que o avanço no cumprimento da hora-atividade se confronta com as condições de trabalho ainda inadequadas nas escolas, com a ingerência na organização pedagógica do tempo de trabalho do professor com os baixos salários.

Palavras-chave: Jornada de trabalho; Ensino médio; Docência; Hora-atividade

Abstract

This study aims to analyze the consequences of the institution of the hour-activity in the work of the high school teacher at Piauí state, within the context of the main educational policies implemented in Brazil in the 1990s, 2000s and 2010s. In this regard, we conducted a literature review, with the help of a documentary research, about the working hours of basic education teachers in the country and the educational policies that regulate the hour-activity. Then, we analyze the data from semi-structured interviews conducted with two managers of the Regional Education Management of the Piauí State Secretariat of Education, 20 high school teachers and one member of the Piauí Public Basic Education Workers Union. The results show that the progress in the hour-activity fulfilment is confronted with the still inadequate working conditions in schools, with mismanagement in the pedagogical organization of the teacher's working time with low salaries.

Keywords: Working hours; High school; Teaching; Hour-activity

Resumen

Este estudio tiene como objetivo analizar las consecuencias de la institución de la hora-actividad en el trabajo del profesor de la enseñanza media en la red estatal de Piauí, en el contexto de las principales políticas educacionales implementadas en Brasil en las décadas 1990, 2000 y 2010. Para este fin, se ha realizado una revisión de literatura, con la ayuda de una investigación documental, sobre la jornada de trabajo de los profesores de la educación básica en el país y las políticas educacionales que regulan la hora actividad. En seguida, analizamos los datos de las entrevistas semiestructuradas hechas con dos gerentes de la Gerencia Regional de Educación de la Secretaría del Estado de la Educación del estado Piauí, 20 profesores de enseñanza mediana y un integrante del Sindicato de los Trabajadores en Educación Básica Pública de Piauí. Los resultados muestran que el progreso nel cumplimiento de la hora-actividad se enfrenta con las condiciones de trabajo todavía inadecuadas en las escuelas, con la injerencia en la organización pedagógica de tempo de trabajo del profesor con bajos salarios.

Palabras clave: Jornada de trabajo; Enseñanza media; Enseñanza; Hora

Introdução

A discussão da jornada de trabalho integra os estudos acerca das condições de trabalho em geral, em sentido amplo, e das condições de trabalho dos docentes da educação básica, em particular. Trata-se de uma temática que não pode ser abordada sem considerar o contexto das relações capitalistas de produção, pois a regulamentação da jornada de trabalho é determinada por transformações conjunturais no padrão de desenvolvimento socioeconômico e político de cada lugar. Isso porque, como define Marx (2006, p. 270): “[...] a jornada de trabalho é, portanto, determinável, mas considerada em si mesma, é indeterminada”.

Desse modo, a regulamentação da jornada faz parte da luta por melhores condições de trabalho que deveria permitir espaço para a formação humana. Diferentemente, Marx (2006, p. 266) esclarece que o tempo de trabalho/jornada de trabalho, na sociedade capitalista é “[...] constituída pela soma do trabalho necessário e do trabalho excedente, ou seja, do tempo em que o trabalhador reproduz o valor da sua força de trabalho e do tempo em que produz a mais-valia”. Nesse contexto, esse mesmo autor discorre sobre: a falta de tempo para o desenvolvimento intelectual, para as funções sociais e para o livre exercício das forças físicas e espirituais; o excesso de horas trabalhadas e a exploração da força de trabalho prematura. Além disso, denuncia a permanência de trabalhadores nas fábricas após o expediente realizando tarefas essenciais ao trabalho que não há tempo para desenvolver durante a jornada.

Embora os escritos de Marx (2006) tenham como empiria os trabalhadores das fábricas inglesas do século XIX, podemos afirmar que, resguardadas as devidas proporções, diferentes aspectos relacionados à regulamentação da jornada de trabalho ainda permanecem em pauta nos estudos e na luta por melhores condições de trabalho no Brasil e no mundo. De modo mais específico, as problemáticas em torno da jornada de trabalho dos professores da educação básica se aproximam dessa discussão e evidenciam aspectos que ainda precisam ser superados.

Nesse sentido, Fernandes e Silva (2012) e Oliveira e Vieira (2012) constatam um aumento na jornada de trabalho dos professores, Vieira (2003) ressalta o acúmulo de atividades laborais, e Macêdo e Cabral Neto (2013) identificam falta de tempo para as atividades extraclasses.

Sobre esse último aspecto, a pesquisa “Retratos na Escola 3”, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), constatou que “os educadores trabalham, em média, mais 14 horas semanais, sendo o tempo gasto, em casa, com trabalhos profissionais, de 8 horas.” (VIEIRA, 2003, p. 51). Do mesmo modo, o Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente (Gestrado) da Universidade Federal de Minas Gerais registrou que 47% dos professores afirmaram sempre levar trabalho para casa, 24% informaram levar frequentemente e somente 12% declararam nunca levar (PESQUISA..., 2010).

Esse alongamento da jornada de trabalho para além dos limites da escola revela que existe um tempo de planejamento, avaliação, estudos e formação necessários ao processo educacional que ainda não foi garantido na jornada de trabalho. Portanto, é preciso superar a realidade em que:

Tais atividades (preparação de aulas e correção de atividades dos alunos) acontecem muitas vezes, à noite, em virtude de um grande número de professores da escola pública possuir duas ou três jornadas de trabalho (na mesma escola ou em outra privada). Há, ainda, professores que deixam de participar de atividades de lazer, em seu tempo ‘livre’ para dar conta do número de responsabilidades profissionais que vão além daquelas que já compõem seu horário de expediente na escola (MACÊDO; CABRAL NETO, 2013, p. 158).

Nesse cenário, embora diferentes marcos regulatórios venham impactando positivamente na organização da jornada de trabalho do professor, garantindo tempo de trabalho para as atividades extraclasse em algumas redes de ensino, a concretização dessas regulamentações ainda é problemática e leva a desdobramentos que vão desde a insuficiência do tempo destinado a essas atividades até a forma como esse tempo é garantido e organizado no espaço da escola.

Nesse contexto, nossa aproximação, como pesquisadores, com a realidade das condições de trabalho de professores do ensino médio da rede estadual do Piauí, em Teresina, tem mostrado que o cumprimento da hora-atividade envolve o necessário avanço das regulamentações, mas também aspectos que dizem respeito à concretização desse tempo.

Dada essa problemática, o objetivo deste artigo é analisar os desdobramentos da instituição da hora-atividade no trabalho do professor do ensino médio da rede estadual do Piauí, dentro do contexto das principais políticas educacionais implementadas no Brasil nas décadas de 1990, 2000 e 2010. Para isso, realizamos uma revisão de literatura, auxiliados por uma pesquisa documental, acerca da jornada de trabalho dos professores da educação básica no Brasil e sobre as políticas educacionais que se destinam à regulamentação da hora-atividade. Em seguida, analisamos os dados de entrevistas semiestruturadas realizadas, entre 2016 e 2017, com dois gerentes das Gerências Regionais de Educação (GRE) da Secretaria de Estado da Educação do Piauí (Seduc-PI), 20 professores de ensino médio da referida rede e um integrante do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Básica Pública do Piauí (Sinte-PI), em Teresina. Além disso, para esclarecer aspectos importantes sobre a temática, contamos com a colaboração de Heleno Araújo e Marta Vanelli, membros da CNTE, em entrevista realizada em 2017.

A exposição da pesquisa está organizada em cinco partes. Além desta introdução e das considerações finais, fazemos uma discussão sobre a jornada de trabalho dos professores da educação básica no Brasil; apresentamos um estudo acerca da hora-atividade no contexto das lutas da categoria docente e das políticas educacionais; e analisamos os desdobramentos das regulamentações da hora-atividade na rede estadual do Piauí.

Jornada de trabalho do professor da educação básica

Mesmo que a intensificação do trabalho, a partir do toyotismo, seja feita com mais frequência pela otimização do tempo já instituído na jornada de trabalho, entre os anos de 1981 e 2009, como indicam Fernandes e Silva (2012), houve uma elevação no número de horas trabalhadas pelos professores. Esses autores tratam tal fato como a situação mais denunciadora da precarização do trabalho docente. A constatação é de que a carga horária de trabalho aumentou, em média, 3,67 horas semanais.

Outro importante aspecto na composição da jornada de trabalho do professor da educação básica é o acúmulo de atividades. Isso porque, a partir da década de 1990, passou-se a exigir mais do professor, envolvendo-o em atividades que vão além da sala de aula, responsabilizando-o por outras tarefas do processo educativo, como aquelas ligadas à gestão educacional. Assim, é solicitada ao professor sua participação na elaboração do projeto pedagógico da escola, na construção das relações entre escola e comunidade, nos conselhos escolares etc. Mesmo que a participação dos docentes em tais atividades seja importante ao processo educativo, frequentemente não lhes são dadas condições adequadas para tal, levando a uma sobrecarga de trabalho. Portanto, é preciso considerar que:

[...] se o professor fosse bem remunerado no âmbito de uma carreira docente que lhe garantisse jornada integral numa única escola, ele poderia exercer, sem problemas, as mencionadas funções. Mas, trabalhando em várias escolas de comunidades diferentes, como pode ele, além de ministrar grande número de aulas para garantir uma remuneração minimamente satisfatória, participar da elaboração do projeto pedagógico dessas várias escolas, de sua gestão e, além disso, da vida dessas diferentes comunidades? (SAVIANI, 2007, p. 445).

Soma-se a isso, o fato de que os professores são levados a assumir variadas funções no ambiente escolar que são resultantes da complexa conjuntura social do país. Muitas dessas funções fogem do seu processo formativo de professor. Como assevera Oliveira:

O professor, diante das variadas funções que a escola pública assume, tem de responder a exigências que estão além de sua formação. Muitas vezes esses profissionais são obrigados a desempenhar funções de agente público, assistente social, enfermeiro, psicólogo, entre outras (OLIVEIRA, 2004, p. 1132).

Ressaltamos, ainda, que há um prolongamento da jornada de trabalho de uma parcela de professores através do acúmulo de atividades laborais remuneradas não vinculadas à docência. Tal fato acontece porque esses sujeitos procuram garantir melhores condições de vida para si e para suas famílias. Nesse cenário, Vieira (2003) destaca que 16,5% dos professores exercem trabalhos remunerados diferentes da docência. Esse índice é muito próximo daquele detectado pelo Gestrado/UFMG, uma vez que 13% dos docentes participantes do survey afirmam exercer alguma atividade remunerada em outro setor não ligado à educação (PESQUISA..., 2010).

Portanto, a intensificação da jornada de trabalho, por meio do aumento das horas trabalhadas na escola; de um maior número de tarefas destinadas à docência; do acúmulo de funções; assim como da soma de atividades laborais, é uma realidade que atinge parcela importante dos professores da educação básica. Essa intensificação do trabalho do professor resulta principalmente de dois aspectos que se fortalecem mutuamente: a reestruturação da docência diante da nova perspectiva de gestão educacional que emerge do contexto de reestruturação produtiva e da insuficiência da remuneração. Sobre esse primeiro aspecto, Oliveira assinala que, no processo de reestruturação produtiva:

[...] assim como o trabalho em geral, também o trabalho docente tem sofrido relativa precarização nos aspectos concernentes às relações de emprego. O aumento dos contratos temporários nas redes públicas de ensino, chegando, em alguns estados, a número correspondente ao de trabalhadores efetivos, o arrocho salarial, o respeito a um piso salarial nacional, a inadequação ou mesmo ausência, em alguns casos, de planos de cargos e salários, a perda de garantias trabalhistas e previdenciárias oriunda dos processos de reforma do Aparelho de Estado têm tornado cada vez mais agudo o quadro de instabilidade e precariedade do emprego no magistério público (OLIVEIRA, 2004, p. 1140).

No que diz respeito à insuficiente remuneração, podemos destacar que o salário dos professores da educação básica no Brasil é baixo, comparado a outros países. O documento “Panorama da educação: destaques do Education at a Glance 2016” revela que:

Se tomado como referência o piso salarial profissional nacional de 2014, o mínimo que um docente brasileiro dos anos iniciais receberia seria o equivalente a cerca de 12.200 dólares por ano. Em média, nos países da OCDE, o salário inicial de um docente do mesmo nível é de cerca de 31.000 dólares. Países como Suíça, Alemanha e Luxemburgo possuem salários iniciais superiores a 45.000 dólares por ano (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA, 2016, p. 19).

Nesse cenário que se mostra problemático para a categoria docente na educação básica, Araújo Filho (2017) e Vanelli (2017) ressaltam que a principal reivindicação no que diz respeito à jornada de trabalho é o estabelecimento de uma jornada máxima de 40 horas semanais com dedicação exclusiva em uma única unidade escolar e garantia de 50% do tempo para cumprimento da hora-atividade na escola.

O enfrentamento de problemáticas que já parecem habituais na profissão docente, como a sobrecarga de atividades, o prolongamento da jornada de trabalho no espaço da vida privada e a sobrecarga gerada pelo acúmulo de responsabilidades e de empregos é necessário para a instituição de melhores condições laborais. Para isso, a jornada de trabalho carece, entre outros aspectos, ter melhor regulamentação a partir de planos de carreira que valorizem a atividade docente, inclusive seus salários. Um aspecto crucial para esse alcance é o avanço da instituição da hora-atividade, uma luta que vem sendo travada historicamente, como abordaremos no próximo tópico.

Hora-atividade: uma reivindicação histórica da categoria do magistério

A educação escolar tem ocupado um espaço de destaque cada vez maior diante das transformações da produção capitalista, ocorridas a partir da segunda metade do século XX, tornando-se, mais incisivamente, meio pelo qual os sujeitos inserem-se no mundo do trabalho, seja na perspectiva da adaptação ou da transformação social. Desse modo, a escola reafirma-se como ambiente de aquisição do conhecimento científico. Nesse sentido, Saviani (1991, p. 26) destaca que não basta a existência do saber sistematizado, “[...] é necessário viabilizar as condições de sua transmissão e assimilação. Isso implica dosá-lo e sequenciá-lo de modo que a criança passe gradativamente do seu não-domínio para seu domínio.”

Nessa perspectiva, a educação escolar exige uma prática pedagógica que organize a aquisição do saber sistematizado e as condições materiais que garantam o aprendizado. E é nesse sentido que o trabalho docente envolve um conjunto de operações didáticas coordenadas entre si, como: planejamento, direção do ensino e da aprendizagem e avaliação (LIBÂNEO, 2013). Além disso, Oliveira (2004) ressalta que

[...] o trabalho docente não é definido mais apenas como atividade em sala de aula, ele agora compreende a gestão da escola no que se refere à dedicação dos professores ao planejamento, à elaboração de projetos, à discussão coletiva do currículo e da avaliação (OLIVEIRA, 2004, p. 1132).

Sendo assim, a educação escolar se produz em diferentes momentos, exigindo um tempo de trabalho docente que vá além das tarefas realizadas com os alunos. Esse tempo é definido como hora-atividade e deve ser entendido como:

Período reservado, dentro da carga horária de trabalho remunerado do professor, ao planejamento de aulas, estudos, elaboração e correção de materiais, entre outros. Dentre as atividades desempenhadas nesse tempo, por um lado, encontram-se aquelas relativas à elaboração individual e correção de atividades discentes; ao planejamento de aulas, aos estudos e reflexões destinados à construção e implementação de projetos e ações desenvolvidas durante as aulas, etc. Por outro lado, encontram-se atividades relacionadas ao desempenho de trabalhos coletivos como formação de grupos para planejamento de tarefas, projetos ou ações educativo-pedagógicas mais amplas e/ou mais pontuais; atendimento aos alunos, pais e/ou resolução de assuntos de interesse da comunidade escolar, etc. (LEAL, 2010, s/p).

Por conseguinte, é indispensável garantir essa hora-atividade dentro da jornada de trabalho como condição para a efetivação, com qualidade, do processo de aquisição do conhecimento sistematizado pelos estudantes. Contudo, isto se apresenta como um desafio à educação básica, pois o trabalho do professor invadindo o espaço da sua vida privada ainda é uma constante na realidade brasileira.

A instituição do direito à hora-atividade é uma reivindicação histórica dos professores da educação básica que sempre se ressentiram do acúmulo de tarefas para além da jornada de trabalho cumprida na escola. Uma evidência de tal assertiva é a presença deste direito no projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de relatoria de Jorge Hage, em 1990, em que se afirmava a necessidade de planos de carreira que garantissem: regime de trabalho preferencial de 40 horas, com no máximo 50% do tempo de regência em classe, destinando os outros 50% para trabalho extraclasse e com incentivo à dedicação exclusiva (SAVIANI, 1997).

Contudo, os tortuosos caminhos que levaram à aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996) resultaram na desconsideração dos percentuais da jornada de trabalho destinados à hora-atividade e do incentivo à dedicação exclusiva. Isso porque o texto aprovado afirma que faz parte da valorização do profissional da educação a determinação de um período reservado ao estudo, planejamento e avaliação que devem estar incluídos na carga horária (BRASIL, 1996), reconhecendo que a especificidade do trabalho do professor envolve tarefas para além do ensino, mas não determina o tempo que deveria ser destinado para essas atividades, tornando vulnerável a efetivação de tal direito.

Nesse sentido, há uma maior regulamentação da hora-atividade na Resolução CNE/CEB no 3, de 8 de outubro de 1997, ao fixar diretrizes para os planos de carreira e regulamentação do magistério, ao afirmar que:

[...] a jornada de trabalho dos docentes poderá ser de 40 (quarenta) horas e incluirá uma parte de horas de aula e outra de horas de atividade, estas últimas correspondendo a um percentual entre 20% (vinte por cento) e 25% (vinte e cinco por cento) do total da jornada, consideradas como horas de atividades aquelas destinadas à preparação e avaliação do trabalho didático, à colaboração com a administração da escola, às reuniões pedagógicas, à articulação com a comunidade e ao aperfeiçoamento profissional, de acordo com a proposta pedagógica da escola (BRASIL, 1997, p. 22987).

Do mesmo modo, o Plano Nacional de Educação (PNE) 2001-2010 (Lei n° 10.172, de 9 de janeiro de 2001) estabelece que esse tempo seja entre 20% e 25% da carga horária dos professores para atividades de preparação de aula, avaliações e reuniões pedagógicas (BRASIL, 2001).

Vemos que tanto a LDB, de 1996, como a Resolução CBE/CNE no 3, de 1997, e o PNE 2001-2010 se constituíram em avanços na perspectiva de garantia do direito à hora-atividade, principalmente após a regulamentação desse tempo nos dois últimos instrumentos legais. Contudo, houve igualmente um retrocesso, se comparadas à proposta de LDB de relatoria de Jorge Hage, pois nota-se uma perda significativa no estabelecimento do percentual da hora-atividade, pois essa proposta representava o dobro do tempo máximo que ficou estabelecido.

Inferimos, ainda, que existiram limitações na concretização da hora-atividade com base nesses três marcos regulatórios. Primeiro porque a indefinição do quantitativo da carga horária para as atividades extraclasse na LDB de 1996 secundarizou a importância da garantia desse tempo; depois porque o processo de elaboração dos planos de cargos, carreiras e salários na maior parte dos estados e municípios foi lento durante toda a década de 1990, ainda aparecendo como uma urgência nas legislações que tratam da valorização dos profissionais da educação nos anos 2000. Além disso, é preciso ressaltar que os vetos feitos ao PNE 2001-2010 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, e que recaíram sobre os artigos que tratavam do financiamento da educação, deixaram esse plano sem possibilidades de muitos avanços. Também é preciso lembrar que houve uma secundarização do PNE 2001-2010 pelos governos que se seguiram à sua aprovação, pois deram maior ênfase à execução do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), criado em 2007, quando Luiz Inácio Lula da Silva era presidente do país.

Sendo assim, embora essas regulamentações sejam importantes para assegurar legalmente, desde a década de 1990, a hora-atividade como um direito do professor, somente com a aprovação da Lei nº 11.738, de 16 de julho de 2008 (Lei do Piso), houve maior progresso. Como assevera Oliveira (2013), essa lei foi importante para a conquista de uma maior valorização dos profissionais da educação básica, representando um passo decisivo para o reconhecimento profissional do professor.

Nesse contexto, a Lei do Piso movimentou o debate e avançou da concretização da hora-atividade pelas redes estaduais e municipais, pois estabelece que haja um limite de 2/3 para atividades de interação com os alunos (BRASIL, 2008). Vejamos que o percentual de tempo da jornada de trabalho destinado à hora-atividade avança para 33,3%, mas ainda não alcança o proposto no projeto de LDB de relatoria de Hage.

A discussão da hora-atividade prossegue e o “Relatório Final da Conae 2014” - no eixo “Valorização dos Profissionais da Educação: formação, carreira e condições e trabalho” - indica não só a necessidade da garantia de, no mínimo, 1/3 da carga horária docente contratada às atividades extraclasse nos planos de cargos, carreiras e salário, como versa a Lei do Piso, mas também propõe: “[...] ampliar a hora-atividade para 50% da carga horária, garantindo que os professores tenham condições suficientes para atividade de planejamento, atualização, participação no cotidiano da escola e da comunidade” (BRASIL, 2014a, p. 98).

Se considerarmos que as discussões feitas na Conae 2014 subsidiaram a aprovação do PNE 2014-2024, Lei no 13.005/2014 (BRASIL, 2014), torna-se evidente que a garantia da hora-atividade encontra sérios entraves, pois esse plano foi aprovado apenas com a determinação de que se deve seguir o estabelecido na Lei do Piso, não propondo a ampliação do percentual da jornada de trabalho destinada à hora-atividade.

Como principal representante da categoria docente no Brasil, a CNTE corrobora com o proposto pelo relatório final da Conae 2014 e defende que haja um limite de 50% da carga horária para o desempenho das atividades de interação com os educandos, indicando, portanto, para o necessário reconhecimento das especificidades do trabalho do professor (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO, 2015).

Vemos que embora tenha havido, nas últimas décadas, avanços na garantia da hora-atividade no plano legal, permanece a necessidade de ampliação desse tempo, de modo a atender as necessidades de trabalho do professor da educação básica que não se restringem a ministrar aulas. Trata-se de uma luta que se tornou evidente desde o final dos anos 1980 e permanece como campo de disputa.

Além disso, também permanece nesse campo de disputa o cumprimento da hora-atividade estabelecida pela Lei do Piso em algumas redes de ensino, pois, conforme informações publicadas no portal da CNTE , em abril de 2019, sete estados ainda não concediam esse direito em suas redes estaduais: Amapá, Espírito Santo, Goiás, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Pensamos que isso se deve ao fato de que a hora-atividade foi recebida com resistência pelos governos estaduais e municipais, uma vez que a reorganização do tempo de trabalho docente exige maior contratação de professores, o que não é feito, muitas vezes, sob a alegação de insuficiência financeira do ente federado.

Por fim, mesmo que a Lei do Piso seja importante para colocar a hora-atividade em discussão, sendo cumprida pela maior parte das redes de ensino, é preciso compreender que este aspecto envolve igualmente a garantia de espaços de trabalho adequados na escola, uma organização pedagógica competente e salários condignos.

O cumprimento da hora-atividade na escola requer condições de infraestrutura que garantam a existência e o funcionamento de materiais de apoio ao ensino e de recursos que promovam melhores condições de trabalho. Por conseguinte, é essencial contar, por exemplo, com computadores conectados à internet, fotocopiadoras, materiais didáticos e espaço adequado para estudo, elaboração e correção de atividades.

Além disso, é preciso uma competente organização pedagógica que organize melhor o tempo de trabalho do professor, levando-o a realizar atividades coletivas e individuais de estudos, planejamento e avaliação do processo educativo no espaço da escola. Tal fato envolve uma disposição da carga horária dos professores que permita o cumprimento desse tempo na unidade educacional, evitando, portanto, a necessidade de deslocamento entre diferentes escolas. Além disso, abrange a implantação de atividades pedagógicas propositivas em que o professor reflita sobre seu trabalho e busque caminhos para questões problemáticas do seu cotidiano.

A gestão escolar deve coordenar o trabalho pedagógico, incluindo a hora-atividade. Nesse sentido, Vanelli afirma que:

A equipe pedagógica da escola precisa organizar esse tempo de hora-atividade do próprio professor. Por quê? Porque em alguns momentos é um período individualizado, é quando o professor está corrigindo uma prova, está preparando uma aula, tá fazendo sua leitura, enfim, está pesquisando na internet. Isso é uma parte individualizada do professor. Agora, tem outra parte que é uma parte mais coletiva. Não dá pra dizer que eu vou desenvolver a minha atividade sempre sozinha. Eu preciso estar em conjunto com os demais professores para discutir os problemas de aprendizagem dos alunos, pra discutir o projeto político-pedagógico da escola, pra discutir as questões educacionais mais amplas que estão no debate fora da escola e que dentro da escola, não temos tempo de fazer esse debate (VANELLI, 2017).

Entretanto, a garantia de espaço e tempo adequados à realização da hora-atividade não pode ser desligada da necessidade da valorização salarial, caso contrário, o tempo destinado às atividades pedagógicas pode ser um meio pelo qual os professores assumem outras atividades para complementar a renda. Nesse contexto, os baixos salários recebidos pelos professores brasileiros apresentam-se como um entrave, pois contribuem para o acúmulo de vínculos de trabalho, possibilitando que o tempo destinado à hora-atividade não seja efetivamente utilizado.

Diante de tal problemática, Pinto (2009, p. 56) constata que “[...] o tempo dedicado a atividades de planejamento e correção de trabalhos acaba preenchido por mais aulas em outras redes de ensino [...]”. Nessa perspectiva, a conquista transforma-se em retrocesso, posto que:

[...] nas redes em que estão previstas as horas para a preparação das aulas e correção dos trabalhos (as chamadas horas-atividades), boa parte não precisa ser realizada de forma presencial, o que cria, em verdade, um mundo de faz de conta. O empregador, público ou privado, paga um valor de hora-aula vergonhoso, argumentando que o professor pode exercer a atividade em outras redes, e o docente torna-se cúmplice de um estelionato educacional, transformando-se em mero intérprete de aulas, repetidor de conteúdos vazios de significado para ele e para os alunos (PINTO, 2009, p. 56).

É perceptível que há uma realidade educacional que ainda impõe muitos entraves à concretização da hora-atividade, resultando em um cenário em que até mesmo a garantia de um tempo destinado às atividades extraclasse, muitas vezes, não é capaz de contribuir para a constituição de melhores condições de trabalho para os professores e melhores condições de aprendizagem para os alunos.

A hora-atividade dos professores de ensino médio da rede estadual do Piauí

Em 2006, a rede estadual do Piauí, através da lei complementar no 71, passou a garantir um quantum da carga horária do professor para as atividades extraclasse em um percentual muito próximo ao que foi estabelecido na Lei do Piso, em 2008. A referida lei estadual assevera que:

Art. 61º - A jornada regular de trabalho do professor será de 40 (quarenta) horas semanais ou de 20 (vinte) horas semanais, distribuída em 70% (setenta por cento) em sala de aula e 30% (trinta por cento) para atividades destinadas à preparação e avaliação do trabalho didático, à colaboração com a administração da Escola, às reuniões pedagógicas, à articulação com a comunidade e ao aperfeiçoamento profissional, de acordo com a proposta pedagógica de cada Escola (PIAUÍ, 2006, p. 17, grifo nosso).

A partir da Lei do Piso, o estado do Piauí reorganizou a carga horária do professor da rede estadual e estabeleceu um percentual de 35% para atividades extraclasses, conforme informações do Gerente 1 (2016). Assim, se considerarmos a importância da hora-atividade, podemos afirmar que a legislação piauiense se destaca por garantir importante aspecto da valorização do trabalho do professor da educação básica desde 2006.

No entanto, o certo pioneirismo na garantia legal do tempo-atividade parece ter perdido seu sentido em meio à ingerência da Seduc-PI em relação à carga horária de trabalho docente. Primeiro, porque a Seduc-PI não estabeleceu condições para cumprimento da hora-atividade na escola, pois os professores possuem carga horária distribuída em diferentes unidades escolares, implicando tempo de deslocamento e menor envolvimento com o cotidiano das instituições. Depois, porque frequentemente as escolas não possuem infraestrutura que garanta ao professor um espaço de trabalho, onde ele possa executar atividades de estudos, planejamento e avaliação de modo apropriado. Além disso, os dados apontam para uma ainda inapropriada organização pedagógica. Nesse contexto que o Gerente 1 (2016) detalha como vem acontecendo o cumprimento da jornada destinada às atividades extraclasse dos professores do ensino médio da rede estadual do Piauí, em Teresina:

Nós temos 40 horas, onde dessas 40 horas nós temos que ter 26 aulas [...]. Essas 26 aulas, por não ter a carga horária na mesma escola, muitas vezes, ela é distribuída em 2, 3 escolas ou 4. E o professor não tem tempo. Na realidade, ele não tem tempo naquela escola para fazer o seu trabalho, o seu HP, o seu horário pedagógico, coletivamente com os outros professores porque ele muitas vezes dá a primeira e segunda aula e já a terceira e quarta aula tem que ser lá em outra escola. Aí, ele dá a sua aula e já sai. Então, aqui nós não temos o hábito de pegar o horário pedagógico e ficar dentro da escola (GERENTE 1, 2016).

É preciso deixar claro, também, que consideramos que de algum modo, pelas especificidades de seu trabalho, mesmo que em outro espaço, principalmente o da vida privada, os professores seguem preparando e corrigindo atividades. A fala do Professor 8 reafirma nossa hipótese:

Primeiro, o HP não é exigido que o professor fique na escola. Ele é cumprido em casa na elaboração de provas, atividades. Aí, eu faço e levo pra sala de aula. Mando para o e-mail da escola e peço que providencie essa atividade, aí eles providenciam e eu levo para a sala de aula (PROFESSOR 8, 2017).

Sendo assim, as falas dos diferentes sujeitos convergem para o não cumprimento ou cumprimento parcial da hora-atividade na escola. Igualmente, de forma inversa ao processo de valorização do trabalho docente, tal fato possibilitou que a hora-atividade pudesse representar uma maior intensificação do trabalho do professor. Isso porque a não exigência do cumprimento desse tempo na escola aliada à insuficiência dos salários concorrem para uma realidade em que é possível o acúmulo de outros vínculos empregatícios, como mostra o Gerente 2 ao afirmar que:

Existem os HPs que na teoria era para ele ser feito dentro do espaço da escola, né? Mas por conta que esse profissional está muito desgastado com relação às suas demandas, não porque ele está naquele local de trabalho, mas porque ele tem outras atividades. Por conta que considera seu salário insuficiente para manter seu padrão de vida, eles têm que pegar outro estado ou outra esfera da federação para trabalhar, como a prefeitura e outro estado vizinho e aí ele fica naquela correria e termina por não concluir aquele horário pedagógico na escola, termina cumprindo fora (GERENTE 2, 2016).

O discurso dos professores evidencia, ainda, o atalho feito para possibilitar o acúmulo de cargas horárias decorrentes das diversas atividades de trabalho do professor, sejam elas docentes ou não. Tal atalho envolve a permissividade da Seduc-PI, a conivência dos gerentes das GREs e dos gestores escolares e os interesses individuais dos professores. Esse movimento resulta em um pacto, cujo objetivo parece ser minimizar os efeitos dos baixos salários, mas que, na prática, materializa o estelionato educacional de que trata Pinto (2009). O Sindicalista 1 faz essa denúncia:

A gente observa que há uma resistência de alguns quererem permanecer na escola. Aí, fica aquele discurso: ‘Ah, no meu horário eu faço o que eu quero.’ Então, também por conta dos nossos baixos salários que aí é um outro contraponto que, de certa forma, é um argumento fatídico e que não há nenhum outro maior que nos convença ao contrário que é o péssimo salário que nós temos e faz com que muitos argumentem que não permanecem nesse horário porque geralmente nesse horário complementa em redes privadas o seu tempo, dando aula porque encaixa (SINDICALISTA 1, 2016).

Portanto, a hora-atividade tem se revelado, na rede estadual do Piauí, em Teresina, como elemento de autointensificação do trabalho docente, tendo em vista que o professor busca por mais trabalho em um tempo que erroneamente é interpretado como livre. Tal fato ficou evidente no decorrer da realização das entrevistas, pois foi comum os professores confundirem carga horária de trabalho com carga horária destinada às atividades com os alunos. Em muitos casos, os docentes não contabilizavam a hora-atividade como carga horária de trabalho e, quando contabilizavam, levavam em conta apenas aquele tempo que ficavam na escola. Como exemplo disso, podemos indicar a fala do Professor 6:

A carga horária do contrato é 40 horas e efetivo é 26. Lembrando que as demais horas são consideradas por lei como trabalho na residência porque o professor leva muito trabalho para casa, por isso não é fechado as 40 horas como trabalho normal. Essa é a diferença das 40 horas no contrato, só que não é cumprido tudo efetivamente, normalmente na escola. Esse HP é a elaboração de provas, pesquisa, correção de avaliação (PROFESSOR 6, 2017).

O Sindicalista 1 (2016) revela que é necessário estabelecer uma luta dos professores por melhores condições de trabalho para que a hora-atividade seja cumprida no espaço da escola e, portanto, exerça seu papel de garantir melhores condições de trabalho e valorização da docência:

O que a gente percebe é que nós temos que fazer uma luta no campo das ideias para melhorar as nossas condições, para que realmente a gente possa convencer a nossa categoria de que a gente tem que ter um bom salário, mas nós temos que convencer o nosso patrão de que nós temos que ter a condição ideal de trabalho em um único local de trabalho, que aí é que está o problema também. A gente não é lotado em um único local de trabalho pra que a gente possa ter esse discurso unitário de que o nosso HP possa ser dentro da escola (SINDICALISTA 1, 2016).

Portanto, é fundamental ter condições de infraestrutura física nas escolas para viabilizar a permanência dos professores durante a hora-atividade; regime de dedicação exclusiva para que o professor possa ter sua hora-atividade toda em uma só escola, viabilizando o trabalho e planejamento coletivo; assim como carreira e remuneração dignas para que o professor não seja levado a buscar complementação da sua renda no tempo destinado à hora-atividade. Ao não ocorrerem ao mesmo tempo essas condições, os objetivos da hora-atividade podem não ser alcançados.

Os discursos dos professores entrevistados não deixam claro se eles se ressentem do não cumprimento da hora-atividade na escola ou se a indicação de um “tempo livre” se tornou parte sobre a qual eles querem decidir o que fazer, como indica o Professor 6 (2017): “apesar de já ter surgido vaga para me lotar completamente pela manhã, o Estado não aceita que o professor fique só com um turno, ele sendo 40 horas, ele é obrigado a ficar nos dois turnos. Eu acho um absurdo isso.”

Desse modo, também é preciso problematizar a função da categoria docente, pois em certa medida pode ser cômodo não ter as condições necessárias ao cumprimento da hora-atividade para os que não querem aperfeiçoar seu próprio trabalho.

Sendo assim, quando o professor desvirtua o uso do tempo da hora-atividade, em razão de suas necessidades ou interesses particulares, a categoria docente destitui-se de argumentos para lutar por um maior tempo de trabalho fora da sala de aula, contribuindo para uma maior precarização do trabalho docente. Isso porque possibilita um contínuo processo de intensificação e autointensificação do trabalho.

Nesse contexto, os docentes destacaram pouco tempo para o horário de almoço, dificuldades de locomoção entre as unidades escolares, falta de espaço de descanso na escola, ausência da vida familiar e cansaço. A fala do Professor 7 é bastante ilustrativa desse aspecto:

Hoje, eu entrei às sete, o correto seria para sair meio dia, mas vamos sair mais cedo. Chego em casa, tomo banho, almoço, vejo o almoço dos meus filhos, vejo o que eles vão merendar, vejo o que eles vão comer no jantar. Eu já deixo tudo dinamizado, a moça fica até às cinco. Aí, espero eles chegarem porque nesses períodos de chuva, às vezes eles pegam engarrafamento, mas eu faço de tudo para encontrar com eles, para que eles me vejam e eu os veja também. Então, eu saio uma e quinze, aí eu encontro com eles, falo com eles e saio. Aí, quando dá dezoito e cinquenta e cinco, eu saio de uma escola e vou para outra, aí só saio às dez. Ficam todas duas na mesma região, a privada fica na zona sudeste e a pública que eu vou à noite, que é para fechar a carga horária do Estado, eu entro sete e saio às dez. Às vezes, meus filhos não me vêem à noite (PROFESSOR 7, 2017).

Considerações finais

A análise dos desdobramentos da instituição da hora-atividade na carga horária de trabalho do professor do ensino médio na rede estadual do Piauí, em Teresina, no contexto das políticas educacionais das últimas décadas, permitiu elaborarmos algumas sínteses. A primeira delas é que a garantia legal da hora-atividade se coloca em permanente campo de disputa por representar o pagamento de um determinado quantum da jornada de trabalho que historicamente foi considerado como trabalho não pago do professor, gerando tensões, avanços e retrocessos.

Outra síntese é que a simples garantia do tempo de hora-atividade estabelecida legalmente não é suficiente para que esse tempo da jornada de trabalho seja cumprido, pois envolve outros aspectos da valorização do trabalho docente como carreira, salário e condições de trabalho na escola.

No caso específico do estado do Piauí, o avanço no cumprimento da hora-atividade se confronta com as condições de trabalho ainda inadequadas nas unidades escolares, com a ingerência na organização pedagógica do tempo de trabalho do professor e com os baixos salários pagos, constituindo-se um retrocesso no processo de valorização do trabalho docente, pois ele mesmo - de diferentes formas e por diferentes razões - reproduz o prolongamento da jornada de trabalho.

Ainda se institui a necessidade de luta para que as regulamentações avancem na garantia da hora-atividade, ampliando o seu percentual em relação à jornada de trabalho, mas é igualmente necessário que a categoria docente reivindique melhores condições de trabalho e não compreenda a hora-atividade como meio de acúmulo de trabalho.

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Recebido: 28 de Outubro de 2019; Aceito: 25 de Novembro de 2019

Profa. Dra. Adriana e Silva Sousa, Universidade Estadual do Piauí (Brasil), Campus Prof. Antonio Giovanne Alves de Sousa, Curso de Pedagogia, Grupo de Pesquisa sobre Políticas Educacionais e Docência no Estado do Piauí, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3613-0208. E-mail: adrianaess.2016@gmail.com

Prof. Dr. Dante Henrique Moura, Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (Brasil), Campus Natal Central, Diretoria Acadêmica de Ciências, Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional, Núcleo de Pesquisa em Educação (NEPED-IFRN). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8457-7461 E-mail: dantemoura2014@gmail.com

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