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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.55 Natal ene./marzo 2020  Epub 29-Ene-2021

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n55id18921 

Artigo

O saber profissional do professor que ensina matemática: análise de um caderno de normalista de 1950

The professional knowledge of teacher who teaches mathematics: an analysis of a 1950s normalist notebook

El conocimiento profesional del profesor que enseña matemáticas: análisis de un cuaderno normalista de los años 1950

Bruna Lima Ramos Giusti1 
http://orcid.org/0000-0002-5561-868X

Wagner Rodrigues Valente1 
http://orcid.org/0000-0002-2477-6677

1Universidade Federal de São Paulo (Brasil)


Resumo

O texto analisa um caderno de normalista elaborado na década de 1950, junto do estudo de um manual pedagógico de referência na formação de professores, com vistas a abordar o saber profissional do professor que ensina matemática. A questão norteadora é dada por: Que apropriações são realizadas dos manuais, que referenciam cursos de formação, incorporadas no texto do caderno de normalista, de modo a constituírem elementos de um saber profissional do professor para ensinar aritmética nos primeiros anos escolares? Na análise, utilizam-se fundamentos teórico-metodológicos integrantes de estudos sobre o saber profissional do professor, bem como referências vindas da História Cultural. São mobilizadas categorias como matemática a ensinar e matemática para ensinar. Os resultados apontam para elementos do saber profissional do professor que ensina matemática, presentes no caderno, e que estão ligados a uma pedagogia da matemática, entendida como conjunto de orientações amplas aos professores. A partir dessa formação, o futuro docente, em sua prática pedagógica, deveria elaborar saberes para aplicá-los aos conteúdos de ensino da aritmética.

Palavras-chave: Saber profissional; Matemática a ensinar; Matemática para ensinar; Escola Normal

Abstract

This text analyzes a normalist notebook elaborated in the 1950s, along with the study of a pedagogical reference manual in teacher training, aiming to analyze the professional knowledge of mathematics teachers. The guiding question is given by: What appropriations are made of the manuals, which refer to training courses, incorporated in the textbook of the Normal School student, in order to constitute elements of a teacher's professional knowledge to teach arithmetic in the early school years? In the analysis, theoretical and methodological tools are used in studies on the teacher's professional knowledge, as well as studies from the Cultural History. Categories such as math to teach and math for teaching are mobilized. The results point to elements of the teacher that teaches mathematics’ professional knowledge, present in the notebook, and which are linked to math pedagogy, understood as a set of broad guidelines for teachers. From this formation, through a pedagogy of mathematics, the future teacher, in his pedagogical practice, should elaborate knowledge in order to apply it to the teaching contents of arithmetic.

Keywords: Professional knowledge; Math to teach; Math for teaching; Normal School

Resumen

El texto analiza un cuaderno de normalista elaborado en la década de 1950, junto con el estudio de un manual de referencia pedagógica en la formación de profesores, mirando analizar el conocimiento profesional del profesor que enseña matemáticas. La pregunta guía está dada por: ¿Qué apropiaciones se hacen de los manuales utilizados en los cursos de capacitación, incorporados en el texto del cuaderno de normalista, para constituir elementos del conocimiento profesional del maestro para enseñar aritmética en los primeros años escolares? En el análisis, se utilizan elementos teóricos y metodológicos que integran estudios sobre el conocimiento profesional del profesor, así como los que vienen de la Historia Cultural. Se movilizan categorías como matemáticas a enseñar y matemáticas para enseñar. Los resultados apuntan para elementos del conocimiento profesional del maestro que enseña matemáticas, presentes en el cuaderno y que están atados a una pedagogía de las matemáticas, entendida como un conjunto de pautas generales para los profesores. Desde esta formación, el futuro maestro, en su práctica pedagógica, debería elaborar conocimientos para aplicarlo a los contenidos didácticos de la aritmética.

Palabras clave: Conocimiento profesional; Matemáticas a enseñar; Matemáticas para enseñar; Escuela normal

Considerações iniciais

Este artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa de doutorado em desenvolvimento que analisa cadernos escolares elaborados por futuros professores em seu tempo de formação em escolas normais. O objetivo desta pesquisa é estudar a matemática presente nesses cadernos, buscando elementos para caracterizar a formação profissional do professor que atua nos primeiros anos escolares. A pesquisa está inserida em um projeto de maior amplitude que investiga a história do saber profissional do professor que ensina matemática no extenso período de cem anos: 1890 a 1990 .

Os resultados apresentados neste trabalho, de modo específico, atêm-se à discussão sobre as orientações dadas a futuros professores, para o ensino de aritmética nos primeiros anos escolares, que podem ser lidas em cadernos de normalistas. De modo pontual, este texto analisa um Caderno de Prática de uma normalista, elaborado a partir de aulas da disciplina de Metodologia da Aritmética, da década de 1950, cursada em São Paulo.

Com as primeiras análises do conteúdo do caderno nota-se que o seu texto mantém relação próxima aos manuais pedagógicos recomendados para o ensino de metodologia da aritmética na formação de professores. Tal fato levou-nos também ao estudo desses manuais.

A partir disso, foi-nos possível elaborar uma problematização interrogando esses materiais. Ela pode ser expressa pela questão: que relações entre as anotações de aulas de metodologia e os manuais de referência da disciplina podem ser explicitadas a partir da análise do Caderno de Prática? Ou, em termos mais técnicos: Como ocorrem as apropriações dos manuais pedagógicos nas aulas de metodologia, relativamente ao ensino de matemática, na produção do caderno da normalista? Ou, ainda, de modo mais preciso: Que apropriações são realizadas dos manuais pedagógicos, que referenciam cursos para normalistas, incorporadas no texto do Caderno de Prática, de modo a constituírem elementos de um saber profissional do professor para ensinar aritmética nos primeiros anos escolares? Neste texto, iremos nos ater a esta última forma da questão norteadora, que coloca em evidência, como no próprio título do artigo, o saber profissional do professor que ensina matemática.

História do saber profissional do professor que ensina matemática

Realizar investigações no âmbito da História da educação matemática não é algo que possua referenciais já consolidados, estabelecidos. Essa via de pesquisa do campo da Educação Matemática mostra-se múltipla, hoje com diferentes tendências. Este texto tem por base a vertente que vem sendo desenvolvida por meio de diálogo próximo ao campo da História da Educação. Nesse diálogo, busca a caracterização e transformações ao longo do tempo do saber profissional do professor que ensina matemática.

Tratamos o saber profissional como algo resultante da análise das relações mantidas historicamente entre a matemática presente no ensino e aquela dada na formação de professores. Formar o professor tendo em vista a docência, ou seja, considerar a existência de uma matemática nos cursos de formação de modo a capacitar o professor para o ofício da docência.

Assim, consideramos a existência de duas matemáticas. Essas diferentes matemáticas já foram caracterizadas por Bertini, Morais e Valente (2017). Para esses autores, a matemática presente no ensino constitui-se como uma matemática a ensinar, objeto de trabalho do professor. De outra parte, a matemática da formação de professores pode ser vista como uma matemática para ensinar, ferramenta de trabalho do ofício da docência em matemática.

Isso posto, a problemática refere-se à caracterização de um saber, aqui sendo analisado por meio de um caderno elaborado à época de formação de futuros professores. Intenta-se buscar elementos do saber profissional do professor que ensina matemática formado na década de 1950.

Para o historiador inglês Peter Burke (2016), o processo de constituição de saberes envolve o trajeto de sua cientificação. Tem-se, ao início, informações, algo relativamente cru, e após um processo de elaboração e sistematização, chega-se aos conhecimentos, ou seja, algo já cozido, tendo em vista a metáfora cunhada por Lévi-Strauss. Para Burke (2016, p. 44), a cientificação - que é esse processo de cozimento - é, na maioria das vezes, uma “[...] elaboração de práticas cotidianas como observação, descrição e classificação, tornando-as mais precisas”.

Hofstetter e Schneuwly (2017) admitem que o conhecimento, após um processo de disciplinação se transforma em saber. Este deve estar consolidado, ou melhor, sistematizado e objetivado.

A análise de um caderno de normalista intenta separar aquelas informações registradas na elaboração desse dispositivo escolar, de modo que possam ganhar uma sistematização inicial, evidenciando que sejam indiciárias do saber profissional do professor que ensina matemática.

Deste modo, cabe repor a questão: Que apropriações são realizadas dos manuais pedagógicos, que referenciam cursos para normalistas, incorporadas no texto do Caderno de Prática, de modo a constituir elementos de um saber profissional do professor para ensinar aritmética nos primeiros anos escolares?

Os cadernos como fontes de pesquisa

Muitos autores têm já dito que cadernos escolares são materiais pouco explorados, mas que podem carregar uma infinidade de informações ainda não obtidas pelos pesquisadores, com vistas à melhor compreensão do funcionamento do cotidiano escolar. Viñao (2008, p. 16) afirma que os cadernos escolares possuem “[...] vantagens indubitáveis frente ao livro de texto (...) para conhecer e estudar essa ‘caixa preta’ da história da educação”. E prossegue:

Os cadernos neste sentido, não são apenas um produto da atividade realizada nas salas de aula (afinal, o livro de texto é um produto exterior que se introduz em sala de aula) e da cultura escolar, mas também uma fonte que fornece informação - por meio, sobretudo, de redações e composições escritas - da realidade material da escola e do que nela se faz. Além disso, proporcionam ocasionalmente pistas sobre os manuais efetivamente utilizados na sala de aula e seu uso tanto pelo professor como pelos alunos (VIÑAO, 2008, p. 16).

Entende-se que os cadernos são fontes que podem fornecer informação sobre a realidade escolar, mostrando possíveis indícios de métodos, metodologias, processos, conteúdos abordados, currículo adotado, livros utilizados nos cursos, etc. Porém, devem ser, como todo documento, analisados de modo crítico, sendo transformados de seu caráter inicial de monumentos à condição de documentos para a pesquisa (LE GOFF, 1990).

Os cadernos, quando encontrados, são tomados como monumentos, mas o historiador precisa torná-los documentos, dignos de serem explorados e chamá-los de fontes de pesquisa, como já mencionado. Segundo Le Goff, o monumento pode causar um encantamento ao pesquisador.

A concepção do documento/monumento é, pois, independente da revolução documental e entre os seus objetivos está o de evitar que esta revolução necessária se transforme num derivativo e desvie o historiador do seu dever principal: a crítica do documento - qualquer que ele seja - enquanto monumento. O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa (LE GOFF, 1990, p. 545).

Em especial tratando-se de cadernos, um material que é criado ao longo dos dias e anos letivos escolares, Viñao chama atenção para o fato de eles não refletirem toda a produção escrita ou oral dos alunos:

Dadas as indubitáveis vantagens que os cadernos escolares oferecem - em comparação com as prescrições oficiais, os livros de texto e os programas - para conhecermos e nos aproximarmos do currículo real, pode-se cair na tentação de crer que essa fonte reflita quase toda a atividade escolar. E que a reflita de um modo fiel e exato. Nada mais errôneo (VIÑAO, 2008, p. 25).

Por mais que o caderno seja produzido em alguma instituição, com um professor mediador em sala de aula, ditando ou escrevendo no quadro negro, acredita-se que o caderno é único, exclusivo do próprio do aluno que está fazendo os seus registros.

O historiador Viñao (2008, p. 25) afirma que “os cadernos também não refletem toda a produção escrita dos alunos em sala de aula. Nem tudo está nos cadernos”. Neles não é possível falar sobre as práticas, sobre as “intervenções orais ou gestuais do professor e dos alunos”, sobre os exercícios orais ou atividades que não deixam pistas registradas. Ele chama atenção para os “silêncios” criados pelos cadernos. Este autor ainda afirma que a grande maioria dos cadernos conservados foi passada a limpo, como é o caso do caderno selecionado para esta análise. Assim, segundo este autor será possível conhecer o “produto final, mas não o caminho percorrido”.

Desta maneira, os cadernos escolares considerados como fontes de pesquisa podem dar indícios do funcionamento do cotidiano escolar. Assim, destaque-se que, por meio dos cadernos, é possível obter informações sobre textos de referência utilizados pelos professores nos cursos que motivaram a produção dos cadernos dos alunos. Estes ainda podem fornecer subsídios para a análise de como o professor organizou o seu curso, as suas preferências de seleção de conteúdo, a sequência desse ensino, dentre tantos outros elementos que integram as aulas de um dado curso registrado nos cadernos.

Acrescente-se, ainda, que na análise dos cadernos escolares há necessidade de investigar as referências que possibilitaram a sua escrita. Por certo, na produção desses documentos, a aula e as falas do professor são elementos fundamentais para guiar a escrita do texto. Porém, outros elementos devem ser investigados para entendimento do conteúdo exposto nos cadernos, sobretudo quando eles constituírem a escrita “passada a limpo” a partir das aulas de um curso. Assim, os textos contidos nos cadernos constituem reelaborações das aulas. Não representam as aulas em si mesmas, mas tomam-nas como referência, incluindo outros dados no momento da reelaboração do texto original delas. Esses dados, por exemplo, referem-se a material de consulta que faz o aluno, de modo a tornar o texto do caderno mais inteligível e melhor disposto para ser avaliado pelo professor, ou mesmo para haver mais clareza na exposição do texto, numa consulta futura. No presente artigo, veremos a inclusão da bibliografia do curso no texto do caderno. Há processos de apropriação da bibliografia da disciplina que compõem o texto final do material. O conceito de apropriação é basilar nos estudos do historiador Roger Chartier. Assim, tem-se que:

A apropriação, tal como a entendemos, tem por objetivo uma história social das interpretações, remetida para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem. Conceder deste modo atenção às condições aos processos que, muito concretamente, determinam as operações de construção do sentido (na relação de leitura, mas em muitas outras também) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que as inteligências não são desencarnadas, e, contra as correntes de pensamento que postulam o universal, que as categorias aparentemente mais invariáveis devem ser construídas na descontinuidade das trajetórias históricas (CHARTIER, 2002, p. 26-27).

Assim, será por meio da análise do caderno, atenta às recomendações dos manuais, que se procurará fazer articulação com as possíveis apropriações feitas pela normalista a partir das aulas na escola normal e da bibliografia indicada. Deste modo, intentar-se-á dar resposta à questão: Que apropriações são realizadas dos manuais pedagógicos, que referenciam cursos para normalistas, incorporadas no texto do Caderno de Prática, de modo a constituir um saber de formação do professor para ensinar aritmética nos primeiros anos escolares?

Os normalistas e a construção de seus cadernos: um Caderno de Prática

Recentemente, localizou-se um caderno elaborado em escola normal na década de 1950. O caderno tem por autora a normalista Neuza Carmélia Bertoni 2.

Na capa do caderno é possível visualizar a sigla C. E. E. N. A. A. Martins, que se refere ao Colégio Estadual e Escola Normal Aurélio Arrobas Martins, situado no município de Jaboticabal, São Paulo, conforme Figura 1. Este caderno de1956 possui 72 páginas preenchidas e outras em branco. Referente à disciplina denominada Prática, tem-se 30 páginas divididas nos itens: Metodologia da Leitura, Metodologia da Aritmética, Metodologia da Geometria e Metodologia da Escrita ou Caligrafia. Da metade para o final do caderno, há uma sequência de 20 páginas dedicadas a um diário de classe, contendo atividades, horário de aula, provas, ditados, quadro de notas dos alunos, etc.

Fonte: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/200076.

Figura 1 Capa do caderno de Prática da normalista Neuza Carmélia Bertoni 

No processo de análise, além da leitura atenta do caderno, foi possível realizar uma entrevista com a própria autora do caderno, hoje conhecida como professora Neuza Bertoni Pinto . Ela afirmou ter reutilizado esse caderno no ano seguinte, em 1957, quando já havia terminado a escola normal, para usá-lo como diário de classe em uma turma do município de Palotina, Paraná. No uso do caderno nesse ano de 1957, as páginas são dedicadas a um Diário de classe de uma turma de 1º ano do curso primário. Ao final, há cerca de seis páginas com indicação de livros, intitulados “Clássicos”. Algumas páginas são apenas registros pessoais, como poemas ou criação de alguma prova.

A análise desse caderno foi realizada apenas considerando as primeiras 30 páginas, que fazem referência às aulas de Prática da escola normal de Jaboticabal. Esta parte do caderno apresenta-se de forma impecável, com pouquíssimos erros de escrita e uma letra desenhada com perfeição. Na entrevista , a autora afirmou ser uma prática escolar de seu tempo fazer anotações em um outro caderno em sala de aula, de assuntos que o professor explicava ou passava no quadro negro. Como uma espécie de rascunho. E, depois, com indicações de livros que estariam na bibliografia das disciplinas, os alunos escreviam no caderno, ou seja, esse Caderno de Prática foi escrito em outro momento, a partir de várias anotações, e não diretamente elaborado em sala de aula, como cópia fiel do quadro negro. Foi possível encontrar nesse caderno as indicações da bibliografia usada nessa matéria da escola normal:

Assim, destaque-se que algo diferente do usual ocorreu no ato de selecionar o caderno desta análise: a possibilidade de entrevistar a autora do caderno. No contato com a antiga normalista, autora do caderno, foi possível coletar essas informações sobre como era realizado o ritual de uso dos cadernos em sala de aula, que segundo a ex-normalista, havia um processo de reescrita do caderno. De um lado, tomavam-se as anotações de aulas; de outro, na reelaboração do texto do caderno, no ato de passar a limpo o texto, os alunos consideravam os livros indicados na bibliografia do curso.

Isso nos leva a corroborar com as afirmações de Gvirtz e Larrondo (2008, p. 39) de que “[...] o caderno, como produto de uma instituição específica, transforma os saberes, valores ou ideologias em ‘outra coisa’. Portanto, dificilmente o que é produzido na escola pode ser, em si mesmo, uma fonte neutra”. Ou seja, o texto do caderno mantém as marcas da subjetividade daquele que o produz, em meio a processos de apropriação da aula, dos textos de referência e de outros elementos que poderão não estarem explícitos para a análise.

No caso da presente análise, o caderno da normalista, em sua escrita, de acordo com a sua autora, apoiou-se no manual Metodologia do Ensino Primário, escrito por Theobaldo Miranda Santos, indicação de bibliografia para a disciplina de Prática, conforme Figura 2. Porém, a autora também afirmou que outro livro, o Manual do Professor Primário, do mesmo autor, era utilizado em sua formação. Não ficou claro se era durante a elaboração dos cadernos ou se o professor que ministrava a aula utilizava esse manual. Enfim, como esta é uma afirmação colhida em depoimento da professora autora do Caderno de Prática, por ser um dado de memória e, como qualquer documento, precisa estar sujeito à crítica. Neste caso, na análise do Caderno de Prática, essas informações serão tomadas como hipóteses de análise do caderno. Iremos fixar a atenção na produção escrita da normalista, tendo em vista as obras de Theobaldo Miranda Santos. Tanto a que está explicitamente mencionada na bibliografia, quanto aquela mencionada em depoimento pela ex-normalista.

Fonte: Bertoni (1956, p. 4).

Figura 2 Indicação de bibliografia da disciplina de Prática 

Que relações entre as anotações de aulas de metodologia e as obras de Theobaldo podem ser explicitadas na análise do Caderno de Prática? Ou, em termos mais técnicos: Como ocorrem as apropriações de manuais pedagógicos de metodologia na produção do caderno da normalista? Ou, ainda: como os textos de Theobaldo Miranda Santos foram apropriados na escrita do caderno da normalista? Tais questões deverão ser respondidas como subsídios à resposta de uma questão ainda mais específica: Que apropriações são realizadas dos manuais pedagógicos de Theobaldo Miranda Santos, incorporadas no texto do Caderno de Prática, de modo a constituírem elementos de um saber profissional do professor para ensinar aritmética nos primeiros anos escolares?

Quem foi Theobaldo Miranda Santos?

A informação dada pela Professora Neuza, de que uma das referências para a construção do texto escolar de suas aulas foi Theobaldo Miranda Santos, permitiu voltarmos a atenção para este conhecido autor de manuais pedagógicos utilizados no Brasil a partir de 1930. Ajunte-se que a referência ao autor também consta no próprio caderno. Segundo Vivian da Silva (2006), os manuais pedagógicos constituíam as primeiras fontes de informações aos professorandos sobre as questões relativas ao ofício de ensinar. Nos manuais os futuros professores encontravam os saberes por meio dos quais identificariam a profissão docente. E segue:

Ao se afirmar que os manuais pedagógicos tiveram o ensino como seu objeto de ensino, o intuito foi remeter para as relações desses livros com a formação dos professores feita no interior dos projetos de democratização das oportunidades escolares. Assim, todos os títulos em pauta produziram e fizeram circular saberes sobre o ofício de ensinar, tomando-os como temas a serem explicados durante as aulas nas Escolas Normais (SILVA, 2006, p. 53).

De outra parte, na tese de Martha da Silva (2017), a autora afirma que algumas matérias seriam mais ligadas ao saber de formação do professor, como “Prática de ensino”, “Metodologias”, “Didática”, entre outras. Em outras palavras, no curso da escola normal, essas disciplinas aparentemente estavam mais diretamente ligadas ao magistério, ou seja, à matemática para ensinar do futuro professor.

No caderno da normalista, utilizado nesta análise, percebe-se que essas disciplinas possuíam sua fundamentação a partir dos manuais de Theobaldo Miranda Santos. Considerar este fato remete às reflexões de pesquisadora Vivian da Silva, que pondera:

Os manuais pedagógicos manifestaram rituais das aulas ministradas junto aos normalistas quando explicaram determinadas ideias e sugeriram procedimentos e atividades a serem reproduzidos futuramente pelos estudantes no exercício do magistério. Assim, esses textos definiram regras ideais para se conduzir o ensino ou, em outras palavras, delimitaram ‘rituais’ ou ‘ritos’ específicos da escola primária (SILVA, 2006, p. 54).

A presença de Theobaldo Miranda Santos pode ser percebida na formação de professores a partir dos diversos títulos publicados dirigidos à escola normal, como: Prática de ensino (1948), Noções de prática de ensino (1951), Metodologia do Ensino Primário (1952), Introdução à didática geral (1955), Introdução à pedagogia moderna (1955), Manual do professor primário (1956), Noções de metodologia do ensino primário (1964), entre outros. Foi um autor influente, pois ele e suas obras foram mencionados em alguns manuais brasileiros . Numa breve síntese de sua biografia profissional, tem-se:

Theobaldo Miranda Santos nasceu em 04 de Junho de 1904, na cidade de Campos dos Goytacazes, no Litoral Norte do Estado do Rio de Janeiro, conhecida como a metrópole do açúcar e faleceu em 1971. Intelectual ligado ao campo da Educação Católica, sua trajetória está envolta entre a docência e os serviços administrativos. Suas obras totalizam aproximadamente 130 volumes em diversas áreas do conhecimento. A vida na docência iniciou na cidade mineira de Manhuaçu, na Escola Normal, logo após a conclusão dos estudos primários e secundários, nos anos de 1920, no Liceu de Humidades e na Escola Normal de Campos. Após sua rápida passagem pelo Magistério mineiro, concluiu, no Colégio Metodista Grambery, Zona da Mata Mineira, em Juiz de Fora, MG, os cursos de Odontologia e Farmácia. Ao final da década de 1920 retorna a sua cidade natal onde ocupa as funções de diretor e professor de Física, Química e História Natural, no Liceu de Humanidades, na qual fora aluno (CALIXTO; QUILLICI NETO, 2015, p. 140).

A partir de alguns manuais desse autor, é possível verificar que ele abordava temas relacionados com a Escola Nova, fornecendo instruções para o futuro professor primário, dada sua vasta coleção sobre os assuntos: prática de ensino, didática geral, pedagogia moderna, metodologia do ensino primário. Seus manuais alcançaram grande circulação nas escolas normais brasileiras.

Os manuais de Theobaldo Miranda Santos

Como já foi dito, esse autor publicou diversos títulos diferentes e acabou se tornando uma referência nas escolas normais. O manual Metodologia do ensino primário, publicado em 1952, aparece como indicação de bibliografia no caderno da normalista e está disponível em formato digital no Repositório de Conteúdo Digital . Em sua contracapa, há a afirmação que o manual está “de acordo com os programas dos Institutos de Educação e das Escolas Normais”.

Em seu índice é possível verificar que o livro está dividido em duas partes, em Metodologia Geral e em Metodologia Especial. Na Metodologia Geral (que soma o total de 115 páginas) os pontos abordados são: método; métodos pedagógicos; evolução dos métodos pedagógicos; classificação dos métodos pedagógicos; processos didáticos; formas didáticas; modos didáticos; material didático; a lição; métodos ativos e escolas novas. Na Metodologia Especial apresentam-se as Metodologias da leitura, da escrita, da linguagem oral, da aritmética, da geometria, da geografia, da história, das ciências naturais, dos trabalhos manuais e do desenho. Todas estão subdivididas em “Caracteres gerais”, “Técnicas de ensino”, “Exercícios”, “Notas” e “Bibliografia”.

Sendo assim, nos interessa abarcar sobre a Metodologia da Aritmética, assunto abordado entre as páginas 164 e 180, organizado da seguinte forma:

  1. Caracteres Gerais (a- História do ensino da aritmética, b- Valor do ensino da aritmética, c- Objetivos do ensino da aritmética, d- Análise dos objetivos).

  2. Técnica de Ensino (a- Processos de ensino da aritmética, b- Prática de ensino da aritmética, c- Motivação do ensino da aritmética, d- Material de ensino da aritmética).

Segundo Theobaldo Miranda Santos (1952, p. 168), os objetivos do ensino da aritmética na escola primária são: “dotar a criança de um instrumento para resolver as questões de número e quantidade”; “proporcionar à criança conhecimento dos números e suas combinações, visando a solução dos problemas práticos da existência cotidiana”; “habituá-la à análise e resolução desses problemas”; “formar, em seu espírito, por meio do estudo da matéria, hábitos úteis de pensamento e de ação”; e “levá-la ao conhecimento dos órgãos e instituições econômicas do meio social”. Esse autor se baseia em diversos outros autores, como Thorndike, D’Ávila e Aguayo.

Santos (1952) se baseia nas ideias de Thorndike para afirmar que a tarefa da escola seria basicamente ensinar o significado dos números e das quatro operações fundamentais. E a partir disso ensinar a habilidade de aplicar esses conhecimentos na resolução de problemas. Ao que nos parece, isso ocorria para que as crianças soubessem resolvê-los na vida fora da escola, por isso se pregava bastante o uso de problemas que estivessem relacionados com a vida prática.

Aparentemente, os objetivos da matemática na escola primária nesse período seriam mais para ser um “instrumento” para a criança utilizar nas demais matérias. Santos (1952) afirma que isso é o que consta no Programa de Matemática do Departamento de Educação do Distrito Federal.

Fonte: Rude apud Santos (1952, p. 170).

Figura 3 Relação do ensino da aritmética com a vida prática 

Como em quase todos os outros tópicos do livro (inclusive da parte 1), na bibliografia aparece referências ao livro Didática da Escola Nova, de Miguel Aguayo.

Já o Manual do professor primário, publicado em 1956 , está dividido em sete capítulos: O professor primário; A escola primária; O escolar primário; Os métodos de ensino; As medidas do ensino; As instituições auxiliares; Os programas de ensino. Esse livro não está nas bibliografias indicadas no caderno da normalista , porém, é possível ver relações do que é orientado por ele no caderno da normalista.

De todo modo, é relevante que as orientações relativas ao ensino de aritmética estejam aliadas à proposta de ensino global. A aritmética não deverá ser ensinada em separado, como uma matéria independente. Esta é uma demanda importante ao ofício do futuro docente. Terá ele que buscar articular a aritmética de modo que o seu ensino deva “penetrar em todas circunstâncias reais da vida”.

As orientações de Theobaldo Miranda Santos presentes no Caderno de Prática (1956)

Segundo informações dadas pela autora do Caderno de Prática, Theobaldo Miranda Santos era um autor muito utilizado no curso em que ela fez sua formação inicial, fornecido pela escola normal. As aulas eram baseadas em seus livros e essas ideias permaneciam presentes no ato da escrita e organização dos cadernos dos normalistas. Segundo a ex-normalista, as aulas eram bastante teóricas, porém havia o momento em que essas normalistas faziam um “estágio” no curso primário, na escola anexa à Escola Normal.

No caderno de Bertoni (1956), a seção de “Metodologia da aritmética” se apresenta em três páginas. Essas páginas estão divididas em alguns tópicos: I. Objetivos; II. Valor; III. Requisitos para o bom ensino da aritmética; e IV. Método. A autora aponta como os objetivos dessa matéria:

Ensinar o significado dos nos, a natureza do sistema de numeração decimal; o significado da adição, subtração, multiplicação e divisão; natureza e relação de certas medidas; adição, diminuição, multiplicação de nos inteiros e de frações ordinárias e decimais; resolver problemas, porcentagens, juros, etc (BERTONI, 1956, p. 16).

De forma muito parecida, esses mesmos objetivos podem ser vistos no manual Metodologia do ensino primário, na parte de Metodologia da Aritmética, de Santos (1952), a partir da fundamentação de Thorndike:

Fonte: Santos (1952, p. 168).

Figura 4 Objetivos da aritmética na escola primária 

Para a normalista Bertoni (1956, p. 16), a aritmética possui os valores educativo, prático e instrumental. Educativo porque desenvolve a inteligência “revigorando o raciocínio”; prático porque “[...] é utilizada em todas as profissões e quase em todos os momentos da vida [...]”; e instrumental, porque se usa cálculos nas demais ciências. Segundo Santos (1952), o ensino de aritmética deve ser realizado a partir de situações reais, exemplificando com problemas da vida. A recomendação é que para que haja o interesse da criança, esses problemas não devem ser muito “[...] longos, irreais e estranhos às necessidades das crianças” (1952, p. 169). Cabe ao professor tomar como ponto de partida situações reais da vida da criança, para que ela estude matemática de forma mais natural possível, ou seja, o estudo será uma “[...] consequência das necessidades encontradas no decorrer da própria vida da criança” (1952, p. 169). Ao que tudo indica, o manual afirma que desta forma o ensino de aritmética se apresentará de forma natural às crianças, pois elas encontrarão um sentido em aprender aritmética já que irão utilizar situações parecidas no decorrer da vida, como quando forem fazer compras no comércio, conferir troco, etc.

Esses objetivos do ensino da aritmética podem ser considerados que foram apropriados do manual de Theobaldo Santos ou das aulas pela normalista. Entretanto, parece que a apropriação feita pela normalista de adaptar os problemas à vida prática da criança não se vincula diretamente ao que era proposto pelo autor do manual. O autor propõe vincular o ensino à vida prática para que a criança já se acostume com as tarefas e situações pelas quais poderá passar durante sua vida como jovem ou adulto. Já no caderno da normalista, os termos “vida prática” ou “situações cotidianas” parecem estar vinculados com o interesse da criança no momento em que esta ainda é criança.

Bertoni (1956) aponta como requisitos para um bom ensino da aritmética que ele deva ser intuitivo, prático, raciocinado, gradual e progressivo. A maioria desses requisitos também se apresentam no manual de Santos (1952). Ser intuitivo seria materializar os números, ou representar os cálculos com imagens. De acordo com Santos (1952), a criança possui dificuldade em abstrair quando ingressa na escola. Por isso é tão importante a iniciação matemática, para que ela adquira objetivação no ensino da aritmética.

A utilização de um material que concretize os números e as operações da aritmética facilita consideravelmente a aprendizagem dessa disciplina. Êsse material pode ser simples e natural, como os dedos da mão, feijão, palitos, pedrinhas, etc., ou artificial como cartazes, gravuras, desenhos recortados, fichas, bolinhas de vidro ou de massa, etc. Há ainda os aparelhos de aritmética como o ábaco ou contador mecânico, os taboleiros de unidades e de frações, as caixas de cálculo de Tillich, o taboleiro de Gersbach, a coleção de pesos e medidas para o ensino do sistema métrico, o relógio escolar, os jogos aritméticos, etc. O professor deve utilizar todos esses recursos para tornar o ensino mais objetivo e interessante (SANTOS, 1952, p. 177-178).

Ser prático, para a normalista, significa que as definições não devem ser decoradas dos livros, e sim aprendidas. Uma forma disso ocorrer seria propor problemas que tivessem aplicação na vida prática da criança. Santos (1952, p. 176) afirma que o professor deve fazer de tudo para tornar o ensino da aritmética algo interessante e agradável à criança. Para este autor, basta que o ensino seja relacionado com experiências vividas pela criança, ou situações da vida real, fazendo com que a aprendizagem seja a partir de uma atividade espontânea e criadora. Isso poderia ser feito a partir de jogos, brincadeiras de “banco”, “feira”, “loja”, entre outros, que tornem a “aprendizagem da aritmética atraente e divertida” (1952, p. 177). Novamente, o autor do manual vincula o comércio como algo que seja do dia a dia da criança.

Ser raciocinado significa não ser mecânico, ou seja, a criança precisa saber qual operação usar em cada problema, para a normalista, não basta apenas responder rápido e com exatidão. O autor do manual (1952) recorre à Carmen Gill , que afirma que as crianças não devem ser só capazes de efetuar uma conta longa e complicada, mas sim saber “manejar” ou aplicar a operação correta nas diversas situações problema. Para essa autora (GILL, 1945 apud SANTOS, 1952), isso decorre de falhas do processo de ensino. Então o professor deve orientar que as crianças dominem além das técnicas de operações, também seu “fim utilitário”. Gill (1945, n.p apud SANTOS, 1952, p. 171) afirma que “[...] os dois aspectos são igualmente indispensáveis: compreender porque realiza (raciocínio) e executar de maneira rápida e exata (mecanização)”. Ao que parece, para a normalista o fundamental é que a criança saiba articular e utilizar corretamente as operações em cada problema.

Ser gradual e progressivo representa que o ensino deve partir de questões mais fundamentais, das mais simples e seguir para o ensino mais complexo de forma progressiva (BERTONI, 1956). Este “requisito” não foi visto nos manuais de Santos (1952, 1956). Mesmo o uso do termo “requisito” também não foi encontrado em nenhum dos manuais de Theobaldo M. Santos. Porém, como visto anteriormente, a maioria desses termos foram abordados e explicados em seu manual Metodologia do Ensino Primário (1952), bem como foram apontados no caderno de Bertoni (1956). Isso também pode representar um processo de apropriação da leitura do manual traduzido no caderno da normalista.

Em relação ao método, é possível encontrar afirmações parecidas com as que a normalista considera no Manual do professor primário, de Theobaldo Santos (1956). Esse manual apresenta, em seu quarto capítulo, os “Métodos de Ensino”. Como Theobaldo Miranda Santos era um autor muito utilizado e recomendado nas escolas normais, não se sabe se a normalista utilizou esse manual na reelaboração do caderno ou se ele foi utilizado pelo professor ministrante das aulas de Prática.

Neste manual, Santos (1956) divide os processos didáticos em indutivos e dedutivos, afirmando que um serve para aplicar o método indutivo e o outro, o método dedutivo. Para ele, os processos indutivos compreendem a análise, a intuição, a observação e a exemplificação, em detrimento dos processos dedutivos, que abrangem a síntese, a sinopse, o diagrama, o esquema, a demonstração e a repetição. Essas afirmações também estão presentes no Caderno de Bertoni (1956), como se apresenta a seguir:

Theobaldo M. Santos defende o processo indutivo, pois a intuição faz com que a criança compreenda melhor as lições quando vê, ouve ou toca os objetos. A observação “[...] se baseia na curiosidade ávida e irrequieta da criança. A observação infantil possui, entretanto, caracteres próprios e particulares que é preciso levar em conta” (SANTOS, 1956, p. 182). Bertoni (1956) também sinaliza, conforme a Figura 5, que esse método é mais didático e vantajoso.

Fonte: Bertoni (1956, p. 17).

Figura 5 Vantagem do método indutivo ante o método dedutivo 

Considerando a perspectiva dos saberes profissionais, esses processos podem ser relacionados com os saberes que o professor que iria ensinar matemática adquirisse ao longo de sua formação. Eles podem ser considerados como uma ferramenta para o professor primário aplicar na sua própria prática, ou seja, estariam vinculados com os saberes para ensinar (HOFSTETTER, SCHNEUWLY, 2017). Em mais um processo de apropriação, iremos chamar esses saberes como uma aritmética para ensinar.

No manual de Santos (1956) aparecem considerações sobre os “modos didáticos” individual, simultâneo e misto. Sobre o modo individual, o autor acredita que há mais inconvenientes do que vantagens. Por exemplo, como a criança trabalha sozinha, isso alimentaria nela um caráter individualista, que prejudicaria sua “formação espiritual”.

Sob o ponto de vista didático, o modo individual muito deixa a desejar. O mestre que adota essa técnica anacrônica de ensino é obrigado a repetir sua lição tantas vêzes quantos fôrem os alunos de sua classe. A monotonia e a fadiga resultantes dêste modo de ensinar reduz ao mínimo a eficiência da aprendizagem, impossibilitando, ao mesmo tempo, a manutenção de uma boa disciplina (SANTOS, 1956, p. 193).

Enquanto no modo simultâneo, “[...] o ensino é realizado ao mesmo tempo, a todos os alunos de uma classe, como se tratasse de um único aluno” (SANTOS, 1956, p. 194). Segundo Santos (1956, p. 194), esse modo apresenta muitas vantagens, entre as quais: o professor não perde tempo com várias repetições, os alunos não permanecem mais inativos, eles “participam, interessados, de todos os trabalhos escolares”. A “ordem” e o “interesse” dominam as atividades da sala de aula. O modo misto seria uma mistura dos dois, mas o autor reafirma que o modo simultâneo é o melhor para se trabalhar com as crianças.

Esses temas aparecem no caderno da normalista, porém em outro tópico, na Metodologia da Geometria. Entende-se que essas “normas didáticas” poderiam ser usadas em qualquer outra matéria, como no ensino da aritmética.

Fonte: Bertoni (1956, p. 17).

Figura 6 Ponto de partida das lições concentradas na vida prática 

Como se pode ver, Theobaldo Miranda Santos e a normalista afirmam que crianças são egocêntricas, por isso elas devem ver nas lições algo que se relacione à sua própria vida. Isso fará com que ela crie interesse nas aulas, principalmente nas de aritmética. Novamente, ambos falam que as aulas devem ser de acordo com a vida da criança, ou de coisas que estão ao seu entorno, ou seja, que o ensino deve estar de acordo com o interesse da criança. Porém, ao nosso entender, o interesse da criança entendido pela normalista é diferente do que recomenda o autor Theobaldo, sendo para ela um interesse voltado ao infantil, e para ele um interesse voltado para a vida prática que essa criança terá ao se tornar um jovem/adulto.

Considerações finais

Com este artigo foi possível observar que cursos de formação na escola normal utilizavam manuais pedagógicos publicados por Theobaldo Miranda Santos. No manual desse autor, de 1956, que é específico para o professor do curso primário, percebe-se que ele se baseia em métodos e processos que já vigoravam de longa data, tendo em vista orientações ligadas ao método intuitivo. Os mesmos processos didáticos definidos no manual de Santos (1952) podem ser vistos nos registros do caderno de Bertoni (1956), escritos de outra forma, ou seja, na sua forma apropriada pela normalista.

Retomando a interrogação que norteia este texto, perguntamos: Que apropriações são realizadas dos manuais pedagógicos, que referenciam cursos para normalistas, incorporadas no texto do Caderno de Prática, de modo a constituir elementos de um saber profissional do professor para ensinar aritmética nos primeiros anos escolares?

As poucas orientações em relação à aritmética contidas nesse caderno levam-nos a apontar alguns elementos considerados importantes que deveriam fazer parte do saber profissional do professor que ensinaria matemática para crianças.

Nota-se que a tônica do curso, do tratamento particular da Aritmética, envolve bem caracterizar os objetivos do seu ensino, o seu valor e o que era considerado importante para o ensino dessa rubrica. A postura do professor deveria fazer par com o valor da aritmética no ensino. Assim, o mestre deveria ter como ferramenta de trabalho elementos para tornar o ensino intuitivo; para além disso, articular situações da vida prática de modo a fazer uso da aritmética; levar o aprendiz a uma postura “raciocinada”, isto é, fazê-lo participar do trabalho de modo que sua atividade não fosse mecânica.

De todo modo, nota-se a partir do Caderno de Prática, que esse tempo de formação dos professores ainda está longe de tratar com mais especificidade os ensinos de matemática na escola primária. Tudo leva a crer que se supõe que caberia ao professor, conhecedor de uma aritmética a ensinar, e tendo contato com os princípios que deveriam nortear o seu ensino em classe, iria elaborar a sua ação docente, o seu modo de tratar com os números e operações nos diferentes anos escolares. A esse tempo, portanto, os elementos considerados como um saber profissional do professor que ensinaria matemática revelam que a relação entre a matemática a ensinar e a matemática para ensinar está dada por uma pedagogia da matemática, isto é, por princípios de trabalho pedagógico do professor face ao campo disciplinar matemático.

Notas

1 Trata-se do projeto intitulado “A matemática na formação de professores e no ensino: processos e dinâmicas de produção de um saber profissional, 1890-1990”, com financiamento da FAPESP, na linha “projeto temático”, coordenado pelo Prof. Dr. Wagner Rodrigues Valente. Maiores informações pelo endereço: <https://bv.fapesp.br/pt/auxilios/98879/a-matematica-na-formacao-de-professores-e-no-ensino-processos-e-dinamicas-de-producao-de-um-saber-p/>.

2 O caderno foi localizado a partir de seu acervo pessoal, que possui hoje seu nome alterado para Neuza Bertoni Pinto. Estudou na Escola Normal Aurélio Arrobas Martins, em Jaboticabal/SP, entre 1955 e 1956. Seu caderno foi digitalizado e enviado para publicação no Repositório de Conteúdo Digital da Universidade Federal de Santa Catarina, juntamente com outros documentos do seu acervo pessoal.

3 Fez graduação em matemática e em pedagogia. Continuou os estudos com o mestrado e o doutorado em Educação. Atualmente é integrante do corpo docente como colaboradora do Programa de Doutorado em Educação em Ciências e Matemática (PPGECEM), da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática (REAMEC). Dedica-se, em específico, às pesquisas sobre História da Educação Matemática.

4 A entrevista foi realizada no dia 03 de setembro de 2019.

5 Para verificar informação, ver Silva (2006), anexo 4.

6 O estudo de Silva (2006) aborda a circulação de diversos manuais entre 1870 e 1970, no Brasil e em Portugal. O autor Theobaldo Miranda Santos foi citado em manuais portugueses de metodologia sete vezes e duas vezes em manuais brasileiros. Suas obras foram citadas cerca de 20 vezes em manuais variados, portugueses ou brasileiros, conforme anexo 4 disponível em Silva (2006, p. 177).

7 Esse livro está digitalizado no Repositório de Conteúdo Digital (RCD), 3. ed. v. 10. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/159304. Acesso: 30 ago. 2019.

8 A bibliografia usada no manual é: Adolfo Rude. Die neue Schule und ihre Unterrichtslehre, III v., Osterwieck-Hartz, 1929. Tradução livre nossa: A nova escola e seu ensino.

9 Foi analisada a 4ª edição desse manual, com 420 páginas.

10 Além disso, esse manual foi recolhido no acervo dessa professora juntamente com o caderno de Prática. A normalista afirma ter usado bastante esse manual, mas não disse se foi durante o período que passou como aluna da escola normal ou já como professora.

11 Os autores tiveram acesso apenas ao manual do Theobaldo Miranda Santos (1952) que faz referência à autora Carmen Gill. Não foi possível localizar um exemplar da Revista de Educação Pública, v. 3, n. 12, publicada em 1945, por isso não foram dados mais detalhes sobre o artigo de Carmen Gill

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Recebido: 01 de Outubro de 2019; Aceito: 23 de Dezembro de 2019

Ms. Bruna Lima Ramos Giusti, Professora de Matemática na Rede Pública de São Paulo, Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde, Universidade Federal de São Paulo (Campus Guarulhos − Brasil), Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática (GHEMAT), ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5561-868X. E-mail: bruna.lima@unifesp.br

Prof. Dr. Wagner Rodrigues Valente, Universidade Federal de São Paulo (Campus Guarulhos − Brasil), Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática (GHEMAT), ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2477-6677. E-mail: ghemat.contato@gmail.com

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