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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.55 Natal ene./marzo 2020  Epub 29-Ene-2021

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n55id19424 

Artigo

Contando histórias de quem “dormiu para sempre”: narrativas infantis motivadas pela leitura literária

Telling stories of those who fell asleep forever: children's narratives motivated by literary reading

Contando historias de quien “durmió para siempre”: narrativas infantiles motivadas por lectura literária

Rosa Maria Hessel Silveira1 
http://orcid.org/0000-0001-5797-6627

Patrícia Aparecida Machado1 
http://orcid.org/0000-0001-8350-7701

Bruna Rocha Silveira1 
http://orcid.org/0000-0003-3418-7603

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)


Resumo

A morte não é, correntemente, considerada um tema adequado para se falar com crianças. Assim, é comum ser tratada em narrativas infantis através de analogias que tentam amenizar emoções e sentimentos como dor, sofrimento e perda. Nesse artigo, articulamos o campo da literatura infantil - especificamente os estudos sobre o tema da morte nas obras para crianças − os estudos sobre a morte e sobre narrativas infantis. Analisamos narrativas produzidas por crianças de uma turma de 4º ano de escola pública após uma sessão de leitura compartilhada da obra Menina Nina, duas razões para não chorar, de Ziraldo (2002), cuja temática central é a morte. A leitura da obra motivou as crianças a contarem suas próprias histórias em relação ao tema, com elementos de seu cotidiano, como a violência e a religiosidade. Entendemos que a leitura e a conversa sobre o assunto são importantes ferramentas para a expressão das emoções das crianças sobre a morte, a perda e o luto.

Palavras-chave: Literatura infantil; Morte; Leitura; narrativa

Abstract

Death is not currently considered a topic for talking to children. A taboo theme in our society in general is commonly dealt with in children's narratives from analogies that try to soften emotions and feelings such as pain, suffering and loss. In this paper, we articulate the field of children's literature − specifically the studies of the presence of death in children's works − the studies of death and children's narratives. We analyzed the narratives produced by children of a 4th grade public school class after a shared reading session of Ziraldo's “Menina Nina” whose central theme is death. The reading of such a work aroused in the children the motivation to tell their own stories with the theme, with elements of their daily life, such as violence and religiosity. We understand that reading and talking about the topic are important tools for the expression of children's emotions about death, loss and grief.

Keywords: Children's Literature; Death; Reading; Narrative

Resumen

La muerte no és, corrientemente, considerada un tema adecuado para hablar con niños. Así, es comúnmente tratada en narrativas infantiles a partir de analogías que intentan amenizar emociones y sentimientos como dolor, sufrimiento y pérdida. En este artículo, articulamos el campo de la literatura infantil − específicamente los estudios sobre la presencia de la muerte en las obras para niños −, los estudios sobre la muerte y sobre narrativas infantiles. Analizamos narrativas producidas por niños de un grupo de 4º año de escuela pública después de una sesión de lectura compartida de la obra Menina Nina (Niña Nina), de Ziraldo, cuya temática central es la muerte. La lectura de la obra motivó a los niños a contar sus propias historias sobre el tema, con elementos de su vida diaria, como la violencia y la religiosidad. Entendemos que la lectura y la conversación sobre el tema son importantes herramientas para la expresión de las emociones de los niños sobre la muerte, la pérdida y el luto.

Palabras clave: Literatura infantil; Muerte; Lectura; Narrativa

Dos dois jeitos desse adeus

É que a gente inventa a vida

(Ziraldo. Menina Nina)

Palavras iniciais - a morte como elemento da vida humana e como temática cultural

Certeza única e universal da vida dos seres humanos, a morte tem oscilado, no curso da História, entre variadas definições, entendimentos, explicações e, consequentemente, tem sido acompanhada por diversos costumes, ritos, atitudes e comportamentos, que ora a integraram radicalmente no meio social, ora a afastaram da visibilidade cotidiana. Ariès (2014), Kellehear (2016) e Elias (2001), entre outros, nos trazem um amplo - embora não consensual - panorama sobre as concepções e vivências relativas à morte na sociedade ocidental dos últimos séculos. E, não obstante algumas diferenças analíticas e de abrangência de dados, há uma confluência entre os três autores no que diz respeito a uma tendência que, emergente no século XX, se estabeleceu em nossas sociedades contemporâneas - o morrer como “experiência oculta e inoportuna” (KELLEHEAR, 2016, p. 389), o fato de “[...] empurrar a agonia e a morte mais que nunca para longe do olhar dos vivos e para os bastidores da vida normal nas sociedades mais desenvolvidas” (ELIAS, 2001, p. 97-98), assim como uma concepção de morte que “[...] nos causa tanto medo que nem ousamos dizer-lhe o nome” e que sofre um “interdito contemporâneo” (ARIÈS, 2014, p. 37 e 771).

Se, como acentuam os autores, a morte foi “empurrada” para longe da vida e das conversas cotidianas adultas, a sua tematização se torna mais problemática quando se trata das conversas entre adultos e crianças. Afinal, dentro do nosso quadro de referências, nós, adultos, temos a responsabilidade de proteger e cuidar de uma infância que, em uma concepção moderna, é considerada frágil, ingênua, “impressionável” e sujeita a traumas. Como resolver este impasse? Diante dessa dificuldade, quando questionados por uma criança sobre a morte, frequentemente nós nos escudamos em respostas de caráter evasivo, metafórico e simbólico, alegando que quem morreu “foi para o céu”, “virou estrelinha” ou que “dormiu para sempre”. Talvez essas respostas sejam uma tentativa de amenizar o significado que a morte tem em nossas próprias vidas, e se devam às dificuldades em lidar com a dor das nossas próprias perdas ou mesmo à impotência em explicar a dor daquela criança.

Essa dificuldade do mundo adulto se conecta com a forma com que a temática da morte se faz presente - ou com sua sistemática ausência - nos livros para crianças das últimas décadas. Evidentemente, na literatura (não adjetivada), ela sempre se fez presente, como assinala Díaz (1996, p. 3), “[...] como projeção do pensamento do homem, de suas crenças e temores frente a uma das maiores incógnitas da existência”. O pesquisador observa, por exemplo, a centralidade da morte como condição para o desenvolvimento das narrativas dos Contos de Fadas, frequentemente encarnada no desejo da morte dos outros, em situações de violência. E Díaz (1996, p. 6) - em seu demorado exame da morte na literatura, mostra como em alguns contos populares a morte era usada como uma espécie de advertência, de castigo para maus comportamentos. E, ainda em se tratando de livros para crianças (ou adaptados para elas), o autor evoca o que chama de “morte lacrimejante”, em que “o argumento é construído com base no desamparo e nas dificuldades de uma criança, até que morra de forma trágica [...]”; a associação à Pequena vendedora de fósforos, de Andersen, é quase imediata, e o autor observa o quanto tais narrativas, comuns na literatura para crianças do final do séc. XIX estavam relacionadas às correntes literárias realista e naturalista.

Se, neste breve recorrido histórico, foram identificadas algumas funções assinaladas à morte nos livros para crianças, é sabidamente reconhecido que, a partir da metade do século XX - pode-se estimar, a temática se tornou menos frequente. Mesmo dentro dessa diminuição, é preciso observar que a forma mais frequente com que a temática se apresenta na literatura infantil é a que envolve a morte de pessoas mais velhas, notadamente dos avós, como assinalam Diaz (1996, p. 8), Mendes (2013) e Silveira; Dalla Zen (2013). Diaz observa, que, na maioria destes livros, “[...] encara-se a morte como um fenômeno natural, como uma etapa a mais da existência a que todos chegaremos. É a inevitável consequência do desgaste do corpo quando envelhece”. Mendes (2013, p. 1124) observa, nos livros por ela analisados, a frequência do eixo temático aglutinador “a morte e a saudade” [...], explorando uma dimensão também constatada por Silveira; Dalla Zen (2013), em sua análise de 14 obras de autores brasileiros que tematizavam a morte de avós. A menção às boas relações entre avós e netos na convivência, a expressão de sentimentos de tristeza, de busca de consolo e de explicações, assim como a ausência de uma exploração de doenças terminais e do próprio morrer foram tendências identificadas em tais obras.

Subjacente ao uso de eufemismos e à ausência de menções diretas ao morrer e ao sofrimento frequentemente associado a ele nos livros infantis, certamente está a concepção de que as crianças contemporâneas raramente têm contato direto com a morte e/ou mortos. Entretanto, esta é uma experiência variável conforme o estrato social e o ambiente em que as crianças vivem. Assim, no caso de crianças brasileiras que vivem em bairros com alta vulnerabilidade social (assim como em muitos outros países), a morte está presente com frequência em seu cotidiano, haja vista os índices de violência em diversas comunidades dominadas pelo tráfico de drogas e as mazelas daí decorrentes. Nesses contextos, a morte fica escancarada, invadindo a vida sem pedir licença, sem formas profícuas de exílio do acontecimento, se fazendo presente na vida das pessoas e das crianças de forma constante. Se, para quem vive fora dessas regiões, as mortes violentas já se fazem assustadoras, ao entrarem em nossas casas pelas variadas mídias, pelos noticiários da televisão, que publicizam índices de criminalidade, de acidentes, de mortes em conflitos, entre tantas outras formas, podemos imaginar a forma avassaladora com que ela se torna presente nos que vivem em regiões periféricas com um contexto social frágil e vulnerável. Nesses casos, como, aliás, já foi focalizado em vários estudos, as crianças ficam expostas a um cenário trágico e violento, de forma quase naturalizada.

É da articulação entre o campo da literatura infantil - especificamente dos estudos sobre a presença da morte nas obras para crianças -, os estudos sobre a morte e sobre narrativas infantis, que emerge o presente estudo. Nele não procuramos simplesmente identificar histórias de violência ou prescrever formas pedagógicas e formativas para lidar com tais casos. Especificamente, este artigo tem como objetivo analisar narrativas produzidas por crianças de uma turma de 4º ano de escola pública da rede municipal de ensino após uma sessão de leitura compartilhada de uma obra literária cuja temática central era a morte. Nas próximas seções, traremos informações sobre o contexto da pesquisa em que ocorreu o evento, sobre a obra trabalhada e sobre a tarefa que originou os dados.

Contextualizações necessárias: o projeto, as crianças e a obra literária

O presente trabalho se insere na pesquisa inti¬tulada Percursos e Representações da Infância em Livros para Crianças - Um Estudo de Obras e de Leituras , realizada com apoio do CNPq, cujo objetivo mais amplo era analisar dimensões da compreensão leitora de obras literárias por alunos dos anos iniciais, do ensino fundamental, de escolas públicas (municipal e estadual) na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A pesquisa, que deu continuidade a duas anteriores, se ancora em conceitos amplamente aceitos nos estudos contemporâneos de literatura infantil, quais sejam o reconhecimento da relevância da leitura de livros literários por crianças nos espaços educativos e a possibilidade de que obras com protagonistas infantis (humanos ou animais) favoreçam a identificação dos leitores infantis. O projeto de pesquisa específico se organizou a partir de dois eixos centrais: analisar formas de representação da infância corporificadas nas personagens infantis e identificar as negociações de leitura dos alunos em relação aos livros escolhidos e lidos conjuntamente, considerando as suas experiências anteriores, na família, na escola, na comunidade, no espaço midiático, assim como das situações de conversa com todo o grupo.

Especificamente, em relação à realização de conversas sobre leitura como forma de potencializar a troca de impressões entre leitores, observa-se que ela vem sendo enfatizada por vários autores (CRINON, MARIN, LALLIAS, 2006; COSSON, 2014) com especial destaque para o desenvolvimento do tema por Chambers (2007, 2008). Registre-se que a obra de Chambers, em especial o livro ‘Dime - los niños, la lectura y la conversación’ se detém - a partir de uma experiência consistente com diferentes grupos de leitores − na discussão das possibilidades, limites e dificuldades concretas das conversas literárias, inclusive com a identificação de perguntas mais ou menos produtivas. De qualquer forma, perpassa todo o chamado “enfoque” da conversa literária de Chambers (que sublinha o quanto não se trata de uma metodologia) a ideia de que o “[...] efecto público de esta reunión consciente de ideas es que logramos una ‘lectura’ - um conocimiento, entendimento, apreciación - de un libro que excede ampliamente lo que cada uno de los membros del grupo podría haber logrado solo” (CHAMBERS, 2007, p. 34).

Inspirado por tais pressupostos, planejou-se, no projeto, em cada escola, um conjunto de sessões de leitura compartilhada e discussão de livros previamente selecionados, a partir de critérios como qualidade literária, variedade de temáticas centrais e presença de protagonistas crianças. Para possibilitar um contato direto com a obra em sua materialidade, um exemplar era distribuído a cada dupla de alunos. Após a leitura conjunta da obra e as discussões orais (conversas), eram propostas atividades diversificadas - escritas, imagéticas, encenações - relacionadas à obra trabalhada, tanto em relação à temática central, quanto a outras dimensões que se revelassem interessantes. Neste sentido, também atualizávamos outro pressuposto de Crinon, Marin, Lallias (2006, p. 115) - o de que “agir sobre um texto ajuda a melhor compreendê-lo” . As propostas de tais ações sempre buscaram desafiar as crianças a efetuarem relações entre o panorama evocado pela obra e as vivências pessoais de cada uma.

Este trabalho se debruça especificamente sobre as produções escritas e os desenhos de uma turma de alunos de 4º ano de Escola da rede municipal de Porto Alegre, em uma sessão de leitura da obra Menina Nina, de Ziraldo, adiante descrita. A turma contava com 18 alunos, em sua grande maioria de 9 ou 10 anos à época, e, desses, 14 lograram elaborar o texto que analisamos e 11 também acrescentaram ao texto um desenho. Especificamente, foi proposto aos alunos/as que escrevessem uma história, acrescida de um desenho, de alguém próximo que, como a vovó de Nina, tivesse “dormido para sempre”.

A escola à qual pertencia a turma situa-se em uma região tradicionalmente carente de Porto Alegre. A comunidade, como em muitas outras espalhadas pelas metrópoles brasileiras, é em parte dominada por guerra de facções do tráfico de drogas, sendo integrada por uma população com escassos recursos econômicos, com ocupações de baixa especialização e outras configurações típicas das periferias brasileiras. A escola em questão atua, há muitas décadas, no local, realizando ações variadas de apoio às crianças e jovens que a frequentam. Nesse sentido, vale lembrar o que Michele Petit, no livro Os jovens e a leitura (2008), argumenta em relação a vivências de sujeitos em bairros periféricos; para a autora, não são apenas as construções que apresentam más condições e não apenas o tecido social que pode estar em dificuldades, uma vez que, para muitos que vivem ali, está prejudicada sua capacidade de simbolizar, de imaginar, de pensar em si próprio e em ter um papel social (PETIT, 2008). A prática da leitura literária representaria, para a autora, um espaço de abertura para o imaginário e para identificações possíveis, e os livros poderiam ser companheiros de consolo, pois as dificuldades para se encontrar um lugar nesses mundo não são apenas de dimensão econômica, mas também afetiva, social e existencial. Na literatura, conforme a autora, podemos encontrar palavras e imagens nas quais encontramos um lugar que nos acolhe, e a identificação com certos personagens e certas situações pode funcionar como catalisadores de emoções e sentimentos. De certa forma, as sessões de leitura literária com a temática da morte poderiam proporcionar aos pequenos leitores um momento para expor seus pensamentos sobre a morte, de forma a criar condições reconfortantes, de reflexão e ressignificação da própria vida.

No que diz respeito ao livro motivador da discussão - Menina Nina (2002), trata-se de obra do prolífico e premiado autor brasileiro Ziraldo, conhecido em vários campos da produção cultural - é cartunista, chargista, pintor, dramaturgo, caricaturista, cronista, desenhista, humorista, colunista. Em 2002, publicou Menina Nina: duas razões para não chorar, assinando o texto e as ilustrações. O autor inspirou-se em fatos de sua própria vida: a morte de sua primeira esposa e o desconsolo de sua neta com o fato. A exemplo de outras obras de Ziraldo, há uma interrelação produtiva entre o texto escrito e as ilustrações, que ocupam de forma integrada 39 páginas de formato grande.

Iniciando com um narrador onisciente distante, em versos com rimas aleatoriamente distribuídas, o texto verbal assim começa:

Menina Nina

amava vovó Vivi

que amava

sua menina.

A vovó, ao ver a Nina,

pelo vidro do berçário,

pulava feito menina,

em festa de aniversário

(vovó era mais menina

do que a neta que nascia) (ZIRALDO, 2002, p. 4).

A partir desse acontecimento inaugural, a narrativa vai detalhando a afeição inicialmente dedicada apenas pela avó à netinha mais velha e, depois, a intensa relação e identificação entre vó Vivi e Nina. Através de uma narrativa ágil, no ritmo predominante de versos de sete sílabas, leva-se o leitor a saber que Vivi se encantava, ria e partilhava muitos momentos com a netinha, mudando algumas atitudes de vida, como o gosto por viagens, que diminui pela vontade de estar perto e acompanhar o crescimento de Nina. Nas palavras da obra:

Vovó é uma vocação

irresistível de avó.

Vó Vivi é a vó do ano

todo dia, toda hora (ZIRALDO, 2002, p. 16).

Já a netinha se espelha nos objetos da avó, em suas fotos de diferentes momentos da vida, chegando a expressar:

Eu já sei o que vou ser

quando crescer.

Vou ser você, vó Vivi (ZIRALDO, 2002, p. 22).

Se, até a p. 23, o texto se articula harmonicamente a imagens coloridas, com cenas de felicidade, é o conjunto da página dupla 24 e 25, que demarcará a mudança de tom da história. Em tons azulados e cinzentos, vê-se a menina Nina de costas na janela olhando a lua no céu, enquanto o texto verbal marca metaforicamente uma mudança na ordem das coisas: “E aí, teve uma noite/ em que a lua lá no Céu/ cedo se desenhou/ bem clara e redondinha.”! Nas duas páginas que seguem, sem ilustrações, enuncia-se a ‘partida definitiva’ da vovó, repentinamente enquanto dormia. “Vovó dormia para sempre.”

Na página que segue, a menina Nina assume sua voz e expressa todo o seu desconsolo e incompreensão do acontecimento, que cortava todos os planos feitos em conjunto: “promessas, parceria, segredos...”. Frente à tristeza da menina, o narrador assume a enunciação em diálogo com a menina procurando consolá-la. De acordo com Silveira; Dalla Zen (2013, p.155), as duas razões para não chorar, aludidas no título, são: “se, além do sono que a vovó está dormindo, não existe nada mais, a vovó estaria em paz; entretanto, se há um outro mundo, a vovó a está acompanhando e vendo seu crescimento.”

Duas observações importantes sobre o livro, ainda: em primeiro lugar, ressalte-se a existência de dois paratextos importantes - um longo texto esclarecedor do próprio Ziraldo, fazendo a ‘história da história’, o ‘making off’ do livro; um texto de Marcelo Marthe, na contracapa, bastante longo, em que se sublinham a temática e a qualidade com que o autor a desenvolve. Em segundo lugar, é preciso ressaltar que muitas das cenas desenhadas por Ziraldo, certamente inspiradas em ambientes reais, remetem a vivências de uma classe social financeiramente privilegiada - forma de vestir das pessoas, quartos de hotel inundados de brinquedos e presentes para a menina, ambientes domésticos, fotos de viagens em países distantes. Ou seja: é preciso reconhecer uma certa distância entre o ambiente e os hábitos prováveis dos alunos leitores, e o mundo da menina Nina. Também pode-se apontar outra diferença de contexto sociocultural entre o mundo trazido pelo livro e o das crianças leitoras: estas estão inseridas em uma dura realidade onde a morte povoa tanto o mundo imaginário como o mundo real, dado o cotidiano permeado pela violência propiciada pelas condições socioeconômicas.

Assim, na sessão de leitura da obra, durante a conversa posterior, uma pesquisadora perguntou às crianças: “essa história lembrou vocês de alguma coisa? Uma história parecida com outros personagens?” e as respostas pipocaram com lembranças de um irmão que morreu, avós, um pai que morreu muito jovem, outro pai, um primo... sinalizando certa proximidade das crianças com o evento, o que reapareceria em seguida, nos textos escritos e nos desenhos. Registre-se, ainda, que, na conversa, uma das meninas, espontaneamente, exclamou: “eu adorei o livro”, ao que uma das pesquisadoras reagiu: “a colega disse que adorou o livro, vamos saber por quê?”alguém sabe dizer por que gostou?”. Entre as respostas enunciadas por vários alunos, ouvimos: “gostei da história”, “porque ele é bem carinhoso”, “porque tinha toda a família reunida junto”, “porque tinha felicidade entre eles”, “porque a história é emocionante”, “porque é um pouco triste um pouco alegre”, “porque lembra de coisas boas”, “porque ela tem toda a família e muita vida pra viver”, o que indica receptividade positiva à obra.

Após a conversa conjunta, foi proposta aos alunos e alunas uma tarefa de escrita e a elaboração de um desenho, abaixo reproduzidos, tarefa que foi lida em conjunto e explicada:

Nós lemos no livro MENINA NINA, de Ziraldo, a história de uma vovó que dormiu para sempre. Quem tu conhecias que um dia “dormiu para sempre”? Conta como aconteceu, como foi a despedida, como ficaram sua família e seus amigos, que lembranças ficaram e outras coisas que tu quiseres nos contar. Se precisares, podes usar o verso da folha para escrever e/ou desenhar.

É fácil imaginar que a proposta foi reinterpretada por cada criança e não seguida à risca integralmente por todas, o que não impede que interpretemos algumas delas e as tendências dos 14 textos produzidos.

As histórias de morte contadas pelas crianças

Uma observação se faz necessária inicialmente. Os textos escritos, em grande parte, careciam de um uso adequado de sinais de pontuação e, de forma previsível, apresentavam erros ortográficos, às vezes em número expressivo, às vezes, com mais raridade. Como nosso interesse não é a análise do progressivo domínio de convenções da escrita, efetuamos a correção de erros ortográficos e inserimos sinais de pontuação absolutamente indispensáveis para a compreensão do texto, em especial para a segmentação de frases e indicação de diálogos. Respeitamos integralmente a escolha de palavras e as construções gramaticais utilizadas. Também é preciso registrar que nem sempre as narrativas lograram manter a coerência e consistência de tempo e de desenvolvimento de ações narradas, o que era previsível na faixa escolar trabalhada.

Por outro lado, é preciso acentuar que, na análise dos textos infantis, nosso ponto de vista se inspira nas palavras de François, em seu trabalho de análise de textos infantis escritos. Afirma o autor:

[...] vamos nos voltar para um dos modos de se ler esses textos, para o diálogo que se pode estabelecer com eles, considerando-os, ao mesmo tempo, como retomadas culturais, como criações ‘literárias’, como relações com a experiência e também como formas de se pensar (FRANÇOIS, 2014, p. 199).

E o autor se detém, parágrafos após, a esmiuçar esta possibilidade de diálogo, apontando dimensões que se ajustam à nossa leitura:

Já mencionamos que falar sobre o diálogo entre o texto e o receptor não significa que tenhamos um conceito claro do que seria esse diálogo. Talvez [...] possamos propor que o que importa em um diálogo, qualquer que seja ele, é que ele pressupõe previamente uma dada comunidade (por exemplo, de língua, de traços do mundo percebido, do que é, mais ou menos, a experiência de sentir medo ou de ser feliz). Isso implica, por outro lado, que sejamos capazes de receber o que é diferente de nós, o que, por exemplo, não tenhamos vivido ou imaginado. [...] Gostaria de acrescentar que o ‘diálogo’ com o texto não implica uma relação com o que possa ter sido a intenção do autor. Não podemos saber o que foi planejado, quais teriam sido suas rotinas, o que pode tê-lo surpreendido naquilo que lhe veio à mente (FRANCOIS, 2014, p. 201).

Efetivamente, não determinaríamos intenções dos pequenos autores - considerando, ainda, que, embora não fossem objeto de avaliação, os textos foram produzidos num contexto escolar - mas nos colocamos como capazes de entrar em um diálogo de leitura e elaborarmos interpretações que nos pareçam sensatas e pertinentes.

Em primeiro lugar, registre-se que de imediato emerge uma diferenciação nos textos produzidos: entre aqueles de cunho mais ficcional, em que a narrativa é feita em 3ª pessoa e não há marcas autobiográficas evidentes, e aqueles em que a criança assume um EU que congrega o narrador e o protagonista. Evidentemente, não está em questão a estrita veracidade dos relatos - mas os traços textuais que remetem a uma história ficcional ou autobiográfica.

Interessante observar que, dos sete textos com marcas ficcionais, quatro foram escritos por meninos e três destes envolvem mortes por assassinato, com ingredientes de mistério (situações, personagens) possivelmente incorporados do consumo de determinados produtos culturais, como seriados, filmes etc. Seus títulos são “A hora de morrer” (história que envolve um assalto a um mercado e a personagem Morte), “É a sua hora da morte!” (história de uma maldição, que mata animais e pessoas de uma fazenda) e “A mulher suicida”, o qual, curiosamente, traz uma história de uma serial killer, homicida, portanto. Vejamos este último .

A mulher suicida

Uma mulher que era bem sedutora. Todos os homens olhavam para ela mal sabiam eles que ela era uma mulher vingativa. Ela levava os homens para sua casa e os embebedava. Quando eles já estavam bem bêbados a mulher pegava todo o dinheiro do homem e ela o dava uma facada. Cada dia ela fazia mais uma vítima. Até que um dia a mulher saiu de sua casa muito preocupada com suas vítimas que tinha matado. Seguiu em frente. Ela começou a sentir alguma coisa atrás dela, quando ela se virou viu o reflexo de um dos homens que ela tinha matado. Se assustou mas continuou andando viu outro reflexo, ela achou isso muito estranho mais tarde a mulher estava dormindo quando escutou um barulho na cozinha foi ver o que era quando ela desceu não viu nada mas quando ela se virou levou uma facada e nunca mais ninguém soube da mulher suicida.

As temáticas exploradas no texto acima circulam em muitas narrativas de suspense e terror, como é o caso da vítima morta que volta para se vingar. Também a menção a situações de suspense - a sensação de ser seguido, reflexos e sombras, a escuta de um barulho na noite e o inesperado da vingança - insere a narrativa na vertente de histórias de terror a que provavelmente estas crianças têm acesso.

Já a leitura das três narrativas de cunho ficcional elaboradas por meninas, sintomaticamente intituladas “A menina preocupada”, “A vida de Isabella’, “A menina que era muito triste”, fogem ao registro do horror e do suspense, com ênfase maior ao ambiente familiar. Em “A menina preocupada”, a autora traz uma associação que não fora debatida em sala de aula - a relação entre guerra e morte. O texto assim inicia:

Era uma vez a menina preocupada, ela é assim porque ela tem pai e mãe mas haveria uma guerra e o pai Lucas tem que ir a guerra.

A trama, um pouco confusa, relata a morte da mãe, após três semanas doente; o retorno do pai, da guerra; o enterro da mãe, e uma cena final: “a menina no fim ficou com o pai, eles ficaram felizes para sempre”, em que a preocupação com o final feliz das histórias infantis clássicas fica evidente.

Outra história com marcas ficcionais - embora seu contexto aponte para um caso de que a autora provavelmente tomou conhecimento − traz um inusitado caso de “quase-morte”. Inicia por uma caracterização da menina Isabella, com alusão a marcas sociais de gênero, sobrevindo em seguida o fato gerador do desequilíbrio narrativo.

Era uma vez uma menina alegre e legal ela sempre brincava com as bonecas, com casinha e comidas para as bonecas. O irmão dela nasce com 1 kilo e um meio o doutor disse: − Dona o seu filho tem só 10 dias de vida.

No desenvolvimento, a mãe informa a menina sobre o prognóstico do irmãozinho e a menina “chorou, chorou muito”. E o desfecho é inesperado: “só que o doutor estava enganado. Já passou 10 dias e o bebê está bem. Que alegria!”

Voltamo-nos agora para as narrativas com marcas autobiográficas, ora pelo uso do pronome EU, ora − apesar do narrador onisciente - pela homologia entre o nome da personagem e o nome da aluna autora. Todas elas foram elaboradas por meninas, considerando-se a predominância de meninas na constelação da sala de aula.

Em primeiro lugar, chamam atenção as narrativas de mortes violentas, ora por acidente, ora por assassinatos. No primeiro caso, encontramos dois textos e transcrevemos um deles.

A menina Maira

Era uma vez uma menina chamada Maira que ela tinha um primo Ronaldo que seu primo tinha 18 anos e ele saiu com um amigo que já era adulto e o nome dele era Manoel.

O menino Ronaldo sabia andar de moto e eles saíram de moto e o Ronaldo pediu a moto do Manoel emprestada para dar um passeio. Ele emprestou e ele parou na beira da estrada para falar no telefone e um caminhão passou bem perto e acabou pexando nele e ele morreu.

E as pessoas da família dele ficaram muito tristes com a morte do Ronaldo.

E quase todos os dias eles iam orar no cemitério para o Ronaldo.

A descrição da circunstância do evento trágico, a isenção de culpa do primo no acidente (tinha 18 anos, sabia andar de moto e parou na beira da estrada), a dor da família e a prática religiosa de reverência aos mortos estão presentes no texto, sendo que os dois últimos elementos também são identificados em outras narrativas e os comentaremos em conjunto. Observe-se a alusão à dimensão trágica da morte, advinda da juventude do morto; assim, em relação às pessoas jovens, Kellehear (2016, p. 440), ao desenvolver reflexões sobre a concepção do “tempo ‘certo’ de morrer”, afirma que, “[...] na superfície dos juízos cotidianos, indigna no mundo cosmopolita é a morte considerada demasiado precoce ou demasiado tardia”.

Mas, além das mortes trágicas por acidente, três meninas narraram mortes de familiares assassinados (todos homens), nos textos “Meu avô do meio”, “Meu vovô preferido”, “Meu irmão Jonatas” (é interessante observar que deram títulos aos textos evocando os personagens e a relação familiar). Nas três narrativas, não há menção à motivação dos crimes (que talvez nem seja integralmente conhecida pelas crianças), mas ao momento e à forma como a notícia chegou, à reação da família e a menção a algumas circunstâncias do próprio ato criminoso. Vejamos os dois textos mais desenvolvidos.

Meu vovô preferido

Certo dia uma menina chamada Sandra ia passear na vó chamada Rute e ver suas primas. Mas quando eu e meus pais estávamos no meio do caminho a amiga da minha mãe ligou “alô quem fala é a Sel, você tá em casa?” “não, por quê?” “porque estão matando o seu pai, corre, mulher, estão batendo e matando o seu pai” “ok estamos indo”. Minha mãe meu pai e eu fomos correndo com o carro do meu pai. Quando chegamos, a vila estava cheia de gente na frente do meu portão e correndo fomos direto para a casa da amiga da minha mãe, minha mãe e eu chorando com muito medo.

Minha mãe foi até lá em casa enquanto todo mundo tinha ido embora. Quando minha mãe desceu, o corpo do meu vovô estraçalhado no chão, cheio de sangue no chão e nele as últimas palavras dele para minha mãe foi: “Minha filha eu te amo tanto mas tanto quero que sua filha Sandra não chore, quero que vocês sejam felizes para sempre, não quero que aconteça isto com vocês” e dormiu para sempre.

O texto confere uma densidade dramática à narrativa da vivência da criança confrontada com um possível episódio de linchamento do avô, que provoca “muito medo” e a visualização (talvez apenas descrita, imaginada... ou não) do “corpo do meu vovô estraçalhado no chão, cheio de sangue”. A inserção dos diálogos de alerta aos pais da aluna, assim como das “palavras derradeiras” (quer haja ou não fidelidade estrita aos fatos), a menção às ligações de afeto enriquece um relato que, sem dúvida, impressiona o leitor adulto.

Já o outro relato parece representativo de cenários muito conhecidos das periferias brasileiras.

Meu irmão Jonatas

Um certo dia uma pessoa bateu na porta e eu abri a porta e do nada a pessoa me abraçou e eu não sabia quem era e eu chamei a minha mãe e disse:

- O mãe tão te chamando − e minha mãe veio.

- O que foi Débora? − Tão lhe chamando! E quando minha mãe viu gritou - João!!! O Jonatas!

O meu pai veio como a flecha e era dia de chuva e o meu pai disse:

- Meu filho como vai? e eles ficaram conversando e eu soube que aquele ali era meu irmão que morava em Camaquã e foi o último dia que eu vi. Depois de 3 anos, do nada alguém bateu na porta e do nada meu pai começou a chorar e eu perguntei - Pai, o que foi? E meu pai ficou quieto. Passou 1 mês meu pai me chamou

- Débora, vou te falar a verdade. Sabe o Jonatas? Ele morreu e eu logo comecei a chorar. − Ontem ele ia nos visitar mas os Bala na Cara deram 20 tiros na cabeça e ele morreu e anteontem eu fui no velório, por isso estou assim.

Observam-se algumas inconsistências no tempo narrado - a conversa do pai com a menina teria sido dois dias depois do velório ou um mês depois da morte, mas tal inconsistência não prejudica o arcabouço central do acontecido. Diferentemente de outros relatos, a morte do irmão − que a menina conhecera pouco e com quem não convivia − é apenas noticiada; interessante é interpretar a possível atitude do pai (da autora, Débora, e de Jonatas, o jovem assassinado) de esconder a violência, da filha que, na época em que escreveu a narrativa, tinha apenas dez anos. De qualquer forma, para além da violência narrada, outro elemento quase sempre presente é a referência à dor e ao pranto - em função de mortes familiares, esses elementos independem de gênero.

No próximo relato, “Meu avô do meio”, centrado na comunicação da morte de um adulto para a criança, relatam-se sentimentos contraditórios da menina autora. Após uma breve introdução, o texto assim se desenvolve (introduzimos espaçamentos entre as falas, para melhorar a inteligibilidade do texto):

Chegou a noite meu pai falou seu avô morreu como diria ele foi assassinado por alguém eu não estou mesmo com sorte esses últimos dias, tropecei, caí, terminei a amizade com a minha melhor amiga agora meu vovô morre assassinado por alguém e abri o berreiro meu pai disse cala a boca menina você é muito inteligente para abrir o berreiro mas pai ele é o meu vô do meio mas filha você odiava ele e agora de um dia pro outro você começa a gostar dele é mesmo agora que eu estava começando a gostar dele ele morre que estranho você está triste e ao mesmo tempo feliz mas eu e sua mãe estamos tristes afinal ele era meu pai que era como um padrasto para sua mãe.

Nesse diálogo pode-se perceber uma intensidade das emoções, com a menção ao choro (berreiro) da menina e a sua percepção de uma confusão de sentimentos - tristeza e felicidade - simultâneos, podendo retratar uma condição de crescimento e amadurecimento de uma criança dessa idade frente às perdas e dificuldades impostas pela vida.

Dialogando com esse breve exemplário, em que não incluímos outro relato da morte de um pai por acidente, por exemplo, é possível inferir a presença, no cotidiano das crianças, do evento morte, por vezes violenta, a menção a circunstâncias e detalhes que se configuraram como dignos de serem narrados e também a frequente alusão à mediação de personagens adultos - pai, mãe etc. - na relação entre criança e morte, numa tarefa a que tradicionalmente os adultos não logram se furtar.

As crianças ilustram suas histórias de morte

No desenvolvimento do projeto que ensejou a produção dos dados em análise, tornou-se evidente a predileção de vários alunos pela autoexpressão através de desenhos, possivelmente em função de práticas escolares anteriores e/ou pelo entendimento de neles haver um maior espaço de liberdade e menos convenções a serem seguidas (como as de escrita, por exemplo). De certa forma, a criança pode ter no desenho uma forma menos regrada de se comunicar, uma forma de expressão própria; como Gadelha e Menezes (2004) sublinham, entre outros autores, o desenho pode possibilitar a uma criança relatar seus sentimentos, comportamentos e fatos ou eventos que se revelam importantes para ela, e é nesse sentido que trazemos algumas ilustrações apresentadas nessa atividade.

Relembramos que, após a solicitação da escrita de uma ‘história de morte’ vivenciada pelas crianças, planejou-se, na folha entregue, um espaço em branco, para a confecção de um desenho que se relacionasse com a história narrada. Nossa intenção, no olhar que lançamos sobre as ilustrações feitas pela maioria das crianças (embora não todas) não foi a de empreender uma leitura semiótica ou psicológica das formas ali presentes, mas, apenas a de identificar os elementos relativos ao tema que as crianças buscaram em seus repertórios e nelas atualizaram. De certa maneira, nos alinhamos à aspiração de Manguel (2001, p. 11), em seu livro sobre imagens célebres, que alude à “[...] necessidade de reivindicar, para os espectadores comuns, como eu mesmo, a responsabilidade e o direito de ler essas imagens e essas histórias”.

Ainda que, na análise dos textos escritos, tenhamos efetuado uma divisão entre os textos de caráter mais ficcional e os marcadamente autobiográficos, tal cisão, no caso das ilustrações, não se mostrou significativa. Em primeiro lugar, é preciso mencionar que alguns desenhos focalizaram elementos ou cenas das narrativas não diretamente ligados ao evento ‘morte’, como foi o caso dos desenhos de uma cena de mercado, de embarque em avião e de uma moto. O conjunto de ilustrações abaixo contempla seis delas em que a morte é o mote central da imagem.

Fonte: dados da pesquisa

Desenho 1 Desenho 2 

Observe-se, nos desenhos 1 e 2, a presença de elementos que compõem o cenário de cemitérios, como caixão (por ocasião de enterro), túmulo, lápides, cruz e flores, assim como a presença presumida das próprias autoras dos texto (duas meninas), apesar de estes elementos não terem sido mencionados nos textos correspondentes.

O desenho 1 ilustra o texto ‘Minha avó’, cuja narrativa, em primeira pessoa, menciona a lembrança de uma avó que a menina só conheceu através das histórias contadas pela sua mãe, comentadas pela afirmação de que “eu fiquei muito triste porque nunca conheci a minha avó e porque ela queria ver seus netos crescendo”; o texto também ressalta a dimensão religiosa ao mencionar que, quando a autora vai à igreja, “rezo a Deus que a minha avó esteja num lugar melhor”. A cena desenhada traz a imagem de uma menina com expressão de tristeza e lágrimas, ao lado de um túmulo, e as flores mimetizam a homenagem mais tradicional aos mortos em nossa civilização ocidental.

Já o desenho 2 ilustra o texto de caráter mais ficcional ‘A menina preocupada’, anteriormente analisado, que narra o enterro da “mamãe” após “2 dias” de sua morte e a companhia do pai que teria retornado da guerra. O desenho retrata o pai e a filha de mãos dadas, numa possível visita ao túmulo da mãe no cemitério, demonstrando que ao final a filha e o pai “ficaram felizes para sempre” (conforme o texto escrito). Chamam a atenção os detalhes que compõem as cenas: as lágrimas da menina (cuja presença será comentada adiante, em conjunto com o desenho 5), as cores utilizadas e a chuva, elementos representativos de cenas tristes, possivelmente pertencentes ao repertório imagético da autora.

Vejamos mais outros dois desenhos.

Fonte: dados da pesquisa

Desenho 3 Desenho 4 

Também estas ilustrações apresentam cenas de cemitérios com características representativas desse cenário, como túmulo, lápide, cruz, flores, novamente não mencionados nos textos base. O desenho 3 acompanha o texto ‘Meu irmão Jonatas’, também anteriormente analisado, que traz o relato do assassinato do irmão da autora, com o qual ela não chegara a conviver, mas cuja morte, mesmo assim, lhe provocara muita tristeza: “eu logo comecei a chorar”. No desenho, estampa-se a tristeza do pai, com uma lágrima e um semblante triste, em frente ao túmulo com a lápide contendo o nome do filho. Já a ilustração 4 se articula à história ‘A menina que era muito triste’, bastante próxima ao enredo do livro Menina Nina, ao narrar a chegada de uma menina recém nascida a sua família e a morte da avó quando ela já estava crescida; assim “a neta acabou ficando muito apegada com a morte”; no entanto, sua mãe explicou que “um dia todo mundo vai morrer”. O desenho traz uma pequena representação de uma pessoa chorando em frente a um túmulo que contém flores e uma cruz.

Os dois últimos desenhos exemplificativos trazem uma novidade em relação aos demais, ao incorporarem elementos - balões de fala - da linguagem dos quadrinhos nas cenas retratadas.

Fonte: dados da pesquisa

Desenho 5 Desenho 6 

Nos dois desenhos há certa ênfase às lágrimas das meninas, também presentes em desenhos anteriores. Observe-se que, no livro trabalhado, Menina Ninha, há uma ilustração com a representação, em primeiro plano, do rosto da protagonista com apenas uma lágrima.

O desenho 5 ilustra a história “Meu vovô preferido”, que já foi integralmente reproduzida e - relembre-se - traz o relato da morte violenta do avô da menina autora. Sua mãe recebe um telefonema dizendo: “estão matando o seu pai, corre, mulher, estão batendo e matando o seu pai” e ela e a mãe estão “chorando com muito medo”. Já a ilustração retrata a neta chorando e dizendo “que Deus te abençoe” (palavras que não aparecem no texto), como se fosse uma cena posterior ao narrado, onde se evidenciam dois elementos de caráter simbólico - a cruz e o coração vermelho no peito da menina. Já no desenho 6, relativo à história ‘A minha bisa’, a autora escolheu uma cena interna ambientada em sua casa, quando recebe a notícia do falecimento da bisavó e a “minha mãe começou a chorar”. Os desenhos apresentados nessa sequência trazem um certo cuidado com os detalhes como um cenário com móveis, televisão com antena e brinquedos; detalhes na roupa, óculos e flor no cabelo da menina, além de serem empregadas cores fortes e vivas.

Sintetizando este breve percurso sobre alguns desenhos elaborados pelas crianças, enfatizamos neles a presença de elementos relativos à temática da morte não mencionados na história de Ziraldo, como o destaque a cenas de enterro e de cemitério. Por outro lado, a violência narrada, às vezes, de forma explícita nos textos escritos, não aparece nos desenhos. Podemos pensar que se, nas narrativas escritas, as crianças foram capazes de nos contar sua experiência direta, por vezes recheada de violência, com a morte, já nos desenhos, por sua vez, teriam encontrado formas privilegiadas de expressar seus sentimentos e emoções. Sem dúvida, também se deve considerar que as ilustrações são constituídas a partir do repertório prévio das crianças, construído pelas suas interações sociais, numa cultura que, como relembra Cunha (2005, p. 182), “[...] reverencia as imagens’, que ‘acabam penetrando em nossas vidas, sem nos darmos conta de seus efeitos sobre nós [...]”. Assim, as cenas dos cemitérios e túmulos retratados nos desenhos trazem junto as lágrimas, o choro, as falas, as cruzes, as flores, corações, numa mescla de elementos representativos e simbólicos que contam dos sentimentos de dor, sofrimento e tristeza infantis. E isto se observa, apesar da tendência, a partir do início do século XX, mencionada por Ariès (2014), de afastamento das crianças das cenas relativas à morte e seus desdobramentos. No entanto, por mais que a morte seja afastada do cenário de certos segmentos da sociedade, ela se faz presente de forma candente em outros espaços sociais de alta vulnerabilidade em que estão inseridas essas crianças, por exemplo, com a ocorrência da guerra do tráfico, a maior incidência de acidentes, precariedade social e econômica.

A análise das ilustrações também nos fez pensar na potencialidade da atividade e do ato de desenhar como um canal privilegiado de expressão de sentimentos e emoções. Assim, tais representações atualizaram, com base no repertório cultural das crianças, uma gama de emoções e sentimentos − contraditórios ou não, de tristeza, de medo e insegurança − frente à perda de um ente querido, o que também foi entrevisto nos textos escritos de caráter mais autobiográfico.

Tecendo conclusões

Iniciamos estas breves conclusões, relembrando que Ariès (2014, p. 775-776) nos mostra como, nas últimas décadas, aprofundou-se a tendência de retirar a morte da sociedade, roubando-lhe “[...] o caráter de cerimônia pública, fazendo dela um ato privado, reservado principalmente aos próximos”. E o historiador prossegue sua explanação explorando o que considera a novidade na história contemporânea: “a rejeição e a supressão do luto [...]”, referindo-se ainda ao progressivo afastamento das crianças em relação à morte (elas não mais seriam informadas, p.ex.). Entretanto, para o autor, “[...] o cemitério permanece o local da lembrança e da visita [...]”, onde “[...] o sobrevivente vai ao túmulo para flori-lo e se recordar” (p. 778). Podemos nos perguntar como essas tendências, que atravessam nosso trato contemporâneo com a morte, se encontram (ou não) refletidas nos textos das crianças, uma vez que, dos seis desenhos apresentados, quatro retratam cenas fúnebres, de enterro e de reverência ao túmulo.

Por outro lado, cabe ressaltar que, embora o livro motivador, Menina Nina, tivesse uma narrativa textual e visual identificada com a realidade de classe média, como já referimos, essa história tocou as crianças de forma significativa, uma vez que elas verbalizaram terem gostado da obra, majoritariamente a escolheram entre os oito livros trabalhados no Projeto como o mais apreciado e se sentiram motivadas a contarem suas próprias histórias. O tema da morte é universal, independente de classe social, gênero, origem geográfica e outras dimensões. De fato, esta pode ter sido, para as crianças, uma oportunidade de expressar sentimentos nem sempre verbalizados, de manifestar seus medos, angústias e sofrimentos e mesmo uma possibilidade de certo alívio. Alguns textos, relembramos, demonstraram uma sensação de desamparo ou de tristeza ao mencionar a perda de uma pessoa próxima (pai, avó, primo). Dessa forma, a leitura de uma obra com um tema considerado não apropriado ao universo infantil nos mostrou o quanto é importante para as crianças também terem na literatura um espaço para expressão de suas próprias emoções e visões dos fatos cotidianos.

Todos sabemos que faz parte do universo infantil procurar respostas e explicações para dar sentido a suas experiências. De certa forma, a literatura pode funcionar como um caminho, uma possibilidade de entendimento, ao transfigurar esteticamente situações que envolvem sentimentos e emoções, podendo proporcionar à criança uma identificação com seus medos, ajudando-as a compreender situações familiares, separações, impasses, entendimentos da vida e da morte. Histórias não compromissadas com um viés pedagógico, mas dotadas de uma roupagem literária, podem ser, para as crianças, um meio de intermediar as relações sobre a morte, a perda, o luto, fazendo-as refletir, na medida em que funcionam como instrumentos que possibilitam o falar das dores emocionais. A literatura pode mobilizar as emoções da criança trazendo à tona bruxas e fadas que as habitam. Seus encantos e feitiços podem ajudá-las a encontrar respostas, nem sempre tão mágicas, para enfrentar o universo ameaçador infantil, através de suas histórias de vida e de morte. Assim, a morte, quando tematizada nas histórias infantis e nos círculos de leitura, pode ser vista como uma referência concreta para a construção dos significados da vida. Savater (2001, p. 51) afirma que “[...] a certeza pessoal da morte nos humaniza, ou seja, nos transforma em verdadeiros humanos, em mortais”. Assim, falar sobre a morte, por meio do espaço literário, com as crianças, pode favorecer seu crescimento como ser humano, propiciando-lhes entender seus sentimentos - de tristeza, dor, insegurança, medo − como condição da vida; afinal, a leitura contribui para a descoberta e construção de si, permitindo abrir um campo de possibilidades, mesmo onde não parece haver nenhuma margem de manobra (PETIT, 2008).

Ao finalizar este percurso de leitura/interpretação de narrativas trazidas por crianças de 9 a 10 anos de uma escola pública brasileira, em relação a suas experiências próximas com a morte e sob a motivação da leitura e discussão de uma obra literária que a aborda de forma sensível e criativa, valemo-nos novamente das palavras de François, para sintetizar o que de certa forma nos orientou na leitura do conjunto de textos lidos:

[...] nossa ligação com um texto e, mais especificamente, com uma narrativa, vai se articular com a presença do conjunto constituído pela totalidade do texto e pelo universo que se desenha nesse cenário, e também com a irrupção de elementos mais locais cujo aparecimento não era previsível. Mais precisamente, em cada texto percebemos ‘movimentos’ (FRANÇOIS, 2014, p. 226).

E o autor francês, ao sintetizar sua impressão sobre os textos que analisou, nos inspira a partilhar suas palavras, que se ajustam às nossas percepções frente aos textos das crianças brasileiras:

[...] tais textos nos mostram maneiras diferentes de ser, de nos relacionarmos com o mundo ou, como se poderia dizer, nada têm de pueris (não no sentido em que não se poderia reconhecer que se trata de textos de crianças, mas no sentido de desqualificar o que eles nos indicam a respeito de uma maneira humana de existir). Eles fazem parte de uma ‘existência humana possível’. (FRANÇOIS, 2014, p. 228).

Notas

1 A pesquisa Percursos e Representações da Infância em Livros para Crianças, um Estudo de Obras e de Leituras, feita com apoio do CNPq, teve como objetivo analisar dimensões da compreensão leitora de obras literárias por alunos dos anos iniciais do ensino fundamental de escolas públicas da cidade de Porto Alegre, RS. O projeto, submetido ao Comitê de Ética da UFRGS, foi aprovado e registrado na Plataforma Brasil, incluindo os termos de consentimento e assentimento previstos.

2 No original: ‘Agir sur um text aide à mieux le comprendre’ (CRINON, MARIN, LALLIAS, 2006).

3 Optamos por usar o itálico nas citações de textos das crianças, para facilitar sua diferenciação em relação a outras citações.

4 Os prenomes referidos nos textos foram todos modificados, para evitar eventuais identificações.

5 Trata-se de conhecida facção criminosa da região metropolitana de Porto A Alegre, caracterizada por sua violência contra os inimigos de outras facções. Mais informações em: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2016/09/faccoes-criminosas-atuam-em-quase-metade-dos-bairros-de-porto-alegre.html. Acesso em: 10 jun. 2019.

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Recebido: 06 de Dezembro de 2019; Aceito: 12 de Dezembro de 2019

Profa. Dra. Rosa Maria Hessel Silveira, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO), ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5797-6627. Email: rosamhs@gmail.com

Profa. Dra. Patrícia Aparecida Machado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO), ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8350-7701. Email: patriciaa.machado@bol.com.br

Profa. Dra. Bruna Rocha Silveira, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO), ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3418-7603. Email: bruna.rochasilveira@gmail.com

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