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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.55 Natal ene./marzo 2020  Epub 29-Ene-2021

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n55id18822 

Artigo

Organização e realização do trabalho docente: prescrições e ações para o planejamento didático

Organization and accomplishment of the teaching work: prescriptions and actions for the didactic planning

Organización y realización del trabajo docente: prescripciones y acciones para la planificación didáctica

Lucimara de Castro Bueno1 
http://orcid.org/0000-0002-5821-0647

Luciana Bagolin Zambon1 
http://orcid.org/0000-0001-8215-4262

1Universidade Federal de Santa Maria (Brasil)


Resumo

Este artigo propõe compreender os procedimentos dos professores na organização e desenvolvimento de seu trabalho, diante das condições encontradas nos contextos reais. Parte da concepção da ergonomia para analisar o trabalho desenvolvido por professoras do ensino médio no contexto de uma escola pública. Mediante utilização de entrevista semiestruturada e observação de aulas, são descritos e analisados o tempo e espaço destinados ao planejamento docente. Foi possível evidenciar que o tempo destinado para planejamento é insuficiente, se considerarmos a diversidade de alunos e turmas que as professoras atendem, e que elas não contam com um ambiente que ofereça recursos e espaços adequados na escola. Assim, essa ação costuma ser realizada na residência das professoras, ocupando parte considerável de seu período de descanso. Isso não parece ser registrado, nem considerado, nem contabilizado formalmente como trabalho. Portanto, o rótulo “horas de planejamento” acaba ocultando a variedade e a complexidade de ações que compõem o planejamento docente.

Palavras-chave: Trabalho docente; Ergonomia; Educação básica; Ensino médio

Abstract

This article proposes to understand the procedures of teachers in the organization and development of their work, in face of the conditions found in real contexts. It starts with the conception of ergonomics to analyze the work developed by high school teachers in the context of a public school. Using semi-structured interviews and observation of classes, the time and space for teaching planning are described and analyzed. It was possible to show that the time allocated for planning is insufficient, considering the diversity of students and classes that the teachers serve, and that they do not have an environment that offers adequate resources and spaces at school. Thus, this action is usually performed at the teachers' residence, occupying a considerable part of their rest period. This does not appear to be recorded, nor considered, nor formally accounted for as time of work. Therefore, the label “planning hours” ends up hiding the variety and complexity of actions that make up teacher planning.

Keywords: Teaching work; Ergonomics; Basic education; High school

Resumen

Este artigo propone comprender los procedimientos de los docentes en la organización y desarrollo de su trabajo, delante a las condiciones que se encuentran en contextos reales. Parte de la concepción de la ergonomía para analizar el trabajo desarrollado por maestras de secundaria en el contexto de la educación pública. A través de entrevista semiestructurada y observación de clases describimos y analizamos el tiempo y el espacio para la planificación de la enseñanza. Fue posible evidenciar que el tiempo destinado para la planificación es insuficiente, se considerarnos la diversidad de estudiantes y clases a las que sirven los maestros, y que ellas no tienen un entorno que ofrezca recursos y espacios adecuados en la escuela. De esa manera, la acción generalmente se realiza en la residencia de las profesoras, ocupando parte considerable de su periodo de descanso. Eso parece que no es registrado, ni considerado, ni contabilizado formalmente como trabajo. Por lo tanto, la etiqueta “horas de planificación” termina ocultando la variedad y la complexidad de las acciones que componen la planificación del maestro.

Palabras claves: Trabajo docente; Ergonomía; Educación básica; Escuela secundaria

Introdução

Neste artigo são apresentados e discutidos parte dos resultados de uma investigação, realizada no âmbito de um mestrado profissional, acerca da organização e do desenvolvimento do trabalho docente no ensino médio. A investigação, situada no contexto de uma escola pública de educação básica, localizada em um município do interior do estado do Rio Grande do Sul, teve como objetivo geral compreender como professores organizam e desenvolvem seu trabalho diante das condições encontradas para efetivar a aprendizagem dos alunos. Mais especificamente, abordamos neste artigo a seguinte pergunta de pesquisa: como os professores elaboram o planejamento didático diante das condições encontradas nos seus contextos reais de trabalho?

Para tanto, partimos da abordagem teórica que defende que o trabalho docente não pode ser analisado apenas do ponto de vista das prescrições, mas faz-se necessário compreender que ações compõem o cotidiano do professor na escola e em sala de aula. Assim, compreendemos que o trabalho docente é composto de três dimensões, que precisam ser igualmente consideradas na sua análise: as tarefas (prescrições), as atividades e as ações (AMIGUES, 2004; SOUZA-e-SILVA, 2004). A partir dessa abordagem, podemos assumir que o trabalho real do professor é marcado pelas prescrições, mas implica sua atuação efetiva no seu reordenamento. Essa posição teórica nos permite situar os professores como protagonistas do seu trabalho e não como meros executores, já que esse trabalho envolve a criação, a invenção, a inovação do professor.

A seguir, detalhamos os procedimentos metodológicos e a abordagem teórica utilizados na pesquisa, defendendo as contribuições dessa abordagem para compreensão do trabalho docente, levando em conta, com a atenção que merece, o relevante papel do professor como autor do seu trabalho.

Procedimentos Metodológicos

A pesquisa de cunho qualitativo foi desenvolvida numa escola pública de educação básica e está ancorada no princípio que defende a coleta de informações de maneira contextualizada, isto é, no próprio espaço e tempo em que ocorre o fenômeno de interesse para o pesquisador. Assim, definimos a utilização de dois tipos de fontes de informação: sujeitos, professoras regentes no ensino médio, e espaços, um conjunto de aulas ministradas por essas professoras. Para coleta das informações, foram utilizadas entrevista semiestruturada e observação de aulas.

Inicialmente, foi feito um convite aos professores do ensino médio, atendido por quatro professoras que se dispuseram a participar. Em seguida, após apresentação da pesquisa às professoras, foi definido o melhor horário para a realização das entrevistas e das observações das aulas, de acordo com a disponibilidade de cada uma. As professoras colaboradoras da pesquisa ministram aulas da área de Linguagens e Matemática. Duas professoras têm vínculo efetivo, com 20 horas de trabalho na escola pesquisada, exercendo, também mais 20 horas em escolas de educação básica em municípios vizinhos. Outra professora tem vínculo efetivo de 40 horas e a quarta professora trabalha 60 horas.

As entrevistas semiestruturadas contaram com um roteiro de apoio, que foi adaptado ao contexto próprio de realização de cada entrevista. As observações das aulas foram registradas em diário de campo, tendo sido observados 33 períodos de aulas de 45 minutos.

Para análise das informações e construção dos resultados foi utilizada o método da codificação e categorização, proposta por Charmaz (2009). De acordo com a autora, codificar significa categorizar as informações encontradas, de maneira que possam ser selecionados, separados e classificados para dar início à interpretação analítica sobre os dados. Seguindo esse método, após a coleta das informações, os dados foram transcritos, codificados e categorizados. Os resultados foram, então, discutidos à luz da teorização utilizada.

Trabalho prescrito e trabalho real: abordagem para análise do trabalho docente

A compreensão da docência como trabalho constitui-se como uma das principais defesas que Tardif e Lessard (2012) propõem em sua obra. Historicamente, segundo esses autores, a concepção sobre trabalho evoluiu de uma perspectiva que considerava como produtivo apenas o trabalho material para, no contexto atual da sociedade do conhecimento, considerar a categoria do trabalho imaterial como hegemônica, situando o trabalho docente nessa categoria.

Na primeira perspectiva, a ação de ensinar foi considerada improdutiva, uma ocupação secundária ou periférica em relação à hegemonia do trabalho material, subordinada à função de preparação de trabalhadores para o sistema produtivo. Porém, no contexto contemporâneo, ao contrário daquela perspectiva, há um crescente prestígio das profissões que, como a docência, têm os seres humanos como objeto de trabalho e se baseiam na relação e interação entre seres humanos.

A profissão docente é, então, fundamental nas sociedades atuais, sendo uma das chaves para a compreensão das transformações do trabalho ocorridas ao longo do tempo, tais como o crescimento das profissões ligadas aos setores econômicos e sociais, o crescimento dos conhecimentos formais, das informações abstratas e das tecnologias que exigem uma formação longa e de alto nível.

Coerente com essa compreensão, Tardif e Lessard (2012) defendem que os estudos da docência precisam se situar em um contexto mais amplo, considerando que o trabalho dos professores é realizado por profissionais com diversos conhecimentos que se apoiam em recursos materiais e simbólicos, cumprem tarefas específicas, realizadas em função de obrigações e objetivos específicos. Negligenciar a docência como trabalho, argumentam eles, pode levar ao perigo da abstração, pois desconsidera importantes fatores como o tempo de trabalho dos professores, o número de alunos, suas dificuldades e diferenças, a disciplina a ser ensinada, os recursos disponíveis, as dificuldades presentes, a relação com os colegas, o controle da administração etc. Esses autores criticam também as visões normativas e moralizantes da docência que se interessam pelo que os professores deveriam fazer em vez de compreender o que eles realmente são e fazem.

A docência é, então, entendida como um trabalho realizado com seres humanos, sobre seres humanos, para seres humanos, ou seja, trata-se de um trabalho interativo. Esse trabalho se desenvolve mediante uma relação dialógica, de relações humanas entre diferentes sujeitos, dotados de pensamentos próprios e capazes de intervir sobre o trabalho do professor. Ou seja, o trabalho sobre o outro envolve negociação, controle, persuasão e, sobre ele, intervém a linguagem, a afetividade, a personalidade. Isso levanta questões de poder e conflitos de valor, pois o “objeto” de trabalho do professor (outro ser humano) é capaz de emitir juízos de valor. Ainda, os alunos são obrigados a frequentar a escola e podem opor resistência aos trabalhadores. Portanto, o professor precisa cuidar da ordem e da disciplina e mantê-los interessados em participar da atividade. Os professores trabalham com grupos de alunos, trata-se de trabalho coletivo que apresenta dois problemas: a equidade no tratamento e o controle do grupo (TARDIF; LESSARD, 2012).

Todos esses aspectos, que contribuem para tornar complexa a docência, necessitam ser devidamente considerados nos estudos que visam compreender o trabalho docente dos professores. Nesse sentido, considerando o ensino como trabalho, partimos da perspectiva defendida pela ergonomia para analisar e compreender o trabalho efetivamente realizado pelos professores no seu cotidiano.

A ergonomia é entendida como “[...] um conjunto de conhecimentos sobre o ser humano no trabalho e uma prática de ação que relaciona intimamente a compreensão do trabalho e sua transformação” (SOUZA-e- SILVA, 2004, p. 84). Isto é, a ergonomia se fundamenta em compreender como o processo de trabalho se realiza, procura garantir a saúde do trabalhador e entender a inteligência do trabalhador no ato de seu trabalho. Faz uso de conhecimentos de diferentes disciplinas para analisar e entender o processo de transformação do trabalho com o passar dos anos.

A ergonomia defende o trabalho como traço fundamental que ordena as sociedades e é entendida por Leplat (2004) como uma tecnologia cujo objeto de estudo são as condições de trabalho, em função de critérios que caracterizam o bem-estar dos trabalhadores.

A partir da identificação do ritmo acelerado nas produções taylorianas no século XX, a ergonomia do trabalho surge para analisar a situação do trabalho realizado pelos trabalhadores, com vista a transformá-la. Partindo da constatação de que o trabalho efetivado pelo trabalhador não correspondia às especificações que ele recebia, percebeu-se a existência de um distanciamento entre o trabalho prescrito e o trabalho real (LEPLAT, 2004).

Esse distanciamento existe, sobretudo, porque no contexto de prescrição ignoravam-se aspectos essenciais do contexto de realização do trabalho. Desde o objetivo à realidade há variações do contexto, as condições determinadas não são as condições reais e o resultado visado, portanto, não é totalmente o efetivado. (ALVES, 2015).

Sobre o distanciamento entre o real e o prescrito há que referenciar Guérin, para quem:

[...] a atividade de trabalho é uma estratégia de adaptação à situação real de trabalho, objeto da prescrição. A distância entre o prescrito e o real é a manifestação concreta da contradição sempre presente no ato do trabalho, entre ‘o que é pedido’ e ‘o que a coisa pede’ (GUÉRIN, 2001, p. 15).

Nesta perspectiva, nota-se que o trabalhador se utiliza de estratégias para desempenhar o seu trabalho porque as condições reais não correspondem com o que lhe é solicitado. Portanto, reconhece-se que, primeiramente, há um planejamento mental diante da prescrição que, no ato da execução da tarefa, é transformada, devido às condições reais encontradas no trabalho.

Guérin (2001) alerta sobre as consequências graves à saúde do trabalhador quando este faz um investimento pessoal que não é suficiente para desempenhar as tarefas conforme lhe foi solicitado e planejado por ele. O autor salienta que “[...] interessar-se pela atividade de trabalho é saber discernir, no seu resultado, esse esforço permanente do trabalhador para dar sentido à sua tarefa [...]” (GUÉRIN, 2001, p. 18).

No caso do trabalho docente, a ergonomia da atividade defende que não há como compreendê-lo mediante análises que levem em conta apenas as prescrições, ignorando as ações que compõem o cotidiano do professor na escola e em sala de aula; isto é, as ações efetivamente realizadas pelo professor.

Alves (2015) afirma que é imperativa a necessidade de levar em consideração o trabalho que, individual e coletivamente, é realizado nas escolas para que se tenha uma reflexão mais aprofundada sobre o desenvolvimento do trabalho docente. No artigo intitulado: “A invisibilidade do trabalho real: o trabalho docente e as contribuições da ergonomia da atividade”, o autor pauta-se em discutir sobre o trabalho invisível ou trabalho real, com objetivo de contribuir para uma análise do trabalho docente nas escolas que considere o ponto de vista da atividade.

Para Alves (2015), a defesa dessa abordagem teórica se sustenta uma vez que a ergonomia

(...) compreende um corpo de conhecimentos teóricos e metodológicos que permite a análise do trabalho tendo em vista compreendê-lo para transformá-lo, considerando as exigências dos processos laborais, sua eficácia e a saúde do trabalhador. Trata-se de uma análise clínica, portanto situada, que atendendo determinada demanda toma em análise uma situação laboral específica e seus determinantes internos e externos (ALVES, 2015, p. 9-10).

Todo o trabalho é passível a modificação, ou seja, há processos laborais que dependem de vários fatores que estão relacionados à sua execução. Assim, Alves (2015) defende que o trabalho real não pode ser confundido com o trabalho prescrito e compreender a passagem entre um e outro envolve encontrarmos a problemática da atividade através de estudos direcionados pela ergonomia de base francófona.

Então, ancorados nessa proposta, compreende-se que o trabalho docente é composto de três dimensões, que precisam ser igualmente consideradas na sua análise: as tarefas, as atividades e as ações (AMIGUES, 2004; SOUZA-e-SILVA, 2004).

As tarefas correspondem às prescrições, que vêm do próprio sistema de ensino, das políticas públicas, do projeto pedagógico da escola, das expectativas formais e sociais relacionadas ao papel da escola.

A definição dada por Alves (2015) para trabalho prescrito está fundamentada em elementos que se situam anteriormente às situações de trabalho: a perspectiva sobre o que será obtido, as condições determinadas de realização e, por fim, a tarefa, ou seja, o que deve ser realizado.

As atividades correspondem ao que o sujeito faz mentalmente para realizar essas tarefas, não são, portanto, diretamente observáveis, mas inferidas a partir das ações (trabalho real), concretamente realizadas pelo professor. Amigues (2004) contribui para esse entendimento, afirmando que o trabalho docente visto como atividade remete “[...] aos processos cognitivos, aos cálculos mentais ou estratégias a que o sujeito recorre para organizar os meios que lhe permitirão alcançar o objetivo da ação” (AMIGUES, 2004, p. 40).

Segundo Alves (2015) a atividade consiste em um trabalho que não se realiza só, depende justamente de pessoas para realizá-lo, utilizando-se de instrumentos e meios para obter resultados, das exigências que aquilo demandou, os incidentes que precisaram ser geridos, a saúde que se arriscou. Ou seja, em ergonomia,

[...] a atividade compreende a presença humana na mediação do prescrito ao real, aquilo que o trabalhador faz, engaja e mobiliza (inteligência, interfaces com o coletivo, corpo, memória...) no processo de realização da tarefa (ALVES, 2015, p. 12).

A presença humana implica, então, mudanças na prescrição, de modo que “[...] é preciso trabalhar sobre o prescrito, nem que seja para lhe dar outra direção.” (ALVES, 2015, p. 90). Há que considerar que o trabalho do professor envolve multitarefas concomitantes, é impossível ater-se a todo momento a apenas uma situação. As variações são constantes e de toda a ordem em uma sala de aula, o número de pessoas é grande e o professor tem que lidar com toda forma de pensar.

Para a análise do trabalho docente na perspectiva ergonômica as prescrições e a aprendizagem dos alunos, assim como a organização escolar, não podem estar separadas da atividade e da ação do professor, pois entre as prescrições e os alunos existe um trabalho de reorganização das tarefas e dos meios pelos coletivos de trabalho. Isso se dá porque o professor possui o comprometimento de ressignificar, rever, reformular, adaptar, reconstruir, e até deixar de lado algumas prescrições que percebe não ser proveitosas para seu contexto e para seus alunos. A organização do trabalho efetuada pelos professores é, portanto, uma resposta às prescrições (SOUZA-e-SILVA, 2004). Amigues afirma que:

No seu conjunto, a atividade pode ser considerada o ponto de encontro de várias histórias (da instituição, do oficio, do indivíduo, do estabelecimento...), ponto a partir do qual o professor vai estabelecer relações com as prescrições, com as ferramentas, com a tarefa a ser realizada, com os outros (seus colegas, a administração, os alunos...), com valores e consigo mesmo (AMIGUES, 2004, p. 45).

A atividade é, então, todo o planejamento, a reelaboração, a reinvenção, a reinterpretação das prescrições recebidas pelo professor no âmbito escolar, seja de forma individual ou coletiva, para, assim, transformá-las em trabalho real, ou seja, naquilo que efetivamente acontece na sala de aula.

Desta forma, estudar a atuação docente exige compreender que o trabalho do professor não segue apenas as prescrições, mas “[...] exige não somente considerar a ação do docente, mas algo muito mais enigmático, a atividade. O trabalho real não se vê, exige-se para isso a análise da atividade” (ALVES, 2015, p. 14).

A distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real é vista como parte inerente do trabalho docente e “[...] é nessa tensão entre o prescrito e o realizado que o sujeito vai mobilizar e construir recursos que contribuirão para seu desenvolvimento profissional e pessoal” (AMIGUES, 2004, p. 40). Assim, pode-se assumir que as prescrições marcam o trabalho real do professor que precisa ter uma atuação efetiva em seu reordenamento.

Entre o prescrito e o realizado, muitas atividades ficam por fazer, pois o professor não pode realizar tudo o que lhe é prescrito e tudo aquilo que ele próprio estabelece a si mesmo e ao coletivo de alunos. Isso porque no contexto real de trabalho, os alunos - seres humanos que são - podem oferecer resistência àquilo que é proposto, precisam ser constantemente mobilizados para o trabalho, é preciso mantê-los interessados em participar da aula. Soma-se a isso o fato de que o professor lida, ao mesmo tempo, não com apenas um aluno, mas com uma classe, e deve pensar no tratamento que dá a cada um e ao grupo. Cabe ao professor verificar permanentemente de que maneira poderá realizar as ações, em que momento retomar sua ação para que se estabeleça aquilo que foi projetado.

Outra característica do trabalho docente, discutida por Tardif e Lessard (2012), é a sua definição de simultaneamente codificado e não codificado. Como trabalho codificado, o docente lida com aspectos rotineiros, obrigações formais, cargas institucionais, normas, regulamentos e procedimentos; resumindo, trata-se de um componente do trabalho docente que se relaciona com tudo aquilo que lhe dá um caráter previsível e rotineiro. Como trabalho não codificado, lida com os componentes informais da atividade, aspectos subliminares, que não são vistos pelas outras pessoas.

Como trabalho codificado podemos apontar as ações cotidianas que os professores realizam ao chegar na escola que são percebidas como o trabalho efetivamente cumprido: chegar no horário, não faltar, assinar o ponto, ter a caderneta de chamada em dia, participar das reuniões pedagógicas, ir para a sala de aula, fazer a chamada, dar tarefa aos alunos etc.

Quanto ao trabalho não codificado, podemos mencionar o trabalho intelectual que o professor realiza para decodificar as prescrições e transformá-las em ações: o planejamento do trabalho, as mais diversas estratégias que cria e inventa para explicar o conteúdo, para organizar o diálogo em torno da tentativa de convencer o aluno a realizar as tarefas, para perceber ou intuir sobre as dificuldades dos alunos, seus sentimentos, sua motivação para o trabalho, suas preferências e gostos, envolvendo um componente emocional e de relações afetivas. Todas essas ações do trabalho não codificado fazem parte do trabalho docente, embora não sejam reconhecidas por aqueles que não conhecem a docência, inclusive alguns gestores do sistema.

Neste contexto, a docência como trabalho codificado é socialmente reconhecida, realizada por profissionais capacitados, em um espaço formal, que possui regras para seu funcionamento, que se apoia sobre rotinas e tradições, além de considerar mandato prescrito pelas autoridades escolares e governamentais (TARDIF; LESSARD, 2012).

Por outro lado, a docência é constituída por ambiguidades diversas, por elementos variáveis que possibilitam ao professor realizar as suas próprias interpretações para agir em função das determinações prescritas, principalmente quanto às atividades que cabe a ele realizar em sala de aula. Isso lhe dá autonomia para realizar seu trabalho.

Como consequência dessa característica, pensar definições para a carga de trabalho dos professores torna-se tarefa complexa, uma vez que o trabalho docente é parcialmente flexível, definido por limites parcialmente elásticos (TARDIF; LESSARD, 2012), já que algumas tarefas têm uma duração legal bem determinada pela organização escolar (particularmente a aula, tempo-espaço em que ocorrem as interações diretas professor-alunos para realização do trabalho didático) e outras que podem variar quanto à duração e frequência (reuniões, preparação da aula, correções, reflexões sobre a prática etc.).

Portanto, é possível falar em uma carga real de trabalho, que envolve essas diferentes componentes do trabalho (codificado e não-codificado) e a sua parcela invisível. Apesar da diversidade de tipos de atividades, a docência permanece essencialmente uma prática centrada nos alunos, em torno dos alunos, para os alunos (TARDIF; LESSARD, 2012).

O espaço de trabalho do professor constitui elemento relevante a ser considerado na análise: a estrutura celular do trabalho no ambiente escolar. Não importa se o professor trabalha em uma escola com um número reduzido de estudantes ou em outra instituição que possui centenas ou milhares de estudantes, o seu trabalho será sempre realizado a partir de uma organização social e física um dispositivo simples e bastante estável: as classes, espaços relativamente fechados, nos quais os docentes desempenham seu trabalho separadamente a fim de cumprir com sua tarefa (TARDIF; LESSARD, 2012, p. 60-61).

Diante disso, o trabalho do professor repousa sobre uma organização que o separa dos outros professores, parecendo ser um trabalho com finalidade individual, distante dos demais professores. O professor assume uma coletividade de alunos, carregando um peso significativo por realizar seu trabalho de forma quase sempre isolada, sem compartilhar suas dificuldades ou pedir ajuda, além de também não integrar seu conhecimento com os demais profissionais, o que poderia colaborar para novas aprendizagens profissionais. Pode-se assumir, portanto, uma certa vulnerabilidade à solidão do trabalhador, característica que parece estar no coração desta profissão (TARDIF; LESSARD, 2012.)

A esse respeito, Alves (2009) evidencia, em seu artigo intitulado: “A formação contínua e a batalha do trabalho real: um estudo a partir dos professores da escola pública de ensino médio”, algumas dificuldades enfrentadas no dia a dia, na realização do trabalho do professor, que muitas vezes acaba sobrecarregando-o e causando problemas de saúde, temática discutida pelo autor, no tocante ao conceito ergonômico.

Cargas semanais de trabalho extensas (e que devido à problemática de gênero incidem desigualmente sobre homens e mulheres), dispersas por turnos e escolas somam-se às dificuldades do modelo de organização do trabalho no magistério que tende a inibir o fortalecimento do coletivo escolar (lugar de aprendizados profissionais, de equacionamento, conjunto das dificuldades etc.) e a tornar pouco operatórios os momentos formalmente instituídos que poderiam contribuir para isso, as ocasiões de Trabalho Coletivo (relembremos: mensais e realizados aos sábados). Ora, não por outro motivo o trabalho escolar segue um ritmo avassalador (ALVES, 2009, p. 92).

Neste caso, Alves quer chamar atenção para possíveis implicações dessa organização do trabalho docente à saúde do trabalhador e, por certo, à qualidade do trabalho realizado. No trabalho docente, é comum haver professores com diversos vínculos empregatícios e cargas horárias de 60 horas em mais de uma escola, assim, entre outros aspectos, a integração entre os professores e o trabalho coletivo ficam prejudicados. Na maior parte do tempo, os professores nem se encontram na escola, são colegas, trabalham na mesma escola, mas os horários e turnos de aulas na escola não coincidem. Diante disso, cada professor se vê individualizado diante das dificuldades próprias ao seu universo profissional

No plano de organização do trabalho docente outro fator relevante é o tempo, uma das questões que mais preocupam os professores em seu trabalho. O tempo escolar (TARDIF; LESSARD, 2012, p. 75) é constituído por um “continuum” objetivo, mensurável, quantificável, administrável. É repartido, planejado, ritmado de acordo com avaliações, ciclos regulares, repetitivos. Sendo assim, considerado como causador de interferências em diversos níveis e aspectos da docência.

A estruturação temporal da organização escolar é extremamente exigente para o docente; ele deve acompanhar o tempo estabelecido, não interessando as condições de trabalho, da turma de estudantes, do espaço físico, das condições sociais, econômicas e culturais dos aprendizes. Essa organização obriga-o a seguir esse ciclo coletivo e abstrato, que não depende nem da rapidez nem da lentidão do aprendizado do aluno.

O trabalho do professor é, portanto, marcado pelo tempo, ou seja, a atuação docente é cadenciada como um relógio. Também a criança, ao entrar na escola, mergulha num mundo onde “tudo é medido, contado, calculado abstratamente: tal dia, tal hora, elas deverão aprender tal coisa, numa duração predeterminada e sobre o que serão avaliadas mais tarde”. (TARDIF; LESSARD, 2012, p. 75). O tempo é potencialmente formador, segundo esses autores, porque impõe normas independentes de variações individuais, que são aplicáveis a todos. É um tempo “forçado”, pois é um tempo social e administrativo imposto aos sujeitos inseridos no contexto escolar.

Como essas características interferem no cotidiano do trabalho realizado em sala de aula? O que caracteriza o trabalho docente realizado em situações reais de trabalho? Interessados nessas perguntas e considerando que as publicações sobre trabalho docente no ensino médio são modestas, propusemos a realização dessa investigação que buscou responder ao seguinte problema de pesquisa: como os professores elaboram o planejamento didático diante das condições encontradas nos seus contextos reais de trabalho?

Neste artigo, os limites de espaço estabelecidos demandaram um recorte dos resultados construídos. Para tanto, apresentamos apenas um dos aspectos analisados na pesquisa mais ampla; trata-se do planejamento didático, discutindo os elementos tempo, espaços e condições de trabalho.

Discussão dos Resultados

Um dos elementos analisados nessa pesquisa refere-se ao planejamento, no sentido de previsão e de organização do trabalho docente. Em relação a essa dimensão do trabalho docente, analisou-se aspectos relacionados ao tempo, ao espaço e às condições para planejamento.

A partir das análises, foi possível perceber que o tempo disponibilizado para elaboração do planejamento é insuficiente, de modo que não é possível cumprir o conjunto de atividades e de ações inerentes a essa dimensão, dentro do período pré-estabelecido. A tarefa - no sentido que vimos utilizando nesse trabalho, ou seja, a prescrição, aquilo que deve ser realizado - parece ser simples e até trivial: elaborar as aulas que serão realizadas com os alunos. Porém, quando olha-se para a realidade analisada, para o trabalho real que as professoras realizam, percebe-se que essa tarefa envolve um conjunto significativo de ações que, de fato, culminam com o trabalho didático a ser realizado em sala de aula com os alunos, mas que antes envolve um trabalho mental e intelectual que é difícil mensurar.

Várias razões podem ser apontadas para justificar isso. Podem ser mencionados três aspectos principais: a diversidade de alunos - os alunos são diferentes, possuem ritmos próprios, portanto é preciso planejar atividades baseadas em recursos didáticos variados e prever o acompanhamento dos alunos (gestão da classe); a diversidade de turmas - as turmas são diferentes, possuem uma “cultura organizacional” própria, então, a mesma disciplina não é planejada e realizada da mesma forma entre turmas diferentes; a diversidade de disciplinas - um mesmo professor leciona diferentes disciplinas, por isso, precisa lidar com estruturas conceituais diferentes (no sentido da matriz conceitual de referência de cada matéria de ensino). Mesmo no caso de matérias de ensino que têm como referência a mesma área de conhecimento, trata-se de estruturas conceituais próprias, que o professor precisa dominar.

Por exemplo, para planejar as aulas, as professoras relataram que buscam levar em consideração as diversidades existentes entre os alunos; para isso, planejam atividades que potencialmente despertam interesse e atenção, buscando considerar o meio social e familiar que o aluno está inserido.

Para fazer meu planejamento levo em consideração o meio em que o aluno vive, dos métodos que cada um tem para fazer seus trabalhos em casa para pesquisar [...]. Gosto de trabalhar a vida e obra dos autores, percebi que isso desperta interesse nos meus alunos, eles procuram ler sobre a vida dos autores (CEMED, 2019).

Quando já se conhece a turma podemos atuar com mais segurança, porque ter um conhecimento de como são os alunos é importante para o planejamento, porque no momento de pensar a aula fica fácil de levar atividades que irá despertar interesse e chamar atenção, com isso as aulas ficam mais proveitosas e a aprendizagem de alguma forma ocorre (SEMED, 2019).

Levar em consideração o conhecimento prévio do aluno em relação ao conteúdo que as professoras abordam em suas aulas é uma convergência importante destacada por elas. Percebeu-se que há, por parte das docentes, um cuidado sobre o que o aluno já sabe; especialmente considerando que a escola está situada em uma localidade do interior, os alunos partilham uma cultura vivencial própria, ancorada nas condições sociais e culturais daquela comunidade.

No relato abaixo, pode-se identificar um desabafo por parte da docente, demonstrando haver uma sobrecarga de atividades que são atribuídas para seu trabalho, mas que, devido à diversidade de turmas e de alunos que precisava atender, não lhe é possível contemplar.

Tenho diversas turmas e tento, ao preparar (as aulas) pensar nas individualidades. Tento! Porque a diversidade é grande, preparo pensando em desenvolver, em conseguir alcançar aqueles alunos que tem mais dificuldades (GEMED, 2019).

Preparar aulas para diversas turmas exige do trabalhador muito tempo para pensar, contudo sabe-se que cada sujeito possui estilo próprio: um aluno pode ter mais habilidades de leitura, outro pode preferir atividades práticas, por exemplo. Essa tarefa exige do docente uma atividade mental que ninguém vê, mas que é sempre realizada. A criatividade para realizar uma boa aula, outra atividade que fica oculta, depende de vários fatores, como por exemplo, seu estado psicológico e emocional, extremamente relevantes para que o professor planeje e desenvolva suas aulas de maneira cativante.

Assim, diante dos depoimentos das professoras, identificou-se que o tempo de trabalho não é só o tempo cronológico, aquele cronometrado e controlado pelo relógio e pelo sinal, de 45 minutos para cada período de aula. Isso porque o trabalho docente invade o lar do professor, está presente em suas horas de descanso, aos fins de semana; portanto, ele possui uma componente atemporal.

Isso varia. Tem aulas que eu preciso de mais tempo, já tem outras que é bem mais tranquilo, mas preciso de bastante tempo, o que é difícil porque tenho muitas turmas, então faço um pouco em casa, outro na escola, no carro, no chuveiro, pois onde estou, estou pensando nas atividades que vou fazer. É bastante tempo (GEMED, 2019)

Depende da disciplina, porque trabalho Literatura, Artes e Educação Física. Então, geralmente para a disciplina de Artes demoro mais tempo para pensar nas atividades e também porque [...]. Literatura vai mais rápido devido ao auxílio dos livros com conteúdo que vou adaptando à realidade dos alunos, que é necessário fazer um paralelo com o tempo contemporâneo para que os alunos compreendam melhor (CEMED, 2019).

No entanto, isso não parece ser registrado, nem considerado, nem contabilizado como trabalho. Essa componente atemporal fica oculta por trás do rótulo “horas de planejamento”. Esse rótulo acaba ocultando também a variedade de ações e a complexidade própria do trabalho anterior àquele realizado em sala de aula.

O trabalho docente é regido pelos períodos de aula, onde as professoras estão frente aos alunos, desenvolvendo o trabalho didático; porém, o trabalho docente não se restringe a isso.

Outro fator que explica a insuficiência do tempo para planejamento, apontado pelas professoras, refere-se à concomitância de vínculos empregatícios (diferentes contratos de 20 horas na mesma rede ou em redes diferentes - municipal, estadual). Isso porque não é possível sobreviver apenas com a remuneração associada a um contrato/vínculo.

Tenho uma carga horária apertada dentro da escola, 20 horas, tenho então, que dedicar algumas horas na semana para realizar planejamentos em casa, pois tenho várias turmas, vários alunos e duas escolas. Então, este tempo é variável depende do conteúdo. O tempo aumenta para elaborar e corrigir provas e trabalhos, geralmente faço nos finais de semana (TEMED, 2019).

Por outro lado, a única professora entrevistada com carga horária de 40 horas na escola relatou uma realidade diferente, ao afirmar que tem uma rotina tranquila, justamente por não necessitar transitar de uma escola para outra.

Considero minha rotina tranquila, tenho 40h na escola, então tenho tempo para organizar material, para conversar com os colegas, vou para a sala mais organizada do que se eu tivesse apenas 20h. Sempre estou na escola antes do horário (GEMED, 2019).

Outro fator que influencia no tempo dedicado para planejamento docente é o da organização do tempo escolar: períodos de 45 minutos. Essa organização acaba determinando o espaço utilizado pelos professores para realização do planejamento:

Eu preparo a grande maioria de minhas aulas em casa [...] porque na escola os períodos são quebrados, então quando estou começando fazer um plano, uma pesquisa já soa o sinal e tenho que me dirigir para a sala de aula atender alunos (CEMED, 2019).

Os períodos “livres” que o professor possui na sua carga horária na escola não são produtivos para permitir a realização de um trabalho intelectual como o docente, que envolve estudo, leitura, pesquisa

É fato que a Lei no 11.738, de 16 de julho de 2008, que instituiu o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica, garante aos professores que a jornada do magistério respeite a proporção máxima "de 2/3 (dois terços) da carga horária para o desempenho das atividades de interação com os educandos”, restando, portanto, 1/3 da carga horária de trabalho para atividades extraclasse.

E, também, o Decreto n.º 49.448, de 8 de agosto de 2012, que regulamenta o regime de trabalho e as jornadas de trabalho dos profissionais do Magistério Público Estadual do Rio Grande do Sul, que definiu, em seu Art. 2º, inciso IX,

IX - Hora-atividade: a unidade de tempo destinada a estudos, planejamento e avaliação do trabalho com os alunos, reuniões pedagógicas ou jornadas de formação organizadas pelas escolas, pelas Coordenadorias Regionais de Educação - CREs e SEDUC de, no máximo, sete horas do Regime de Trabalho de vinte horas semanais, distribuídas nos termos do art. 3º deste Decreto (DECRETO N.º 49.448, DE 8 DE AGOSTO DE 2012, p. 2).

Sabemos que o trabalho docente não se inicia e muito menos finda em sala de aula. Dentro da prescrição geral “planejamento”, há um conjunto de ações envolvidas, muitas delas reconhecidas como complexas, já que envolvem a preparação para o trabalho com seres humanos. Por isso, um primeiro aspecto trata da impossibilidade de contabilizar qual o tempo necessário para elaboração desses planejamentos. Ademais, como visto na citação acima, dentro da hora-atividade há ainda outras tarefas previstas como realização de estudos, participação em reuniões, avaliação, formação continuada. Qualquer um que procure quantificar o tempo necessário para cumprir essas tarefas poderá estar incorrendo ao erro, ou cometendo injustiças. Afinal, quanto tempo deve ser gasto para estudos bibliográficos para melhorar sua compreensão sobre a matéria de ensino ou sobre a prática docente? Quanto tempo deve durar uma formação continuada? Se compartilhamos das proposições, hoje bastante aceitas no meio acadêmico, de que a formação docente é um processo contínuo e demanda reflexões, individuais e coletivas, como definir a priori o tempo que cada professor investirá nesse processo? Trata-se de aspectos que tornam complexa a quantificação do tempo, quando estamos tratando de um trabalho intelectual, como o do docente.

Vale lembrar ainda que a criação de leis não é garantia de superação de problemas encontrados na prática; antes é preciso fornecer meios, recursos e condições, e, principalmente, considerar a precariedade em que se encontram as escolas públicas de educação básica, para que essas instituições consigam oportunizar aos professores condições melhores de trabalho, permitindo efetivamente a profissionalização docente e, consequentemente, a melhoria de todo o trabalho escolar.

Em seus depoimentos, as professoras revelam os espaços utilizados para planejar suas aulas: espaços escolares ou a residência do professor. Na escola, os espaços mencionados foram a sala dos professores, a biblioteca, a sala de informática. Porém, nesses casos, as professoras afirmaram que sentem enormes dificuldades para elaborar seus planejamentos na escola- dificuldade extensiva a outras ações, como realização de estudos, correção de avaliações, consulta à internet, devido a deficiências estruturais da escola.

Em casa é preciso planejar, corrigir, corrigir avaliações, elaborar avaliações, trabalhos, aulas. Na sala de aula eu tento aplicar tudo aquilo que planejei, às vezes é preciso improvisar, porque às vezes tem alguma mudança, até por conta da turma. [...] Realizo ou na sala dos professores ou em casa, mas na sala dos professores tem muito barulho (GEMED, 2019).

Para planejar utilizo o espaço da biblioteca da escola algumas vezes, bem pouca porque a biblioteca é bem carente de material. Utilizo a sala de informática que fica ao lado da sala dos professores. Em casa preparo na sala, na cozinha, aonde eu me sinto mais à vontade e onde tem silêncio em função das atividades da família (TEMED, 2019).

Quando preparo em casa tenho uma sala de estudos. Na escola vou aonde o sinal da internet está pegando naquele dia que é bem difícil conseguir, mas dá um transtorno pois tenho que estar levando os materiais, então prefiro fazer em casa mesmo (CEMED, 2019).

Na escola não possuímos um espaço específico para planejar, o que penso ser muito importante as escolas ter. Uso a sala dos professores que na maioria das vezes tem muita conversa ficando difícil concentrar. Então, uso às vezes a biblioteca ou a sala de informática que oferece um pouco menos barulho, mas daí ocorre que este deslocamento faz com que eu tenha que carregar o material para planejar causando um transtorno. Penso que os professores deveriam ter uma sala de planejamento com tudo organizado isso faz muita diferença (SEMED, 2019).

Diante dos depoimentos, e em busca de respaldo na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/1996), é possível argumentar sobre a ineficiência do sistema estadual de ensino, em termos de estrutura da escola para assegurar o desenvolvimento do trabalho docente. A LDB 9.394/1996 assegura aos professores da educação básica, no seu artigo 67,

[...] a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público: VI - condições adequadas de trabalho (LDB. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. 2018,p.44).

O inciso VI trata de condições adequadas de trabalho, entretanto, a situação percebida no contexto analisado se distancia disso, principalmente no que se refere aos espaços adequados para que as professoras consigam realizar seus planejamentos, seus estudos, pesquisas e leituras, ações tão fundamentais na vida do professor, extensivo à aprendizagem do aluno.

Desta maneira, compreende-se que assegurar condições adequadas de trabalho é proporcionar ao trabalhador um espaço que lhe possibilite desempenhar suas funções de maneira autônoma e confortável. No entanto, na escola investigada, os espaços escolares não são organizados para todas as tarefas do trabalhador docente. Da mesma forma que existem as salas de aulas exclusivas para receber os alunos, para garantir o desenvolvimento das atividades de ensino e promover a aprendizagem, aos professores também deveria ser disponibilizado um espaço na escola, exclusivamente destinado à realização de seu trabalho docente que, nunca é demais lembrar, não se restringe ao trabalho realizado em sala de aula.

Verificou-se, então, que a escola de educação básica pesquisada está preparada apenas para o desenvolvimento do trabalho com alunos, com a destinação de salas de aulas exclusivas para que os docentes atendam os alunos e implementem as atividades de ensino. Porém, a escola não está preparada para que o professor possa realizar todas as componentes do trabalho docente, dentre elas o planejamento, a pesquisa, a organização das aulas, as leituras, enfim, para que possa se preparar para realizar o trabalho didático em sala de aula.

Conclusões

Nossa premissa, neste trabalho, foi a de que somente é possível compreender a complexidade do trabalho docente a partir do momento em que analisamos como o trabalho ocorre de fato, no contexto em que se realizam as práticas.

Tal premissa ancorou-se, como já vimos antes, no argumento de que o trabalho real do professor não consiste na reprodução do que foi planejado, pois não é mera execução da prescrição, mas envolve a criação, a invenção e a inovação do professor.

A partir desses pressupostos, foi possível evidenciar o que fazem as professoras, no que se refere, especificamente, à organização das aulas, ao planejamento, aos desafios enfrentados, às dinâmicas próprias de cada aula. Ao fazer isso, foram identificados aspectos que impactam no trabalho realizado, tais como o tempo, os espaços, características da interação com os alunos.

Pelas análises realizadas foi possível demonstrar a existência de uma distância entre o que é exigido do professor, tarefas definidas através de normas oficiais, normalmente determinadas pelas autoridades, e as condições reais do trabalho cotidiano, isto é, como de fato se realiza o trabalho.

Evidenciou-se que o tempo destinado para planejamento foi insuficiente, diante da diversidade de situações, de alunos e de turmas que as professoras precisaram atender, e o ambiente destinado para planejamento não possui recursos e espaços adequados. Diante disso, restouàs professoras realizar parte do trabalho em seu tempo livre, nas suas residências.

Além disso, os docentes precisam pensar não apenas em um aluno, mas na classe toda, para planejar e considerar que cada um aprende de um jeito, cada um já vem com uma bagagem de conhecimentos para a sala de aula que precisa ser respeitada, cada um age do seu jeito, cada um possui uma maneira de pensar e reconhecer o estudo como fator importante para si. Sendo assim, as docentes precisam considerar que os alunos são constituídos por diversidades que englobam aspectos sociais, culturais e econômicas.

No desenvolvimento de seu trabalho, as docentes realizam ações para cumprir com as tarefas prescritas, visando, em última instância, a promover a aprendizagem dos alunos. Porém, no âmbito desse trabalho prescrito, nem todas as ações realizadas são facilmente perceptíveis por aqueles que não estão no chão da escola. Reafirma-se que a análise do trabalho docente não pode considerar apenas as prescrições, elaboradas em um contexto distante das condições reais de trabalho dos professores.

Pode-se dizer que as condições as quais as professoras estão submetidas passam por uma série de contradições, especialmente considerando documentos legais relacionados ao trabalho docente.

Diante disso, tem-se o seguinte panorama: os gestores do sistema continuam omissos, supondo que basta considerar nos contratos de trabalho o tempo de interação com os alunos. Os professores, por outro lado, utilizam-se das brechas encontradas para incluir as ações necessárias para preparar o trabalho didático com os alunos. E se o tempo de trabalho do professor fosse contado a partir da chegada na escola? E se ele dispusesse de um período de tempo adequado, antes do início das aulas, para os últimos preparativos para suas aulas, sem precisar improvisar em poucos minutos? E se ele dispusesse de um espaço adequado de trabalho para essas ações? Ao realizar tais ações de forma aligeirada, apenas no pequeno período que antecede as aulas, não estariam os professores prejudicando a si mesmos, já que acabam ocultando a necessidade desse tempo e desse espaço?

Diante da situação analisada, é possível dizer que os problemas e situações cotidianas identificadas são fatores que complexificam ainda mais o trabalho das professoras e dificultam as relações entre o trabalho realizado e a aprendizagem dos alunos no ambiente escolar. Evidenciamos em nossa análise fatores que remetem a uma preocupação quanto às condições de trabalho dos professores na escola e a sua atribuição de garantir que o aprendizado ocorra.

Referências

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Recebido: 19 de Setembro de 2019; Aceito: 13 de Novembro de 2019

Profa. Dra Luciana Bagolin Zambon, Universidade Federal Santa Maria (Brasil), Departamento de Administração Escolar, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Gestão Educacional, Grupo de Pesquisa: Políticas Educacionais, Escola e Trabalho Docente. Orcid: http://orcid.org/0000-0002-5821-0647 E-mail: luzambon@gmail.com

Ms. Lucimara de Castro Bueno, Universidade Federal Santa Maria (Brasil), Profa. Educação Básica Estado do Rio Grande do Sul, Tutora a distância do Curso de Pedagogia-EAD-UFSM, Grupo de Pesquisa: Políticas Educacionais, Escola e Trabalho Docente. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8215-4262 E-mail: lucimaracbueno@gmail.com

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