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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.55 Natal ene./marzo 2020  Epub 29-Ene-2021

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n55id20832 

Artigo

Memória de afetos: cultura e revolução no Recife do tempo de Soledad Barrett Viedma

Affections memory: culture and revolution in Recife from the time of Soledad Barrett Viedma

Memoria de los afectos: cultura y revolución en Recife del tiempo de Soledad Barrett Viedma

José Antonio Spinelli Lindoso1 
http://orcid.org/0000-0002-6441-8305

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)


Resumo

Esse artigo é uma reflexão instigada por uma obra que recria o massacre de um grupo de militantes de esquerda (geração 68) que optaram pela luta armada contra a ditadura brasileira. Não se trata de um registro testemunhal. Aqui a memória estabelece seus direitos sob a modalidade da linguagem ficcional. A obra é uma espécie de escrita de si, uma memória de afetos, um relato ficcional com suportes no real, permeado pelo imaginário de uma geração, por seus valores, visões de mundo, escolhas éticas, estéticas, experiências sensíveis. Privilegia-se a análise literária, a reflexão sobre a memória e o exame da autocracia ditatorial que condiciona a ação. Em conclusão, o artigo expõe os fios invisíveis que religam memória e história, factual e imaginado, individual e coletivo, senso comum e criticismo, intuição e razão, vida vivida e projeto. E deixa uma reflexão sobre o legado da geração 68 e a validade do resgate da memória para superar o passado e apontar para o futuro.

Palavras-chave: Autocracia; Memória; Afetos; Geração 68

Abstract

This article is a reflection instigated by a work that recreates the massacre of a group of leftist militants (generation 68) who opted for the armed struggle against the Brazilian dictatorship. This is not a testimonial record. Here memory establishes its rights in the form of fictional language. The work is a kind of self-writing, a memory of affections, a fictional account supported by reality, permeated by the imagination of a generation, by its values, worldviews, ethical, aesthetic choices, , sensitive experiences. Literary analysis, reflection on memory and an examination of the dictatorial autocracy that conditions action are privileged. In conclusion, the article exposes the invisible yarns that reconnect memory and history, factual and imaginary, individual and collective, common sense and criticism, intuition and reason, lived life and project. And it leaves a reflection about the legacy of generation 68 and the validity of memory redemption overcome the past and point to the future.

Keywords: Autocracy; Memory; Affections; Generation 68

Resumen

Este artículo es una reflexión inspirada en una obra que recrea la masacre de un grupo de militantes de izquierdas (la generación del 68) que optó por la lucha armada contra la dictadura brasileña. No se trata de un registro testimonial. Aquí la memoria ejerce sus derechos bajo la modalidad de lenguaje de ficción. La obra es un lenguaje en sí mismo, una memoria de afectos, un relato de ficción con base en la realidad, impregnado por el imaginario de una generación, por sus valores, visiones del mundo, opciones éticas, estéticas, experiencias sensibles. Se privilegia el análisis literario, la reflexión sobre la memoria y el examen de la autocracia dictatorial que condiciona la acción. En conclusión, este artículo expone los hilos invisibles que religan memoria y historia, factual e imaginado, individual y colectivo, sentido común y criticismo, intuición y razón, vida vivida y proyecto. Y deja una reflexión sobre el legado de la generación 68 y la validación del rescate de la memoria para superar el pasado y apuntar para el futuro.

Palabras clave: Autocracia; Memoria; Afectos; Generación 68

Introdução

Bem sei que autores não choram. Autor deve ser duro e frio. Eu não percebia [...]. Talvez porque a amasse. Talvez porque eu confundisse a revolução com a pessoa de Soledad (MOTA, 2009).

A novela Soledad no Recife, do escritor Urariano Mota (2009), aborda as trágicas implicações resultantes do duradouro regime de exceção que se abateu sobre a nação brasileira em 1964, legando cicatrizes que marcaram profundamente os jovens da geração 68 que estavam despertando para assumir experiências de vida ativa nas próximas décadas de revolução e contrarrevolução (anos 1960-1970).1

Mota não pretende fazer história nem jornalismo. Ele faz um relato de difícil classificação, transitando entre o documental, o testemunhal e o memorialístico, mas que é sobretudo ficcional, conjugando todas essas modalidades narrativas no gênero da novela: relato curto; recurso a uma linguagem densa, concentrada; e, acrescentaria, agonística, no sentido de que há um trauma em crescendo, que subsume a ação e absorve-a em si. Há semelhanças estilísticas com um thriller policial, na medida em que o autor combina tensão e surpresa como se cada ação dos personagens encontrasse uma armadilha à sua espera.

Utilizo alternadamente as expressões “romance” e “novela”, embora prefira essa última. Não creio que a diferença entre os dois seja quantitativa, mas de gênero literário. Daria como exemplo de relatos novelísticos dois textos canônicos: A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói; e Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Marques. A novela de Tolstói já desenvolve a técnica do “monólogo interior” que viria a ser retomada por Joyce no seu Ulysses.

No texto de Urariano não faltam densidade nem análise em profundidade da psicologia dos personagens, num processo de desnudamento impiedoso. O estilo novelístico dá liberdade ao autor para tecer nexos entre a ação e a psicologia dos protagonistas. Assim, os personagens reais não são reproduzidos literalmente, mas emergem como efeito de uma linguagem poetizada, imaginativa, que imputa ao delator e a Sol (referentes reais) pesos distintos: a um, a ignomínia; à outra, o martírio que a engrandece.

O processo criativo que conduz a fabulação do autor dá origem a subjetividades compósitas, mescla de pessoas “reais” e fictícias transfiguradas pelo discurso literário. Porém, isso não ocorre de forma aleatória, mera construção de um sujeito descentrado. Antes, é resultado de uma urdidura bem concebida, de um resgaste da memória que confere significados à ação dos sujeitos.

Assim, em toda criação literária dotada de valor estético, quer se trate de uma obra surrealista, ou de uma outra, inscrita nos anais do realismo fantástico (para citar, exemplificando, dois estilos de narrativa), haveria similitudes com a realidade: fosse o “real” da imaginação, do sonho, do delírio ou o real da vida chã e crua do dia a dia.

Esse é o sentido de realismo que se pode dar a uma obra literária: o do real da imaginação, das possibilidades que se inscrevem na trama da vida vivida ou da que pode ser inventada, fantasiada (como na ficção científica ou no realismo fantástico), sem nunca perder um fio condutor, mesmo sob aparências caóticas: uma unidade coerente de linguagem e urdimento.

A imaginação do autor não é fotográfica, não tem a pretensão de ser vera-efígie, mesmo quando insere no enredo acontecimentos verazes, como os relatados por uma freira que conviveu com Soledad em seus últimos dias: “[...] ninguém nota que na face lhe correm sal e doce até os lábios, mistura de champanhe e lágrima. Irmã Célia nota, mas não se chora também de alegria?” (MOTA, 2009, p. 98).

O novelista é como um desenhista, um pintor ou um escultor: frente ao modelo faz esboços e os desenvolve comandado apenas por sua intuição indomável, submetido às imposições do Id, avesso a qualquer norma, abrindo espaço para o trabalho do inconsciente.

A narração do autor insere-se nos marcos de uma ditadura, modalidade de governo que se caracteriza pela concentração do poder nos órgãos executivos e pelo uso da força monopolizada pelo Estado. Não se trata de uma forma de dominação legítima, jurídico-legal, reverente a uma Constituição e a leis sob a sanção de eleições livres, submetida à proteção de direitos civis reconhecidos (WEBER, 2012). Essa forma de governo se aproxima mais de uma “ditadura soberana”, tal como teorizada por Carl Schmitt (1968).

A ditadura militar-empresarial-burocrática instituída em 1964 era um regime dotado de uma razão do tipo burocrático, tal como a definiu Max Weber (GERTH; MILLS, 1974). A tortura (ARNS, 1985), institucionalizada, seguia um rito protocolar, ordenado, sistemático, sujeita a uma cadeia de comando hierarquizado, autorizada pela cúpula do regime; este, era avesso aos direitos do homem e do cidadão proclamados pelas revoluções da modernidade.

As decisões políticas importantes eram tomadas em um nível ao qual o público não tinha acesso. Por isso, difundiu-se a ideia de que havia um sistema invisível por trás do poder visível (COMBLIN, 1980).

Para Eliézer Rizzo de Oliveira (1994), o sistema não se corporifica em uma instituição imediatamente identificável. Esse autor faz uma caracterização precisa e sutil que identifica uma rede de atores e instituições sem rosto aparente, que se expressa por um jogo de pressões e contrapressões no interior dos aparatos da repressão estatal. É como se fosse possível plasmar numa só figura as fabulações de Kafka, Orwell e Foucault: um Grande Irmão burocrático, onipresente e onisciente, capaz de conglomerar em si a alta tecnologia (high tech), o ethos burocrático moderno e um alto nível de concentração da repressão com brutalidade metódica.

Essas ditaduras modernas, soberanas (SCHMITT, 1968), no sentido de que se justificam por si próprias, na ação, como a brasileira e suas congêneres latino-americanas, exibem em sua ratio uma divisão do trabalho calcada na que caracteriza o mundo da produção capitalista (fordismo-taylorismo).

Assim, os aparelhos de repressão replicam o modus operandi do aparelho de produção do capital, com sua especialização de funções. Mota expõe em várias passagens do seu enredo a postura de Anselmo: “[...] não lhe dói em absoluto entregar, delatar, fazer aprisionar, eliminar isso, essa mulher. Todas as ações necessárias, exceto trair. Trair, nunca.” (MOTA, 2009, p. 84, grifos meus). Porém, trair é sua função, o essencial de sua atividade. Nesse sentido, o burocrata (enquanto delator oficial ele é criatura do aparelho repressivo de Estado) executa suas funções sem escrúpulos de consciência, conformado à hierarquia, executando ordens (como os subalternos nazistas que, nos tribunais, atribuíam a responsabilidade aos seus chefes).

A narrativa do novelista captura no plano ficcional a unidade dialética do sistema ditatorial, com sua racionalidade burocrática, sua divisão de trabalho, sua especialização de funções. Trata-se de um relato animado por aguda consciência crítica, que ultrapassa as circunstâncias objetivas imediatas para se alçar ao plano do universal, o que nos traz as reflexões de Maquiavel (2017) sobre o eterno circuito da experiência dos humanos, exemplificado em metáforas que expõem contrapontos que se negam e se afirmam contraditoriamente.

O autor inicia seu relato por um encontro de amigos num bairro popular do Recife que à noite se transformava num ponto de encontro entre intelectuais, boêmios e oposicionistas da ditadura. Ali, entre caipirinhas e papos fundamentais, discutia-se os destinos do mundo, o futuro da revolução, os últimos lançamentos de livros, as últimas leituras e, claro, os avatares da vida privada: amores, desamores, fastos do cotidiano. Naquele recanto a geração 68 expunha sua visão de mundo em tom de colóquio íntimo.

Ao falar em geração 68 refiro-me, de forma geral, aos que nasceram aproximadamente nos anos imediatamente posteriores à II Guerra Mundial e que amadureceram para a vida (adolescência e primeira juventude) nos anos 1960. Mais especificamente àquela parcela dessa população que se envolveu diretamente na luta política e/ou político-cultural de oposição ao regime e que estava na escola ou na Universidade (ou afastada delas por imposição de uma legislação de exceção) na cidade do Recife, ou em outras cidades, e era afetada pelo clima político e cultural existente naquela capital (o que, obviamente, inclui sujeitos oriundos de outras áreas geográfico-culturais). Mas, enfim, uma geração de jovens que no processo de se tornarem adultos tinham a revolução socialista como projeto de vida.

Estava-se na semana que antecede o carnaval e que já anuncia os folguedos de Momo. Foi nesse ambiente que ele conheceu Sol e Anselmo. O autor relata o impacto que a visão de Soledad provocou: “[...] eu a vi, como se fosse a primeira vez, quando saíamos do Coliseu, o cinema de arte daqueles tempos no Recife. Vi-a, olhei-a e voltei a olhá-la por impulso [...]” (MOTA, 2009, p. 19). Quanto a Daniel: “Em definitivo, eu não ‘topava’, não ‘topei’ com ele. [...] Havia nele algo de postiço, de pose” (MOTA, 2009, p. 20).

Nessa altura o Narrador já revela a exposição de sentimentos que permeiam toda a urdidura da novela: sentimentos exteriorizados sob o signo da paixão ou de um apaixonamento contínuo: a paixão amorosa e romântica pela figura idealizada de Sol; de repulsa pela sordidez de Anselmo; de amor pela Revolução. Pécora (2014) dirá que o relato expõe “[...] coragem temerária, ingenuidade sensual e outros paradoxos”.

Le coup d’État militar-empresarial de 1964

Uma nuvem escura passou [...] (MOTA, 2009).

O contexto histórico-político no qual se passa a ação da novela, o mais repressivo dos 21 anos de ditadura militar no Brasil, desenrola-se sob a presidência do general Médici. Nesse momento, o terror policial e a dominação dos aparelhos de repressão atingem níveis altíssimos, cerceando qualquer atitude oposicionista por mais tímida que fosse.

Na verdade, o ato de força que derrubou o presidente João Goulart foi ensaiado em 1954 contra o governo eleito de Getúlio Vargas; em 1955 contra a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek; e em agosto de 1961 contra a investidura do vice-presidente João Goulart na presidência após a confusa renúncia do presidente Jânio Quadros que havia assumido o governo federal sete meses antes.

Nesse período, emerge um novo bloco histórico2 que exprime o alto grau de internacionalização da economia brasileira consolidado no período anterior (décadas de 1950/1960), a associação entre grandes empresas multinacionais e nacionais (privadas e estatais) e o novo caráter da dependência que vinha se delineando desde a “Era Kubitschek”, entre 1955-1961, durante a qual se atraíram grandes investimentos estrangeiros para bancar novos empreendimentos na área de bens intermediários de capital e bens de consumo durável (SINGER, 1977).

O coup d’État de 1964 não foi um raio em dia de céu azul. Foi um golpe longamente articulado pela elite orgânica da grande burguesia, por políticos conservadores, pela grande imprensa, pelas cúpulas das Forças Armadas, pelas lideranças conservadoras da Igreja Católica e por setores expressivos das classes médias. O conflito a frio entre URSS e USA, a guerra ideológica entre os dois grandes blocos em que se dividia o sistema de Estados em nível global e a vitória da revolução cubana em 1959, implicando na presença de um Estado socialista às portas dos USA, representaria, na visão do establishment estadunidense, o risco de que o Brasil viesse a seguir o mesmo caminho, arrastando consigo a América Latina.

O governo Goulart, que representava naquele momento um blocco istorico designado pelo termo impreciso de “populista”, não logra articular (ou é impedido) um pacto social que desse continuidade ao desenvolvimento capitalista incluindo as classes trabalhadoras como parceiras do jogo. A nova face do capitalismo emergente no Brasil e na América Latina e a exacerbação do conflito de classes, propicia a intervenção para contenção dos setores populares mobilizados: classes operárias, camponeses, pequenos proprietários rurais, classes médias empobrecidas, estudantes, intelectuais “progressistas”.

Conforme enfatiza Dreifuss (1981, p. 485), o novo regime exibia o protagonismo do bloco no poder3 “financeiro-industrial” consolidado pela configuração do regime político pós-golpe. Setores das oposições de esquerda qualificavam o regime de fascista, entretanto, para Cardoso (1975), Skidmore (1988) e O’Donnell (1988) não se tratava de fascismo, mas de um regime autoritário, sob o argumento de que o sistema ideológico das ditaduras latino-americanas era difuso e não mobilizador, além de não haver um modelo de partido único, como no fascismo clássico.

Como se sabe, os militares no poder e seus aliados no mundo civil, extinguiram os partidos políticos vindos da “democracia populista” e instauraram um sistema bipartidário artificial para acomodar tendências políticas diversas e por vezes conflitantes que constituíam o apoio político do regime na sociedade civil e conferiam ao mesmo uma aparência “liberal”. Na verdade, as Forças Armadas funcionavam como o “comitê executivo” do sistema dominante, o que incluía os políticos, juristas, intelectuais e técnicos civis conservadores-liberais que gravitavam nas esferas dos centros de poder.

O sistema ditatorial militar-empresarial-burocrático implantado em diversos países latino-americanos nas décadas de 1960 e 1970 era bastante distinto do caudilhismo tradicional do subcontinente, fosse militar ou civil, assim como das históricas intervenções “cirúrgicas” do Exército para apoiar alguma facção civil e depois retirar-se para a caserna. Tratava-se de ditaduras institucionais das forças armadas, do exército em particular. Esses sistemas contavam com a importante participação da elite orgânica da burguesia industrial-financeira, tanto a interna e “nacional” como a externa e a associada (DREIFUSS, 1981). A presença do “estamento militar” dava a essa configuração de poder o peso da última razão de Estado como fiador do pacto de dominação das classes burguesas e da hegemonia mundial do capitalismo estadunidense em sua face imperialista.

Trata-se, nos termos de Schmitt (1968), de “ditaduras soberanas”, produto da modernidade tardia, que procuram extrair sua precária “legitimação” (Cardoso usa a expressão “autenticação”) na própria ação de derruir a ordem jurídico-legal existente e assumir o poder constituinte de impor uma nova ordem caracterizada pela violência contínua. Os militares costumavam dizer que a “revolução” não foi, ela ”é”, ou seja, a repressão permanente, a negação sistemática dos direitos humanos, a essência contrarrevolucionária do poder, a utilização do poder de morte do Estado vieram para ficar, para instituir uma situação permanente de vigilância, de controle panóptico.

Se não se pode falar a rigor de sistema totalitário (ARENDT, 1989), cabendo melhor as expressões “autoritário”, “ditadura”, “autocracia”, o fato é que havia um corpo de doutrina expresso no que se convencionou chamar de “ideologia de segurança nacional”, que justificava a perseguição ao “inimigo interno”, a “guerra psicológica” para criar o clima de medo e fomentar a delação, a demonização do opositor, a publicidade e propaganda para enaltecer o “milagre econômico” e promover a imagem ilusória do “Brasil Grande”.

A geração 68 é profundamente atingida por esse ambiente opressivo de propaganda ideológica. Germano (1993) demonstra os vínculos entre a ideologia de segurança nacional, substrato ideológico do regime ditatorial, e a política educacional do período 1964-1985, a qual, ao mesmo tempo em que apostava na teoria do “capital humano” e impunha, de cima para baixo, reformas de cunho produtivista, economicista e privatizante, fomentava um clima de espionagem e repressão combinados com manipulação ideológica nas universidades e escolas.

O enredo do relato novelístico

Eu não sabia, brincar com a revolução é como brincar com o amor. A brincadeira se transforma, vira coisa séria (MOTA, 2009).

A trama da novela põe em ação entes ficcionais, produtos da imaginação do autor, que têm, no entanto, referentes reais identificáveis: o cabo da Marinha José Anselmo dos Santos; a militante paraguaia Soledad Barrett, o Narrador, que concebeu a novela e outros personagens secundários. Necessário enfatizar que esses personagens têm vida ficcional própria, não se constituindo em reprodução literal de seus modelos.

O personagem/autor representa tipicamente a geração dos anos 1968 do Brasil. Seu relato é uma espécie de introspecção. Trata-se de ajustar pendências, enfrentar temas que ficaram subjacentes na consciência coletiva da geração que viveu intensamente os anos de repressão (FERRER, 2011) e vinha de um processo de amadurecimento, de formação de uma perspectiva crítica e foi lançada no vórtice das contendas políticas e culturais que no centro e na periferia agitavam a bandeira da revolução, anunciavam a “discordância dos tempos”, presentes no maio parisiense de 1968 e nas mobilizações contra a ditadura no Brasil, no mesmo ano.

Anselmo foi líder de uma greve histórica de marinheiros às vésperas do golpe de 1964. Ante a exigência dos comandantes militares de que os subalternos fossem punidos, o presidente João Goulart concedeu-lhes anistia, aprofundando seu isolamento político no meio militar. Com a queda do governo, Anselmo refugia-se na ilha cubana e estreita contatos com militantes de esquerda, o que lhe permitiria na volta ao país infiltrar-se em organizações envolvidas na luta armada contra o regime.

Após a derrota dos grupos armados e frente à crescente oposição da sociedade civil inicia-se a transição para a democracia, que foi na verdade um acordo entre elites, uma negociação que conservou privilégios e limitou a participação popular, esvaziando o ímpeto mudancista das grandes manifestações populares da campanha pelas “Diretas já”, de 1984. A velha “oposição consentida” do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), através de suas vozes mais moderadas e conservadoras (o governador de Minas, Tancredo Neves e o de São Paulo, Franco Montoro), o partido oficial de apoio à ditadura, Aliança Renovadora Nacional (ARENA), agora dividido em duas alas e as cúpulas das forças armadas (generais Geisel e Golbery) garantiram a “transição lenta, gradual e segura” arquitetada por eles próprios para bloquear uma ruptura radical.

Evitou-se convocar uma Assembleia Constituinte exclusiva para elaborar a nova Carta Magna, deixando essa nobre missão ao Congresso ordinário, cuja eleição era contaminada pela compra de votos, o financiamento empresarial privado, o personalismo apartidário, o clientelismo e os interesses limitados de grupelhos e facções regionais e/ou locais.

Dessa forma, não houve o processo pedagógico da participação popular em uma eleição democrática, capaz de acertar as contas com a ditadura e assentar as bases para uma mudança significativa da cultura política pervertida pelo regime autoritário.

Vianna (1996) já se referira ao longo processo de “revolução passiva à brasileira” para dar conta da modernização conservadora que vem caracterizando as transições políticas no Brasil (Independência, República etc.). O que houve nessa transição recente foi que o povo apenas deu um verniz simulado de respaldo popular à ascensão do novo Executivo.

O episódio da Chácara São Bento ocorre num momento em que o sistema ditatorial atinge o ápice: taxas “milagrosas” de crescimento econômico, oposicionistas calados, consentimento forçado da população. A máquina propagandística do governo vende ilusões e ao mesmo tempo intimida. A censura atinge publicações diversas como a Revista Veja, o Jornal satírico O Pasquim, o Jornal Opinião, o tradicional e conservador O Estado de S. Paulo. A Lei de Segurança Nacional, com seus dispositivos draconianos, impõe severas punições a quem se atrever a questionar o poder estabelecido.

Para o conjunto da esquerda esse é um momento de avaliar derrotas, de revisão de estratégias, de pensar o futuro. As rachaduras no “socialismo realmente existente”, as divisões das várias tendências partidárias, o retrocesso da onda revolucionária mundial das “primaveras” de 1968 - são acontecimentos que revalorizam a frente cultural.

No Brasil, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a mais importante agremiação de esquerda do país até aquele momento, perde terreno para as novas tendências que questionam seus esquemas de interpretação, suas estratégias e suas táticas políticas, propondo a ação imediata.

Numerosas organizações emergem das cisões do PCB, criticando a proposta de revolução democrático-burguesa, do caminho pacífico, de coalizão com políticos burgueses. Essas organizações fazem apelo às armas e preconizam a revolução socialista como objetivo estratégico. Os grupos que daí surgem, muito fragmentados, se dividiram em dezenas de organizações. Gorender (1987, p. 79) observa que “[...] prevalece a tendência à fragmentação, às cisões repetidas. São as fases de rachas, de divisões e subdivisões, às vezes motivadas por questões secundárias ou pelas rivalidades personalistas.”

Reis Filho; Sá (1985) informam que muitas dessas organizações são dissidências do PCB, do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e das próprias dissidências. A maioria defendia a guerrilha rural como estratégia de luta armada, inspirada na prática cubana. Gorender (1987) avalia que a guerrilha urbana era um movimento tático, a ser desenvolvida nas grandes cidades do país para desgastar o regime e acumular fundos para então concentrar-se no meio rural onde o regime tinha mais dificuldade para mobilizar forças. No campo ou nas cidades organizaram-se pequenos grupos armados, divididos em células, para deslegitimar a ditadura, angariar apoio popular, aniquilar a autocracia e implantar um regime de tipo socialista.

Posteriormente, Ridenti (2007), com base em documentação mais atualizada, menciona a existência de mais de 40 organizações envolvidas na luta clandestina contra o regime autoritário. Muitas dessas organizações também se faziam representar no Movimento Estudantil (ME) e uma delas, a Ação Popular (AP), em cuja origem havia predominância de militantes católicos, exerceu hegemonia sobre o ME nos anos 1960.

No Colégio Estadual de Pernambuco (CEP) organizou-se um influente movimento estudantil, liderado por militantes da AP e do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Os principais líderes eram José Eudes (mais tarde, deputado federal pelo PT/RJ), da corrente Vanguarda (AP) e Paulo Pontes, da corrente Opinião (PCBR), depois condenado à prisão perpétua e em seguida anistiado.

Os militantes envolvidos na teia do agente Anselmo estão vinculados à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), oriunda de cisões de outras organizações (REIS FILHO; SÁ, 1985). Muitas das células revolucionárias se limitavam à própria sobrevivência, sem condições de ação. A VPR, assim como os outros agrupamentos, sofria contínuas “quedas” (prisões de militantes) que os enfraqueciam e os expunham à ação de agentes infiltrados.

Segundo Ridenti (2007), a VPR era sucedânea de grupo homônimo destroçado pela repressão e instalou-se em Pernambuco em 1972, sendo destruída pela ação de traição do cabo Anselmo. Reis Filho; Sá (1985), Gorender (1987) e Ridenti (2007) fazem uma análise bem documentada das frequentes cisões e reagrupamentos dessas organizações.

Uma das saídas sugerida para a situação de isolamento era a proposição de “ações de massas” nas cidades para angariar apoios e jogar o regime na defensiva. Mas, o medo e passividade forçada dos setores populares e das classes médias, a presença de uma forte estrutura repressiva e o controle exercido sobre os meios de comunicação de massa contribuíam para esvaziar esses projetos de enfrentamento contra a ditadura, mesmo que fossem realizados por meios pacíficos. É precisamente nesse momento que o agente infiltrado Anselmo/Daniel estende sua rede para seduzir suas presas.

- É preciso armar toda a vanguarda - Daniel volta - É preciso reunir todas as vanguardas em uma frente mais ampla, entendem?

Isso me incomoda, isso me incomoda e me deixa em estado mais tenso.

- A sua proposta - Júlio diz - é o mesmo que misturar azeite e álcool. Acho meio impossível.

-Tá. Você pode até ter razão. Mas nenhum revolucionário rejeita uma oferta do Comandante Fidel, não é?

- Hum, hum...

- Ficamos todos engasgados ante esse argumento de autoridade. De tão fascinante autoridade. Faz-se um silêncio (MOTA, 2009, p. 49-50).

O desfecho dessa história é conhecido: a prisão dos seis militantes em diferentes pontos da cidade, a montagem do palco para simular um confronto armado que não aconteceu, a cobertura da imprensa reproduzindo a versão oficial. O jornalista e pesquisador Luiz Felipe Campos, em entrevista ao Jornal El País (BENITES, 2017), narra que os seis militantes foram presos entre os dias 7 e 8 de janeiro de 1973 e seus corpos foram encontrados no dia 9 com marcas de execução. Não houve troca de tiros. Eles não tinham armas.

O corpo de Soledad foi reconhecido pela advogada Mércia Albuquerque, ativista de direitos humanos no Recife, juntamente com seu feto, filho de Anselmo. Na melhor das hipóteses restaria aos militantes da esquerda armada o exercício de uma luta defensiva para resguardar seus companheiros e se preparar para um futuro mais promissor.

A cidade do Recife era naqueles anos um barril de pólvora. Fundada pelos portugueses em 1537, foi modernizada por judeus holandeses no século XVII para ser destinada ao mercado mundial, eixo militar, comercial e financeiro da colônia sul-americana dos flamengos. Ao longo de sua história Recife foi “la fiancée des révolutions”. Centro de conspirações, de comércio, de política, de revoluções culturais. Cidade nordestina, litorânea, receptiva aos influxos culturais vindos de outros centros da região, um tipo de metrópole tropical com aguda consciência de sua singularidade.

Na capital pernambucana, no clima de medo e delação instituído no pós-64, em cada esquina, em cada barzinho, em cada aglomerado de pessoas esperando o transporte coletivo, em cada travessia de suas inúmeras e belas pontes sobre o rio Capibaribe, em cada sala de aula, cinemas, eventos culturais, ou simples ajuntamento inadvertido de gente para conversar, podia-se flagrar o olhar cínico e soturno de um alcaguete de polícia4.

Era nesse clima que estavam mergulhados os nossos personagens, espicaçados e traídos pela ousadia cínica e fácil do agente infiltrado:

Anselmo era como um vigarista comum, um aplicador de truques velhos, transmitidos por gerações de trapaceiros. [...] agiu a favor da corrente [...]. Ele entrou frio ao lado dos vencedores em batalhas ganhas (MOTA, 2009, p. 63).

Indefesos

Coisa feia é a realidade; coisa horrível é expressar essa realidade (MOTA, 2009).

Os revolucionários não foram apenas reduzidos à condição de “profetas desarmados”, mas também sem defesas de quaisquer espécies: sem apoio popular ou em outros setores importantes da sociedade civil, divididos entre si, expostos à ofensiva da ditadura, psicologicamente acuados.

Pequenas células revolucionárias isoladas, travando um combate encarniçado contra um poder infinitamente superior, muitas dessas células voltadas sobre si mesmas, com percepção distorcida da realidade, acalentando esperanças ilusórias ou desalentadas por falta de perspectivas. Nesse cenário, a infiltração de agentes do esquema repressivo encontra terreno fértil no estado de desorientação dos militantes.

O Narrador interpreta os efeitos psicológicos desse estado: “Mas por que somos estúpidos a ponto de não percebermos a sua máscara?” (MOTA, 2009, p. 64). E logo em seguida emenda: “Ele fala como a sua caça. Tem as suas características, caricatura e clichês” (MOTA, 2009, p. 66).

O militante político, nesse caso, estava muito mais isolado do que o simples homem comum, que vivia o inferno astral da ditadura passivamente e no conforto psicológico da abstenção forçada de vida ativa na esfera pública, alienação imposta pelo medo e pela manipulação ideológica, em especial após o AI-5 e durante o governo Médici. Nesse momento, a ditadura elevou o nível da violência política do regime a alturas inimagináveis e intensificou ao grau máximo a propaganda de estilo fascista para instalar o medo e acuar os adversários, opositores e críticos.

Tal como definimos geração 68 nesse artigo, trata-se de um coletivo amplo, heterogêneo e diversificado de sujeitos que enfrentaram a ditadura e foram ativistas no sentido do protagonismo engajado e propositivo. Nessa medida, foram poucos os que participaram da luta armada, mas essa forma de ativismo teve um impacto não desprezível e polêmico. O autor/narrador é, nesse sentido, ativista da resistência política e cultural e testemunha atenta dos episódios narradas na novela.

Ridenti (1978, p. 133-134) observa que PCB, AP, PC do B (este, acionaria a “guerra popular prolongada” nos anos 1970) e “pequenos agrupamentos trotskistas” deixaram de resistir pelas armas. E quanto a este “apelo aos céus” (o recurso às armas segundo uma visão religiosa), os analistas discutem se foi “resistência”, “resistência democrática”, “protesto armado” ou “luta ofensiva”. Na verdade, o PCB adotou o caminho pacífico desde os anos 1950 e a AP só se decidiu pela luta armada nos anos 1970, quando se dividiu em duas correntes. A repressão violenta foi exercida indiscriminadamente contra todos.

Gorender, Aarão Reis e Ridenti são críticos da experiência da “esquerda armada”. Segundo Gorender (1987, p. 139), que não deixa de apontar a extrema violência e a prática do terror policial-militar pelo regime, “[...] o militarismo quimicamente puro conduzia à ideia da organização revolucionária como seita de pouquíssimos, mas selecionados e eficientes guerrilheiros”.

Inquietações

Naqueles anos, o amor era uma alienação. Não sabíamos, ou não queríamos admitir desejos outros que também possuem a sua lei (MOTA, 2009).

Era como se a adesão à revolução implicasse na aceitação de um “imperativo categórico” que se impunha de fora às consciências. O autor diz com mais clareza: “[...] então a consciência era a que devíamos ter. [...] O que não deveria ser estava proibido, obscurecido, vedado. Condenado [...]” (MOTA, 2009, p. 23, grifos meus).

O Narrador estrutura uma figuração apaixonada da militante paraguaia e essa paixão amorosa é o leitmotiv do seu relato novelístico. Ou, sendo mais preciso: a paixão revolucionária, a paixão amorosa e a paixão estética e intelectual pela cultura e o conhecimento crítico moviam as vontades, os desejos, os sonhos e a práxis dessa geração. Paixão que também não era alheia, por último, mas não menos importante, ao amor dedicado ao Recife (o título da novela não está ali à toa...). Ademais a geração 68 viveu intensamente, e de forma dramática, esse desencontro manifesto entre o público e o privado-intimidade.

Para alguns sujeitos dessa geração havia uma percepção consciente da necessidade de não separar subjetividade e militância política, o pessoal e o coletivo, biografia e história, e de procurar suportes intelectuais e estéticos para sustentar essa convicção. Dessa forma, procurava-se no freudo-marxismo (Erich Fromm, Wilhelm Reich), no existencialismo (Sartre), no personalismo (Emmanuel Mounier), no cristianismo de libertação, no marxismo dissidente (Lukács, Goldmann, Vásquez, Kosik) ou na literatura anarquista, sugestões para temas recorrentes de conversas e reflexões sobre como se engajar na ação política sem perder a individualidade, sem se submeter a mandatos que vêm de fora, sem deixar de acumular riqueza subjetiva que se expressa em “capital” simbólico.

Se não bastasse isso, tais inquietações subjetivas encontravam apoio no cinema, no teatro e na literatura acessíveis a esses sujeitos, com suas temáticas e enredos que colocavam as questões da participação política, da consciência de si, do amor e da sexualidade como recorrências inescapáveis, para não falar do estímulo vindo do erotismo quase-explícito da cultura popular (pastoril, mamulengos, carnaval), umas vezes jocoso, outras puramente erótico, da expressão do corpo (dança) que essa cultura propiciava e dos conflitos intensos que permeavam os relacionamentos entre militantes e que explodiam literalmente em desfechos dramáticos.

O complexo cultural no qual estavam mergulhados os jovens da geração 68 incluía a riqueza da arte popular e erudita nordestina como a xilogravura, a pintura (Lula Cardoso Ayres), a literatura de cordel, a escultura (Brennand, Abelardo da Hora, Liêdo Maranhão), a cerâmica popular (Mestre Vitalino de Caruaru, com suas esculturas de massapê), a ciranda (Lia de Itamaracá), o coco, coco-de-roda etc.

Para a geração 68, aquele foi um período de autoformação, de descobertas, de choques, de consciência de que a vida implicava o reconhecimento de uma dimensão ética incontornável, um compromisso com a “comunidade”, com o povo, com as classes populares, com a classe operária, com os ideais socialistas e uma projeção de futuro para a humanidade. Aqueles jovens eram pequenas criaturas inquietas, angustiadas, remoendo esperanças, ávidas por atribuir significados à sua existência individual e coletiva. Naquele tempo “[...] se imaginava ser possível juntar a vontade revolucionária com a sensibilidade romântica [...]” (CARDOSO, 2007, p. 220).

O golpe de 1964 pegou essa geração no início da adolescência. Seu amadurecimento, portanto, se deu num período de transição em que a ditadura se consolidava e assumia sua face mais dura precisamente no final de 1968, quando os fastos da “primavera dos povos” se faziam sentir em todo o mundo: o maio francês e sua sequência na Europa, a mobilização contra a guerra do Vietnã nos USA, as guerras de libertação nacional na África e Ásia, os protestos estudantis no Brasil.

Germano (2008) aponta que as reformas da educação durante o regime autoritário visavam restaurar a ordem ameaçada pela contestação estudantil e ajustar o setor educacional ao ideal de progresso no entendimento dos militares. A Lei 5.540/1968, de reforma da educação superior, foi baixada num momento crítico, seguida da decretação do AI-5 em dezembro do mesmo ano e do Decreto Lei n. 477, instrumentos de contenção da resistência ao regime.

Segundo esse autor a reforma universitária do regime, mesmo que “tenha incorporando antigas demandas [...] fez isso desfigurando completamente o ideal de uma universidade autônoma, pluralista e crítica. Em troca ergueu uma universidade domesticada que muito colaborou com o sistema político reinante” (GERMANO, 2008, p. 107).

Quando essa geração está despertando para a vida e tomando consciência de que há um mundo a desbravar, ainda existiam liberdades democráticas (democracia chamada de “populista”) que abriam espaço para a explicitação do conflito social, a escola pública se consolidava e a esfera cultural (teatro, cinema, literatura, artes plásticas, movimentos de cultura popular) assumia uma dimensão que reverberava e impulsionava esse conflito social. Nem mesmo a tragédia de 1964 conseguiu destruir tudo isso de chofre: houve resistência e o que havia sido destruído encontrou formas de sobrevivência e se inventaram modalidades novas de afirmação cultural e de lutas políticas, mesmo em condições profundamente adversas.

A formação política, o aprendizado intelectual, a composição da sensibilidade estética e ética dos jovens dos sixties são elementos inseparáveis na estruturação de sua visão de mundo e de certa mentalidade crítica e em disponibilidade, que até certo ponto foram condicionados por sua imersão na vida cultural e política do Recife e do Brasil nos anos 1960. Esses jovens tinham uma percepção nítida de que se vivia em uma sociedade em trânsito, em processo de mudança talvez radical, e essa percepção dava-lhes um senso de responsabilidade e de compromisso, como se biografia e história se entrecruzassem.

Houve, entre 1950/1960, uma “expansão jamais vista antes” do sistema educacional brasileiro (ROMANELLI, 1978). Essa expansão ocorreu sob forte influência da “pedagogia nova” e implicou na difusão da escola pública que, assim, se abriu ao ingresso de uma juventude oriunda das camadas sociais subalternas.

Porém, segundo Romanelli (1978), essa expansão comporta contradições. Uma delas refere-se ao fato de que no setor primário da economia encontra-se, em 1970, 44,24% da população economicamente ativa, enquanto as escolas e colégios agrícolas concentram apenas 1% da matrícula, revelando uma marginalização dos jovens do meio rural.

Em relação ao ensino superior havia uma concentração da oferta nos cursos da área das humanas (Economia, Direito, Filosofia, Pedagogia) em detrimento das Engenharias e da Medicina, cuja oferta crescia em ritmo mais lento (ROMANELLI, 1978). Dessa forma, a expansão do ensino ocorreu, mas também “cresceu a defasagem entre educação e desenvolvimento no Brasil” (ROMANELLI, 1978, p. 127).

A juventude (urbana) que acessa a escola pública manifesta inquietações que vão ao encontro das expectativas dos ideólogos mais liberais e progressistas da Escola Nova e se inserem nos propósitos daqueles que, como Anísio Teixeira (Anísio representa a consciência-limite do intelectual liberal), Florestan Fernandes (marxista) e Paulo Freire (existencialista-cristão), acalentam as possiblidades que a educação abre, não só para a integração do educando na moderna e dinâmica civilização capitalista, mas, indo além, promove a esperança por emancipação, por inserção numa sociedade em que as oportunidades de autorrealização sejam mais acessíveis, para além das perspectivas limitadas abertas pelo capitalismo autoritário e subdesenvolvido.

Se a modernização relativamente democrática do período 1946-1964 despertou o ativismo popular e permitiu a emergência de movimentos culturais emancipacionistas, as reformas educacionais encetadas pelo regime autoritário depois de 1964 beneficiaram, sobretudo, os setores da burguesia vinculados à grande empresa e [...] os setores das classes médias, que se escudam no Estado Empresarial e na Grande Empresa, inclusive, e principalmente, os militares [...] (ROMANELLI, 1978, p. 258).

Apesar disso, houve no Recife, especificamente, mas refletindo um contexto nacional e regional, uma convergência virtuosa de um sistema educacional em expansão, fundamentado em propostas avançadas, sob o influxo do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), com abertura às classes populares e um complexo sistema cultural. Esse conjunto permitiu a parcelas significativas da juventude popular e de classe média elaborar uma visão de mundo peculiar, crítica e questionadora dentro das limitações do momento.

O ecletismo filosófico e sociológico marca essa geração. Assim, havia uma mescla de cristianismo, marxismo e anarquismo bem típica da mentalidade dos jovens militantes daquele período. Que o marxismo duro de um Lênin (mais tarde, o cientificismo althusseriano) tenha se mesclado com o humanismo cristão, com o anarquismo e com o romantismo revolucionário das vanguardas, também é parte dessa história.

Ao fim e ao cabo, as duas grandes tragédias históricas, o golpe de 1964, que interrompeu com violência a primeira experiência mais duradoura de democracia no país, e o AI-5, que aprofundou o caráter repressivo da ditadura militar, assumem materialidade no martírio de Soledad.

Soledad eres!

Considerações finais

Creio que a exposição precedente desfez um possível equívoco: o de que a narrativa do autor seria testemunhal no sentido literal. Nessa medida, a memória estabelece seus direitos sob a modalidade da linguagem literária, ficcional, que é a maneira que encontra para questionar se valeu a pena a experiência vivida, os embates travados, a adesão à revolução socialista, a militância no campo da cultura. A narração de Mota é uma modalidade de escrita de si, registro memorialístico, mas sem compromisso estrito com o factual. Trata-se de uma memória de afetos, de um relato ficcional com suportes no real (a política, a cultura, a economia, mas sobretudo a vida vivida), no entanto permeado pelo imaginário de uma geração, por seus valores, visões de mundo, escolhas éticas e experiências sensíveis no sentido lato.

O autor da novela tem consciência de que trabalha, não com a “realidade” tal como se apresenta imediatamente aos sentidos, mas com a matéria da memória, individual, coletiva, histórica, imaginada - nem por isso menos real. Mota (2009, p. 70) delira: “[...] vejo Soledad, não a Sol daquela noite, [...] mas a Sol de anos depois, mergulhada na voragem [...]”.

A voragem é a tragédia, o destino individual de Sol, simbolizando o destino de uma geração, de uma nação, de um povo. A tragédia evoca o conflito, o antagonismo, como disse Beatriz Sarlo (2007, p. 4): “O passado é sempre conflituoso”. “[...] o tempo do passado não pode ser eliminado, e é um perseguidor que escraviza ou liberta [...]” (SARLO, 2007, p. 6): “Passei 37 anos [...]”, diz Urariano Mota (2009, p. 101), o autor, recorrendo à reminiscência factual, individual-histórica, em pleno exercício de exorcismo/superação/liberação.

Mota retoma em tonalidade memorialística dois acertos de contas: a) o da memória do período autocrático na consciência coletiva da nação; b) o da memória dos embates contra a ditadura na consciência coletiva da juventude revolucionária dos anos 1960/1970. Nesse caso, trata-se da consciência coletiva “[...] que recompõe magicamente o passado [...]” (DUVIGNAUD, 2003, p. 14), mas com um sentimento doloroso e uma intenção revisionista e subversiva frente à memória oficial.

O trabalho da memória marca o reencontro do sujeito consigo mesmo, reelaboração de si, ajuste de contas, trabalho da consciência, autocrítica, momento de dor: “[...] passei 37 anos para entender e contar este momento” (MOTA, 2009, p. 101).

Até que ponto o texto literário de Mota revolve o passado e o supera? Os personagens: Soledad, Daniel/Anselmo e o Narrador/Autor representam distintas formas de consciência: a do revolucionário [Soledad]; a do opressor [Anselmo]; e a do revolucionário [Narrador] que agora retoma o seu passado, reapropria-o e dialoga consigo próprio, como que colocando para si, e modificando-o, o dilema clássico: decifro-me ou me devoro!

A trama se desdobra ao redor de um trio de personas e de um tópico recorrente: a traição do agente infiltrado. Entretanto, é forçoso reconhecer que há um subtexto e é disso que se trata: é da revolução que se fala, o sonho perdido. Os trinta e sete anos de silêncio não puderam calar aquilo que foi reprimido, silenciado, mas que retorna insistentemente. É disso que se impõe falar, essa é a memória que precisa ser recuperada, superada, objeto de autocrítica, para que o futuro possa ser entrevisto.

Fredric Jameson (2005), ao tratar da relação entre o clássico e o moderno, diz que "nem o passado nem o presente existem verdadeiramente" quando ainda não se operou uma verdadeira ruptura entre os dois. A narrativa de Mota dá subsídios nessa direção ao reelaborar a própria dor e a de sua geração.

Notas

1 A recepção crítica do romance foi altamente positiva. Alcir Pécora (2014), crítico literário consagrado, professor titular da Unicamp, dirá na Revista Cult: “É um livro emocionado e forte.” Paulo Sérgio Pinheiro (2009), cientista político da USP, diz n’O Estado de S. Paulo que o romance “Recompõe o bárbaro sacrifício da militante e de seus cinco companheiros para tratar da resistência à ditadura sob ângulos inesperados...”.

2 O conceito de bloco histórico, elaborado pelo pensador marxista italiano Antonio Gramsci (2000) é extremamente pertinente para jogar luz sobre a evolução político-econômica brasileira depois de 1930. Esse conceito dá conta de um complexo sistema de conexão entre classes e frações de classe com o fim de dar organicidade à articulação entre estrutura e superestrutura e obter o consentimento majoritário da população nacional para as políticas da classe burguesa visando o desenvolvimento capitalista e a inclusão subordinada dos setores subalternos.

3 O bloco no poder é constituído por classes e frações das classes dominantes que controlam materialmente o Estado e exercem diretamente o poder político (POULANTZAS,1980, passim).

4 O dedo-duro, o delator, podia ser “Monsieur tout-le-monde”: um parente, o vizinho, o pipoqueiro da esquina, o bêbado que lhe provoca no barzinho, o colega de trabalho, o colega de turma na faculdade, alguém sentado ao seu lado no ônibus, o varredor de rua, o mendigo...

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Recebido: 12 de Maio de 2020; Aceito: 18 de Maio de 2020

Prof. Dr. José Antonio Spinelli Lindoso, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-6441-8305. E-mail: spinellih@uol.com.br

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