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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.56 Natal abr./june 2020  Epub 11-Ago-2021

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n56id21264 

Artigos

Ética como espaço de voz e ressonâncias do cuidado de si docente na escola pública e na Base Nacional Comum Curricular

Ethics as a space for voice and resonances in the care of the teacher’s care of the self in public school and in National Common Curricular Base

La ética como espacio de voz y resonancias del cuidado de sí docente en la escuela pública y en la Base Curricular Común Nacional

Cláudia Soave1  2 
http://orcid.org/0000-0001-9887-5179

Simone Corte Real Barbieri3 
http://orcid.org/0000-0002-4845-7603

Geraldo Antonio da Rosa4 
http://orcid.org/0000-0002-1193-7910

1Universidade de Caxias do Sul (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Linha História e Filosofia da Educação

2Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Linha Ética Aplicada, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul

3Universidade de Caxias do Sul (Brasil), Linha História e Filosofia da Educação

4Universidade de Caxias do Sul (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Linha História e Filosofia da Educação


Resumo

Este artigo tem por objetivo refletir sobre a ética do cuidado de si docente e suas ressonâncias no contexto da educação, considerando a constituição do eu, do outro e do nós. Os fundamentos metodológicos se concentram na teoria de Foucault (2000, 2001, 2008, 2010), referente ao cuidado de si, e na concepção de educação da teoria de Morin (2001, 2003). Por meio da escrita e da escuta, relativa a uma amostra de docentes, problematiza-se o silenciamento docente, influenciado por políticas educacionais brasileiras e decorrente da carência do cuidado de si, bem como da descaracterização e da anulação de espaços democráticos. Nesse contexto, entende-se que a atuação docente encontra-se condicionada às normalizações e ao controle biopolítico por meio dos mecanismos de governamentalidade.

Palavras-chave: Cuidado de si; BNCC; Biopolítica; Governamentalidade

Abstract

This article aims to reflect on the ethics of teacher’s care of the self and his resonances in the context of education, considering the constitution of the self, the other and us. The methodological foundations focus on Foucault's theory (2000, 2001, 2008, 2010), referring to care of the self, and the education conception of Morin's theory (2001, 2003). Through the writing and listening relative to a sample of teachers, we problematized teacher’s silencing, influenced by Brazilian educational policies and due to the lack of care of the self, as well as the lack of characterization and the cancellation of democratic spaces. In this context, we understand that teaching performance is conditioned to normalization and biopolitical control by the mechanisms of governmentality.

Keywords: Care of the self; National Common Curricular Base; Biopolitics; Governmentality

Resumen

Este artículo tiene por objetivo reflexionar sobre la ética del cuidado de sí docente y sus resonancias en el contexto de la educación, considerando la constitución del yo, el otro y de nosotros. Los fundamentos metodológicos se centran en la Teoría de Foucault (2000, 2001, 2008, 2010), referente al cuidado de sí, y de la concepción de educación de la teoría de Morin (2001, 2003). Por medio de la escrita y de la escucha de una muestra de docentes, el silenciamiento docente se problematiza, influido por las políticas educativas brasileñas y debido a la carencia del cuidado de sí, así como a la falta de caracterización y la cancelación de espacios democráticos. En este contexto, se entiende que el desempeño docente está condicionado a la normalización y al control biopolítico, por medio de los mecanismos de la gubiernamentalidad.

Palabras clave: Cuidado de sí; Base Curricular Común Nacional; Biopolítica; Gubiernamentalidad

Introdução

A atuação docente envolve atividades que vão além do preparo das aulas, da leitura, da pesquisa, da correção e da orientação. Nesse contexto, um dos motivos propulsores da produção deste artigo está na análise sobre a influência de políticas públicas no processo educativo e constitutivo dos professores. Compreende-se a existência de uma lacuna reflexiva sobre as necessidades intrínsecas dos educadores. A dimensão interior do docente é esquecida – muitas vezes por ele mesmo – privilegiando os aspectos externos, relacionados ao exercício da profissão e ao cuidado do outro, o que pode vir a anular a escuta da dimensão intrapessoal, gerando certo descompasso em relação ao cuidado de si.

Não há dúvida quanto à importância dos aspectos externos relacionados à prática docente, às necessidades da profissão e aos estudos que convergem nesse sentido; eles são necessários e essenciais ao desenvolvimento da educação. Entretanto, se observa certa carência de discussão sobre a constituição docente, pertinente ao processo de desenvolvimento intrapessoal e interpessoal, em face dos desdobramentos políticos e das experiências vivenciadas em prol da educação e da produção de conhecimento.

Por meio de um movimento de assujeitamento – fomentado por cobranças externas para a conclusão de metas – dissemina-se um contexto escolar restritivo, focado no trabalho e com o objetivo preponderante de atender às demandas econômico-mercadológicas. Isso gera certo desgaste na constituição docente que não se instaura apenas no processo de trabalho diário, criando, por outro lado, necessidades de cuidado e escuta em perspectiva pessoal e social.

Assim, os pressupostos sobre a ocorrência de certo silenciamento docente transcorrem em dois sentidos: (1) pelo próprio docente, que pode se anular e se calar para conseguir atender às demandas a que está submetido em suas práticas; e (2) pelos movimentos políticos de esvaziamento e descaracterização dos espaços docentes, manifestados por meio de políticas públicas que retiram a voz e o espaço dos educadores.

Esses pressupostos, aliados a situações históricas e atuais desfavoráveis à docência, conduzem à seguinte questão: qual o papel do cuidado de si no processo de constituição pessoal docente e nas suas ressonâncias – considerando a constituição do eu, do outro e do nós – no contexto da escola pública e da configuração da BNCC? Diante disso, tem-se o objetivo de refletir sobre a ética do cuidado de si docente e suas ressonâncias no contexto da educação, considerando a constituição do eu, do outro e do nós.

Ressalta-se que o termo ressonâncias, usado como metáfora, tem inspiração na Física, utilizado no sentido de se pensar nas frequências emitidas por um sistema – aqui o docente – que tem sua própria vibração, cuja amplitude é acentuada por meio de estímulos externos – pressão, trabalho, políticas, família, relações pessoais – e propaga essa vibração na forma de repercussão, conduzindo “ondas” para sua própria constituição como consequência. Essas “ondas” também atingem a constituição dos discentes e destes chegam à sociedade, sucessivamente.

Então, se pensarmos nas implicações dessas ressonâncias, sua necessidade e importância se justificam, principalmente no atual cenário. A problematização leva em consideração a quantidade de estímulos negativos e a pressão para o silenciamento docente, eticamente prejudicado em relação à sua ressonância.

Nesse sentido, este estudo está delineado em duas partes: a primeira, relativa a uma amostra não probabilística por conveniência, de caráter exploratório, configurada a partir de uma atividade empírico-presencial, é composta por 16 docentes, integrantes da 16ª Coordenadoria Regional de Educação do Rio Grande do Sul (CRE), provenientes de diferentes escolas da rede pública estadual. A atividade aconteceu a partir da realização de um evento, promovido por uma universidade do Rio Grande do Sul que deu oportunidade para a realização dessa pesquisa com os docentes1. A opção por esse procedimento empírico visa à compreensão acerca dos aspectos intrínsecos que concernem ao cuidado de si. Tomamos esse grupo de referência com a finalidade de estabelecer uma relação entre teoria e prática.

A segunda parte, referente à análise documental, busca o entendimento da formação docente, em face aos movimentos de articulação e aplicação da BNCC, considerando os espaços constitutivos de uma perspectiva biopolítica. Por meio da análise do documento, em suas diversas versões, estabelecem-se marcadores da biopolítica a serem aplicados nas análises confrontadas com a Política Nacional de Formação de Professores nela referida. A partir deles, se identificam as contradições performativas entre o discurso enunciado e suas pretensões, no que se refere aos espaços de formação dos docentes. Após a investigação pelas lentes da biopolítica, discutem-se as intencionalidades dos movimentos de silenciamento docente pela progressiva não explicitação da formação docente no documento e suas possíveis reverberações.

Durante o encontro com as docentes, articularam-se dois momentos, diluídos nas duas horas de atividade. No primeiro momento, solicitou-se a redação individual de uma carta, destinada a um colega docente imaginário. Cada participante foi orientada a refletir e a relatar sobre os principais desafios presentes ao longo de sua atuação no magistério e, em seguida, deixar uma mensagem relativa aos aspectos que considerava importantes na sua trajetória. Para auxiliar a construção do texto, foi entregue uma ficha com algumas questões: “Que aspectos você considera mais relevantes na experiência docente? Quais as dificuldades enfrentadas no cotidiano da atuação? O que mais a aflige? Dedica um tempo para cuidar de si? Reserva um tempo para refletir sobre sua vida, sua trajetória, seus desejos, suas emoções e aflições? Que aspectos você gostaria de mudar, ajustar, ressignificar?”

No segundo momento, após a finalização da carta, fez-se a leitura em duplas. Cada participante ouviu a colega ler a carta que havia escrito; ou seja, a emissora da carta também foi receptora e ouvinte, tendo a oportunidade de se escutar na voz da colega. Em seguida, as docentes foram convidas para, voluntariamente, relatar a experiência de escrever e escutar, bem como dialogar sobre as peculiaridades que emergiram em suas cartas e expor as principais reflexões registradas no diário da atividade.

Para análise dos resultados, utilizou-se a Análise textual discursiva, pois “[...] os materiais textuais constituem significantes a que o analista precisa atribuir sentidos e significados” (MORAES; GALIAZZI, 2007, p. 13). A escrita das 16 cartas possibilitou a construção do corpus textual por meio da leitura e desmontagem dos textos. Utilizou-se a escrita de cartas por permitir a introjeção das participantes, a posterior análise e a escuta do registro de cada depoente pela ressonância de outra voz que não a própria. Cada carta – unidade de análise – foi identificada como “Participante” do número 1 ao 16. Assim, emergiram quatro categorias de análise: i) renúncia de si; ii) resiliência; iii) angústia e culpa; e iv) falta de tempo.

Atuação docente e cuidado de si: (des)compassos?

Sem a pretensão de simplificar os estudos de Foucault e de Morin, entendendo a limitação temporal, o conteúdo e a vastidão da obra desses dois autores, delimitam-se, aqui, as duas chaves de leitura, cuidado de si e educação para embasar a análise da pesquisa empírica.

Toma-se a concepção de cuidado de si no sentido de “[...] um princípio geral e incondicionado [...]; uma regra coextensiva à vida [...], em que [...] é o ser inteiro do sujeito que, ao longo de toda a sua existência, deve cuidar de si e de si enquanto tal [...]” (FOUCAULT, 2010, p. 221). O pressuposto para o cuidado de si decorre da noção de governamentalidade2, cuja relação de dominância se instaura na sociedade de forma ascendente e descendente, através da macropolítica e da economia, e vai se incorporando à micropolítica e à moral do indivíduo. Configura-se no conjunto de instituições, cujos procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas possibilitam o controle da população pela arte de governar (FOUCAULT, 2000, 2008). Todo esse movimento foi constituído ao longo do século XVI até o século XVIII, consolidando-se a partir de então como a era da governamentalidade (FOUCAULT, 2000).

Aproximando essa ideia ao contexto de atuação docente, aqui abordado, considera-se que a governamentalidade, seja ela para fins mercadológicos, econômicos ou políticos, transita entre a macropolítica e as micropolíticas. Isto é, infiltra-se na sociedade e nas escolas e, consequentemente, nos docentes e discentes.

Nesse aspecto, os professores buscam atingir resultados, controlados e vigiados pelas estatísticas, e “esquecem” de cuidar de si mesmos, deixando o governo de si “terceirizado” ao domínio do outro. A existência, cuja responsabilidade é pessoal, acaba capturada, contrariando o princípio do cuidar de si.

[...] isso não significa não ser governado; significa, apenas, não ser governado a esse preço, em nome dessas verdades, em meio a esses procedimentos. Em qualquer instituição de ensino vemos professores atolados de conhecimentos a serem repassados, provas e alunos a serem corrigidas/corrigidos, notas a serem dadas, burocracias a serem encaminhadas, salas de aula que necessitam de certo número de alunos, cuidado com a frequência, pontualidade e vestimentas (SCHULER, 2016, p. 140).

A segunda chave de leitura é abordada na perspectiva da educação na complexidade, e, nesse contexto, a missão da educação é “[...] fortalecer as condições de possibilidade de emergência de uma sociedade-mundo composta por cidadãos protagonistas, conscientes e criticamente comprometidos com a construção de uma civilização planetária” (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003, p. 98).

Mas a emergência desse protagonismo depende da reflexão, que se inicia no princípio do cuidado de si. Desse modo, entende-se que, ao desvincular a educação dos processos de constituição do docente – atribuindo-lhe o papel de coadjuvante, necessário para a execução de tarefas e submetido a controles para atingir metas –, exclui-se a possibilidade de refletir sobre sua própria atuação; com isso, não há transformação para uma “sociedade-mundo”.

Para Morin (2001, p. 47) “[...] conhecer3 o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele”. Entende-se que, nessa perspectiva de integração, vinculada ao movimento de produção de conhecimento, o docente se constitui e se ambienta pela possibilidade de imersão e contribuição junto com os processos de educação e não fora deles. Todavia, segundo Morin (2001), o avanço existencial e ético não acompanha a mesma velocidade do avanço científico-tecnológico, e as escolas encontram-se impotentes para exercer sua finalidade de educar e formar pessoas na perspectiva da complexidade.

Nessa linha de raciocínio teórico, seguimos para a apresentação e discussão dos resultados que emergiram da amostra para posterior análise da BNCC. A partir do corpus textual das cartas – unidades de análise –, podem ser identificadas quatro categorias, a posteriori: i) renúncia de si; ii) resiliência; iii) angústia e culpa; e iv) falta de tempo. As duas primeiras categorias – renúncia de si e resiliência – foram descritas 26 vezes, enquanto as outras duas – angústia/culpa e falta de tempo – surgem 17 e 13 vezes, respectivamente.

Compreende-se que as quatro categorias estão imbricadas. A renúncia de si, justificada pela falta de tempo, desencadeia a angústia – a docente vai até o limite de exaustão, desestruturando-se. Ficou implícito o sentimento de culpa, aliado à angústia, nas docentes, por não conseguirem conciliar trabalho e vida pessoal. Sem alternativas, buscam a resiliência. Esta é entendida pelas docentes como a capacidade de sofrer por longos anos, com contínuas tentativas de recuperação –reencontrando a forma que tinham antes de sofrer o desgaste – a fim de se manterem ativas e sobreviver ao trabalho. Esse desgaste interior é expresso em palavras: “Estou aguardando ansiosamente a aposentadoria!” (PARTICIPANTE 6, 2018). A maior expectativa para essa docente é sua aposentadoria, como um objetivo urgente a ser alcançado do qual depende a sua sobrevivência.

As professoras também destacam seu esforço contínuo na tentativa de governar a si mesmas. “Na caminhada da vida, já perdi a convivência de muitos que amei e continuo amando, preciso de um tempo, preciso voltar ao meu eixo, não posso perder ensinamentos preciosos que ganhei nos anos de vida.” (PARTICIPANTE 1, 2010). Percebe-se a angústia nesse relato, decorrente da perda de relacionamentos e a ausência de incorporação dos ensinamentos importantes que dela fazem parte, bem como a necessidade de resgate do sentido de sua própria existência.

Nessa mesma direção, outra docente relata a desatenção consigo, sua resignação em prol dos outros para atender às necessidades de relacionamento interpessoal e às exigências impostas. Apesar de se considerar plenamente realizada pelo amor ao trabalho, seu discurso faz emergir o sofrimento pela impossibilidade de cuidar de si, à medida que, simultaneamente, os colegas e ela sofrem a desconsideração financeira e moral por parte do governo.

Já considerei ter negligenciado de mim. Mas sou eu no meu trabalho, assim sou na vida. Os outros antes, mas reinventando a mim para poder criar boas relações. Plenamente realizada, mas em constante mutação, reconstrução. Enfrentando frustrações sempre, pois o sentimento de querer fazer mais nunca me abandona. Triste com a condição financeira e o descaso do governo que destrói sonhos e projetos (PARTICIPANTE 5, 2018).

Por meio desses relatos, evidenciam-se as consequências que o controle e as influências externas exercem na vida das docentes, a ponto de renunciarem a si mesmas em favor dos outros e dos objetivos do trabalho. Isso demonstra a atualidade das discussões de Foucault no âmbito da educação, tamanha é a urgência de uma ética do eu como recusa à apreensão da vida pessoal.

[...] é possível suspeitar que haja uma certa impossibilidade de constituir hoje uma ética do eu, quando talvez seja essa uma tarefa urgente, fundamental, politicamente indispensável, se for verdade que, afinal, não há outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder político senão na relação de si para consigo (FOUCAULT, 2010, p. 225).

Destaca-se, ainda, a estreita relação entre a necessidade de cuidar de si como contraponto ao sequestro das subjetividades. “Como você me conhece, ainda não aprendi a dizer muitos ‘não’. Sempre à disposição para ajudar os outros. Dedico pouco tempo para mim, mas administro bem as emoções, aflições e pondero. Paz na alma” (PARTICIPANTE 10, 2018). Esse relato apresenta evidências sobre a abnegação do eu em prol do outro, e a paz na alma que seria alcançada por meio da entrega de si, o que faz emergir uma das características do ascetismo cristão: a busca de salvação pela perda de subjetividade. “Só pode salvar-se quem renunciar a si” (FOUCAULT, 2010, p. 224). Esse mesmo aspecto surge em outra carta: “Para mim, a vida transcende o que fizemos aqui na Terra, é muito mais, é cuidar do outro de uma forma íntegra, como corpo, alma e espírito” (PARTICIPANTE 8, 2018).

Nesse sentido, sem deixar de caracterizar a importância do cuidado do outro, indaga-se: a busca pela constituição do outro não encarcera o cuidado de si? No momento em que se tenta integrar, estimular e preservar cidadãos conscientes e críticos por meio da educação, procura-se conservar a reflexão do docente pelo próprio docente, também constituído por si mesmo? Ou se foca apenas na valoração de seu caráter profissional e utilitário? “O ensino tem que deixar de ser apenas uma função, uma especialização, uma profissão e voltar a se tornar uma tarefa política por excelência, uma missão de transmissão de estratégias para a vida” (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003, p. 98).

Evidencia-se, assim, certa carência de reflexão e ação das docentes acerca de si, embora haja um chamado interior que não consegue ser atendido. “Vamos silenciar um pouco e ouvir a voz do coração. O que faz bem a mim?” (PARTICIPANTE 3, 2018). Essa mesma questão entrou como um dos pontos nas discussões posteriores realizadas pelo grupo. Muitas docentes relataram, nas cartas e verbalmente, a necessidade de direcionar o olhar para si mesmas, a fim de se compreender e, assim, entender e olhar melhor o outro. Porém, frisaram que se colocam sempre em segundo plano, preocupando-se mais com os outros, acima delas mesmas.

Outro ponto que revela a renúncia do cuidado de si, e que gera angústia/culpa, falta de tempo e abandono de si, provém das cobranças em nível micro ou macro, implicando certo ajustamento (resiliência) ao que é (im)posto. “É muito angustiante esta ‘falta’ de tempo para realizar tudo o que direção, coordenadoria, pais de alunos e sociedade nos obrigam a fazer” (PARTICIPANTE 7, 2018). Esse relato sobre a obrigação de fazer o que todos impõem pode ser compreendido como o “[...] encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si” (FOUCAULT, 2001, p. 1.604). Ou seja, a dominação sobre as docentes já não é mais externa, é interna, incorpora-se ao cotidiano, naturalizada na própria constituição. Nesse sentido, há que se considerar que a constituição docente requer reflexão, ação e espaço, já que está integrada à formação dos outros.

Conforme aponta Morin (2001), é premente, diante desse cenário, uma educação que integre as contribuições das ciências humanas para não haver a desintegração do humano, enquanto ainda há tempo. Todavia, mesmo que se queira dar espaço para esse debate – levando em consideração a necessidade de reflexão concernente ao cuidado de si – o que avulta como possibilidades é a presença, cada vez maior, de mecanismos e dispositivos de controle tanto nos discursos quanto nos eventos atuais.

São mecanismos e dispositivos velados pelo exercício da governamentalidade, visando, em sua maior proporção, atender ao mercado e e incrementar os resultados econômico-financeiros para aumento do capital. Assim, no cotidiano, o silenciamento é operacionalizado como normalização, posto que as docentes precisam atingir as metas e não enxergam outra saída a não ser calar-se e cumprir o que foi estabelecido, conforme determinam as políticas educacionais e as cobranças sociais do trabalho.

Os processos de silenciamento docente manifestos na BNCC

A discussão do espaço de manifestação docente a partir de uma política educacional, como a BNCC, se faz presente na estruturação, na finalidade e na intencionalidade da formação docente, articulada para os fins da educação nela explicitados. A formação de professores precisa considerar a educação como fim em si mesmo, para que o professor se entenda e se reconheça como um mediador de fato, entre o conteúdo e o aprendiz, a realidade e o sujeito, os discursos e as práticas.

A própria perspectiva epistemológica, sobre a qual a Base foi pensada, e o modo como ela foi constituída, pode inviabilizar a transposição desse abismo, dessa distância entre o que é determinado e as possibilidades de sua efetivação. Dito de outra forma, o abismo não está entre o discurso e a prática como se pensa automaticamente; ao contrário, está no fato do discurso subsidiar a prática pedagógica eficiente, já que é formado a partir das concepções que diz combater e vem disfarçado de ultramoderno, diferenciado, inovador, vanguardista. Afirmam-se novas condições para o processo de formação das subjetividades; entretanto, não se permitem flexibilizações, diversidades ou múltiplas possibilidades, mantendo a estrutura clássica do sujeito formatado a partir dos pressupostos da modernidade.

O discurso político-contemporâneo pretende justificar a implementação e a necessidade de uma Base, como política educacional e nacional, justamente para poder abarcar as singularidades de uma forma minimamente relacionada com os processos de ensino, através do estabelecimento de um conjunto mínimo de conhecimentos e condições de ensino para todos em todo o país.

Pretende-se justificar, também, por que a instauração de uma política nacional se fundamenta na ideia de que a autonomia docente, nas unidades escolares, não garantiu a efetividade do ensino e da aprendizagem, já que os indicadores nacionais demonstram uma grande desigualdade no que se refere aos resultados alcançados pelas diferentes instituições. Desse modo, a BNCC deve ser estabelecida como meio de articulação entre as unidades escolares e, também, para qualificar os processos de ensino brasileiros.

Pela versão do Ministério da Educação e Cultura, sua elaboração se desdobrou em três versões: a primeira versão foi desenvolvida por um comitê de especialistas, com a função de servir de base à proposição de nova política educacional, política que deveria ser embasada na Constituição Federal brasileira, em consonância com o Plano Nacional de Educação (PNE), para promover a articulação nacional dos sistemas de ensino. No PNE, foi determinado o prazo de dois anos para a elaboração da BNCC. Nesse período, foi desenvolvida uma versão inicial do texto, estudada e discutida entre setembro de 2015 e março de 2016. Essa discussão foi divulgada pelo governo como uma construção político-coletiva com ampla participação nacional. O resultado das discussões e análises da primeira versão deram origem à segunda versão da BNCC:

Configura-se como parâmetro fundamental para a realização do planejamento curricular, em todas as etapas e modalidades de ensino a ser consolidada no Projeto Político Pedagógico – PPPs) das Unidades Educacionais (UEs), de acordo com o inciso I, do artigo 12, da Lei n. 9.394 – LDB. No processo de implementação da BNCC, como norma que deve subsidiar a elaboração de currículos, e em consonância com as Diretrizes Nacionais Curriculares Gerais para a Educação Básica, recomenda-se estimular a reflexão crítica e propositiva, que deve subsidiar a formulação, execução e avaliação do projeto político-pedagógico da escola de Educação Básica face a esta norma (BRASIL, 2016, p. 28).

Essa segunda versão foi submetida a um processo de debate em seminários estaduais, entre 23 de junho e 10 de agosto de 2016, realizados pelas Secretarias Estaduais de Educação. De acordo com o Ministério da Educação (MEC) esse debate aconteceu em todos os estados com a coordenação do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME). Também houve discussões em audiências públicas realizadas de junho a setembro de 2016, em Recife, Manaus, Florianópolis, São Paulo e Brasília.

Como resultado da sistematização desses estudos e documentos, foi elaborada a terceira versão da BNCC,4 considerada pelo MEC como a versão final,5 com o objetivo de complementar e revisar a segunda versão a ser encaminhada ao Conselho Nacional de Educação que foi homologada pelo então ministro da Educação, Mendonça Filho, em dezembro de 2017. Em sua versão final está escrito que

A BNCC é um documento plural, contemporâneo, e estabelece com clareza o conjunto ensino e instituições escolares públicas e particulares passam a ter uma referência nacional obrigatória para a elaboração ou adequação de seus currículos e propostas pedagógicas. Essa referência é o ponto ao qual se quer chegar em cada etapa da Educação Básica, enquanto os currículos traçam o caminho até lá, de aprendizagens essenciais e indispensáveis a que todos os estudantes, crianças, jovens e adultos têm direito (BRASIL, 2017, p. 5).6

Diferentemente da segunda, a terceira versão estabelece como objetivo determinar as aprendizagens essenciais, a partir do desenvolvimento de dez competências gerais, que possam garantir os direitos do estudante e capacitá-lo para a vida social.

Apesar de afirmar que a BNCC não se resume a um conjunto de conteúdos curriculares e à prescrição procedimental de sua aplicação, em vários momentos do documento, encontram-se referências à imperatividade de sua implementação de forma padronizada e específica em cada nível de ensino, estabelecendo os objetivos de aprendizagem, as competências a serem desenvolvidas e os conteúdos necessários para seu adequado desenvolvimento em cada idade. A partir do desenvolvimento das competências, a qualidade da educação é medida pela aptidão de realização de determinadas ações, comportamentos e tarefas, como é possível observar no texto original:

Ao adotar esse enfoque, a BNCC indica que as decisões pedagógicas devem estar orientadas para o desenvolvimento de competências. Por meio da indicação clara do que os alunos devem ‘saber’ (considerando a constituição de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores) e, sobretudo, do que devem ‘saber fazer’ (considerando a mobilização desses conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho), a explicitação das competências oferece referências para o fortalecimento de ações que assegurem as aprendizagens essenciais definidas na BNCC (BRASIL, 2017, p. 12).

A orientação das políticas públicas, a partir da mercantilização do ensino útil, estruturado desde as competências necessárias para o desenvolvimento de sujeitos capazes, bem-formados e competentes, de certa forma pode ser considerada intencional, pois parte da lógica de mercado, em que o produto educação deve ser eficaz à sociedade. Isso implica formar mão de obra qualificada e sujeitos acomodados aos seus papéis sociais. Não se problematiza o porquê da educação, ou seja, sua instância crítica, a não ser nos discursos e na apresentação dos princípios integrantes das políticas. Mas as ações e deliberações tematizam os objetivos da educação. O que deve ser ensinado, quando e para quem, a fim de estabelecer a escola como o lugar da qualificação de sujeitos eficientes. “Assim, a escola se transforma numa empresa, o aprendizado vira índice e o aluno é forjado numa lógica de empreendedorismo de si, primando pela eficiência” (SILVA apud SANTOS, 2017, p. 30).7

Pensar os motivos que conduzem o ensino brasileiro a se orientar pela dimensão técnica e o quanto essa escolha determina os processos de subjetivação dos indivíduos, que deveriam, na verdade, ser educados para ter condições de se desenvolver de forma crítica e autônoma, é pensar nas intencionalidades biopolíticas da educação.

Em suma, nas duas últimas décadas, uma intensa produção de políticas públicas pelo Ministério da Educação construiu todo um marco regulatório para o setor, centrada na afirmação e na promoção da cidadania, evidenciando uma governamentalidade democrática como maquinaria posta em curso no Brasil desde meados dos anos 1980, azeitada pela constituição de cidadãos (GALLO, 2017, p. 89).

Apenas o discurso tematiza todos esses aspectos da realidade social, que devem ser abarcados na realidade educacional. Na prática, os processos educativos e as leis educacionais servem mais à manutenção do controle e às condições existentes.

Somos assujeitados a cidadãos; somos, compulsoriamente, subjetivados para obedecer aos princípios básicos de uma sociedade democrática. Devemos participar; devemos confessar nossa verdade política no voto; devemos confessar nossa verdade técnica no trabalho; devemos confessar a verdade do que somos nos mais diversos processos sociais, porque somos cidadãos de direitos. Temos direito à educação, direito à saúde, direito ao trabalho etc., temos direito de ser, por isso somos. A biopolítica da governamentalidade democrática produz o ‘sujeito de direitos’ (GALLO, 2017, p. 89).

A proposta aponta para a formação do sujeito útil e competente, que trabalha e se comporta adequadamente, cuja experiência de cidadania se reflete em legitimar as estruturas do poder vigente a partir do reconhecimento da necessidade dessas estruturas.

A partir da leitura atenta do documento, percebem-se as discrepâncias entre as diferentes versões que podem servir para ilustrar as intencionalidades biopolíticas por trás do texto homologado pela BNCC. Como se depreende, de acordo com Gallo (2017), na ocorrência da palavra cidadania que aparece 19 vezes na terceira versão e 49 vezes, na segunda. Conceito esse que, no discurso, ocupa o objetivo central da educação, mas que se dilui em sua aplicação na descrição da terceira versão da BNCC. Seu desenho mais se parece a um currículo prescritivo, cuja construção deve ser padronizada e subsidiada por materiais didáticos especificamente desenvolvidos para dar conta das aprendizagens essenciais em cada etapa da educação. Não se parece a uma política norteadora e educacional que possa servir de parâmetro/referência, de horizonte aos movimentos pedagógicos necessários ao desenvolvimento subjetivo.

Nessa análise documental, não se pode desconsiderar a última resolução feita em setembro de 2019, por meio de parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), a respeito das Diretrizes Curriculares e da BNCC para a Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica. A resolução do CNE apoia-se no diagnóstico de que a formação docente não atende às demandas da prática profissional no que se refere a uma práxis efetiva, porque não relaciona a teoria com a prática e é fragmentária. De modo que deveria ser repensada para atingir uma forma integradora que articulasse os conteúdos de acordo com as áreas de conhecimento da BNCC, mais voltados às condições singulares da aprendizagem em cada etapa da educação básica.

Esse alinhamento da formação docente está fundado na matriz de competências cujo primeiro aspecto se refere ao conhecimento pessoal. Isso implica ensinar ao professor a respeito das competências e habilidades que devem ser desenvolvidas em cada etapa do processo, vinculadas às aprendizagens essenciais e às competências gerais e específicas. Isso também implica o desenvolvimento de metodologias e o uso de tecnologias e currículos determinados pela BNCC (BRASIL, 2018).

Desses movimentos de estruturação da BNCC, deriva o reposicionamento dos espaços pedagógicos, orientados pela qualificação dos alunos para que sejam bem-sucedidos e competentes nos índices de avaliação e na vida profissional. Ou seja, produtivos e úteis, retomando a educação na perspectiva positivista-moderna e ampliando o abismo entre a prática e a teoria, os discursos e as realidades. Se trata de um esvaziamento do espaço docente, na medida em que utiliza os movimentos de socialização da proposta e da discussão coletiva para validar o documento produzido, com a alegação de que ele é fruto da construção coletiva e da consideração das escutas das unidades escolares, sobretudo da escuta dos docentes e gestores:

Desse modo, afirmamos a BNCC como um antiacontecimento tanto no sentido de não refletir as Diretrizes Curriculares propostas em 2013, ou seja, desvirtuá-las em seu potencial de cooperação entre as instâncias políticas e os agentes envolvidos, como de diminuir o potencial de mundos possíveis devido à excessiva centralização de poder expressa não somente em seus princípios, mas, fundamentalmente, em sua proposta centralizadora de organização e planificação de conteúdos e competências para a Educação Básica (CARVALHO; LOURENÇO, 2018, p. 237).

Ainda a partir de Carvalho e Lourenço (2018), é possível derivar que o esvaziamento da voz docente, configurado nessa afirmação – de que a BNCC é o resultado de ampla problematização associada a uma construção coletiva –, delimita as condições e possibilidades de sua implantação verticalizada, fundada na pressuposta autoridade dos especialistas responsáveis por sua sistematização.

Enfim, o agenciamento maquínico de enunciação, que compõe a elaboração da BNCC, envolve firmas de consultoria privadas, grupos de pesquisa universitários, aparelhos midiáticos, dentre outros dispositivos que criam uma muralha semiótica contra a qual os saberes e as experiências de professores da Educação Básica são confrontados e subalternizados (quando não ignorados), retirando-lhes a capacidade e a vontade de apresentar problemas (CARVALHO; LOURENÇO, 2018, p. 241).

Além das intencionalidades aqui analisadas, também é preciso refletir sobre suas reverberações, quando problematizadas em conjunto com a realidade dos docentes. Estes que, por um lado, já se encontram socialmente desvalorizados são os responsáveis pelo cuidado da formação subjetiva e ficam sem condições para o cuidado de si e, ao mesmo tempo, do outro.

Considerações finais

Para refletir, por último, sobre a ética do cuidado de si, a partir dos resultados encontrados, considerando a percepção das próprias docentes e o processo de silenciamento proveniente da BNCC, evidenciou-se a carência de reflexão concernente ao conteúdo intrapessoal e às necessidades intrínsecas dessas profissionais que atuam diretamente no trabalho com a educação (seja por elas mesmas, seja pelo sistema vigente). Bem como sobre os elementos imateriais presentes na constituição pessoal dessas educadoras que dedicam seu tempo, quase exclusivamente, ao cuidado discente, enquanto têm sua voz silenciada por múltiplas demandas e por políticas educacionais.

Para reaver o que surgiu expresso nos textos elaborados pelas docentes, destaca-se aquilo que Foucault (2010) alertou como ausência de significação e pensamento na retomada de uma ética do eu.

Tal situação faz pensar: como constituir, hoje, essa ética, quando a relação de si para consigo como possibilidade é sufocada? Como cuidar de si sem refletir sobre um domínio externo infiltrado na própria constituição pelo controle e vigilância? Se a atuação docente contribui para os processos de formação discente, em que medida a renúncia de si interfere no relacionamento intrapessoal e ressoa no relacionamento interpessoal com os discentes?

São problemas que denotam não apenas a falta de controle da própria vida, mas a captura de corpos e mentes. E, se não há essa reflexão, diante de uma atuação docente que funciona por meio de um “controle invisível” e se estabelece no “piloto automático” para a geração de resultados quantitativos, qual é o programa do eu (docente) para o outro (discente) e, consequentemente, para o nós (sociedade)?

A necessidade do cuidado de si não como renúncia de si, mas como urgência de uma ética que se estabelece a partir do docente, com poderes para governar a própria vida, não poderia estar atrelada à falta de tempo. Esse é justamente um dos mecanismos adotados para apreender e desviar a atenção dos professores em sua atuação. Quanto mais mergulhado estiver em trabalho e atribulado em angústia e culpa, menos espaço haverá para si mesmo. Consequentemente, a rota de fuga para lidar com esses problemas é a resiliência (aceitar e superar a deformação, tentando atuar e continuar o trabalho com naturalidade) e não o cuidado de si.

Ou seja, o silenciamento se inicia, com ou sem consciência, pelo próprio docente, na relação intrapessoal, fortalecido pelas políticas públicas, em que se pronunciam “novas” condições, todavia, mantendo a mesma estrutura dos pressupostos da modernidade. Entende-se, assim, que um dos objetivos é manter o silenciamento pela captura, por meio de dispositivos de controle, que excluem o docente da reflexão sobre a própria atuação que fica engessada às normalizações e condicionada ao controle biopolítico pelos mecanismos da governamentalidade.

Então, como e quando a educação cumprirá seu papel ético, cuja missão, sinalizada por Morin, é a transmissão de estratégias para a vida? Como criar estratégias para a vida se o docente não está cuidando da sua? Não se trata de vitimizar o docente, mas de refletir, compreender e criar condições para que a ética seja esse espaço de movimento, que inicia pelo direito de cada docente de governar a própria vida. E, conjuntamente, estabelecer, por meio do ensino, condições para que a ética também seja vivenciada e debatida com os discentes. Nesse aspecto, não haveria como desarticular a atuação docente do contínuo processo de, individualmente, refletir sobre sua própria constituição docente.

Contudo, isso não acontece, de acordo com o que foi apontado pelas docentes participantes da pesquisa, em suas vidas particulares. Então, é mister repensar, urgentemente, os rumos da educação, do educador e do educando, promovendo novas pesquisas com ampliação desta amostra. Não há como separar esses vínculos da sociedade em que se vive.

Além disso, conforme mencionado, pelo entendimento de Carvalho e Lourenço (2018), há uma centralização do debate entre os especialistas como uma espécie de “monopólio da problematização” dos experts e da retirada da efetiva participação dos professores, por meio das intenções biopolíticas implícitas nos textos da BNCC.

Nesse sentido, é preciso refletir sobre as intencionalidades desse silenciamento docente sob três aspectos: primeiro, esvaziar a voz docente, em uma realidade tão carente de educação e ética que conduz ao rebaixamento da formação crítica e da fundação da resistência, porque o processo, que deveria ser responsável pela subjetivação, se torna assujeitamento. Segundo, emudecer o docente por meio de sua desvalorização social, que acaba sem nada ter a dizer sobre o que já está posto, a fim de manter a educação como um dispositivo de manejo social eficiente dentro da visão mercantilista-neoliberal. Isso reforça a necessidade de um formador de “empreendedores”. E, em terceiro lugar, silenciar a experiência ética do docente à medida que mantém uma visão instrumental-positivista e moderna de educação, em que cabe ao professor reproduzir, transmitir e capacitar, além de não se relacionar e constituir a complexidade das relações pedagógico-contemporâneas.

A voz docente foi, intencionalmente, silenciada para que se pudesse estabelecer um discurso específico sobre a formação docente, alinhado e fundado na BNCC, mas que não comprometesse a reformulação curricular. Ao contrário, essa voz deveria legitimar o lugar de preparação dos professores para a conclusão dessa proposta. O lugar de fala deixou de ser o professor, se justifica pelas demandas sociais e mercadológicas às quais os processos de sua formação precisam atender. A resolução do CNE, que fundamenta a Proposta para Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica, não determina apenas o que o professor tem que saber, mas também o como, o porquê e o que deve ensinar e aponta, como novo movimento, o foco para as condições e preparações para a aprendizagem e não para o ensino.

No contexto da biopolítica da governamentalidade, o assujeitamento pode, também, abrir a possibilidade para agir sobre si mesmo, embora os espaços sejam mínimos, com um engessamento cada vez maior exercido pelas relações de poder. Entende-se que existem “ranhuras” nos mínimos espaços, e são por essas – mesmo que mínimas – que se abrem as possibilidades para pesquisas, reflexões e ações de pequenos grupos de docentes dispostos a repensar, resistir e adotar estratégias contra o empreendedorismo de si e a favor do cuidado de si – não apenas do outro, mas do si docente –, evitando a desconfiguração do educador em sua atuação.

Nessa perspectiva, ao reunir a necessidade do cuidado de si – como um alerta de Foucault para uma ética do eu – e a visão sobre o sentido da educação –pela perspectiva de Morin, mais aberta para a vida, ressaltamos que não se pode tirar o domínio de si mesmo do docente; não se pode aprisionar a existência do docente e, consequentemente, a existência dos discentes e da sociedade. Ressonâncias e espaços éticos existem, integram-se e resistem em prol da vida.

Notas

1A participação docente ocorreu espontaneamente, por meio de convite. Apenas professoras da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, de diferentes escolas do ensino médio, se inscreveram. Foram preservados as características e os perfis para manter sigilo e evitar exposição, conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado no encontro.

2A governamentalidade situa-se “[...] no encontro entre as técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si [...]” (FOUCAULT, 2006, p. 785), indicando que a arte de governar está articulada à forma de governar a população, de modo coletivo, e às subjetividades, de modo individual.

3Não se faz referência à noção do conhece-te a ti mesmo, abordada por Sócrates e revisitada por Foucault. O conhecer, aqui, está relacionado à integração do humano no processo de se reconhecer como parte da ciência e dos saberes produzidos no contexto do universo e do Planeta.

4Após apresentar a estrutura e a organização da BNCC, a partir de sua segunda versão, destacamos apenas os pontos de divergência da versão final ou da terceira versão, por entender que os pontos comuns já foram devidamente tratados no texto.

5Em 2019, foi publicada a BNCC com a inclusão da etapa do ensino médio e o acréscimo de 120 páginas, novamente considerada a versão final.

6Ressalta-se que, embora o discurso oficial considere três versões da Base, existem documentos de acesso público disponibilizados, referentes a duas versões (2ª e 3ª). Após três anos de pesquisa, em relação à primeira versão, foram encontrados relatos e alusões sobre um documento que não está acessível e do qual não se tem registros, a não ser de forma indireta por citações no portal da Base.

7As citações, referenciadas como apud SANTOS, foram compiladas a partir de entrevistas sistematizadas por João Vitor dos Santos (2017).

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Recebido: 08 de Junho de 2020; Aceito: 10 de Julho de 2020

Profa. Ms. Cláudia Soave

Universidade de Caxias do Sul (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação, Linha História e Filosofia da Educação

Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Linha Ética Aplicada

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul

Grupo de Pesquisa Formação Cultural, Hermenêutica e Educação da Serra Gaúcha – GPFORMA-SERRA

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-9887-5179

E-mail: claudia.soave@bento.ifrs.edu.br

Profa. Dra. Simone Corte Real Barbieri

Universidade de Caxias do Sul (Brasil)

Linha História e Filosofia da Educação

Grupo de Pesquisa Formação Cultural, Hermenêutica e Educação da Serra Gaúcha - GPFORMA-SERRA

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-4845-7603

E-mail: scrbarbi@ucs.br

Prof. Dr. Geraldo Antonio da Rosa

Universidade de Caxias do Sul (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Linha História e Filosofia da Educação

Grupo de Pesquisa Formação Cultural, Hermenêutica e Educação da Serra Gaúcha – GPFORMA-SERRA

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-1193-7910

E-mail: garosa6@ucs.br

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