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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.56 Natal abr./june 2020  Epub 11-Ago-2021

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n56id21291 

Artigos

Para além da racionalidade neoliberal: o comum e a práxis instituinte como princípios ético-formativos

Beyond neoliberal rationality: the common and the instituting praxis as ethical-formative principles

Más allá de la racionalidad neoliberal: lo común y la praxis instituyente como principios ético-formativos

1Universidade de Passo Fundo (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação

2Universidade Federal de Mato Grosso (Brasil), Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação


Resumo

O presente texto toma como referência os estudos de Pierre Dardot e Christian Laval para explorar o tema da formação humana, situando-o para além dos limites da racionalidade neoliberal que impregna o atual cenário das sociedades ocidentais. Num primeiro passo, procura-se mostrar como o neoliberalismo vincula um tipo de racionalidade singular e uma concepção atomizada de sujeito. Na sequência, indica-se que a ele está associada uma visão individualista de ética e uma noção usurpada de formação. Por fim, apresenta-se o princípio político do comum e o conceito de práxis instituinte concebendo-os em sentido ético-formativo. Defende-se que o princípio do comum pode ser postulado como princípio formativo e de justiça, além de ajudar a pensar o sujeito sob uma perspectiva crítica à subjetivação neoliberal. Do mesmo modo, sustenta-se que a práxis instituinte implica uma práxis intrinsecamente formativa na medida em que autoproduz os sujeitos no curso da própria ação, requerendo-lhes o efetivo envolvimento no estabelecimento das regras de seu funcionamento e na corresponsabilização por elas.

Palavras-chave: Racionalidade neoliberal; Formação; Comum; Práxis instituinte

Abstract

this text takes as reference the studies of Pierre Dardot and Christian Laval to explore the theme of human formation situated beyond the limits of neoliberal rationality that permeates the current scenario of Western societies. In a first step, we seek to show how neoliberalism links a type of singular rationality and an atomized conception of the subject. In the sequence, is indicated that it is associated with an individualistic view of ethics and a misused notion of formation. Finally, the political principle of the common and the concept of instituting praxis are presented, conceiving them in an ethical-formative sense. It is argued that the principle of the common can be postulated as a formative and justice principle, in addition to helping to think the subject from a critical perspective to neoliberal subjectivation. Likewise, it is argued that the instituting praxis implies an intrinsically formative praxis as it self-produces the subjects in the course of their own action, requiring them to be effectively involved in establishing the rules of their functioning and co-responsibility for them.

Keywords: Neoliberal rationality; Formation; Common; Instituting praxis

Resumen

El presente texto utiliza como referencia los estudios de Pierre Dardot y Christian Laval para investigar el tema de la formación humana situada más allá de los límites de la racionalidad neoliberal que influye en la actual escena de las sociedades occidentales. En un primer paso, se busca enseñar como el neoliberalismo vincula un tipo de racionalidad singular y una concepción atomizada de sujeto. Después, se indica que a él está asociada una visión individualista de ética y una noción usurpada de formación. Por fin, se presenta el principio político de lo común y el concepto de praxis instituyente en un sentido ético-formativo. Se defiende que el principio del común puede ser postulado como principio formativo y de justicia, más allá de ayudar a pensar el sujeto bajo una perspectiva critica a la subjetivación neoliberal. Del mismo modo, argumentamos que la praxis instituyente implica una praxis intrínsecamente formativa en la medida que autoproduce los sujetos en el curso de la propia acción requiriendo de esos el efectivo envolvimiento en el establecimiento de las reglas de su funcionamiento y en la co--responsabilización por ellas.

Palabras clave: Racionalidad neoliberal; Formación; Común; Praxis instituyente

Introdução

Na metade do século passado, ainda sob o impacto estarrecedor das experiências totalitárias vividas na Europa, Hannah Arendt (1991) apropria--se da expressão “tempos sombrios”, originalmente de Brecht, para traduzir o espírito daquela época. Sete décadas passaram-se e o mundo enreda-se novamente em perigosas sombras que se julgava terem ficado para trás. Vivemos tempos e contextos que, na expressão de Christian Laval, configuram-se cada vez mais na forma de um “neoliberalismo hiperautoritário”. Em sua versão neoliberal, o capitalismo cria mecanismos para tentar impedir mudanças de sua trajetória, assujeita os indivíduos, assim como os indivíduos a ele se assujeitam; mina a cidadania, alastra brutalmente a desigualdade social, privatiza direitos, espezinha valores constitucionais, esvazia a democracia e busca neutralizar a própria capacidade de resistir e de agir contra ele. O neoliberalismo, tal qual a definição que tomamos aqui de Dardot e Laval (2016), inspirada em Foucault, mais do que um modelo econômico e uma representação ideológica, configura-se como uma racionalidade ou uma normatividade prática. Ele não possui apenas um caráter destrutivo de direitos e instituições, mas também produz determinado tipo de relações sociais, formas de vida e subjetividades.

Para além da racionalidade neoliberal: o comum e a práxis instituinte como princípios ético-formativos

Todavia, se o neoliberalismo vincula tão poderosamente uma tal racionalidade de modo a abarcar uma concepção de homem, de ética e de formação, é possível postular-se uma outra racionalidade para além de seu horizonte assujeitador? Ou teríamos de dar razão a Jean-Claude Michéa (2007, p. 55) ao perguntar: “Acaso não é o mercado quem monopoliza agora o direito de ensinar a todos os humanos, começando pelas crianças, o que podem saber e o que lhes é permitido esperar?.” Entendemos que o recurso à obra de Dardot e Laval, através da retomada do princípio político do comum e da concepção de práxis instituinte, fornece-nos perspectivas produtivas a esse respeito. No presente texto, pretendemos mostrar que o neoliberalismo vincula uma concepção de sujeito e de ética e a esta última associa uma ideia usurpada de formação. Argumentamos que o princípio político do comum e o conceito de práxis instituinte, lidos em sentido ético-formativo, podem ser apresentados como aspectos de uma racionalidade e de uma concepção de formação alternativas ao modelo neoliberal.

No primeiro passo para tal, argumentamos que a racionalidade neoliberal, enquanto normatividade que é, almeja a produção de uma subjetividade consoante com ela (1). Disso decorre que o mecanismo de transferência da responsabilidade para o indivíduo, que aparenta ser natural e é interpretado como escolha de vida, tem como base uma ética individualista associada à ascese do desempenho e a uma usurpação da ideia clássica de formação (2). Por fim, com base em Dardot e Laval, retomamos, a partir de uma chave ético-formativa, o princípio do comum e o conceito de práxis instituinte, inter-pretando-os como forma de contraposição à racionalidade neoliberal em sua concepção atomizada de sujeito, sua ética individualista e sua concepção usurpada de formação (3).

Racionalidade econômica e constituição do sujeito neoliberal

Dardot e Laval (2016) constatam que o neoliberalismo transformou em profundidade o capitalismo ao mesmo tempo em que modificou drasticamente a fisionomia das sociedades contemporâneas. Reorganizando-se em novas bases, instaurou a concorrência generalizada como seu núcleo, envolvendo com ela não apenas as atividades econômicas, mas também as relações sociais e a própria esfera da subjetividade. O fato é que o neoliberalismo não se constitui apenas em uma ideologia, em um sistema político ou em um modelo econômico, como a primeira vista poderia ser entendido, mas, e aí reside sua novidade, configura-se, antes de tudo, como um sistema normativo, uma racionalidade, de modo a estender sua influência ao mundo todo, imprimindo a lógica do capital não apenas às relações sociais, mas também a todas as esferas da vida humana e, sempre que possível, até ao mais íntimo dela.

Trata-se de um sistema de normas que opera não apenas de acordo com a lógica crescente de acumulação de capital, mas, sobretudo, em termos de práticas e de comportamentos. Enquanto sistema de regras de ação que é, atua de modo a expandir a lógica de mercado para fora da esfera mercantil. A racionalidade empresarial neoliberal saiu do âmbito da esfera privada para difundir-se em vários domínios da vida social e da esfera política, de maneira a pretender moldar tanto a sociedade quanto o indivíduo (Dardot; Laval, 2016a). O neoliberalismo precisa domesticar os corpos, conquistar as almas e fazer com que estas, de bom grado, entreguem-se a ele, a exemplo do adágio latino sobre a força do destino, referido por Sêneca (2004, p. 590; 107, 11, 5): “Ducunt volentem fata, nolentem trahunt” – “[...] o destino conduz docemente os que a ele se entregam e arrasta os que a ele resistem”. Mediante um discurso que valoriza a liberdade, a autonomia e a responsabilidade (conceitos ressignificados e neutralizados em seu sentido emancipador), os dirigentes no novo capitalismo pretendem orientar e controlar a subjetividade de modo que os sujeitos adiram voluntariamente à sua própria sujeição.

No final dos anos setenta do século passado, Foucault já alertara que a governamentalidade neoliberal, diferentemente da governamentalidade moderna – marcadamente disciplinadora dos corpos via instituições –, envolve uma disciplina interna perante uma forma específica de governar os seres humanos. O filósofo mostrara com seus estudos haver uma mudança profunda do neoliberalismo em relação ao liberalismo, na medida em que, na sociedade de mercado neoliberal, o seu princípio regulador não se assenta tanto na troca das mercadorias quanto nos mecanismos da concorrência. No neoliberalismo, “[...] o que se procura obter, ressalta Foucault, não é uma sociedade submetida ao efeito-mercadoria, é uma sociedade submetida à dinâmica concorrencial” (2008a, p. 201). Se o liberalismo clássico se assentava na lógica da troca, o neoliberalismo ancora-se na lógica da concorrência. Neste sentido, a forma-empresa é a tônica e, a constituição de uma sociedade empresarial, seu fim. Consoante com ela, o homo oeconomicus visado pelo neoliberalismo não é o da troca, nem o homem consumidor, mas o homem da empresa e da produção. Foucault mostrara que o escopo da política neoliberal é a multiplicação em larga escala da forma-empresa no interior do corpo social.

O que marca a racionalidade do neoliberalismo é, pois, o esforço em moldar toda a sociedade de acordo com a lógica reducionista do mercado e a homogenização do discurso sobre o homem em torno dessa mesma lógica. Para que a forma empresa possa difundir-se pelo conjunto da sociedade é necessário que a própria vida individual seja percebida por cada um dos sujeitos como um tipo específico de capital, justamente o “capital humano”. Por essa ótica, o status desse sujeito passa a abarcar ao mesmo tempo um capital e uma renda. Como destaca Foucault (2008a, p.308), “[...] decomposto do ponto de vista do trabalhador, em termos econômicos, o trabalho comporta um capital, isto é, uma aptidão, uma competência [...]. E por outro lado é uma renda, isto é, um salário ou, melhor ainda, um conjunto de salários [...]”. Por esse prisma, o indivíduo e o capital já não são exteriores um ao outro. Ao contrário, salienta Gadelha,

[...] as competências, as habilidades e as aptidões de um indivíduo qualquer constituem, elas mesmas, pelo menos virtualmente e relativamente independente da classe social a que ele pertence, seu capital; mais do que isso, é esse mesmo indivíduo que se vê induzido, sob essa lógica, a tomar a si mesmo como um capital (GADELHA, 2009, p.177).

A racionalidade neoliberal visa governar uma subjetividade inteiramente envolvida na atividade esperada dela e, para a constituição desse novo sujeito, é fundamental que ele se empenhe e trabalhe para a empresa como se trabalhasse para si mesmo. Esse mecanismo visa fazer com que a distância e as fronteiras do eu e da empresa desfaçam-se. O discurso dessa racionalidade pretensamente onipresente articula uma definição de homem consoante a ela. Trata-se do sujeito ativo, autônomo, responsável, flexível e calculador; não se almeja mais alguém empenhado em transformar o mundo, mas em mudar a si próprio, um sujeito em condições de controlar tudo, do meio familiar, profissional e social às emoções e reações próprias e dos demais sujeitos. Esse sujeito, dono de si mesmo, autossuficiente e para o qual tudo o que aspira tem de ser possível, necessita suplantar o princípio de realidade na medida em que precisa negar qualquer forma de dependência em relação aos outros. Os “outros” são considerados obstáculos quando afrontam a possibilidade do gozo e, ao mesmo tempo, objeto de projeções e ansiedades na tentativa de elaborar as frustrações a partir de padrões de pensamento que remetem à primeira infância (CASARA, 2018b). Esse sujeito já não deve ter apegos nem necessidade dos demais, uma vez que isso seria sinônimo de fraqueza e de incapacidade pessoal (MARZANO, 2011).

O cidadão investido de uma responsabilidade coletiva retrocede dando lugar ao homo oeconomicus na forma atomizada do homem empreendedor, empresário de si mesmo. A novidade presente no cerne da racionalidade que produz o sujeito neoliberal consiste, pois, em produzir sujeitos empreendedores. A concorrência, elevada a princípio fundamental de tal racionalidade, possibilita colocar no centro da vida social justamente essa figura do homo oeconomicus (LAVAL, 2007). Há, também, a neutralização do político, isto é, a transformação do “conflito”, inerentemente político, para o “conflito”, termo supostamente neutro, que desloca as lutas para a arena eco-nômica (MONEDERO, 2012). A racionalidade neoliberal organiza os meios de governar o sujeito e de este autogovernar-se segundo a lógica da competição e da maximização dos resultados. O mercado é o construtor desse homem empresário de si mesmo, agente econômico que deve responder-lhe melhorando continuamente a si mesmo (bioascese). O governo neoliberal busca levar os indivíduos a imprimirem às suas vidas a forma empreendedora, estimulando a “autodeterminação” e a “autonomia”, cobrando em contrapartida que assumam a responsabilidade tanto por suas iniciativas quanto por seus fracassos.

Por sua vez, os sujeitos empreendedores se encarregarão de reproduzir, reforçar e ampliar a competição entre eles, o que demandará a adaptação às condições cada vez mais exigentes que eles próprios produziram. Dentro dessa perspectiva, a empresa não aparece mais como lugar de realização pessoal ou com a feição de uma comunidade, como antes se postulava, mas como um instrumento e um espaço de competição. Dessa compreensão, decorre um sujeito que necessita ser moldado por meio de um trabalho interior permanente sobre si, mesmo de modo a estar aberto, modificar-se constantemente, aprender continuamente, ser flexível às mudanças, mostrar-se evoluído no trabalho e sobreviver no cenário de competição e pressão a que está submetido. Trata-se de um sujeito que deve ser capaz de inventar-se e de tornar-se empreendedor de si mesmo, uma vez que a racionalidade neoliberal impele-o a agir sobre si, visando fortalecer-se e sobreviver na competição, assim como a trabalhar sobre si mesmo para transformar-se continuamente, aprimorar-se e tornar-se sempre mais eficaz. Esse sujeito precisa assumir a forma de um capital humano, o mais maleável possível e, ao mesmo tempo, completamente comprometido com seu trabalho e a empresa.

A constituição desse sujeito demanda uma “formação”. Neste sentido, o sujeito flexível do neoliberalismo necessita realizar sobre si um aprimoramento constante, um desenvolvimento pessoal que visa melhorar seu desempenho e seus resultados de forma incessante, por intermédio de estratégias como a formação para toda a vida (long life training) e a empregabilidade. É esse fator que permite compreender o grande interesse sempre manifestado pela teoria do capital humano em relação à educação. Pela ótica da primeira, esta última deveria funcionar como investimento e sua acumulação possibilitaria tanto o aumento da produtividade do indivíduo quanto à maximização de seus rendimentos ao longo da vida, assim como configurar determinadas maneiras de ser.

A ética neoliberal e a ascese do desempenho: a formação usurpada

A concepção individualista do neoliberalismo, cada vez mais difundida e arraigada na forma de senso comum, opera com a ideia de que o indivíduo, enquanto homo oeconomicus, define-se de modo completamente independente dos demais e como se deles em nada dependesse, imaginando ser possível “viver juntos sem o outro”, não devendo nada a ninguém (LEBRUN, 2008). Trata-se de um indivíduo atomizado, livre para exercitar seus desejos e interesses particulares – argumento que fundamenta a relativização e mercantilização dos direitos e garantias fundamentais (CASARA, 2018b). A sociedade apresenta-se para ele como um estorvo ou potencial risco para tal exercício e qualquer intervenção do estado, na forma de distribuição de renda ou de garantia de direitos sociais, representaria uma ameaça a tais interesses. O indivíduo, imbuído dessa ideia simplória e da ideologia do self-help, que o faz imaginar estar no controle da sua vida e de que seu êxito depende apenas de si mesmo, desenvolve um falso senso de independência em relação à sociedade, a valores universalmente desejáveis – como a democracia, a justiça social e a solidariedade – e aos outros indivíduos. Tal ideologia destrói os vínculos sociais e, portanto, o sentido de reciprocidade entre os sujeitos.

Podemos ver, nessa formulação, reflexos claros daquilo que Macpherson (1979), estudando o individualismo característico da teoria e prática política do século XVII, denominou de “individualismo possessivo”. A peculiaridade deste residia na sua concepção de indivíduo tomado como separado do todo social e, ao mesmo tempo, como proprietário de sua própria pessoa e de suas capacidades sem nada dever à sociedade por elas. Em um mundo em que os cidadãos são reduzidos à condição de clientes, cada um pode pretender comprar o que quiser na medida em que tudo está à venda, do estilo de vida a pessoas e direitos.

Podemos conceber, tomando por referência a tematização de Pinzani (2016, p. 382) sobre a ética neoliberal, que o cerne desta reside na “[...] passagem de um modelo ideológico a outro, de uma visão centrada nas noções de direitos e cidadania para uma visão centrada nas noções de responsabilidade e performance individual”. Obviamente, isso é possível quando os indivíduos aceitam de bom grado a redução de seus direitos sociais a direitos de consumidor. Essa proeza só é factível quando se acham livres para levarem adiante seus objetivos sem obstáculos para limitar suas escolhas, para entenderem os próprios fracassos como incompetência individual e a não perceberem tal redução de direitos – inclusive os seus – como expressão de uma injustiça social. O nó górdio da questão é, pois, a redução de direitos sociais, como a educação, a direito individual, e sua aceitação de tal situação pelo cidadão reduzido a cliente.

Para Dardot e Laval (2016, p. 91), inspirados em Foucault, a grande inovação do neoliberalismo consiste em vincular diretamente o modo como um indivíduo é governado à maneira como ele deve governar a si mesmo. Trata-se, na expressão forte dos autores, de “mudar o próprio homem”, uma vez que este deve ser capaz de adaptar-se permanentemente para assegurar a harmonia entre o modo como vive e pensa e os condicionamentos econômicos a que tem de submeter-se. A novidade reside em produzir sujeitos empreendedores que reforçarão e reproduzirão as relações de competição entre eles e que deverão adaptar-se às condições cada vez mais exigentes e assujeitadoras que eles mesmos produziram. Foucault cunhara o termo governamentalidade justamente para expressar o ponto de contato entre as técnicas de dominação – o modo como os indivíduos são governados por outros – e as técnicas de si ou práticas de subjetivação, mediante as quais o sujeito age sobre si mesmo. A seu juízo, no governar pessoas, “[...] sempre há um equilíbrio, mesmo que versátil, complementar e conflituoso, entre as técnicas que asseguram a coerção e os processos mediante os quais o si mesmo se constrói ou se modifica por sua própria obra” (FOUCAULT, 2016, p. 45).

A lógica da empresa define uma nova ética ao estabelecer uma estreita relação entre o governo de si e o governo das sociedades. Essa nova ética assenta-se em uma determinada disposição interior, um ethos que implica um trabalho de vigilância sobre si mesmo e que é reforçado por procedimentos de avaliação e autoavaliação. O primeiro mandamento dessa ética assentada no “governo de si” moldado pela interiorização das regras de funcionamento da empresa é o “ajuda-te a ti mesmo” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 332). Para tal, tem de constituir-se em uma empresa de si mesmo ao convertê-la em um modo de vida, desenvolver a capacidade de ser empreendedor de sua própria vida e conceber-se e comportar-se em todas as dimensões dela como um capital que deve valorizar-se permanentemente. Por sua vez, o mercado é concebido como “um processo de formação de si”, na medida em que o espírito empreendedor deve não apenas visar à maximização do lucro, mas também descobrir e detectar permanentemente novas oportunidades para si, assim como ser flexível, aprender sempre e adaptar-se permanentemente. Neste sentido, apenas no jogo do mercado, é possível ao sujeito educar-se para governar-se como empreendedor.

No capitalismo de outrora, a ética da empresa convertia o trabalho em meio de realização pessoal. A nova ética do trabalho, diferentemente, sustenta-se na ideia de que a conjunção entre as aspirações do indivíduo e os objetivos da empresa somente é plausível se cada indivíduo converter-se em uma pequena empresa de modo a integrar a vida pessoal e a vida profissional como uma mesma coisa. A empresa converte-se em um espaço de realização pessoal e a “formação” desse sujeito empresário de si mesmo abrangeria tudo, de experiências, instrução e contatos até sua energia, saúde, carteira de clientes, rendimentos e bens (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 336). Na linha da usurpação da ideia clássica de formação, temos uma redefinição da ideia de domínio de si, que não implicaria mais levar a vida com certa disciplina, coerência e retidão de caráter, mas em ser capaz de flexibilidade e empreendedorismo. Desse modo, cada indivíduo deveria aprender a ser ativo e autônomo na e pela ação que deve operar sobre si mesmo. É evidente que o sentido de autonomia assume aqui um caráter paradoxal por assentar-se na mais pura heteronomia.

Como a ética neoliberal do eu envolve técnicas de ascese do desempenho que visam trabalhá-lo de modo a facilitar que se transforme em “ator” de sua vida, a vida na empresa ou a vida de empresário de si mesmo é considerada como uma “formação”. Essa ética neoliberal sustenta-se em exercícios levados adiante de acordo com diferentes técnicas. O objetivo delas é, em última instância, adaptar o sujeito às condições que ele próprio ajuda a criar. Trata-se de um sujeito que tem de trabalhar a si, realizar a si e responsabilizar--se por si mesmo para tornar-se mais produtivo e assumir o peso da competição na economia globalizada que o envolve. Meios para isso não faltam. É o caso do coaching, da literatura de autoajuda e da programação neurolinguística (PNL). Trata-se, por intermédio deles, de obter um melhor domínio de si, das emoções, do estresse, das angústias e das relações com clientes ou colaboradores. O modelo de homem que lhes subjaz é, por um lado, fictício, por defender ser possível controlar o mundo, mudar o comportamento e a visão de mundo pessoal graças à própria vontade. Além disso, por outro lado, é extremamente simplista, caricaturado, por tomar desejos por realidade e por reduzir o indivíduo a uma espécie de máquina que, quando mal sucedido ou fracassado, é capaz de ser desprogramado e reprogramado, situação em que o sujeito, acreditando agir para si mesmo e para seu bem estar, converte-se em responsável por sua “servidão voluntária por manipulação” (MARZANO, 2011, p. 209). O conjunto de técnicas ou procedimentos que visam ao fortalecimento e à adaptação do eu a essa realidade é sustentado na pragmática da eficácia comunicacional e no desenvolvimento pessoal.

Em última instância, essa ética assujeitadora postula um modo de vida. Para alcançá-lo, os indivíduos são encorajados a imprimir a suas vidas uma forma empreendedora. Não se ocupar com o passado – daí o risco de presentismo – e focar-se em relações eficazes com os outros é a tônica. Trata-se de um eu produtivo concentrado no presente, na exigência cada vez maior de si mesmo, cuja eficácia é vista como residindo completamente em si mesmo e não mais em uma autoridade externa. Essa ética da ascese do desempenho é, todavia, falaciosa, pois usurpa e deturpa o cuidado de si. Ocorre que a ascese da empresa de si mesmo acaba resultando na identificação do sujeito com a empresa e produzindo o sujeito do "envolvimento total”, um “sujeito assujeitado”, completamente distinto daquele do cuidado de si postulado pela tradição, o qual, em Foucault (2004), requer o estabelecimento de uma necessária distância ética em relação a si mesmo que constitui ao mesmo tempo uma determinada distância em relação a todo e qualquer papel e instituição social. Algo, pois, muito distinto do envolvimento total que solicita uma completa fusão do sujeito à lógica da empresa. Como referimos anteriormente, nessa ética, o indivíduo é o único responsável por aquilo que lhe acontece, inclusive pelo seu eventual fracasso. O trabalho de si, visando a um inalcançável domínio de si, é o contraponto de uma ordem global incontrolável. Todavia, cabe perguntar: Que perspectiva resta para além dessa ética neoliberal e a ideia usurpada de formação que a acompanha?

Por uma racionalidade alternativa à neoliberal: a dimensão ético-formativa do princípio do comum e da práxis instituinte

Vimos anteriormente que a racionalidade do capitalismo neoliberal não é de tipo estritamente econômico, pois configura-se mediante um sistema de normas instaurado, através de sua interiorização, e que ela demanda uma visão atomista e assujeitadora do ser humano, assim como uma ética e uma noção de formação. Na linha do que propõem os nossos autores, um dos caminhos viáveis para fazer frente à racionalidade neoliberal é promover formas de subjetivação alternativas a tal racionalidade calcada no modelo de empresa de si. Neste sentido, não é possível sair de uma racionalidade ou de um dispositivo como o neoliberal mediante uma simples mudança de política governamental. Trata-se de algo bem mais profundo. Isso se deve em razão de que “[...] a questão do governo enquanto instituição é secundária em relação à questão do governo como atividade que estabelece uma relação consigo mesmo e, ao mesmo tempo, uma relação com os outros” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 397, grifos dos autores).

Na linha da tradição que remonta a Foucault e a Marx, o sujeito é concebido como algo ou alguém historicamente situado e que está sempre por se construir, assim posto, a questão central concerne à forma de articular subjetivação e resistência à dominação. Trata-se, fundamentalmente, de identificar formas de práticas e de subjetivação alternativas ao neoliberalismo, de modo a levarem a uma transformação em instituições centrais da sociedade por meio da própria sociedade. Neste sentido, com base em Dardot e Laval, retomamos articuladamente dois aspectos como forma de contraposição à racionalidade neoliberal – sua concepção de sujeito, sua ética e sua visão de formação –, a saber, o princípio do comum (a) e o conceito, de origem marxiana, de práxis instituinte (b).

(a) O comum como princípio político, formativo e de justiça

Inspirados em Marx e Foucault, Dardot e Laval lembram que superar a governamentalidade neoliberal somente é possível pela promoção de uma outra racionalidade. Para abrir perspectivas para tal, o governo dos homens tem de alinhar-se a horizontes que ultrapassem tanto o domínio pretensamente universal do mercado e da lógica da concorrência quanto o modelo burocrático estatal de propriedade. O governo dos homens pode então sustentar-se num governo de si mesmo, que leve a um tipo de relações com os outros para além daquelas assentadas na concorrência entre sujeitos atomizados. Os autores denominam essa razão alternativa (política), focada na comunização do saber, na assistência mútua, no trabalho cooperativo e na possibilidade de reinstituição democrática da sociedade, de razão do comum. Essa razão alternativa à razão neoliberal somente é possível diante do fomento de uma práxis instituinte. Ocorre que, como reconhecem os autores, apenas a referência a contracondutas não é suficiente para fazer frente à razão neoliberal e, acrescentaríamos, a sua ética e seu sentido usurpado de formação. A razão para tal é que “[...] com a razão neoliberal, confrontamos uma [...] estrutura social total [...]” e não apenas um modelo de estado ou de economia (DARDOT E LAVAL, 2017, p. 614).

Como então o princípio do comum pode ser postulado como princípio formativo e de justiça e ajudar a pensar o sujeito sob uma perspectiva crítica à subjetivação neoliberal? Dardot e Laval (2017, p. 616) formulam o comum como princípio político no sentido de este ser “[...] atividade de deliberação pela qual os homens se esforçam para determinar juntos o que é justo, bem como a decisão e a ação decorrentes dessa atividade coletiva”. O comum diz respeito a uma retomada coletiva e democrática de recursos e espaços dominados pela lógica do capital e, ao mesmo tempo, trata-se de uma práxis de criação, embora não se trate de uma criação absoluta (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 466). O comum não se confunde com o bem comum, pois é princípio de ação, não bem. Não há nada que possa ser definido como comum em si mesmo ou por natureza, pois somente as práticas coletivas é que podem decidir o caráter comum de uma coisa ou de um conjunto de coisas. Os “comuns de”, a exemplo dos comuns de conhecimento ou dos comuns hídricos, distinguem-se dos considerados bens comuns.

Dardot e Laval (2017, p. 26, grifos dos autores) vão, pois, definir o comum não como “bem comum“ , mas como ato ou “[...] fruto de um ‘pôr em comum‘ que pressupõe sempre reciprocidade entre os que participam de uma atividade ou compartilham um modo de vida”. Sua feição expressa uma profunda contraposição ao princípio da concorrência generalizada próprio à racionalidade neoliberal, enquanto norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação por excelência. A nosso ver, o comum pode ser pensado não apenas como princípio político, mas também como princípio formativo e de justiça na medida em que demanda um outro tipo de atitude em relação aos outros, às coisas e a si mesmo. O comum é considerado pelos autores como princípio de transformação do social. O usuário de um comum vincula-se aos outros usuários desse mesmo comum frente à coprodução das regras que determinam o uso comum. A ênfase é deslocada da esfera da economia para a da práxis humana em um sentido ético e formativo. Sob esse prisma, a atividade humana é sempre “[...] co-atividade e coobrigação, cooperação e reciprocidade” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 55), o que sugere características de uma ética muito distinta da neoliberal. O comum pode ser estendido a todas as esferas da práxis humana, inclusive a educacional.

O princípio do comum é ousado por exigir muito mais do que a proteção de bens fundamentais para assegurar a sobrevivência humana; trata-se de mudar profundamente as relações econômicas e a própria sociedade implicando uma outra forma de ver o mundo. Pensar o comum, como princípio de justiça, implica assentá-lo no direito de uso, ao invés de no direito de propriedade. O comum é deslocado da ordem da propriedade, seja ela coletiva (socialização dos bens de produção), seja privada (restrito à posse de um bem por alguém), para a ordem do uso. O comum concerne ao inapropriável – ao que não pertence a ninguém – no sentido de que “[...] há apenas comuns, e não coisas comuns” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 506). Os autores logram observar que inapropriável não é aquilo a que ninguém pode apropriar-se, mas “[...] aquilo do qual ninguém deve se apropriar” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 619-620, grifo dos autores). O governo do comum impõe um exigente e duplo dever: “[...] dever negativo de não atentar contra o direito dos outros usuários e dever positivo de conservar a coisa sob responsabilidade coletiva” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 505). Por isso, o dever de conservar o comum decorre da coobrigação que une os que estão envolvidos com ele. De acordo com o princípio do comum, argumentam Dardot e Laval (2017, p. 485), “[...] o único mundo humano desejável é o que se funda explícita e conscientemente no agir comum, fonte dos direitos e das obrigações, intimamente ligado ao que, desde os gregos, denominamos justiça e amizade”.

(b) O comum e a práxis instituinte

O comum é um princípio exigente e demanda, para sua operacionalização, uma práxis de tipo instituinte, que, a nosso ver, tem um sentido profundamente formativo na medida em que requer o efetivo envolvimento dos sujeitos no estabelecimento das regras de seu funcionamento e na co-responsabilização por elas. Em última instância, o uso, sob a égide do comum, implica o envolvimento efetivo, a deliberação e a determinação coletiva de sua destinação. Conforme ponderam os autores, “não basta dizermos que uso é “[...] direito de se servir de uma coisa de acordo com a sua destinação”; cumpre afirmar que, para ser verdadeiramente comum, o uso deve implicar que os próprios interessados deliberem e determinem coletivamente essa destinação” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 505, grifos dos autores). Destarte, cada comum, para ser instituído, requer uma prática que abra espaço para a definição das regras de seu funcionamento. Mais do que isso, essa instituição das regras não pode limitar-se ao ato de estabelecimento delas, mas deve ter continuidade para além do ato de criação do comum (DARDOT E LAVAL, 2017). Portanto, tal instituição deve ser sustentada ao longo do tempo por uma prática que possa, sempre que necessário, modificar as regras estabelecidas por essa prática, a práxis instituinte, de modo que não se esclerose ou se reifique.

A prática de governo dos comuns deve ser vivificada permanentemente pelos coletivos que lhe dão vida. Para fazer frente ao risco da “paralisação do instituinte no instituído” é necessário retomar os dois sentidos fundamentais da práxis instituinte: o estabelecimento de novas regras a partir do já instituído e a renovação da práxis mediante uma atividade instituinte contínua. Trata-se, de um lado, de “estabelecer novas regras que retrospectivamente deem a essa herança um sentido que ela não podia ter antes” e, de outro, de “[...] fazer vir à tona a necessidade absoluta de uma atividade instituinte contínua, para além do limiar do ato inaugural, portanto à maneira de uma “instituição continuada” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 471, grifos dos autores).

Por ser práxis instituinte, a práxis tem de estar constantemente atenta e reinventando-se para evitar a “paralisação do instituinte no instituído”, uma vez que há sempre uma tendência à autonomização do instituido em relação ao instituinte. Por conseguinte, ela necessita, desde o começo, antecipar conscientemente a necessidade de modificar e reinventar o instituído para que funcione melhor ao longo do tempo. Tal práxis demanda um esforço exigente, pois não basta o estabelecimento de um novo sistema de regras nem o empenho em evitar a inércia do instituinte no instituído. Trata-se, sobretudo, de antecipar conscientemente, de reinventar permanentemente e em novas condições o instituído estabelecido mediante práxis instituinte. Esta, enquanto instituição consciente que é, pressupõe certas condições e, ao mesmo tempo, opera sobre essas condições, de modo a poder transformá-las profundamente. Todavia, a práxis instituinte não pode brotar do nada. Ela sempre ocorre a partir de certas condições herdadas do passado, ou seja, a partir do que já fora instituído antes, aquém da consciência e da vontade dos seus atores.

O desafio é, então, impedir que aquilo que foi instituído se esclerose, ou seja, feche-se em si mesmo e reifique-se, uma vez que a ameaça disso ocorrer pode ser muito mais interna do que externa. Se é possível evitar que a práxis instituinte reifique-se, um outro aspecto a considerar é que, como práxis instituinte que é, o comum pode ser pensado como princípio de práticas sociais, políticas e educacionais que podem e devem ser renovadas permanentemente. No âmbito da práxis pedagógica, isso implica pensá-la como expressão consciente de seus agentes e como atividade que se define pelo seu próprio fim, no sentido de que, cada instante dela, é seu próprio fim e não apenas meio para determinados fins externos a ela, ambos traçados de modo instrumental.

Toda ação humana, por ser histórica, ocorre em circunstâncias e condições não escolhidas pelos homens, justamente por serem herdadas daqueles que os precederam. Esse condicionamento, todavia, é o que torna possível a criação do novo. Desse modo, os sujeitos sempre agem sobre condições bem determinadas e, somente a partir de tais condições, podem estabelecer novas condições. Somente desse modo podem subverter o antigo estado de coisas ou antigas práticas e trazerem à existência o que não possui precedentes na história, mesmo que os agentes não tenham consciência disso. Por essa ótica, a ação gera o novo não apenas nas circunstâncias exteriores, mas também nos próprios atores.

A práxis instituinte produz seu próprio sujeito mediante um exercício que deve renovar-se para além do ato criador. Não é apenas o sujeito que é produtor de uma práxis, mas se trata de uma práxis que, ao mesmo tempo em que é produzida por sujeitos, constitui sujeitos ou, mediante a qual, os sujeitos constituem-se a si mesmos. Enquanto autoprodução e automodificação do sujeito, a práxis instituinte implica outra forma de subjetivação – radicalmente distinta da neoliberal – e uma práxis intrinsecamente formativa e emancipadora, na medida que autoproduz os sujeitos por automodificação no curso da própria ação; é livre e possibilita sujeitos autônomos, o que contrasta claramente com a produção heterônoma do sujeito neoliberal.

A atividade autotransformadora historicamente condicionada, que caracteriza a práxis instituinte, situa a atividade do comum ao mesmo tempo como vinculada a condições históricas já dadas e como ação formadora de subjetividades. Neste sentido, a moficação das circunstâncias implica a auto-modificação dos sujeitos na forma de sua autoprodução como um processo ético-político-educativo. É tal processo, na medida em que é consciente e capaz de suplantar uma racionalidade instituída, que torna possível pensar-se uma alternativa à governamentalidade neoliberal, seu modo profundamente injusto de estruturar os vínculos sociais e suas formas assujeitadoras de subjetivação.

Considerações finais

No percurso que fizemos, tomamos como referência Dardot e Laval com o intuito de evidenciar que o neoliberalismo vincula uma ética e associa--lhe uma ideia usurpada de formação e que o princípio político do comum, com o conceito de práxis instituinte que lhe é vinculado, pode ser apresentado como parâmetro de uma racionalidade alternativa à neoliberal. Argumentamos que a racionalidade neoliberal almeja a produção de uma subjetividade consoante com ela e que o discurso dessa racionalidade pretensamente onipresente articula uma definição de homem em consonância com ela. Neste sentido, vimos que o cidadão investido de uma responsabilidade coletiva tende a dar lugar ao homo oeconomicus na forma atomizada do homem empreendedor, empresário de si mesmo, e que, dessa compreensão, decorre um sujeito que necessita ser moldado por meio de um trabalho interior permanente sobre si mesmo.

Abordamos também o princípio do comum e o conceito de práxis instituinte que lhe é vinculado como forma de contraposição à racionalidade neoliberal, sua concepção de sujeito, sua ética e sua visão de formação. Diferentemente desta, o comum concerne a uma retomada coletiva, solidária e democrática de recursos e espaços dominados pela lógica do capital. Seu alcance em termos ético-formativos reside em sua profunda contraposição ao princípio da concorrência generalizada próprio à racionalidade neoliberal, enquanto norma de conduta, e da empresa como modelo de subjetivação por excelência. Neste sentido, na medida em que demanda um outro tipo de atitude em relação aos outros, às coisas e a si mesmo, entendemos que o comum pode ser pensado não apenas como princípio político, mas também como princípio de justiça e como princípio ético-formativo

Argumentamos, por fim, que, enquanto autoprodução e automodificação do sujeito, a práxis instituinte implica uma práxis intrinsecamente formativa, na medida que autoproduz os sujeitos por automodificação no curso da própria ação. Essa ideia ajuda a pensar uma alternativa à ética neoliberal e sua concepção de formação mediante a construção e o questionamento permanente do instituído. Diferentemente da concepção de formação heteronômica e assujeitadora da racionalidade neoliberal, o princípio do comum, perante a práxis constituinte que o vivifica, remete para um educar-se para o comum ou no comum e para um tipo de práxis que pode manter-se instituinte ao invés de institucionalizar-se por meio de modos de sujeição e de desmoronamento da solidariedade, como o postulado pela racionalidade neoliberal

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Recebido: 10 de Junho de 2020; Aceito: 23 de Junho de 2020

Prof. Dr. Angelo Vitório Cenci

Universidade de Passo Fundo (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Núcleo de Pesquisa em Filosofia e Educação (NUPEFE-UPF)

Grupo de Estudos em Ética, Democracia e Educação (GEEDE-UPF)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0003-0541-2197

E-mail: angelo@upf.br

Prof. Dr. Cleriston Petry

Universidade Federal de Mato Grosso (Brasil)

Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação

Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO) – Núcleo UFMT

Orcid id: http://orcid.org/0000-0001-8900-6633

E-mail: cleripetry@hotmail.com

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