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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.56 Natal abr./jun 2020  Epub 11-Ago-2021

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n56id19030 

Resenha

O ensino além do ostracismo escolar

Teaching beyond school ostracismo

Enseñar más allá del ostracismo escolar

Edgar Henrique Hein Trapp1 
http://orcid.org/0000-0002-6262-5140

Suzana Feldens Schwertner2 
http://orcid.org/0000-0002-2913-9191

1Faculdade de Colinas do Tocantins (Tocantins – Brasil)

2Universidade do Vale do Taquari (Lajeado – Rio Grande do Sul – Brasil)

KOHAN, Walter Omar. O mestre inventor, . Relatos de um viajante educador.. Freitas, Hélia. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.


Há pequenos episódios que podem mudar a vida de uma pessoa e, por meio dela, a vida de muitas outras. Podem ser situações aparentemente banais, coloquiais e sem maior transcendência que, em qualquer momento, passariam despercebidos, mas que, em determinadas circunstâncias da vida de uma pessoa, nesse momento kairós em que se apresentam, ocasionam um terremoto, fazem com que tudo mude de lugar, de posição, de estado (KOHAN, 2014. p. 29).

O que uma concha marinha comporta em seu interior? Além do molusco e areia, se tivermos sorte, poderemos encontrar uma pérola. Imediatamente, jogamos fora o molusco e nos apropriamos da gema preciosa. Não nos lembramos da concha que a produziu ou de que modo a pérola foi cultivada dentro daquele espaço enclausurado, escuro, cravejado de outros seres agregados a suas camadas de carbonato de cálcio. Focamos nosso olhar apenas no brilho do produto e no seu valor comercial.

Deixemo-nos levar nesta analogia da concha para destacar a narrativa que Kohan (2014) faz sobre a aprendizagem e o ensino em seu livro “O mestre inventor. Relatos de um viajante educador”, apresentando a vivência de Simón Rodríguez1, um inquieto educador venezuelano caraquenho que a partir de suas viagens pelo mundo foi estudar línguas e investigar os sistemas de educação, propondo a criação de escolas para a América. Numa destas viagens, se encontra com o pequeno Thomas na Jamaica, criança de rua, excluída da escola, que propõe uma solução para um enigma que ele vivenciava com estudantes. Kohan caracteriza esta experiência como “terremoto”: “Uma experiência de vida que impede seguir pensando como se pensava, viver como se vivia. Uma vida se encontra com outra vida e a chama a recriar-se, reinventar-se” (KOHAN, 2013, p. 23).

O livro inicia pelo capítulo zero, momento em que Kohan narra os efeitos do encontro de Rodríguez com Thomas, mola propulsora de seus pensamentos e suas ações educacionais. Ao viajar por alguns dias a Kingston, estudando uma nova língua (algo a que Simón Rodriguez sempre se aventurava) ou como um transeunte pelas ruas da bucólica cidade, há um momento ímpar de aprendizagem com as crianças, principalmente quando, em meio a uma brincadeira de lançar chapéus ao ar, o seu ficou preso na varanda de uma casa.

Entre as várias sugestões improdutivas das crianças que brincavam junto a ele, não chegaram a uma conclusão de como retirá-lo de lá e precisavam fazê-lo antes de serem descobertos pelo mordomo da casa, que já os tinha advertido sobre este fato. Foi quando escutou a sugestão de Thomas (um garoto negro que morava na cidade e que não frequentava a escola), que indicou como apanhar o chapéu na varanda da casa.

Agimos muitas vezes de maneira já configurada, buscando um olhar conhecido, enclausurados em um ostracismo, que não nos permite escutar outras sugestões. Não queremos caminhar sobre pedras ou disputar com as ondas que as cobrem. Preferimos, em outras ocasiões, ficarmos à margem da praia, apenas admirando os segredos de um oceano, em segurança. Um distanciamento do que não é conhecido, fechando-nos em nossa segurança dentro da concha.

Sayão (2011) faz uma analogia a essa situação quando comenta que os docentes assumem uma atitude antipedagógica dentro do ambiente da sala de aula, como seu projeto de vida, fechando-se dentro deste ostracismo como um empoderamento inatingível. Isso por conta do anseio de se tornarem afastados e distantes dos alunos, mascarando-se por trás de uma aparência de difícil. Rodríguez quebra este paradigma ao fazer uma aproximação com Thomas, escutando sua sugestão e acatando-a. Permitiu-se realizar um exercício de pensamento junto ao menino, criando novas possibilidades por ele sugeridas, admitindo um saber sensível, que partiu da criança. Isso nos remete a pensar que as opiniões de fora do sistema podem nos ajudar a pensar em diferentes possibilidades para o ensino e em novos conhecimentos.

Rodríguez também analisaria a ostra como um objeto de valor, questionando-se como a pérola poderia ser fabricado a partir de um grão de areia que entrou inadvertidamente dentro de sua concha. Thomas talvez fosse esta pérola dentro da ostra, que precisa não ser apenas encontrado, mas ser levado em consideração, ser efetiva e ativamente escutado. Eis o diferencial de Simón Rodríguez: Thomas deveria ser também encontrado pelos docentes, pela escola e pelo próprio ensino na atualidade.

Necessitamos incorporar Rodríguez em suas conjecturas sobre o ensino e como ele projetava-o neste ambiente da escola, sendo importante aceitar e refletir sobre aqueles que discorrem em outras línguas ou aqueles que pensam de outras maneiras (KOHAN, 2014). Por outro lado, não queremos ser arestas do ensino ou sequer uma pérola presa dentro de uma concha fechada, escondida, submersa. Neste ponto inferimos que Thomas talvez não soubesse dominar a escrita e a leitura, porém Rodríguez decifrou que ele conseguia escrever com o corpo, com o gesto, com imagens.

Esta (re)criação do ensino é o ato de sair desta ostra e fugir do processo formatado do ensino obrigatório, em espaços fechados, planejados e regidos por regras. É como no caso do órfão Simón Bolívar, que foi pupilo Simón Rodríguez (e que se tornaria seu discípulo mais tarde), que fugiu de sua casa, onde havia outras crianças nas mesmas condições. Porque fugir? Infere-se que o desejo de fugir seja o de sair da ostra, ser encontrado.

Com as experiências vividas por Rodríguez, já em 1794 ele critica duramente a escola, o ensino, os processos de exclusão social e, principalmente, discorre sobre as condições de trabalho do professor, que eram paupérrimas. Não apenas no século XVIII as condições de trabalho do professor eram precárias, como foram discutidas por Rodríguez em suas cartas; percebe-se que em pleno século XXI parece não haver muitas mudanças. Nas palavras de Kohan (2014) que comenta a dedicação de Simón Rodríguez sobre a educação que, embora tenha se dedicado a muitas outras coisas, marcou profundamente a sua vida errante, revolucionando as instituições de ensino como forma de rebelar os comportamentos de seu tempo. Era um educador errante, não pelas viagens e itinerários, e sim pela sua intensidade e pela radicalidade de sua vida de educador.

O autor ainda comenta que Rodríguez lutou de forma incansável pela revolução escolar, de forma que atendessem aos que se encontravam descartados pelas escolas existentes e para que nelas aprendessem a pensar não só em como transformar sua condição social, mas, “[...] acima de tudo, em como transformar a própria sociedade que cria essa condição” (KOHAN, 2014, p. 62).

Rodríguez alerta que a escola precisa ser um espaço para pensar, um pensar crítico, reflexivo e revolucionário, para a construção de novos saberes. Para ele, é necessário, imperativamente, inventar este cotidiano escolar em que crianças como Thomas tenham a oportunidade de entrar no jogo de uma vida comum de verdade e de justiça. Que a escola possa ser um espaço de movimento que contemple a criação, o pensamento e os saberes. A verdade, conforme Rodríguez menciona, não pode ser plagiada, espelhada, reproduzida, adaptada sob a ótica de uma outra realidade.

É necessário pensar uma escola que nos toca na atualidade, que tenhamos a inspiração em Simón Rodríguez de fugirmos de espaços formatados e que tenhamos a oportunidade de novas construções do saber. Temos de encontrar esta verdade por nós mesmos, edificando pensares e saberes, saindo do ostracismo e demonstrando o nosso reconhecimento a todos que podem “fazer escola”.

Nota

1Educador descrito na obra escrita por Kohan (2014), cujo nome completo era Simón Narciso Jesús Rodríguez. Além de educador, foi filósofo e político venezuelano. Ficou conhecido em seu exílio da América espanhola como Samuel Robinsón. Foi também professor de Simón Bolivar, que o incumbiu de pensar a educação da Pátria Grande

Recebido: 16 de Outubro de 2019; Aceito: 28 de Janeiro de 2020

Prof. Ms. Edgar Henrique Hein Trapp,

Faculdade de Colinas do Tocantins (Tocantins – Brasil)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-6262-5140

E-mail: edpsico@yahoo.com.br

Profa. Dra. Suzana Feldens Schwertner

Universidade do Vale do Taquari (Lajeado – Rio Grande do Sul – Brasil)

Programa de Pós Graduação em Ensino

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-2913-9191

E-mail: suzifs@univates.br

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