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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.57 Natal jul./sept 2020  Epub 12-Ago-2021

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n57id21484 

Artigos

A pedagogia como alicerce da teoria política em Rousseau: um traçado do Iluminismo na educação

La pedagogía como fundamento de la teoría política en Rousseau: un esbozo de la Ilustración en la educación

1Universidade de São Paulo (Brasil)

2Universidade de São Paulo (Brasil)


Resumo

O presente artigo procura – através de uma análise crítica e explicativa, baseada em estudos de bibliografia das obras de Rousseau, centrando-se principalmente nos Discursos e em Emílio – evidenciar de que maneira o conceito de natureza, na perspectiva da teoria política e social desenvolvida por Rousseau, se coaduna com aquele expresso em sua obra pedagógica. Pretendemos analisar o conceito de natureza quando ele pensa o estado de natureza, o homem natural e a primeira infância - a criança Emílio – e depois o estado civil, o homem social e o indivíduo moral - o cidadão - tendo em vista repensar a finalidade da ação educacional dentro de um projeto político de sociedade. Explorando detidamente a dimensão político-social com a dimensão pedagógica nas obras de referência, é possível concluir que o projeto pedagógico, em Rousseau, é, a um só tempo, alternativa e complemento da pauta da política, estando, portanto, necessariamente inscrito na agenda da vida em sociedade.

Palavras-chave: Rousseau; Emílio; Iluminismo; Filosofia da educação

Resumen

Este artículo busca, a través de un análisis crítico y explicativo, basado en estudios bibliográficos de las obras de Rousseau, centrándose principalmente en Discursos y Emílio, mostrar cómo el concepto de naturaleza, en la perspectiva de la teoría política y social desarrollada por Rousseau, es consistente con lo expresado en su trabajo pedagógico. Tenemos la intención de analizar el concepto de naturaleza cuando piensa en el estado de la naturaleza, el hombre natural y la primera infancia, el niño Emílio, y luego el estado civil, el hombre social y el individuo moral, el ciudadano, para repensar el propósito de acción educativa dentro de un proyecto político de la sociedad. Al explorar cuidadosamente la dimensión político-social con la dimensión pedagógica en los trabajos de referencia, es posible concluir que el proyecto pedagógico, en Rousseau, es, al mismo tiempo, una alternativa y un complemento de la agenda política, y por lo tanto está necesariamente inscrito en la agenda de la vida en sociedad.

Palabras clave: Rousseau; Emílio; La iluminación; Filosofía de la educación

Abstract

This article seeks – through a critical and explanatory analysis, based on bibliography studies of Rousseau's works, focusing mainly on Discourses and Emílio – to show how the concept of nature, in the perspective of the developed political and social theory by Rousseau, is consistent with that expressed in his pedagogical work. We intend to analyze the concept of nature when he thinks about the state of nature, the natural man and early childhood – the child Emílio – and then the civil state, the social man and the moral individual – the citizen – in order to rethink the purpose of educational action within a political project of society. By carefully exploring the political-social dimension with the pedagogical dimension in the reference works, it is possible to conclude that the pedagogical project, in Rousseau, is, at the same time, an alternative and complement to the politics agenda, and is therefore necessarily inscribed on the agenda of life in society.

Keywords: Rousseau; Emilio; Enlightenment; Philosophy of education

Introdução

Neste trabalho pretendemos revisitar um tema bastante relevante no pensamento de Rousseau e de grande importância para a filosofia da educação. Procuramos trazer uma nova perspectiva sobre o pensamento de Rousseau, explorando detidamente sua dimensão político-social com sua dimensão pedagógica, tendo em vista repensar a finalidade da ação educacional dentro de um projeto político de sociedade. Rousseau é um autor muito importante para a Filosofia da Educação; e conhecer seus pressupostos teórico-metodológicos é imprescindível para os educadores tendo em vista que seu pensamento reverbera até hoje no campo educacional.

Nosso objetivo é – através de uma análise crítica e explicativa, baseada em estudos de bibliografia das obras de Rousseau, centrando-se principalmente nos Discursos e em Emílio – evidenciar de que maneira o conceito de natureza, na perspectiva da teoria política e social desenvolvida por Rousseau, se coaduna com aquele expresso em sua obra pedagógica. Em um primeiro momento trazemos um breve panorama sobre o período histórico em que Rousseau viveu, o século XVIII, na tentativa de compreender melhor o que movia o pensamento do filósofo, com quem dialogava e quais debates lhe atravessaram de tal forma a levá-lo a pensar os tensões da vida moderna e os problemas humanos, chegando então na sua ideia de natureza. Em seguida analisamos o conceito de natureza na perspectiva do pensamento político-social do filósofo para depois explorá-lo na perspectiva pedagógica procurando visualizar o crescimento do menino Emílio a partir de sua transformação de ser da natureza para ser de sociedade.

Pretendemos analisar, assim, o conceito de natureza quando o filósofo pensa o estado de natureza, o homem natural e a primeira infância – a criança Emílio – e depois o estado civil, o homem social e o indivíduo moral – o cidadão – para então, pensar de que forma essas dimensões se relacionam. Por fim, buscamos apreender uma possível unidade no pensamento de Rousseau para desenvolver uma teoria dos fundamentos do direito e da sociedade, assim como de um projeto de pedagogia, para estabelecer a vontade geral e a soberania numa sociedade que para o filósofo caminha rumo à decadência moral.

O século das luzes

O século XVIII foi um período de intensas mudanças políticas, sociais e econômicas que vinham se pronunciando desde os primórdios da Idade Moderna. Foi marcado também por grande produção intelectual e por tensões entre o Antigo Regime absolutista e a burguesia emergente. Conhecido não à toa como o Século das Luzes, foi guiado pelo poder da razão humana em sua dimensão universal. Da universalidade, para Todorov (2008), decorre a demanda pela igualdade e pelos direitos universais do homem. Junto com a autonomia, vem a tese da emancipação, como partes de um mesmo processo de libertação de tudo que é imposto ao homem e que não fosse natural, ou seja, que fosse sobrenatural – produzindo o desencantamento do mundo – pois a razão admite apenas aquelas verdades que são naturais. Dessa forma, foi à religião que muitas das críticas dos pensadores iluministas se direcionaram, sendo ela uma das mais visíveis formas de tutela em que os homens se encontravam, colocando tanto a sociedade como o indivíduo em uma condição de submissão. Dessa forma, a religião deveria sair do Estado, este deveria ser laico e orientar os homens para o futuro deixando de basear-se na revelação ou em milagres, mas nas verdades naturais e na razão, baseando-se na religião natural que “[...] era a fonte das luzes, a garantia da razão” (HAZARD, 1974, p. 153).

Há, portanto, uma tendência de secularização do saber, desde o Renascimento, que se fortifica no Iluminismo. O indivíduo quer, não apenas conhecer para contemplar, mas quer conhecer para transformar, dominar a natureza, dessacralizando-a e desvinculando-a da religião. A busca pela salvação é substituída pelo que se coloca como a finalidade das ações humanas: a busca da felicidade, do bem-estar. A felicidade imediata se tornou tema de muitos ensaios e discursos de pensadores iluministas. Alguns poucos, mais ingênuos, até mesmo propunham receitas para se chegar à felicidade; ela era o novo graal da filosofia e novo direito e dever humano.

O conhecimento deveria ser laico e amplamente divulgado – de acordo com os enciclopedistas, representados por Diderot e D’Alembert. A escola também deveria se tornar laica, gratuita, universal e obrigatória, buscando novos caminhos para a aprendizagem, tendo a grande responsabilidade de propagar as luzes e o conhecimento. Assim, favoreceram “[...] a educação em todas as suas formas, desde a escola até as academias, e a difusão do saber, por publicações especializadas ou por enciclopédias dirigidas ao grande público” (TODOROV, 2008, p.17). Dessa forma, o conhecimento conquista logo sua autonomia, tendo por pilar a experiência e a razão. Essa última, para grande parte dos intelectuais, era soberana, “[...] encarregada de revelar a verdade, de denunciar o erro” (HAZARD, 1974, p. 45). Todos acreditavam na unidade, na universalidade e na certeza da razão, que, a partir da observação dos fenômenos, da análise e comparação, supunha-se que desvendava as verdades e as leis naturais.

Rousseau e o Iluminismo

Jean Jacques Rousseau nasceu em Genebra, Suíça, em 1712. Filho de relojoeiro, perdeu a mãe logo ao nascer. Vinha de família de médio escalão e passou por muitas dificuldades na sua infância, tanto financeiras como também afetivas. Rousseau é abandonado por seu pai que depois vem a falecer, fica aos cuidados de um tio, pastor protestante, e com 16 anos vai embora para Savóia. Por um tempo, ganha a vida como professor de música e como preceptor de dois meninos da aristocracia em 1740, já tendo sido aprendiz de relojoeiro, pastor e gravador. Cansado da vida na cidade, vai para o campo para viver em contato com a natureza e elaborar seus projetos intelectuais.

Em 1742, muda-se para Paris, onde conhece filósofos como Diderot e D’Alembert e os enciclopedistas, amadurecendo suas concepções políticas e filosóficas. Em 1749 publicou o Discurso sobre as ciências e as artes, premiado com medalha de ouro pela Academia de Dijon, e em 1755, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens onde aparecem as bases do processo gerador das desigualdades sociais e morais entre os homens e dá início à discussão do contrato social, aproximando duas visões de mundo - a do homem no estado natural e a do homem no estado civil. Na obra O Contrato Social, procura o fundamento da autoridade legítima com o objetivo de “[...] instituir os princípios dos direitos políticos entre homens [...]” (DALBOSCO, 2011b, p. 27), idealizando uma sociedade justa e democrática regida pela vontade geral. Para tanto, ele vai tentar construir um Estado concebido como um ente de razão, um ente moral, pois pensava que para que essa ordem social fosse possível a estrutura política-jurídica deveria se fundar a na capacidade moral de cada cidadão de governar-se e submeter-se às leis. E tal moralidade nas ações e o governo de si mesmo serão por sua vez, fruto de uma educação específica pensada também por Rousseau, na qual deposita grande importância e está interligado com seu projeto político.

Rousseau, apesar de apresentar a inovação do pensamento iluminista em seu sentido político, como antiabsolutista, será contrário a essa concepção do conhecimento, indo de encontro ao imaginário de sua época quando apresenta sua crítica ao conhecimento no Discurso sobre as Ciências e as Artes. Naquele Século das Luzes, a opinião pública esclarecida acreditava no progresso da razão. Acreditava que o conhecimento emancipava. Para a maioria, o estabelecimento das ciências e das artes teria contribuindo para o aprimoramento dos costumes e aperfeiçoamento da humanidade, uma vez que o saber tornava o homem mais humano – formando um espírito culto, erudito, ou mais cortes. Mas, ao invés do primado da racionalidade sob a condição humana, como defendiam os iluministas, Rousseau “[...] faz da sã consciência um guia mais seguro do que a razão, e da moral a verdadeira ordem natural” (ROUSSEAU, 1973a, p. 359).

A questão do sentido, das emoções e dos sentimentos seria para Rousseau muito mais importante do que a racionalização, como também anterior a ela. Por isso critica instituições e determinado modelo de sociedade que pautavam na razão todas as suas apostas, como faziam os colégios e a educação de seu tempo. O processo civilizador teria, na verdade, contribuído para a deterioração dos costumes e da sociedade, ofuscando as disposições naturais dos homens e levando-os à depravação moral. E já em seu Primeiro Discurso aponta a “[...] educação insensata que orna nosso espírito e corrompe nosso julgamento [...]” (ROUSSEAU, 1973a, p. 355) como reprodutora dos vícios da sociedade, ensinando aquilo que se devia esquecer e não os deveres enquanto homens; e a supervalorização dos talentos junto com o enfraquecimento das virtudes, como fonte de desigualdade.

Da crítica da cultura à crítica social

No pensamento de Rousseau, as ciências e as artes assim como a moral, teriam nascido dos nossos vícios - do orgulho humano. Antes os homens seriam inocentes e virtuosos; mas, à medida que se estabelece a propriedade, e com ela a desigualdade moral e política, os vícios e as comodidades se multiplicam. O luxo e a ociosidade se constituem nesse momento, “[...] gerando a hipocrisia, a corrupção dos costumes e a recusa de parecer o que, de fato, se é” (PISSARRA, 2002, p. 41). Da desigualdade surgem as riquezas, que engendram o luxo e a ociosidade, que por sua vez originam as belas artes e a ciência.

Há, portanto, no Discurso sobre as ciências e as artes, uma visão negativa do progresso, que acompanharia a depravação moral do homem multiplicando seus vícios. Uma crítica ao saber e ao simulacro de uma sociedade injusta, pois o conhecimento, a ciência, não é tomada por Rousseau como um mal em si mesmo, não é fonte dos vícios, porém “[...] estes que nos levam àquelas por um caminho falso [...]” (BARROS, 1963, p. 14) e desvirtuado. E somente homens de talento e virtuosos – verdadeiros sábios – seriam capazes de fazer bom uso do conhecimento direcionando sua potencialidade, unindo ciência e virtude.

O homem – que era bom, feliz e livre – torna-se alienado, mau, infeliz e escravo, ao mesmo tempo que se torna civilizado e recorre às aparências e à arte de agradar como nova moral, preocupado apenas com a previdência e com a opinião dos outros, uma vez que, na sociedade, “[...] a felicidade não está no homem, mas na inquietude que busca sempre mais e mais o reconhecimento do outro” (PISSARRA, 2002, p. 43).

Rousseau começa então – assim como afirma Pissarra (2002) – pela crítica da cultura, descrevendo as sociedades civis corrompidas, para poder então estabelecer sua crítica à sociedade. E depois, no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, busca a origem da corrupção e da desigualdade na própria história, assim como fora dela, através de um raciocínio hipotético e condicional que, ao se afastar de todos os fatos, forma “[...] conjecturas extraídas unicamente da natureza do homem e dos seres que o circundam, acerca do que se teria transformado o gênero humano se fora abandonado a si mesmo” (ROUSSEAU, 1973b, p. 242).

O Conceito de Natureza

É pois, no Segundo Discurso, que Rousseau – a partir da crítica às sociedades e para responder à Academia de Dijon se a desigualdade seria permitida pela lei natural – vai buscar as bases do processo gerador das desigualdades moral e política entre os homens, assinalando “[...] o momento em que, sucedendo o direito à violência, submeteu-se a natureza à lei” (ROUSSEAU, 1973b, p. 241). Para encontrar o fundamento do poder e da formação da sociedade e solucionar o problema do direito natural, recorre à ciência do homem - a mais útil de todas -, separando de sua alma aquilo que foi desejado pela natureza, pela providência, daquilo que fora produzido pelo homem, e assim, contrapondo o estado natural ao estado civil.

Para refletir sobre a natureza, Rousseau usa como recurso metodológico a observação, a imaginação, a introspecção e a análise abstrata, afastando-se de todos os fatos, dado que o estado de natureza, para o genebrino, estaria fora da história, sendo um estado hipotético “[...] que não existe mais, que, talvez, nunca existiu, que provavelmente jamais existirá” (ROUSSEAU, 1973b, p. 234).

Estado de natureza e o homem natural

Rousseau inicia a reflexão sobre o estado de natureza caracterizando o homem em suas dimensões física, metafísica e moral. Do ponto de vista físico o homem é um animal robusto e forte, que anda sob dois pés. Não possui instinto próprio, porém é capaz de se apropriar de todos e assim como os animais, é uma “máquina engenhosa” dotada de sentidos e que atua pelas leis da mecânica. Seu único instrumento é seu corpo e com ele satisfaz todas suas necessidades, bastando-se a si mesmo.

Embora semelhantes, há diferenças entre os homens e os animais. Ambos são dotados de sentidos e instintos, por meio dos quais percebem e sentem o mundo, porém apenas o homem é dotado de liberdade. O animal “escolhe e rejeita por instinto” enquanto o homem “por um ato de liberdade” (ROUSSEAU, 1973b, p. 248). Além disso, apenas o homem é dotado de perfectibilidade, que é a capacidade de aperfeiçoar-se – de aprender e adaptar-se –, porém também de degenerar-se.

É a perfectibilidade que tira o homem de sua condição original promovendo, junto com o auxílio das circunstâncias, o desenvolvimento de suas faculdades superiores e iniciando, então, o processo de desnaturação, “[...] desabrochando as luzes e erros, vícios e virtudes” (ROUSSEAU, 1973b, p. 249). Por ser livre pode escolher suas ações, resistindo aos instintos e criando “[...] no homem uma oposição com a natureza a partir da qual sua consciência se desenvolve e que demonstra a espiritualidade de sua alma [...]” (MONTEAGUDO, 2006, p. 27), conferindo-lhe também a imaginação. Por ser dotado de perfectibilidade, o ser humano é capaz de desenvolver a razão, despertada pelas circunstâncias e pelas necessidades. Dessa forma, pode escolher suas ações e reagir de forma diferente a elas, com a finalidade de suprir suas necessidades e desejos, superando-se a si mesmo, porém também afastando-se de sua condição original.

O homem no estado de natureza possui somente necessidades físicas e a única preocupação é consigo mesmo, com sua autoconservação e com o presente; diferente do homem social, que possui necessidades artificiais e se preocupa com o futuro. O sentimento que guia as vontades do homem natural é o amor-de-si, diretamente relacionado às necessidades naturais – uma preferência por si próprio – porém sem caráter moral, pois não há qualquer relação de sociabilidade, moral ou deveres comuns. O amor-de-si é moderado por uma outra virtude natural, a piedade, que é o reconhecimento de si no outro. Sentimento do qual decorrem todas as qualidades sociais – como a humanidade, a generosidade, a clemência - e que “no estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos costumes e da virtude, com a vantagem de ninguém se sentir tentado em desobedecer sua doce voz” (ROUSSEAU, 1973b, p. 260).

Não há moralidade na natureza, pois o homem não tem conhecimento do que é bom nem mau e “[...] não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a tranquilidade das paixões e a ignorância do vício que os impedem de proceder mal” (ROUSSEAU, 1973b, p. 258). Ele conhece apenas as paixões elementares, que vêm do impulso da natureza – o desejo de nutrir-se, de reproduzir, de descansar e os males da dor e da fome.

Tampouco há miséria e escravidão, pois “[...] os laços de servidão são formados pela dependência mútua dos homens e pelas necessidades recíprocas que os unem” (ROUSSEAU, 1973b, p. 264). O homem natural vive de forma independente, uma vez que não precisa da ajuda de outro para se conservar, pois a natureza lhe conferiu o necessário para bastar a si mesmo, sendo suficiente seu instinto e a força de seu corpo.

Dessa forma, diferente do que afirmaram outros filósofos, o homem não tenderia naturalmente à sociabilidade, pois está só se desenvolverá quando, por ordem das circunstâncias, o homem não mais for capaz de bastar a si mesmo. Não havendo necessidade de convivência e relações sociais entre os homens, a linguagem também não se fazia necessária, havendo apenas uma forma elementar de comunicação, o grito da natureza.

Dos primeiros progressos

No estado de natureza, o homem era – diz Rousseau – robusto e sensível, livre e dotado de perfectibilidade, naturalmente bom e moralmente neutro, enquanto suas vontades eram direcionadas pelo amor-de-si e pela piedade. O amor, assim como as diferenças, era apenas físico tendo em vista a reprodução. Não havia sociabilidade, nem vínculos afetivos, nem línguas. Não havia também qualquer forma de acúmulo cultural, partindo o homem sempre do mesmo ponto.

Enquanto Locke dizia ser a propriedade um direito natural, para Rousseau (1973b) ela seria um artefato, construído pelo homem, e que, na verdade, consistiu no último termo do estado de natureza, formada que foi e a partir de ideias anteriores, muitas luzes e progressos sucessivos, instituindo a primeira desigualdade moral entre os homens – a separação entre ricos e pobres. Isso evidentemente multiplicou exponencialmente a desigualdade entre os homens, a qual, na natureza, era quase nula.

Tais progressos foram desencadeados pelo aparecimento de dificuldades que decorrem da natureza, como “[...] os flagelos de inundações, secas, terremotos [...]” (PISSARRA, 2002, p. 52) ou a concorrência com os animais. No momento em que seu instinto e as forças do seu corpo não bastam mais para se conservar e logo, o homem natural, dotado de perfectibilidade, supera-se, exercitando seu corpo para dominar a natureza tendo em vista sua sobrevivência. Descobre as ferramentas e as armas, a pesca e a caça, disputando muitas vezes sua subsistência com os homens ou “[...] compensando-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte” (ROUSSEAU, 1973b, p. 266).

O primeiro sentimento do homem fora o de sua existência, preocupado com sua conservação, até que do “[...] primeiro olhar que lançou sobre si mesmo [...] e que “[...] produziu-lhe o primeiro movimento de orgulho [...]” (ROUSSEAU, 1973b, p. 267) nasceu o primeiro indivíduo. Dos primeiros progressos o espírito do homem naturalmente começou a observar certas relações e a fazer comparações, como afirma Rousseau (1973b), exprimidas pelas palavras grande e pequeno, rápido e lento, por exemplo, e que produziram nele certa reflexão – uma “prudência maquinal” – tendo em vista sua segurança. Descobre que seus semelhantes também agiam e pensavam da mesma forma e que, então, o “[...] único móvel das ações humanas [...]” (ROUSSEAU, 1973b, p. 267) é o bem-estar. O amor ao bem estar, como interesse comum aos homens, leva-o a perceber a vantagem do compromisso mútuo e da união com outros homens, com o fato de retirarem da natureza seu sustento. Dessa primeira forma de sociabilidade decorrem os primeiros progressos das línguas.

Outros progressos logo se sucederam. Os homens passaram a viver em uma habitação, ideia anterior à propriedade, constituindo assim a primeira forma de sociedade, as famílias, e possibilitando o progresso dos sentimentos, dando origem ao amor conjugal e ao amor paternal, aos sentimentos de preferência e ao ciúme. “À medida que as ideias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração entram em atividade, o gênero humano continua a domesticar-se, as ligações se estendem e os laços se apertam” (ROUSSEAU, 1973b, p. 269).

Surge o desejo de estima, de serem considerados e apreciados mutuamente, e assim, os primeiros deveres da civilidade e obrigações morais. O homem já não vive mais em si mesmo, a piedade é afetada, aumenta-se a identificação com seus semelhantes e logo o amor-de-si gradativamente transforma-se em amor-próprio, sentimento relacionado às necessidades artificiais e que se trata da busca de superação às custas dos outros - sentimento com caráter moral e característico do homem social, que torna sua condição em sociedade perversa.

A moralidade é introduzida nas ações e o homem já é capaz de ser perverso. As ofensas aumentam e o medo da vingança toma o lugar do freio das leis. Na teoria de Rousseau, haveria então, duas etapas do estado de natureza e dois homens naturais. O bom selvagem que vive de forma simples e solitária no estado original e o mau selvagem, no qual os germes da sociedade já se fazem presentes, porém sem as vantagens da civilização para apaziguar suas paixões. Até que o estabelecimento da propriedade e as leis que as justificam originam a primeira desigualdade moral – determinando ricos e pobres – e dão início ao estado civil. Na primeira etapa, a descrição harmoniosa do estado de natureza combinaria com a perspectiva de Locke. Na segunda etapa, entretanto, o estado de guerra tenderia a se instaurar, como apontara Hobbes.

Enquanto o Segundo Discurso explica o que possibilitou a sociabilidade humana e o afastamento do homem natural de sua condição original ruma à decadência moral, o Contrato Social, obra que escreveu anos mais tarde, retoma essas questões agora por um viés menos pessimista. Busca instituir os direitos políticos entre os homens para pensar um modelo de sociedade em que a estrutura político-jurídica estivesse assentada em uma ordem moral, sendo regida por uma vontade geral e por um povo soberano e livre. Rousseau escreveu o Contrato Social ao mesmo tempo em que escrevia Emílio ou da Educação onde buscou pensar como seria possível formar um povo soberano e estabelecer a vontade geral em uma sociedade corrompida através de uma educação que formasse homens e cidadãos livres, independentes e morais. Na verdade, é como se o Emílio quisesse formar o legislador do Contrato.

Da educação como companheira da política

Jean-Jacques Rousseau publicou a obra Emílio ou da Educação em 1762 e a considera como sua obra mais importante. Nela elabora um projeto de educação que busca estabelecer as características de um homem soberano, que esteja de acordo consigo mesmo, sendo bom, tanto para si como para os outros. Porém - como argumenta Maria de Fátima Francisco (2011) - há muitas leituras da obra que são enviesadas, que a entendem como voltada apenas para a definição da educação em si mesma. Na verdade, é um tratado de educação que possui claramente uma dimensão filosófica e teórica onde se expressam as máximas políticas e sociais de Rousseau.

Além disso, para Francisco (2011), é difícil negar o aspecto pedagógico do livro, não apenas pela defesa de adotar novas práticas evidenciadas pelas cenas pedagógicas, mas também devido à busca por formar um novo educador, bem como pelas críticas severas às práticas e educação de seu tempo – rígida e intelectualista. Para Rousseau, a educação nos colégios e nas escolas de caridade era uma “[...] educação bárbara que sacrifica o presente por um futuro incerto [...]” (ROUSSEAU, 1999, p. 68); que tira a liberdade da criança tornando-a miserável e escrava; que constrange e corrompe o espírito da criança colocando-a em contato com os vícios e a hipocrisia da sociedade; e que favorece o estabelecimento da diferença entre os espíritos, aumentando, assim, as desigualdades. Dessa forma a educação vigente produziria no homem uma contradição – “[...] homens de duas faces [...]” – forçando o sujeito a se dividir entre os diversos impulsos – da natureza e da civilidade – que não o leva a nenhum dos objetivos e não lhe permite entrar de acordo consigo mesmo. Mas “[...] se porventura o duplo fim que nos propomos pudesse reunir-se em um só, suprimindo as contradições do homem, suprimiríamos um grande obstáculo à sua felicidade” (ROUSSEAU, 1999, p. 13).

É pela exposição dos princípios e da finalidade a que serve a educação que Rousseau inicia seu livro. Qual seria o fim, então, da educação? Formar o homem ou formar o cidadão? Como vimos, o duplo fim, a exemplo das instituições escolares de seu tempo, não seria viável, uma vez que gera uma contradição que segundo o autor é inconciliável. Assim, os fins da educação proposta por Rousseau vão diferir das concepções vigentes de formação para os costumes e para a civilidade, ou seja, para a vida em sociedade ou para Deus nos colégios e escolas de caridade de sua época. Para tentar superar as contradições do homem moderno ele pensa uma formação integral, do corpo e do espírito, para se aprender a viver seguindo o curso da natureza, de suas disposições naturais, “[...] educando o homem para si mesmo, se guiando pelo homem natural e deixando de lado a pretensão de formar o homem social” (FRANCISCO, 2008, p. 58).

O que muitas interpretações da obra sugerem – como lembra Francisco (2008) – é que Rousseau, ao pensar a educação centrada em um indivíduo particular, Emílio, na esfera privada, no campo e pela contratação de um preceptor, se preocupar apenas com a educação doméstica – a educação natural. De fato, os primeiros livros vão tratar da educação natural de Emílio, tendo como mestre e condutora do processo educacional a natureza e não os homens atuando em sociedade. Porém isso não é tudo. Veremos que o projeto de educação do menino Emílio envolve duas etapas sucessivas de educação: uma educação natural e outra moral sendo que a segunda só é possível se a primeira for bem sucedida. Diferente do duplo fim, Rousseau pensa atingir um fim e depois o outro tendo em vista a conciliação das contradições do homem. Para isso seria necessário conhecer primeiro o homem natural e é o que Rousseau pretende com suas reflexões e pesquisas, as quais constituem o caráter experimental de seu tratado de educação.

Emílio: a criança e a infância

O livro Emílio ou da Educação é dividido em cinco partes que correspondem às cinco fases do desenvolvimento da criança do nascimento à idade adulta. Os livros I e II Rousseau centram-se na primeira infância (0 até 2 anos) e segunda infância (2 a 12 anos), respectivamente. O livro III trata de um período entre a infância e a juventude, a idade da força (12 a 15 anos), enquanto os livros IV e V, do período da juventude (15 a 20 anos) e da idade adulta (20 a 25 anos), respectivamente.

Para Rousseau (1999), o modo como a sociedade se configurava conduzia o homem a uma forma de viver corrompida. O homem era educado para determinado papel, para alcançar o prestígio social orientando-se pela opinião alheia – vivendo de forma dependente e infeliz – não sendo nem homem nem cidadão. Por isso, para formá-lo homem, Rousseau quer educar Emílio preservando suas disposições naturais e segundo a natureza. Feita a crítica da cultura no Primeiro Discurso e depois a crítica e o diagnóstico da configuração social de uma sociedade corrompida no Segundo Discurso, que é depois retomada no Contrato Social, Rousseau elabora em Emílio ou da Educação um projeto de educação natural e social, pensando primeiro uma educação que “[...] deve ser negativa, protegendo o coração e o espírito do erro [...]” (ROUSSEAU, 1999, p. 104) e depois uma educação positiva (social ou moral).

A educação negativa, ou natural, começa desde o nascimento e se estende até o final da segunda infância, quando Emílio completa 12 anos. Ela consiste em deixar a natureza agir no desenvolvimento da criança dando ênfase ao processo do “[...] fortalecimento do corpo e refinamento dos sentidos [...]” (DALBOSCO, 2011a, p. 32) e habituando a criança a relacionar-se com a natureza e seu governante - o preceptor responsável pela formação de Emílio. Porém, a criança, segundo Rousseau (1999) para ser bem dirigida deve seguir um guia apenas, que deve ser a natureza, cuja voz não sofre influência externa alguma e que se encarregará do desenvolvimento interno das faculdades, dos órgãos e do corpo de Emílio, preservando suas disposições naturais. Já a educação positiva consolida-se quando ele ingressa na vida social adulta, fase de intensa sociabilidade. A educação moral, “[...] baseada no emprego adequado da razão, na determinação racional da vontade e no domínio moral de si mesmo [...]” (DALBOSCO, 2011b, p. 32), só é possível se a educação natural tiver sido bem realizada.

Segundo Rousseau (1999), o verdadeiro estudo é o da condição humana e o primeiro dever do homem é ser humano de forma digna. Ele inova o pensamento pedagógico ao inverter a centralização dos interesses e elaborar uma nova representação sobre a criança e a infância. Rousseau ressalta uma especificidade da infância, tendo a criança maneiras próprias de ver, de sentir e de pensar. Por isso há a necessidade de tratá-las como crianças e não como adultos em miniaturas, pois “[...] a natureza quer que as crianças sejam crianças antes de ser homens [...]” (ROUSSEAU, 1999, p. 75) sendo preciso tratar a criança de acordo com sua idade e suas condições. É preciso amar a infância e considerá-la em seu mundo, favorecendo seus instintos. Perturbar essa ordem impondo a razão antes do tempo adequado pode produzir ‘frutos precoces’ suscetíveis a corromper-se.

O conceito de infância na modernidade ganha uma nova formulação com Rousseau e é fundamental para seu pensamento, pois toma a infância como chave de compreensão do homem e da sociedade, observando fases próprias de desenvolvimento e características específicas. Para que uma educação autônoma seja possível, então, o preceptor deve primeiro conhecê-la, observá-la, aprender com a natureza. Além de maneiras próprias de ver, sentir e pensar, há uma anterioridade da criança em relação ao adulto, pois antes de pensar e fazer uso da razão, como o adulto, a criança sente, pois ainda não desenvolveu suas faculdades superiores. Logo “[...] a infância é o sono da razão [...]” (ROUSSEAU, 1999, p. 98) e a criança “[...] só pode chegar ao uso adequado de sua capacidade cognitiva por uma boa educação de seus sentidos [...] ”(DALBOSCO, 2011b, p. 29) que seria somente possível de ser alcançada através da educação natural.

A educação segundo a natureza

“A educação começa junto com a vida, ao nascer a criança já é discípula, não do preceptor, mas da natureza” (ROUSSEAU, 1999, p. 41). Rousseau pensa a educação natural de Emílio no campo, longe dos vícios da sociedade, “abismo da espécie humana”, pois segundo ele, os homens não foram feitos para viverem amontoados e “[...] quanto mais se reúnem, mais se corrompem [...]” pelas várias associações que teriam efeito de adoecer o corpo e viciar a alma.

O campo, ao contrário das cidades, traria uma renovação para a espécie humana “[...] onde os prazeres unidos aos deveres da natureza logo lhes tirariam o gosto pelos que não se relacionam com ela [...]” (ROUSSEAU, 1999, p. 41). Emílio seria, então, capaz de formar – a partir da própria experiência e da relação com a natureza e com as coisas que o cercam – um desenvolvimento interno e natural de suas forças, pela educação do corpo através dos exercícios e dos sentidos, ou seja, por meio do tato, olfato, gosto, visão e audição.

Segundo Rousseau (1999) os primeiros desenvolvimentos da infância dão-se quase todos ao mesmo tempo e o primeiro sentimento é de dor e sofrimento devida à dificuldade de se movimentar. Logo que nasce, a criança, ao invés de ser mantida imobilizada, precisa esticar e mover os seus membros para tirá-los do entorpecimento, pois para ele a inação em que o bebê é mantido impediria que a criança se tornasse forte. Também, como afirma Pissarra (2002), o desenvolvimento físico e a liberdade de movimentos dos membros é fundamental para que a criança possa entrar em contato com o mundo por meio dos sentidos e assim, gradativamente descobrir as diferenças e oposições que existem.

As primeiras necessidades da criança são apenas naturais, de autoconservação, como a alimentação e o sono. Por ser frágil, fraca e indefesa, ela depende do adulto para satisfazer suas necessidades e protegê-la. A sua primeira linguagem é o choro, que no início são apenas pedidos, mas logo transformam-se em ordens e assim, “[...] de sua fraqueza, de onde provém inicialmente o sentimento de dependência, nasce a seguir a ideia de império e dominação” (ROUSSEAU, 1999, p. 52). Portanto, as primeiras ideias da criança são de domínio e servidão e têm origem no estado de dependência de Emílio, colocando-se aqui um problema àquele que almeja ser um bom educador. De acordo com Pissarra (2002) é preciso saber como atender às necessidades da criança sem ser escravizado ou escravizá-la, preparando-a assim para a autonomia.

Dessa forma, para ser um bom preceptor, além de respeitar a criança em seu mundo e conhecer as leis naturais conduzindo-o a intervenções adequadas, é preciso mantê-la apenas sob a dependência das coisas, e não dos homens, pois esta que leva ao sentimento de dominação. Se este sentimento permanece, pode despertar e favorecer, segundo Rousseau (1999), o amor-próprio e iniciar o afastamento da natureza. Para permanecer saudável e seguir o curso da natureza, Emílio deve encontrar resistências apenas nos objetos e não nas vontades, para que assim desenvolva gradativamente a capacidade de reconhecer os limites de suas forças, pois limitar os desejos tendo em vista sua capacidade fará com que sofra menos com a privação e que tenha mais liberdade e menos domínio.

Ao longo do desenvolvimento da criança na infância, seu corpo físico e sua alma tenderiam a entrar em equilíbrio. Na segunda infância, a linguagem do choro é substituída pela fala. Emílio deve exercitar cada vez mais seu corpo para se fortalecer, deve correr, se divertir, cair e se machucar, pois “[...] o bem estar da liberdade compensa muitos machucados [...]” (ROUSSEAU, 1999, p. 67) e multiplicar as dores na infância significa poupá-las na idade da razão. Com o progresso de suas forças, Emílio passa a necessitar cada vez menos da ajuda dos outros; e, para Rousseau, com tal progresso, desenvolve-se também o conhecimento que o colocará em condição de dirigir suas forças.

Porém, antes da idade da razão o preceptor deve ter cuidado com o uso das palavras, pois Emílio não deve entrar ainda em contato com ideias de moralidade ou sociabilidade, sendo suas lições mais pela experiência do que pelas lições verbais. “A única lição de moral que convém à infância e a mais importante em qualquer idade, é a de não fazer mal a ninguém” (ROUSSEAU, 1999, p. 94). Também não deve ser educado pela razão, pois isso seria “começar pelo fim” e a razão é, de acordo com o pensamento de Rousseau, uma faculdade composta de todas as outras que se desenvolve dificilmente e mais tarde. A razão, além disso, é o freio da força por isso não tem lugar na educação natural.

O preceptor também não deve punir a criança com castigos físicos ou sermões, pois não fariam sentido algum para Emílio já que “[...] antes da idade da razão, fazemos o bem e o mal sem sabê-lo, não havendo moralidade em nossas ações” (ROUSSEAU, 1999, p. 53). Apenas pela razão é que somos capazes de conhecer o bem e o mal. Por isso, as primeiras noções morais devem ser consequência da própria experiência da criança.

Das virtudes naturais à sociabilidade

A “verdadeira juventude do mundo”, como diz Pissarra (2002) onde a liberdade e a igualdade que correspondia à fabricação de objetos por uma só pessoa, devido às dificuldades ocasionadas pela natureza e a necessidade de organização da produção, é substituída por uma nova etapa onde os homens passaram a depender uns dos outros, originando não só a propriedade mas também a desigualdade, a escravidão e a miséria. Quando o estado de guerra se torna inevitável colocando em risco a conservação da espécie é que serão estabelecidas as primeiras leis e convenções, dando origem às sociedades.

Então, a passagem do estado da natureza para o civil, o desenvolvimento da técnica, das paixões e das faculdades superiores; a transformação do bom selvagem no homem cruel que vive em sociedade se deu a partir de progressos sucessivos, desencadeados pelas circunstâncias, pelo acaso, tendo como consequência o estabelecimento das ciências e das artes que acompanhou a depravação moral do homem. Do ponto de vista político, a passagem de um estado para o outro acontece para Rousseau através de um pacto em defesa da sociedade e da propriedade, um pacto de submissão que escravizou o homem, e do ponto de vista metafísico, pela transformação da bondade natural em egoísmo racional, do amor-de-si – amoral - em amor-próprio – este sim, com caráter moral.

O amor-de-si, assim como a piedade, são essenciais ao homem e fundamentam o direito natural, enquanto o sentimento do homem social – o qual orienta suas vontades – é o amor-próprio. Na piedade, assim como colocado por Monteagudo (2006), somada à liberdade, reside a sociabilidade potencial que é desencadeada pelas circunstâncias e pela necessidade de conservação, e que possibilita por conseguinte a moralidade, porém também modera e apazigua o amor-próprio, tratando-se de uma “compensação natural” para os efeitos maléficos da sociabilidade e concorrendo “[...] para a conservação mútua de toda a espécie” (ROUSSEAU, 1973b, p. 260). No entanto, a piedade é afetada pela transformação gradativa do amor-de-si em amor-próprio, transformação que se torna cada vez mais intensa permitindo que aspectos negativos das paixões humanas como a vergonha, inveja, desprezo, vaidade, o orgulho fossem “[...] canalizadas, racionalmente, pelo amor-próprio [...]” (DALBOSCO, 2011b, p. 38) enfraquecendo o sentimento natural da piedade.

O retorno hipotético de Rousseau ao estado de natureza original – como recurso metodológico para pensar o homem natural desprovido das determinações artificiais da sociedade – não é apenas uma busca pela origem da desigualdade, mas uma tentativa de solucionar o problema da moralidade, que tem continuidade em Emílio ou da Educação. No Emílio, Rousseau projeta um modelo de educação primeira conforme a natureza, tendo como base o conceito de infância tida como uma fase da vida do indivíduo com características específicas, diferente do adulto. Segundo Barros (1963), para Rousseau o homem não é uno, há um dualismo na concepção do homem que é tanto capaz de ser livre como de ser escravo das paixões, que pode amar o bem e fazer o mal; há uma luta da alma contra o corpo, do sensível e do inteligível e dessa forma, o homem vive a moralidade como um problema capaz de submeter-se ou não ao domínio das paixões.

Além da piedade e do amor-de-si, virtudes naturais, o homem é por natureza dotado liberdade – vontade – e de perfectibilidade – capacidade de aprender, adaptar-se e aperfeiçoar-se. Mas a liberdade que distingue os homens dos animais, de acordo com Barros (1963), é na verdade, uma característica em potencial no homem natural, desencadeada pela vida social que transforma o homem em ser moral. Ela depende de certas circunstâncias e acontecimentos para despertar no homem, e principalmente, do descobrimento do outro. Pois é a partir da relação com seu semelhante que o homem é capaz de atingir as categorias morais que a liberdade envolve e fazer-se homem ao exercê-la. E “[...] de posse de sua liberdade e de sua responsabilidade, ele enfrenta o destino humano, um problema moral. Pode superar sua condição animal ou cair abaixo dela” (BARROS, 1963, p. 26).

Rousseau descreve o estado de natureza como propício à paz e o homem original, dotado de sentidos e de instintos, de uma liberdade potencial e de perfectibilidade. Ao contrário do homem social, o homem da natureza possui apenas necessidades naturais, ligadas à autoconservação; guiado pela piedade e pelo amor-de-si, que é amoral. Já o homem social, sujeito às paixões e guiado pela razão, possui necessidades artificiais as quais seu corpo debilitado pelo estabelecimento das ciências e das artes – e ainda, pela ornamentação de seu espírito, aprendendo a “bem dizer” ao invés de “bem fazer”, através de uma educação reprodutora de vícios – já não pode satisfazer. E essa distância entre seus desejos e a capacidade de suas forças é que tornará a condição do homem em sociedade infeliz e miserável.

A razão não é necessária na natureza, pois os homens vivem em perfeita harmonia com animais, suas necessidades não ultrapassam suas forças e tampouco necessitam uns dos outros, sendo a sociabilidade, na verdade, fonte dos males que o homem acomete a si mesmo. Diante das dificuldades impostas aos homens pela natureza para a sua sobrevivência, e tendo em vista o fato de serem dotados de liberdade e perfectibilidade, eles começam logo a desnaturar-se, afastando-se de sua condição original. As necessidades são aumentadas a ponto de não poderem satisfazer-se apenas com o instinto e a força de seus corpos tendo como consequência seu aperfeiçoamento com o progresso das paixões e o desenvolvimento sucessivo das faculdades superiores – a reflexão e a razão – abandonando a pureza do estado natural, em direção agora à civilidade.

A sociabilidade e a maneira como se desenvolveu no homem social foi o motivo de sua depravação. Seria preciso, então, melhor entender os progressos do homem em sociedade para achar a solução do problema da moralidade. Talvez assim como a virtude e a ciência, as quais não têm origem pura, podem ser direcionada pelo homem sábio para o bem comum, também pode o homem no seu desenvolvimento numa sociedade corrompida ser guiado a fim de recuperar sua bondade natural, sendo, então, preciso “[...] alterar a forma de sociabilidade que o levou à corrupção [...]” (PISSARRA, 2002, p. 55), dado que o estabelecimento das ciências e das artes e a depravação moral não são inevitáveis, mas ocasionados pelo acaso e pelo desenvolvimento sucessivos das ideias.

Portanto, assim como a educação pode ser reprodutora dos vícios corrompendo nosso julgamento pela ornamentação do espírito, poderia ser também a solução para seu impasse moral. Para tanto, seria preciso dirigir a criança não por um caminho falso, mas, como dito por Barros (1963), para a virtude e a sábia ignorância que leva o homem a voltar-se sobre si mesmo, ao autoconhecimento, tornando-se capaz de reconhecer o limite de suas forças. Pois é o descompasso entre o corpo e a alma, entre as forças do seu corpo e suas paixões, o que constitui a origem de todos os males da sociedade.

Considerações Finais

Se para Rousseau (1999), a miséria deriva da desproporção entre nossos desejos e nossas capacidades, da necessidade que sentimos das coisas, então para ser feliz é preciso igualar os desejos e as faculdades. A sabedoria humana consiste, assim, em equilibrar perfeitamente a vontade e o poder, pois em uma sociedade corrompida pelo pacto de submissão, nossos desejos se intensificam e nossas capacidades limitadas pelo afastamento da condição natural, trazem miséria e infelicidade ao homem. Por isso o projeto de educação que ele sugere no Emílio é justamente uma formação para que a criança se torne um “[...] homem realmente livre que só quer o que pode e faz o que lhe apraz. Eis minha máxima fundamental” (ROUSSEAU, 1999, p. 67). Rousseau assim, tem em mente alcançar a dignidade humana através de uma educação libertadora.

Faz isso construindo sua teoria orientado por uma concepção de natureza e por uma mesma forma de operar seu pensamento. Assim como no Segundo Discurso, em que utiliza da imaginação para, através de conjecturas, pensar os binômios estado de natureza e estado civil e o homem natural e homem social, também em Emílio ou da educação “Rousseau recorre à imaginação como método auxiliar da experiência” (PISSARRA, 2002, p. 60). Da mesma forma que o homem no estado de natureza, a infância é uma conjectura. Rousseau pensa o personagem Emílio e a infância, para então, refletir como seria possível uma educação natural e moral em uma sociedade corrompida tendo em vista a formação de indivíduos livres, autônomos e que se mantêm à margem da sociedade. A infância é, assim, um conceito fundamental em Emílio, uma categoria escolhida meticulosamente para operar o pensamento sobre a condição humana.

Para além de um “tratado de educação”, Emílio é uma obra sobre o processo de amadurecimento e desenvolvimento do homem da infância à idade adulta, que para Rousseau é estruturado por etapas, que precisam ser compreendidas em suas especificidades. Etapas sucessivas – infância, juventude e idade adulta – que por sua vez correspondem às fases de desenvolvimento da espécie humana - estado de natureza puro, o estado de natureza em que já há certo grau de sociabilidade (“a verdadeira juventude do mundo”) e o estado civil, respectivamente. Emílio também não é apenas um livro sobre educação, mas sobre o ser da criança, ou seja, sobre a essência e a compreensão da criança e da infância, procurando nela indícios do homem natural. Os atributos da criança seriam, para Rousseau, análogos àqueles que possui o homem no estado de natureza.

Vemos que há no pensamento de Rousseau, tanto político-social como pedagógico, uma mesma base antropológica que conecta seu projeto de educação e as etapas da vida do indivíduo à sua teoria sobre a origem da raça humana e da sociabilidade elaborada no Segundo Discurso. Relaciona os conceitos de homem natural e estado de natureza caracterizados pelo sentimento do amor-de-si; e o homem social e o estado civil pelo amor-próprio, enquanto no Emílio retoma estes sentimentos e a ideia do homem natural e social para explicar a infância e a idade adulta. Assim, na infância a criança teria as mesmas emoções e instintos do homem natural, sendo suas vontades orientadas pelo amor-de-si – a bondade natural e amoral -, enquanto a idade adulta Rousseau associa ao estado civil e ao homem social orientado pelo amor-próprio – “[...] diretamente vinculado às suas necessidades artificiais, às quais busca satisfazer por meio do jogo interno que constitui a representação” (DALBOSCO, 2011b, p. 38).

Então, por um lado temos a passagem do estado natural ao estado civil engendrada pela transformação gradativa do amor-de-si em amor-próprio, esta desencadeada pela expansão da piedade, o que torna a identificação com o outro cada vez mais intensa a ponto de permitir pela faculdade reflexiva despertada no homem social, colocar-se no lugar do outro para dominá-lo. Por outro lado, quando pensamos na criança Emílio e seu processo de maturação, ou seja, na vida dos indivíduos, a passagem do amor-de-si para o amor-próprio seria também a passagem da infância à idade adulta, instituindo dessa forma, como disse Dalbosco (2011b) a subjetividade como referência.

Logo, o problema moral que se apresenta a Rousseau decorre do fato de essa subjetividade ter sido desenvolvida de forma egoísta em sua origem, corroborando para a ideia de que a sociabilidade levaria à perversão moral inevitavelmente. No entanto, diferente do que algumas interpretações do pensamento de Rousseau afirmam, apesar da sociabilidade ter corrompido o homem, este ainda pode tornar-se um ser social e moral através da capacidade reflexiva do espírito possibilitada em virtude da perfectibilidade. O projeto pedagógico, em Rousseau, é, a um só tempo, alternativa e complemento da pauta da política, estando, portanto, necessariamente inscrito na agenda da vida em sociedade. Pensar Rousseau é, pois, estabelecer a intersecção entre natureza e cultura, entre política e pedagogia, entre homem e cidadão.

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Recebido: 24 de Junho de 2020; Aceito: 08 de Julho de 2020

Sophia Calil Breymaier

Universidade de São Paulo (Brasil)

Faculdade de Educação

Bolsista PIBIC do CNPq, Menção Honrosa no 27º SIICUSP

Projeto Temático ”Saberes e práticas em fronteiras: por uma história transnacional da educação

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-8431-7491

E-mail: sophia.breymaier@usp.br

Profa. Dra. Carlota Boto

Universidade de São Paulo (Brasil)

Faculdade de Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação

Projeto Temático ”Saberes e práticas em fronteiras: por uma história transnacional da educação

Bolsista PQ1D do CNPq

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-7389-2391

E-mail: reisboto@usp.br

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