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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.57 Natal jul./sept 2020  Epub 12-Ago-2021

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n57id21565 

Artigos

Estratégias de governamento dirigidas a sujeitos com deficiência em programas da mídia televisiva

Governance strategies aimed at individuals with disabilities in television media programs

Estrategias de gobernanza dirigidas a personas con discapacidades em los programas de televisión

Alice Sonaglio de Vasconcellos1 
http://orcid.org/0000-0001-6667-9878

Roseli Belmonte Machado2 
http://orcid.org/0000-0001-5653-1175

Alfredo Veiga-Neto3 
http://orcid.org/0000-0002-7148-3578

1Prefeitura Municipal de Taquari (Brasil)

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

3Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)


Resumo

Este artigo tem o objetivo de discutir como alguns programas midiáticos operam modos de subjetivação para conduzir a conduta dos sujeitos telespectadores em relação às pessoas com deficiência. O material de análise é parte de um acompanhamento de dois programas televisivos, Encontro com Fátima Bernardes e Esporte Espetacular, que foram analisados por um ano, totalizando 31 edições. Neste trabalho, abordamos 7 edições. A análise tem por base os estudos foucaultianos em educação e, dentro do seu arcabouço teórico, escolhemos os conceitos-ferramentas de governamento e modos de subjetivação. Destacamos que a mídia exerce uma condução de juízos dos telespectadores, operando modos de subjetivação por intermédio da participação de pessoas com deficiência. Uma participação que não é desinteressada, mas está conectada à compreensão da pessoa com deficiência como aquela capaz de se superar constantemente.

Palavras-chave: Inclusão; Mídia; Governamento; Modos de subjetivação

Abstract

This article aims to discuss how some media programs operate modes of subjectivation to conduct viewers' judgment in relation to people with disabilities. The analysis material is part of a follow-up of two television programs, Encontro com Fátima Bernardes (Encounter with Fátima Bernardes) and Esporte Espetacular (Spectacular Sport), which were analyzed for one year, totaling 31 editions. In this work, we cover 7 editions. The analysis is based on Foucaultian studies in education and, within its theoretical framework, we have chosen the concepts-tools of governance and modes of subjectivation. We emphasize that the media conducts viewers' judgments, operating modes of subjectivation through the participation of people with disabilities. A participation that is not disinterested, but is connected to the understanding of the person with disability as one capable of constantly overcoming.

Keywords: Inclusion; Media; Governance; Modes of subjectivation

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir cómo algunos programas de medios de comunicación operan modos de subjetivación para conducir el juicio de los espectadores en relación con las personas con discapacidad. El material de análisis forma parte del seguimiento de dos programas de televisión, Encontro com Fátima Bernardes (Encuentro con Fátima Bernardes) y Esporte Espetacular (Deporte Espectacular), que fueron analizados durante un año, totalizando 31 ediciones. En este trabajo, cubrimos 7 ediciones. El análisis se basa en los estudios foucaultianos sobre educación y, dentro de su marco teórico, hemos elegido los conceptos-herramientas de governanza y modos de subjetivación. Destacamos que los medios de comunicación llevan a cabo los juicios de los espectadores, operando modos de subjetivación a través de la participación de personas con discapacidades. Una participación que no es desinteresada, sino que está conectada con la comprensión de la persona con discapacidad como alguien capaz de superarse constantemente.

Palabras clave: Inclusión; Los medios de comunicación; Gobernanza; Modos de subjetivación

É comum vermos pessoas com deficiência circulando em vários espaços da sociedade contemporânea, como na escola, nos postos de trabalho e nos espaços de lazer. Essa presença faz com que a sua inclusão nesses locais seja amplamente discutida nos mais diversos espaços de conversa. Porém, é importante ressaltar, nem sempre foi assim. Sabe-se que o modo como tratamos as pessoas com deficiência passou por transformações ao longo do tempo, até chegarmos na situação em que vivemos hoje. Concordamos com autores, como Lopes e Rech (2013), que compreendem que, nos dias atuais, vivemos a inclusão como imperativo de Estado. Isso significa que deve atingir a todos sem distinção, independentemente dos desejos dos indivíduos, ou seja, todos devem ser incluídos. Para as autoras, esse imperativo de Estado implica, “[...] pelo seu caráter de abrangência e de imposição a todos, que ninguém possa deixar de cumpri-la, que nenhuma instituição ou órgão público possa declinar” (LOPES; RECH, 2013, p. 212).

Dessa forma, a inclusão como imperativo de Estado e a inquietação em relação aos sujeitos com deficiência amplia a pauta, antes praticamente restrita às instituições escolares, para outros espaços de convivência. E é justamente essa expansão que pretendemos discutir aqui, em especial, na mídia televisiva.

Pensamos ser relevante discutir a inclusão de pessoas com deficiência na mídia televisiva porque consideramos que isso exerce uma função pedagógica, no sentido de educar seus telespectadores, embora, diferentemente da escola, também produz efeitos nas condutas dos indivíduos a ser incluídos. Fischer (1997) menciona que há um “dispositivo pedagógico” da mídia. A autora afirma que, a partir da análise dos modos como é construída a linguagem de alguns programas de TV, seria possível caracterizar esse dispositivo, “[...] supondo que um produto dessa natureza se faz ‘pedagógico’ a partir da própria estruturação de seus textos, sons e imagens” (FISCHER, 1997, p. 66). Ainda segundo a pesquisadora, não se trata de separar conteúdo e forma, “[...] mas ao contrário, de investigar a lógica discursiva da mídia em direção à produção de sentidos, a partir do exame de estratégias de linguagem” (FISCHER, 1997, p. 66).

Alguns programas têm dado maior destaque às pessoas com deficiência. Exemplo disso são os programas Encontro com Fátima Bernardes e Esporte Espetacular, que parecem querer mostrar e conformar um jeito de ser da pessoa com deficiência. Esses programas exibem as pessoas com deficiência como exemplos de superação, seja por meio do esporte, como é o caso do Esporte Espetacular, seja mediante mudanças de hábitos, construção de uma família e vivência da sexualidade, entre alguns aspectos abordados no Encontro com Fátima Bernardes.

Por esse motivo, escolhemos esses dois programas para compor o lócus desta pesquisa e também por notarmos que há uma convocação e um chamado à sensibilização do público em geral quanto às histórias das pessoas com deficiência. Entendemos que isso é um modo de conduzir as condutas dos telespectadores, convidados e plateia e, portanto, pode ser uma estratégia de governamento (VEIGA-NETO, 2002), conceito que explicaremos melhor no decorrer deste artigo.

Ainda, destacamos que esses não são os únicos programas televisivos em que há essa convocação à sensibilização do público. Mas, no período de realização da pesquisa que originou este trabalho, o programa Encontro com Fátima Bernardes era considerado um programa de audiência consolidada no horário das 11h às 12h, de segunda à sexta. Por esse motivo, a atração foi escolhida. Assim como o Esporte Espetacular foi escolhido porque, no mesmo período, era o programa esportivo mais antigo, com maior duração e que não aborda apenas um esporte.

Diante disso, o objetivo deste artigo é discutir como alguns programas midiáticos, em especial o Encontro com Fátima Bernardes e o Esporte Espetacular, operam modos de subjetivação para conduzir a conduta dos sujeitos telespectadores em relação às pessoas com deficiência.

Este estudo tem por base teórico-metodológica os estudos foucaultianos em educação. Consideramos que pesquisar sobre inclusão a partir dessa perspectiva teórica implica que não a encaremos como uma ação positiva ou negativa para as pessoas com deficiência, mas como um viés questionador sobre como ocorre e de que modo influencia na vida dos sujeitos.

Para isso, o texto está dividido em 3 partes. Na primeira, Caminhos metodológicos, discorremos sobre os percursos para a construção do artigo e dos conceitos e noções fundamentais para a pesquisa. Na segunda, intitulada Estratégias de governamento de pessoas com e sem deficiência nos programas Encontro com Fátima Bernardes e Esporte Espetacular, realizamos as análises do material de pesquisa, operando com os conceitos-ferramentas. Essa seção ainda subdivide-se em duas: Pessoas com deficiência com histórias inspiradoras: a condução das condutas por meio do exemplo e A responsabilização da pessoa com deficiência pela maneira como a sociedade a enxerga. E, por fim, as considerações finais.

Procedimentos metodológicos

A pesquisa que originou o presente trabalhou surgiu da inquietude ao observar a constante participação de pessoas com deficiência em programas televisivos, em especial, nos programas analisados aqui. Mas, principalmente, pela percepção de que as pessoas com deficiência convidadas a falar possuíam um perfil e uma história semelhantes de autossuperação e de luta para superar o vitimismo. Observamos que histórias de pessoas com deficiência que se sentiam deprimidas, excluídas, vítimas de sua condição, não eram contadas.

A partir dessas observações iniciais e dos primeiros contatos com os materiais da pesquisa, escolhemos dentro do arcabouço teórico dos estudos foucaultianos em educação, os conceitos- ferramentas governamento e modos de subjetivação. São conceitos que consideramos pertinentes para problematizar a maneira como pessoas com deficiência participavam dos programas televisivos analisados. Quem era convidado a falar, como falava, qual era a sua história e como foi tratado durante a participação no programa.

Governamento é o termo que Veiga-Neto (2002) sugere utilizar nas traduções dos cursos de Foucault, nos casos em que se detecta a ação ou ato de governar. O autor escolhe a palavra governamento num contraste com “Governo”, que se refere à “[...] instituição do Estado que centraliza ou toma, para si, a caução da ação de governar” (VEIGA-NETO, 2002, p. 15).

De acordo com Castro (2009), a noção foucaultiana de governo possui dois eixos: o governo como relação entre sujeitos e o governo como relação consigo mesmo. Sobre o primeiro sentido, Foucault comenta que:

[...] é um conjunto de ações sobre ações possíveis. Ele trabalha sobre um campo de possibilidades aonde vem inscrever-se o comportamento dos sujeitos que atuam: incita, induz, desvia, facilita ou dificulta, entende ou limita, torna mais ou menos provável, no limite obriga ou impede absolutamente. Mas ele é sempre uma maneira de atuar sobre um ou vários sujeitos atuantes, e isso na medida em que atuam ou são suscetíveis de atuar. Uma ação sobre ações (FOUCAULT, 1995, p. 243).

Nesse sentido, governar consiste em conduzir condutas. No entanto, a condução de condutas não ocorre de maneira unilateral, quer dizer, no momento em que conduzimos a conduta do outro, também estamos nos conduzindo. Foucault trabalha com as noções de governo, na aula de 8 de fevereiro de 1978, no curso Segurança, Território e População. Nessa aula, o filósofo diz que a palavra “governar” abrange um vastíssimo campo semântico, pois pode referir-se ao controle exercido sobre si e sobre os outros, sobre seu corpo, sobre sua alma e sua maneira de agir, a um processo de troca que passa de um indivíduo a outro. Porém, alerta que: “[...] quem é governado são sempre pessoas, são homens, são indivíduos ou coletividades” (FOUCAULT, 2008, p. 164).

Percebemos potência do conceito para embasar a nossa pesquisa, pois a participação de pessoas com deficiência nos programas televisivos analisados parece ter a intenção de uma condução em diversos sentidos, ou seja, conduzir o sujeito “normal” para a familiarização, inclusão e aceitação da pessoa com deficiência e conduzir a pessoa com deficiência ao enfrentamento de sua condição e à necessidade de sua participação no mercado de trabalho, espaços de lazer e sociedade em geral.

Outro conceito-ferramenta que utilizamos foi o de modos de subjetivação. Segundo Castro (2009. p. 408), “[...] os modos de subjetivação são, precisamente, as práticas de constituição do sujeito”. Castro e Veiga-Neto explicam que as pesquisas de Foucault giraram em torno de três modos de subjetivação/objetivação dos seres humanos. Veiga-Neto (2007) aponta que a objetivação de um sujeito no campo dos saberes foi trabalhada pelo filósofo no registro da arqueologia, enquanto que “[...] a objetivação de um sujeito nas práticas do poder que divide e classifica [...] foi trabalhada na genealogia e a [...] subjetivação de um indivíduo que trabalha e pensa sobre si mesmo [...]” foi trabalhada no registro da ética (VEIGA-NETO, 2007, p. 111).

Avaliamos que se mostrou mais relevante trabalhar principalmente com o terceiro entendimento, que trata de quando o indivíduo trabalha e pensa sobre si mesmo e, assim, se torna sujeito. Nos programas analisados, a pessoa com deficiência conta sobre sua vida, explica as suas necessidades, as suas conquistas – com isso, ao falar de si, está sendo sujeito.

Consideramos sujeito, a partir do entendimento de Foucault como aquele que se constitui por processos de subjetivação. Segundo Veiga-Neto (2007, p. 111), “[...] nos tornamos sujeitos pelos modos de investigação, pelas práticas divisórias e pelos modos de transformação que os outros aplicam e que nós aplicamos sobre nós mesmos”. Para o autor, o filósofo tomou a palavra “sujeito” pelos seus dois significados mais importantes: sujeito assujeitado a alguém pelo controle e dependência, preso à sua identidade por uma consciência ou autoconhecimento.

Os dois programas escolhidos – Encontro com Fátima Bernardes e Esporte Espetacular – foram acompanhados pelo período de um ano (2017-2018). Em 31 e 8 programas, respectivamente, houve a participação de pelo menos uma pessoa com deficiência para tratar de inúmeros assuntos relacionados à sua vida e sobre uma possível superação de sua condição. A partir do acompanhamento inicial, foram construídas tabelas com a data e as pautas abordadas em cada edição. Posteriormente, os programas foram revistos na plataforma GloboPlay1 e transcritos em documentos separados por datas. No presente artigo, analisamos 7 edições, 6 do Encontro com Fátima Bernardes e uma do Esporte Espetacular. Escolhemos essas edições por não contarem com apenas uma única temática como fio condutor, mas, tratarem de aspectos gerais sobre a vida da pessoa com deficiência, relacionando esses aspectos à aceitação de sua condição e a sua relação com os outros a partir dessa aceitação, o que nos ajudou a estabelecer o objetivo proposto.

Encontro com Fátima Bernardes é considerado um talk – show da Rede Globo, que estreou em 25 de junho de 2012. Com duração de 60 minutos2, é transmitido ao vivo, de segunda a sexta-feira, logo após o programa Bem Estar. Em três blocos, mistura informação, matérias de comportamento, prestação de serviço, humor, música e interatividade com o público, em um tom informal que privilegia a conversa. O programa enfoca histórias comuns, relacionadas a assuntos do dia a dia e fatos ocorridos no Brasil e no mundo. Fátima Bernardes interage com os convidados, que são selecionados de acordo com o assunto do dia, incluindo especialistas em determinado tema, e uma plateia de 60 pessoas, de diferentes idades e classes. Um ponto interessante nesse programa é a construção das pautas, que, segundo Laurindo (2015, p. 51), “[...] nascem das ruas, chegam por assessorias, pelos artistas que vão aos programas, telespectadores; há um controle bastante atento sobre a Central de Atendimento ao Telespectador e à Internet”. Parece, portanto, que a atração tem uma construção conjunta com os telespectadores. A isso, talvez possamos associar a quantidade de participações de pessoas com deficiência no programa. Foram tratados assuntos como superação das dificuldades impostas pela deficiência, sexualidade e mercado de trabalho, entre outros.

O outro programa que compôs o material de pesquisa foi o Esporte Espetacular. Esse é o mais antigo programa esportivo da Rede Globo– estreou em 8 de dezembro de 1973 com o objetivo de abrir espaço na televisão para as diversas modalidades esportivas. A atração é exibida aos domingos, a partir das 9h30. Segundo o site Memória Globo, “[...] com um formato leve e dinâmico, o programa acompanha a história dos atletas, os melhores momentos e os bastidores das competições, e os recordes mundiais” (GLOBO, 2019). Até dezembro de 2018, período considerado na pesquisa, o programa era apresentado pelos jornalistas Fernanda Gentil e Felipe Andreoli. É importante mencionar que as oito reportagens com a participação de pessoas com deficiência, utilizadas na pesquisa, foram exibidas predominantemente em três quadros e/ou séries: “Superação”, “Valor em jogo” e “Sobre Rodas”. A série “Sobre Rodas” estreou em 2 de abril de 2017 com o atleta paralímpico Fernando Fernandes encarando vários desafios. O quadro “Valor em jogo” mostra assuntos socialmente relevantes e, o “Superação” exibe reportagens com histórias sobre esse tema.

Estratégias de governamento de pessoas com e sem deficiência nos programas Encontro com Fátima Bernardes e Esporte Espetacular

A partir de trechos dos programas, como o texto de apresentação do convidado e as falas dos convidados, pretendemos discutir como se exerce a orientação de condutas de diferentes formas por meio de modos de subjetivação.

Inicialmente, entendemos que é pertinente sublinhar algumas constâncias que percebemos nas reportagens e, ainda, as diferenças de abordagem entre os dois programas analisados. É importante ressaltar que os focos das reportagens dos dois programas são diferentes. O Encontro com Fátima Bernardes fala sobre a vida das pessoas com deficiência em todos os seus aspectos, destacando uma habilidade ou alguma história de superação daquela pessoa, e, por isso, encontra-se em maior número no material da pesquisa realizada. Já o Esporte Espetacular exibe reportagens curtas, em que a pessoa com deficiência é apresentada de maneira breve, com foco na questão do esporte. Por exemplo, a ida a um estádio de futebol, o desejo de ser técnico de futebol e assim por diante.

No Encontro com Fátima Bernardes, a pessoa com deficiência é apresentada; sua deficiência é nomeada e a sua causa, se houver, é explicitada, ou se não houver, especulada. Na maior parte dos programas, um especialista fala sobre a deficiência daquele convidado, aparentemente para endossar o que a pessoa está contando ou para explicar como é ter aquela deficiência, quais os impactos, quais partes do corpo são atingidas, assim por diante. Há, também, recorrentemente, apelos para que as escolas desenvolvam ações de respeito e inclusão para as pessoas com deficiência. Dificilmente, a inclusão escolar é tratada de forma isolada, mas diversas vezes é colocada em pauta como uma saída para uma sociedade que respeite a pessoa com deficiência e a inclua.

Nossa análise também nos mostra que, quando a pessoa com deficiência é uma criança ou um adolescente, e comparece ao programa com seus pais, há constantes elogios e créditos a eles pelo desenvolvimento de seu filho e por suas ações enquanto pessoa com deficiência ativa na sociedade em que vivemos.

André Curvello (jornalista): É, assim, aceitando os desafios da vida que a pequena Sophia vai ganhando independência. Essa é a lição mais importante que os pais ensinaram para ela, desde que souberam que a filha cresceria, sem enxergar (PROGRAMA ENCONTRO COM FÁTIMA BERNARDES, 2017a).

[...]

Rossandro (psicólogo): Demais. A estratégia de vocês é uma coisa fantástica. Porque, quando você educa um filho. Primeiro, a educação de um filho, independe pra que ele seja capaz de lidar com o mundo. Então, toda a criança tem deficiências, nós nascemos com impossibilidades, e vocês educam os filhos, educam a Cecília, capacitando ela pra conviver com o mundo (PROGRAMA ENCONTRO COM FÁTIMA BERNARDES, 2017b).

Para iniciar, queremos mostrar que em alguns momentos, no programa Encontro com Fátima Bernardes, a apresentadora, ao encerrar a participação, deixa evidente que o objetivo de receber a pessoa com deficiência para falar de si e dos assuntos suscitados durante a participação era o de inspirar, influenciar e mostrar o que é possível para outras pessoas com deficiência, como refletem as transcrições a seguir.

Fátima Bernardes: [...] estou super feliz que vocês vieram aqui se mostrar todas, mesmo. E ajudaram hoje um monte de gente, com certeza, que hoje está em casa, ainda num outro processo de aceitação. Vocês mostraram que é possível [...] (PROGRAMA ENCONTRO COM FÁTIMA BERNARDES, 2017c).

[...]

Fátima Bernardes: Essa é a mensagem que a gente queria passar, porque, na verdade, nem todo mundo vai ter a evolução. [...] Mas cada um pode chegar o máximo possível, e o que a gente espera com o seu exemplo é que as pessoas não desistam de tentar [...] (PROGRAMA ENCONTRO COM FÁTIMA BERNARDES, 2017d).

[...]

Fátima Bernardes: Ou seja, é isso que a gente quer aprender. É com essa convivência que todos nós queremos nos modificar um pouquinho também. Seja com a deficiência e com a dificuldade que for (PROGRAMA ENCONTRO COM FÁTIMA BERNARDES, 2017e).

Com base nas lentes teóricas que possuímos, entram em cena nesses excertos estratégias de governamento que ficam claras quando a apresentadora menciona que a participação vai inspirar ou ajudar muitas pessoas. Em frases como “[...] é isso que a gente quer aprender. É com essa convivência que todos nós queremos nos modificar um pouquinho [...]”, essas estratégias de governamento são colocadas em prática. Como aponta Castro (2009), o governo possui dois eixos, o primeiro refere-se ao governo como relação entre sujeitos, e o segundo, ao governo com relação consigo mesmo. Nas falas acima, percebemos esses dois eixos em atuação, uma vez que, ao mesmo tempo em que a apresentadora diz que quer modificar-se com as participações de pessoas com deficiência também frisa que essas participações podem modificar um pouco todos os que dela participam.

Ao exibir pessoas com deficiência, nesse caso falando de si, como se deu o processo de aceitação da sua condição, o seu desenvolvimento durante a fisioterapia, entre outros aspectos de sua vida, há um direcionamento para que quaisquer pessoas se sintam influenciadas a tentar superar suas dificuldades. Mas, além de superar as dificuldades físicas, busquem a superação das dificuldades sociais, como a inserção no mercado de trabalho e a participação na sociedade como um todo. Por isso, entendemos que as estratégias de governamento também se constituem em processos de subjetivação dos telespectadores, que têm que realizar uma autocondução para atingir objetivos semelhantes aos do convidado. Assim, esses sujeitos trabalham sobre si mesmos, o que é, segundo Veiga-Neto (2007), um dos modos de subjetivação apresentados por Foucault em suas aulas e obras.

Pessoas com deficiência com histórias inspiradoras: a orientação das condutas por meio do exemplo

Acreditamos que a escolha das pessoas com deficiência que participaram das atrações estudadas não foi neutra. São convidados aqueles que têm um forte discurso de autoaceitação e autossuperação; aqueles que se esforçam para romper as barreiras do que é considerado normal, mostrando suas capacidades e habilidades. Um exemplo disso é a participação de Mariana Torquato, uma jovem com deficiência física que faz vídeos para internet sobre sua condição. Nessa edição do Encontro com Fátima Bernardes, exibiram uma reportagem sobre sua vida. Foram apresentadas suas fotos de criança e na fase adulta durante a reportagem, bem como alguns vídeos considerados surpreendentes pela apresentadora, como quando ela pinta as unhas, mesmo sem ter um braço, ou corta o cabelo. A narração de André Curvello, jornalista do programa, acompanhou a exibição das imagens.

André Curvello: Mariana nasceu sem parte de um braço, mas isso não fazia a menor diferença para ela. Era igual a todo mundo e fazia tudo que todos faziam. Foi na adolescência que começou a entender as coisas de outra forma, o que parecia um detalhe, sem importância, passou a fazer muita diferença na vida dela. Entendeu isso, de uma maneira muito estranha, o jeito como a olhavam, os apelidos que recebia, o sentimento de pena e às vezes de desprezo com que a tratavam. Nada disso, porém, impediu que Mariana crescesse cheia de autoestima e atitude. Resolveu tocar a vida como podia e recusou todos os estereótipos. Fazer a vítima, jamais! Muito menos a heroína. Se tornou o que sempre foi, Mariana simplesmente. Uma pessoa como outra qualquer, com um papel super importante nesse mundo – o de protagonista da própria história (PROGRAMA ENCONTRO COM FÁTIMA BERNARDES, 2017f).

Na apresentação de Mariana, percebemos uma iniciativa no sentido de mostrá-la como uma pessoa “normal”, ou seja, dentro da norma de sociedade representada no programa. Antes de continuar, ressaltamos que a norma permite uma comparação entre os indivíduos e, por seu intermédio seu intermédio, podemos determinar quem é o “normal” e quem é o “anormal”. E, a partir dessa comparação, “[...] chama-se de anormal aquele cuja diferença em relação à maioria se convencionou ser excessiva, insuportável. Tal diferença passa a ser considerada como um desvio, isso é, algo indesejável” (VEIGA-NETO, 2007, p. 75). Nesse sentido, ficam bem explícitas as tentativas de apresentá-la como alguém próxima às pessoas sem deficiência, com seus sonhos, sua vida ativa, suas dificuldades na adolescência, iguais as da maioria das pessoas que acabaram por superá-las. A superação das dificuldades da adolescência e do preconceito sofrido pode ser uma tentativa de sensibilização das pessoas que assistem ao programa de casa a respeito dessa pessoa com deficiência. Talvez haja telespectadores que passem por uma situação semelhante, e a história de Mariana lhes mostre que não estão sozinhos e que também podem superar esse momento, basta não deixar que isso os impeça de seguir em frente, assim como fez a convidada.

Também foram exibidas reportagens de apresentação de outras participações, semelhantes a de Mariana, em que o otimismo e a força de vontade são exibidos como fundamentais para a superação das dificuldades. Um exemplo foi a participação de Amália, uma jovem de 20 anos que ficou cega do olho esquerdo em virtude da toxoplasmose e, após 10 anos de tratamento e 10 cirurgias, não conseguiu recuperar a visão e ainda teve um problema em um dos rins, que precisou ser retirado. Durante a apresentação, fica em destaque a sua postura diante das dificuldades.

André Curvello: Amália não perdeu o otimismo, nem o bom humor, chegou a brincar, dizendo que por sorte só teve problemas com órgãos duplos. Um olho e um rim funcionando dariam conta do recado. Seguiu a vida, realizando os sonhos de se casar e de se tornar jornalista. [...] Hoje, Amália usa a sua história para motivar pessoas que passaram por algo parecido (PROGRAMA ENCONTRO COM FÁTIMA BERNARDES, 2017c).

Amália é apresentada como uma pessoa com deficiência que superou as dificuldades, não desistiu dos sonhos, manteve o bom humor e não se abalou com a sua condição. Talvez possamos dizer que Amália fez uma autogestão e autocondução para a superação de suas dificuldades, assim como Mariana. Da mesma forma, também utiliza a sua história para motivar outras pessoas na mesma condição, ou seja, além de sua participação na atração, Amália já utilizava sua história para ajudar outras pessoas com deficiência. Consideramos que o programa usa essas reportagens iniciais justamente como uma estratégia de governamento de quem assiste, para que tenha um olhar específico dirigido à pessoa que está sendo apresentada e que falará em seguida. A apresentação da condição de uma pessoa com deficiência ocorre em paralelo às suas características positivas e agradáveis que a caracterizam como alguém batalhadora, bem humorada e que enfrenta a vida sem reclamar. A apresentadora não convida uma pessoa entregue ao coitadismo, mas, sim, aquela que luta com garra para adaptar-se às dificuldades da vida – alguém que se constitui como sujeito, trabalha e pensa sobre si mesmo na busca da superação de suas dificuldades.

Oliveira e Weschenfelder (2017, p. 89) consideram que, “[...] ao nomear e identificar a deficiência que acompanha o sujeito, a diferença não é tensionada, mas assolada e domesticada”. Acreditamos que a apresentação da pessoa com deficiência que será entrevistada assume um caráter que vai além do informacional, tranquilizando quem assiste, pois, antes de conhecer a convidada, já se sabe qual deficiência possui e quais são as suas características. Da mesma forma tranquiliza o telespectador, reforçando a normalidade das pessoas com deficiência.

Outro ponto interessante da participação de Amália é que, no mesmo dia em que ela esteve no programa Encontro com Fátima Bernardes, Rayane, outra pessoa com deficiência também foi convidada. Essa convidada não teve sua apresentação feita por uma reportagem, sua história foi contada por ela mesma. Um fato instigante sobre essa participação é que Rayane não aceitou de imediato a amputação da perna após um acidente, nem com bom humor, autoestima elevada etc. Ela demorou seis anos para aceitar-se. Vemos que a presença de Amália, junto de Rayane, pode ter sido uma estratégia para que a segunda convidada fosse estimulada pela primeira. Talvez a participação de Amália tenha conduzido Rayane a permanecer no caminho da autoaceitação e a estimule a fazer uma autogestão para a superação de suas dificuldades. Foucault (1995, p. 243) comenta que o governo como relação entre sujeitos “[...] é sempre uma maneira de atuar sobre um ou vários sujeitos atuantes, e isso na medida em que são suscetíveis de atuar. Uma ação sobre ações”.

Participações como a de Rayane eram difíceis de ver no programa, ao menos no período que o acompanhamos, pois não buscam conduzir outras pessoas de uma forma positiva, o que parece ser o objetivo dessas participações. Mesmo que o programa receba pessoas em processo de aceitação ou com um turbulento processo até chegar a ela, parece haver um contraponto com outra pessoa, como Amália, positiva, bem humorada, que enfrentou e superou a deficiência com rapidez.

Lopes (2009b, p. 128, grifo da autora) aponta que a “[...] inclusão não é um mecanismo para homogeneizar ou igualar as condições de vida e de participação de todos, mas é a estratégia de colocar todos em circulação e integrando um gradiente de inclusão”. Entendemos que os programas aqui analisados mostram justamente isso, pessoas em diferentes condições de inclusão na sociedade, com a finalidade de instigar outras pessoas com deficiência a participar da sociedade, cada um dentro de um nível de inclusão possível.

De maneira semelhante, no Esporte Espetacular, no quadro “Superação”, também são feitas reportagens de apresentação dos praticantes dos esportes antes das entrevistas. Exibem uma reportagem contando sobre a história de sua deficiência, com a peculiaridade de que são intercaladas as falas da pessoa com deficiência, dos seus pais, do médico e a narração do repórter.

Carlos Alberto: Da noite pro dia, fui perdendo as forças nas pernas, comecei a caminhar ruim, a cair, cair muito, que as pernas faltavam força.

Repórter: Esse é o Carlos Alberto, hoje ele sabe que já é um campeão. Aos 22 anos, ele consegue chegar pra nossa entrevista caminhando, sem a ajuda de ninguém, algo que surpreendeu os médicos.

Médico: Existia sempre um receio de quanto isso ia piorar e se ele iria pra cadeira de rodas. Se ele iria ficar restrito, iria ficar restrito, iria ficar independente.

Carlos Alberto: Poxa, vou poder ficar de cadeira de rodas, me bateria aquela tristeza, mas eu nunca fui aquele menino de me deixar abater por qualquer coisa.

Repórter: Aos 7 anos, Carlos tem um princípio de paralisia na 2ª vertebra da coluna, uma doença neurológica chamada de paraparesia espástica. Os músculos da perna começaram a atrofiar.

Mãe: Eu sai de lá, abalada. Saí de Brasília até aqui sem falar um a, em choque. Aí ele pegou, chegou em mim e falou: Mãe, não fica triste. Eu sei, eu não vou ficar numa cadeira de rodas [...].

Repórter: Só existia um caminho para superar o preconceito e as limitações, o esporte.

Médico: O Carlos seguiu e ele se superou, porque ele queria fazer mais atividades do que aquele potencial que, em tese, ele poderia.

Repórter: Dali em diante, a cadeira de rodas foi descartada. E ele passou a usar as rodas da bicicleta.

Carlos Alberto: Quando eu tô em cima de uma bicicleta, na realidade, eu me sinto normal, como gente que não tem problema algum. [...] Do passado, eu poderia ter ficado numa cadeira de rodas, então, hoje, já que eu tenho a oportunidade de caminhar, fazer força, não é?

Repórter: Quem diria, Carlos, hoje, compete de igual para igual com atletas sem nenhuma deficiência (PROGRAMA ESPORTE ESPETACULAR, 2017).

Na forma como a história de Carlos Alberto é contada, encontramos alguns aspectos comuns com as outras reportagens. Carlos é uma pessoa com deficiência que não se deixou abalar pela nova condição, lutou pela superação e acreditava na sua recuperação ou na redução de sua limitação. Assim, há um reforço de que o telespectador com deficiência “só” precisa ter força de vontade para aceitar sua condição e buscar o desenvolvimento dentro de suas possibilidades – e aqui há uma condução muito forte nesse sentido. Um aspecto novo dessa reportagem é o esporte como um meio de aproximar a pessoa com deficiência da “normalidade”. Carlos se sente uma pessoa sem deficiência quando está na bicicleta, e o repórter ressalta que ele compete de igual para igual com outros atletas sem deficiência. Não temos a intenção de destacar uma razão para que isso ocorra, mas parece que a prática esportiva lhe proporciona uma “luta” maior, que é vencer seus próprios limites, embora tenha outros adversários para competir. Quando isso corre, a sensação de “normalidade” da pessoa com deficiência, em relação à sua capacidade, talvez se expanda por meio dos reforços positivos da prática esportiva.

Diante do exposto, entendemos que a orientação das condutas nos programas analisados para uma maior sensibilização com relação à pessoa com deficiência, no sentindo de enxergá-la como capaz, alguém que supera os seus limites e busca ir além das suas capacidades é feita de diferentes maneiras, uma delas é a reportagem de apresentação dos convidados. Nelas, são descritos como otimistas, lutadores, guerreiros, enfim, se constrói um perfil que pode influenciar o telespectador a percebê-los dessa forma. Porém, isso também ocorre quando a pessoa com deficiência dá o seu depoimento, como é o caso de Kareemi.

Kareemi: A gente tem duas escolhas quando algo assim acontece, né, Fátima. Ou a gente vai entrar nessa dor e levar muito mais tempo para conseguir olhar ela de outra forma, ressignificar e superar isso. Ou, eu tenho que ter consciência de que, eu tenho que aceitar o que aconteceu, que não dá pra ser mudado e meu braço não vai nascer de novo. Não ia nascer, eu já sabia disso. Então, eu procurei o que: Ok, eu tô sem o braço, ficou o esquerdo, eu era destra, então até agora ele não trabalhou muito, mas eu tenho você, e você vai fazer tudo que eu preciso. E isso foi uma forma de focar na criatividade, em como reaprender a fazer as coisas e não entrar na lamentação e na comparação de como era mais simples fazer tudo quando eu tinha os dois. Então, eu acredito que vem, justamente, nós temos essa força dentro de nós, mas a gente está o tempo todo tão metralhado de que tudo é tão difícil, de que a vida é sofrida, de que tudo é duro demais, que a gente fica meio com o nosso padrão mental bloqueado de olhar para as coisas que aparentemente são ruins de uma forma muito mais leve, muito mais amena, que vai colaborar muito mais com a minha em geral, não é? (PROGRAMA ENCONTRO COM FÁTIMA BERNARDES, 2017g).

A participação de Kareemi é curiosa porque a convidada é mostrada quase como uma heroína, alguém que utiliza palavras motivacionais para superar um acidente e aceitar a nova condição: a de pessoa com deficiência. Na sua participação, Kareemi desafiou até o especialista convidado do programa, que tentava explicar que após um acidente as pessoas passam por algumas fases do luto. A convidada disse que não passou por isso e que ajuda muitas pessoas que se deixaram abater. Consideramos que a participação de Kareemi é uma estratégia de orientação das condutas, no sentido de que uma pessoa não deve se abalar nem sofrer quando passa por um acidente que lhe transformou em uma pessoa com deficiência. Inclusive, a própria convidada verbalizou que, quando acontece algo assim, as pessoas têm duas escolhas – entrar na dor ou aceitar a dor. Nessa participação, percebemos uma convocação para que as pessoas com deficiência façam a autogestão apontada por Menezes (2017), para que sejam produtivas, eficientes e politicamente econômicas para o Estado.

Nas palavras de Kareemi há uma responsabilização da pessoa com deficiência com relação à maneira como vai se autoconduzir para viver e/ou adaptar-se a essa nova condição. Seu discurso foi bastante emblemático e rígido quanto à forma como a vida deve ser encarada após um acidente, parecendo menosprezar aqueles que sofrem após uma adversidade como essa. Fica bastante evidente em suas palavras que não se deve sofrer por nada na vida. Também se percebe a sua estratégia de orientar as condutas tanto das pessoas com deficiência quanto as de pessoas sem deficiência. Das duas opções apontadas, quando ocorre algo inesperado na vida, o melhor caminho seria aceitar sem sofrer e seguir em frente.

Ao levar Mariana, Amália, Rayane, Carlos Alberto e Kareemi, as atrações analisadas exibiram pessoas com deficiência que participam da sociedade, buscam superar seus limites e se adaptam às limitações impostas pela deficiência. Com isso, os convidados participam ativamente do jogo neoliberal, cumprindo as duas grandes regras: (1) todos devem manter-se em atividade e (2) todos devem estar incluídos (LOPES, 2009a). Na segunda regra, a autora destaca três condições principais de participação: “[...] primeiro, ser educado em direção a entrar no jogo; permanecer no jogo (permanecer incluído); terceiro, desejar permanecer no jogo” (LOPES, 2009a, p. 155). Percebemos que eles passaram por essas condições e, ao participarem dos programas e contarem suas histórias, estão, de certa forma, educando outras pessoas com deficiência para que desejem entrar no jogo e ali permanecer. E essa educação é feita por meio da orientação de condutas exercida pelas reportagens e falas dos convidados.

A responsabilização da pessoa com deficiência pela maneira como a sociedade a enxerga (ou a percebe)

Como já mencionamos o programa Encontro com Fátima Bernardes discutiu diversos assuntos com as pessoas com deficiência, como o mercado de trabalho, a inclusão no ambiente escolar, tecnologias assistivas, sexualidade, entre outras. Em uma das edições que debateu a vivência da sexualidade e a realização do sonho de uma pessoa com deficiência física em ser mãe, a convidada foi Alessandra, que possui deficiência física. Nesse dia, comentou-se sobre o despreparo de médicos para atender pacientes grávidas com deficiência e sobre o bloqueio que as pessoas têm para se relacionar com pessoas com deficiência e cadeirantes, como é o caso de Alessandra. Instigada pela apresentadora, ela comentou que há bastante bloqueio, mas que isso depende mais do cadeirante mostrar naturalidade para o outro.

Alessandra: Eu acho que depende mais de nós, cadeirantes, mostrar pro outro, a naturalidade, né. Porque se eu não tivesse vivido isso, na minha vida, esse acidente... talvez seria como outro ignorante no assunto. Eu acho que cabe mais tá mostrando, falando, que é possível, você engravidar, casar, trabalhar, cuidar de uma família e é isso (PROGRAMA ENCONTRO COM FÁTIMA BERNARDES, 2018).

Com essa exposição, a participante tenta conduzir as pessoas com deficiência a se mostrar capazes para as pessoas sem deficiência, para que, assim, sejam vistas de outra forma por pessoas que não entendem de deficiência; arriscamos dizer que, de certa maneira, as pessoas com deficiência são responsabilizadas com relação à forma que a sociedade as enxerga e as trata. Percebemos uma convocação para que as pessoas com deficiência se mostrem “normais”, “naturais”, para a sociedade, o que pode ser a saída para que recebam um olhar com menos bloqueios.

Assim, além da pessoa com deficiência ser conduzida a fazer a autogestão da superação da sua condição, de se manter incluída e fazer parte do jogo neoliberal, ela também é responsabilizada sobre a maneira como é vista na sociedade. Ou seja, na fala de Alessandra, há uma estratégia de governamento por meio de modos de subjetivação para que as pessoas com deficiência se exponham e, principalmente, exponham suas capacidades e conquistas.

Considerações finais

Neste artigo tivemos a intenção de discutir como os programas Encontro com Fátima Bernardes e o Esporte Espetacular operam modos de subjetivação para conduzir a conduta dos sujeitos telespectadores em relação às pessoas com deficiência. Buscamos operar com os conceitos-ferramentas de governamento no sentido de conduzir condutas e modos de subjetivação, a partir do terceiro entendimento de Foucault (VEIGA-NETO, 2007), que é quando o indivíduo trabalha e pensa sobre si mesmo e, assim, se torna sujeito.

Ao operar com essas ferramentas, percebemos que estratégias de governamento entram em cena com a apresentação dos convidados, através de um elencar de atitudes e características positivas e agradáveis, construindo uma pessoa com deficiência que luta e se supera constantemente. Isso ocorre até o momento de despedida do convidado, quando a apresentadora de uma das atrações verbaliza que as falas irão influenciar muita gente, modificando-as um pouco. Assim, percebemos o governo desses sujeitos atuando em dois eixos, como aponta Castro (2009): (1) governo como relação entre sujeitos e (2) governo com relação consigo mesmo. Ou seja, ao mesmo tempo em que a pessoa com deficiência se relaciona com outros indivíduos, conduzindo-os a pensar de outros modos, através da sua participação nas atrações analisadas, também trabalha sobre si mesma, exercendo, assim, um modo de subjetivação considerado por Foucault em suas aulas e obras, como aponta Veiga-Neto (2007).

Assim, compreendemos que a mídia exerce uma condução das condutas dos telespectadores, operando modos de subjetivação por intermédio da participação de pessoas com deficiência, nos programas analisados. Importa destacar que tal participação não é desinteressada, mas conectada aos modos de compreender a pessoa com deficiência como aquela capaz de se superar constantemente.

Notas

1Globoplay é uma plataforma digital da Rede Globo de streaming de vídeos sob demanda. Ou seja, possibilita que os telespectadores vejam e revejam os programas exibidos na emissora em horário e data diferentes das de sua exibição original no canal aberto na televisão.

2Durante o processo de escrita da pesquisa, o tempo de duração do programa foi modificado, passando para aproximadamente 1h e 15 minutos. O programa Bem Estar passou a ser um quadro do Encontro com Fátima Bernardes, programa exibido após o Mais Você.

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Recebido: 30 de Junho de 2020; Aceito: 28 de Julho de 2020

Ms. Alice Sonaglio de Vasconcellos

Prefeitura Municipal de Taquari (Rio Grande do Sul – Brasil)

Secretaria de Educação

Grupo de Pesquisa em Currículo e Contemporaneidade (GPCC/PPGEDU/UFRGS)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-6667-9878

E-mail: alicesonaglio@yahoo.com.br

Profa. Dra. Roseli Belmonte Machado

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

Departamento de Educação Física, Fisioterapia e Dança

Grupo de Pesquisa em Currículo e Contemporaneidade (GPCC/PPGEDU/UFRGS)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-5653-1175

E-mail: robelmont@yahoo.com.br

Prof. Dr. Alfredo Veiga-Neto

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

Faculdade de educação

Grupo de Pesquisa em Currículo e Contemporaneidade (GPCC/ PPGEDU/UFRGS)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-7148-3578

E-mail: alfredoveiganeto@gmail.com

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