Introdução
Jean-François Lyotard (1924-1998) foi o intelectual francês que inspirou e continua influenciando um enorme contingente de fiéis discípulos espalhados pelo universo acadêmico mundial. Ele foi o responsável por criar um “enunciado”, ou melhor, uma sentença profética em que expressa o entendimento que desde a década de 1970 o mundo teria ingressado em um novo tempo pós-capitalista, por ele proclamado pós-modernidade.
A obra A condição pós-moderna (LYOTARD, 2018) trata dos supostos novos tempos e traz, em sua essência, uma preocupação central com a questão do saber, isto é, do conhecimento, da ciência e das características de sua difusão nos moldes da apologia ao mundo pós-moderno. Se fosse possível sintetizar o clássico texto, poderíamos arriscar-nos a afirmar que a sua ideia central é a disputa pela supremacia de um paradigma relativista do conhecimento após a crise da década de 1970.
Toda a obra se fixa em torno da questão da produção, socialização e efeitos do conhecimento sobre as condutas dos indivíduos e sociedades. Lyotard serviu-se da dimensão antropológica para justificar determinadas condutas tidas como culturais dos indivíduos em suas realidades imediatas, fora da produção científica e do senso comum. Mas, quando se trata da ciência, dos “saberes científicos” – daqueles que são de grande interesse para o capitalismo – ocorre um outro direcionamento por parte do autor que perde qualquer dimensão de espontaneísmo.
A desconfiança acerca dos aspectos superficiais apresentados por Lyotard conduzem a uma suspeita inicial a respeito do que está em questão na sua obra, qual seja, uma vigorosa disputa pelo conhecimento a serviço da manutenção de um determinado modo de produção. Utiliza-se, para tal intento, o pensador francês do “jogo de linguagem”, do qual é mestre, a fim de edificar um discurso sedutor que afirma o respeito à diversidade, mas em que, na sua essência, é a clássica especulação filosófica criticada por Marx e Engels (2011).
Isto posto, busca-se revelar o que está oculto na concepção de conhecimento protagonizada na obra A condição pós-moderna. O presente texto, nesse sentido, apresenta uma síntese dos resultados iniciais deste estudo. São considerados resultados iniciais, pois as consequências da concepção pós-moderna não se restringem ao pensamento de Lyotard. Elas se interseccionam com uma visão de mundo e ideias sustentadas por outros pensadores, que, embora possam parecer diferenciadas, acabam possibilitando a sequência do trabalho do filósofo-profeta francês do neoliberalismo. A especulação lyotardiana acerca do saber é, portanto, o teor do trabalho que se apresenta aqui.
A defesa de Lyotard do nascimento de uma era pós-moderna e a crise do capitalismo na década de 1970
Lyotard tenta justificar de várias formas a produção e a organização do saber, utilizando-se de um amplo referencial teórico-conceitual e sobretudo do que mais enfatiza em todo o texto: dos “jogos de linguagem”. O filósofo defende o papel do “enunciado” da linguagem do saber científico que cumpre as regras do jogo de “retórica do tipo judiciário” no processo de pesquisa e deve, mais do que deliberadamente convencer as pessoas acerca da verdade, conduzir tais “destinatários” para que pensem que “a realidade é como eu a digo” (LYOTARD, 2018, p. 45). De modo geral, o que unifica os saberes sob seu ponto de vista não poderá ser outra perspectiva senão a da teoria dos jogos. No fim, tudo acaba em uma otimização de performances advindas dos que estão aprendendo a jogar.
A assinatura da declaração que torna o mundo pós-moderno para Lyotard se deu em meio a uma crise internacional do capitalismo, que sob sua ótica, significa pura e simplesmente uma transformação da natureza do saber e implica sobre:
[...] os poderes públicos estabelecidos um efeito de retorno tal que os obrigue a reconsiderar suas relações de direito e de fato com as grandes empresas e mais genericamente com a sociedade civil. A reabertura de mercado mundial, a retomada de uma competição econômica ativa, o desaparecimento da hegemonia exclusiva do capitalismo americano, o declínio da alternativa socialista, a abertura provável do mercado chinês às trocas, e muitos outros fatores, vêm preparar os Estados, neste final dos anos 70, para uma revisão séria do papel que se habituaram a desempenhar desde os anos 30, que era de proteção e guia, e até de planificação de investimentos. Neste contexto, as novas tecnologias, pelo fato de tornarem os dados úteis às decisões (portanto, os meios de controle) ainda mais instáveis e sujeitos à pirataria, não podem senão exigir a urgência deste reexame (LYOTARD, 2018, p. 6-7).
Mesmo diante dos efeitos da crise do modo de produção capitalista pela qual o mundo inteiro passava, Lyotard declarava seu assentimento aos grupos dominantes que estavam implementando o novo modelo de políticas liberais voltadas para destruir o Walfere State e instituir uma severa contrarre-forma de Estado e o reajustamento das economias dos países subalternos a serviço das grandes fortunas e dos interesses dos rentistas. Instalava-se uma contrarrevolução para esterilizar os movimentos e a organização das massas trabalhadoras que ameaçassem as perspectivas do novo modelo liberal que estava sendo concebido e para inviabilizar qualquer projeto de superação do próprio capitalismo. As estratégias para lançar mão da implementação do neoliberalismo, quando não havia consenso dos governos foi, como comprova a história latino-americana, o apoio irrestrito às violentas ditaduras militares como as implantadas no Chile e na Argentina, em 1973 e 1976, respectivamente.
O pensamento pós-moderno de Lyotard acerca dos saberes é integrante da conjuração a serviço dos interesses desse novo projeto destrutivo, regressivo que se instala no mundo a partir da década de 1970. Trata-se, do plano que se encaixa perfeitamente no âmbito monopolista típico da fase imperialista do capitalismo, do fetichismo da mercadoria e da destruição das forças produtivas (MONTORO, 2016; SAVIANI, 1991) que demarca a regulação neoliberal.
A crise do capital da década de 1970, foi, como descreve Wolfgang Streeck (2018), uma crise de investimentos capitaneada pelos proprietários do capital financeiro a fim de atacar a indústria e a hegemonia do Estado. A intenção era que os mais ricos obtivessem o benefício da menor tributação e maior controle sobre o Estado, a fim de realizar sobre ele uma intensa reforma fiscal voltada para a obtenção de máximos privilégios, às custas da maior taxação sobre as rendas médias e dos trabalhadores. Venderam à população uma imagem de um equilíbrio econômico e social através da inclusão social pelo consumo garantido e crédito fácil. Todavia, as reformas idealizadas pelas elites do sistema financeiro voltavam-se para a remuneração do pagamento dos juros dos rendimentos sobre o capital por eles investido no Estado e no mercado financeiro. Isso demandava o cumprimento de uma agenda de reformas trabalhistas para solapar os direitos adquiridos no âmbito da vigência dos contratos regidos pela socialdemocracia (especialmente no período pós-guerra). Para pressionar os estados a atender a suas reinvindicações, os rentistas e especuladores começaram a retirar os seus investimentos a fim de deixá-los endividados e, dessa forma, rendidos. Uma vez autoritariamente dominantes passaram a reger o Estado sob a tônica do neoliberalismo.
Conforme explica Streeck (2018, p. 20): “O equilíbrio sociopolítico somente é atingido à custa de um desequilíbrio econômico”. Isso significa que as políticas neoliberais consolam as massas com a oferta de consumo fácil mantida pelo crédito privado, mas o que se esconde nesta ação é a sua impossibilidade sem recorrer ao endividamento do Estado ou à inflação para assegurar a ilusão de uma economia forte e da inclusão das pessoas no mercado consumidor. É somente com a oscilação dos preços médios dos produtos destinados ao consumo da população, advinda da especulação financeira, que se ampliam os lucros e/ou a remuneração dos juros dos rentistas que investem no Estado. Isso é assegurado, quase que invariavelmente, pela transferência de recursos que antes costumavam ser destinados às políticas do Estado de bem-estar social. A transação permite que um certo volume de dinheiro regresse ao mercado na forma de crédito privado, o que incentiva o consumo, supostamente aquecendo a economia e garantindo uma paz social aos “dependentes de renda” às custas da ilusão dos “dependentes de salário” (STREECK, 2018, p. 20).
Uma outra medida também promotora do desequilíbrio econômico são as políticas de incentivo fiscal dadas às empresas. De posse do Estado, a classe dominante, obtém com maestria a expansão das fortunas por meio das políticas de laffer. Trata-se de concessões fiscais para atrair mais investimentos, ou seja, “mais tributos por meio de menos taxação”. Essa é a premissa do estado de lealdade do grande capital que não modifica nada, pois:
[...] junto com as taxas máximas de juros têm caído também as taxas de crescimento no longo prazo. Pior ainda, simultaneamente ao retrocesso da arrecadação tributária das empresas, aumentam suas demandas por uma infraestrutura nacional e regional; empresas exigem redução de carga tributária e isenções fiscais e, ao mesmo tempo, melhores ruas asfaltadas, aeroportos, escolas, universidades, pesquisas científicas qualificadas. A consequência é um aumento tendencial da tributação das pequenas e médias rendas, algo como a elevação da carga tributária sobre o consumo e sobre as contribuições para a seguridade social, resultando em um sistema tributário ainda mais regressivo (STREECK, 2018, p. 22).
Como se não lhes bastasse todo o conforto das cotas milionárias e bilionárias ofertadas na forma de inventivo fiscal para lhes privilegiar, a sua “benevolência” de aceitar ou não o incentivo ainda é acompanhada de uma série de exigências a serem cumpridas pelo Estado para que possam instalar as suas empresas nos locais determinados, sob a ameaça de recuarem, caso não sejam atendidas as suas determinações.
Elevar impostos sobre as pequenas e médias rendas e realizar reformas previdenciárias tem sido uma estratégia comum utilizada pelos Estados em nome da suposta superação dos seus endividamentos. No caso das contribuições sociais, destaca-se que este é um recurso que, em muitos casos, não necessita ser usado para a finalidade específica a que seu nome sugere. Isso quer dizer que por meio de manipulação jurídica, no âmbito da contrarreforma de Estado neoliberal, este recurso pode ser destinado para outros fins. Por exemplo, para pagamento da dívida pública do Estado, ou seja, para remunerar os juros dos rentistas.
Outra medida política e economicamente irresponsável considerada por Streeck tem sido a ilimitada produção de dinheiro pelos bancos centrais. Os incentivadores dessas práticas afirmam ser essa uma necessidade “[...] no sentido de assegurar a coesão social e a estabilização do regime de acumulação [...], mas ela é a “[...] causa de uma previsível nova crise no longo prazo” (STREECK, 2018, p. 20).
A ilimitada produção de dinheiro fez com que os bancos centrais dos países mais capitalistas do mundo fossem alçados à posição de “[...] verdadeiro governo das pós-democracias capitalistas, independentes de eleições, parlamentos, governos, sindicatos etc., como nenhuma outra instituição – com exceção, talvez, da Goldman Sachs e seus colegas” (STREECK, 2018, p. 27). Esses bancos têm sido usados para financiar a indústria privada do dinheiro, especialmente depois de 2008, ano em que o caminho para se imprimir dinheiro se tornou mais curto para tais bancos. Os bancos centrais têm adotado como condição para imprimir dinheiro novo uma suposta garantia, obtida para a concessão de empréstimos com juros regressivos a ser fornecida pela parte contratante do empréstimo: bancos privados, estados e empresas, com base em sua pressuposta liquidez. Os bancos centrais também aceitam que os bancos privados negociem como garantia papéis de dívidas de clientes. É com base nestes aspectos frágeis e em algumas fontes de origem duvidosa que o dinheiro é impresso para inundar os mercados. Em suma, se trata aqui de um verdadeiro caso de dinheiro out of thin air, quer dizer, do nada.
A conquista da supremacia coercitiva do Estado neoliberal não ocorreu de uma hora para outra. Foi uma ação política historicamente planejada pelas elites, com finalidade estratégica, que contou com um forte apelo à subjetividade dos indivíduos a fim de garantir e manter o consenso em torno da conservação do modo de produção nos limites do ajuste do capitalismo contemporâneo.
As práticas delineadas décadas antes pelas empresas, durante e após o projeto de vingança contra a tentativa de se fazer um suposto capitalismo democrático, necessitavam de um apoio mais denso fora das empresas, na sociedade em geral, nas escolas e nas universidades. Foi nesse contexto que Lyotard vislumbrou ter encontrado um nicho econômico a ser explorado. Apresentou-se, portando, uma grande oportunidade para que um grupo conseguisse edificar um discurso filosófico que convencesse os intelectuais e, também, as massas, passando a ser o modelo de capitalismo neoliberal harmônico, natural e eterno. Além disso, impõem-se a organização da vida cultural e educativa de acordo com os interesses dos proprietários dos meios de produção que dominam o sistema em sua versão atualizada.
Ao acreditar que a vida é um jogo, o autor jogou e ganhou: Lyotard sagrou-se campeão desse concurso. Soube atender aos aspectos que os especuladores e rentistas tanto almejavam. Com efeito, Lyotard fez questão de deixar muito claro a sua filiação política às perspectivas dominantes na nota de fim, de número 22, do primeiro capítulo de A condição pós-moderna: “Trata-se de ‘enfraquecer a administração’, de chegar ao ‘Estado mínimo’. É o declínio do Walfere State, concomitantemente à ‘crise’ que se iniciou em 1974” (LYOTARD, 2018, p. 10). Isto posto, o autor adentra na questão do conhecimento para sentenciar a redutibilidade do saber perante o advento do avanço das tecnologias, malogrando-o à condição de mera mercadoria:
Pode-se então esperar uma explosiva exteriorização do saber em relação ao sujeito que sabe (sachant), em qualquer ponto que este se encontre no processo de conhecimento. O antigo princípio segundo o qual a aquisição do saber é indissociável da formação (Bildung) do espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairá cada vez mais em desuso. Esta relação entre fornecedores e usuários do conhecimento e o próprio conhecimento tende e tenderá a assumir a forma que os produtores e os consumidores de mercadoria têm como estas últimas, ou seja, a forma valor. O saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e será consumido para ser valorizado nessa nova produção: nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo seu próprio fim; perde seu ‘valor de uso’” (LYOTARD, 2018, p. 4-5).
Lyotard criticava algumas das perspectivas anteriores como o positivismo e o marxismo, pois considerava que tais concepções pertenciam a uma lógica de pensamento por oposições, diferente da lógica por ele defendida e que tomava como estofo: “O ‘redesdobramento’ econômico na fase atual do capitalismo, auxiliado pela mutação das técnicas e das tecnologias” o qual se dissolvia na “mudança de função dos Estados” (LYOTARD, 2018). Por isso, ele utiliza o termo revisão, mas, na realidade, o que o pós-modernizador neoliberal fez foi propor a eliminação de qualquer perspectiva que obstaculiza os interesses da imagem de sociedade que buscava consolidar:
[...] uma imagem da sociedade que obriga a revisar seriamente os enfoques apresentados como alternativa. Digamos sumariamente que as funções de regulagem e, portanto, de reprodução, são e serão cada vez mais retiradas dos administradores e confiadas a autômatos. A grande questão vem a ser e será a de dispor das informações que estes deverão ter na memória a fim de que as boas decisões sejam tomadas. O acesso às informações é e será da alçada dos experts de todos os tipos. Ela já não é mais constituída pela classe política tradicional, mas por uma camada formada por dirigentes de empresas, altos funcionários, dirigentes de grandes órgãos profissionais, sindicais, políticos, confessionais (LYOTARD, 2018, p. 27).
Diante do exposto, e considerando todo o texto de A condição pós-moderna, é possível sintetizar o que Lyotard deixa claro: 1) o seu compromisso com a transformação do saber em mercadoria; 2) sua adesão completa do ajuste da sociedade capitalista, e a sua defesa intransigente, que se realizava na década de 1970 e tinha como base os interesses do capital especulativo; 3) seu posicionamento acerca do papel das tecnologias na reconfiguração do Estado, que reduziria a função dos administradores e que em seu lugar colocaria máquinas, cujas memórias seriam preenchidas para melhorar o desempenho da máquina estatal; 4) assevera o papel dos experts como central na “nova” realidade, pois, em uma sociedade que se alimenta de informações até mesmo o Estado depende destas para melhorar seu desempenho. Assim, ser expert se torna conditio sine qua non para sobreviver no mundo cibernético de Lyotard; e, 5) anuncia que uma nova classe dirigente nasceu no capitalismo contemporâneo: dirigentes de empresas, altos funcionários, dirigentes de órgãos profissionais, sindicatos, políticos, agentes confessionais. Nesse prisma, qual o lugar das massas trabalhadoras? E como ficam as questões vinculadas ao trabalho e a à luta de classes? O profeta Lyotard decretou a diluição do pilar social do princípio que cindia as classes. A partir de sua defesa, a luta de classes chegou ao fim e todo debate sobre ela se tornou inócuo ou mero protesto revoltoso. Em seu lugar é possível que tenha surgido outra categoria social reduzida de improváveis sujeitos críticos, como, por exemplo, juventude estudantil ou terceiro mundo:
[...] não se pode esconder que o pilar social do princípio da divisão, a luta de classes, tendo se diluído a ponto de perder toda radicalidade, encontrou-se finalmente exposto ao perigo de perder sua base teórica e de ser reduzir a uma ‘utopia’, a uma ‘esperança’, a um protesto pela honra feito em nome do homem, ou da razão, ou da criatividade, ou ainda de determinada categoria social reduzida in extremis às funções de agora em diante improváveis de sujeito crítico, como o terceiro mundo ou a juventude estudantil (LYOTARD, 2018, p. 23).
Naturalizando a realidade e relativizando a divisão social Lyotard se põe a especular filosoficamente sobre o conhecimento com o objetivo de legitimar uma narrativa que, pelo que notamos na atualidade, se tornou parcialmente vitoriosa e favorável ao fracasso da humanização, entendida como um salto ontológico do ser natural para o ser social (MARKUS, 2015), isto é, o pleno desenvolvimento de cada indivíduo singular.
Lyotard dicotomiza o conhecimento e a ciência, e se utiliza dos saberes edificados no senso comum para fazer um discurso populista a serviço do aprisionamento das consciências numa cotidianidade fetichizada, competitiva, individualista e que lhe parecerá sempre intransponível, cuja transformação radical jamais se efetivará. A análise das suas concepções acerca da “pragmática do saber narrativo”, que é o saber popular, e da “pragmática do saber científico” deixam claro, além do populismo e da intencionalidade fetichizadora, o absoluto desprezo desse intelectual às capacidades das massas de se apropriarem do saber científico. Lyotard oculta seu do pavor à organização das massas a fim de se tornarem a classe dominante.
O método de Lyotard para expor sua concepção de conhecimento: a especulação filosófica
Lyotard lança mão da clássica estratégia filosófica da especulação para legitimar o discurso por meio da inversão da realidade. A especulação filosófica tem a intenção de tomar objetos e fenômenos da realidade, abstraí-los, fragmentá-los, invertê-los e atribuir-lhes substâncias abstratas. Superada a fase inicial da abstração, com a bem-sucedida a inversão do real, lhe sucede o trabalho de exposição especulativa, que propicia a justaposição de detalhes no fenômeno analisado a fim de causar no interlocutor a impressão de estar perante um objeto ou fenômeno concreto. Trata-se de um método que possibilita aos mestres da especulação lograrem êxito no seu trabalho de inversão do real no pensamento do “destinatário”. Com isso, se tenta convencer os indivíduos de que o aparente é o essencial, o ilusório é verdadeiro, o abstrato é concreto, o objeto é sujeito, entre todos os aspectos alucinatórios que a especulação possibilita (MARX; ENGELS, 2011).
Ao explicar de outra maneira, Marx e Engels provam que o filósofo especulativo realiza um esforço de provar a sua concepção acerca de determinado fenômeno ou objeto como legítimo. Trata-se de uma “conexão mística” da efetivação, desenvolvimento e realização gradual e necessária para o progresso do que quer se fazer provar como real e existente. Na verdade, o que se pensa sobre o objeto ou o fenômeno não passa do “próprio intelecto abstrato” do especulador em ação. São, portanto, determinações inventadas por ele mesmo “[...] atribuindo nomes das coisas reais àquilo que apenas o intelecto abstrato pode criar, ou seja, às fórmulas abstratas do intelecto” (MARX; ENGELS, 2011, p. 75). O exemplo acerca da essência das frutas explica o funcionamento da mentalidade especulativa em ação:
Quando, partindo das maçãs, das pêras, das amêndoas reais eu formo para mim mesmo a representação geral ‘fruta’, quando, seguindo adiante, imagino comigo mesmo que a minha representação abstrata ‘a fruta’, obtida das frutas reais, é algo existente fora de mim e inclusive o verdadeiro ser da pêra pera, da maçã etc., acabo esclarecendo – em termos especulativos – ‘a fruta’ como a ‘substância’ da pêra, da maça, da amêndoa, etc. Digo, portanto, que nem o essencial da pêra, nem o essencial da maça, é o ser da maça. Que o essencial das coisas não é sua existência real, passível de ser apreciada através dos sentidos, mas sim o ser abstraído por mim delas e a elas atribuído, o ser da minha representação, ou seja, ‘a fruta’. É certo que meu entendimento finito, baseado nos sentidos, distingui uma maça de uma pêra e uma pêra de uma amêndoa, contudo minha razão especulativa considera esta diferença sensível algo não essencial e indiferente. Ela vê na maçã o mesmo que na pêra e na pêra o mesmo que na amêndoa, ou seja, ‘a fruta’. As frutas reais e específicas passam a valer apenas como furtas aparentes, cujo ser real é ‘a substância’, ‘a fruta’ (MARX; ENGELS, 2011, p. 72).
Concluem Marx e Engels (2011, p. 73) não ser este o caminho da objetividade, afinal, por seu intermédio não “[...] se chega a uma riqueza especial de determinações”. O ponto de partida do método especulativo é a prática social, mas a abstração a aprisiona e a subverte mistificando a correspondência entre realidade e pensamento. Muitas vezes, o filósofo especulativo desiste de tratar da sua abstração, do seu objeto, finge tratar deste, mas, na verdade, mantêm-se nos limites da aparência e da fantasia sobre as coisas reais. Como questionam ainda Marx e Engels: “[...] como é que ‘a fruta’ por vezes se me apresenta na condição de maçã e por outras na condição de pêra ou amêndoa? De onde provém esta aparência de variedade, que contradiz de modo tão sensível a minha intuição especulativa da unidade, ‘da substância’, ‘da fruta’?” (MARX; ENGELS, 2011, p. 73). Em suma, o mundo especulativo é o mundo da aparência, da manipulação, da pseudoconcreticidade (KOSIK, 1976).
A produção desse significado sobrenatural é conveniente ao modo de produção capitalista. Converter a realidade em abstração é uma necessidade que se mobiliza em prol dos grupos dominantes que precisam produzir frutas imaginárias e flores ilusórias. Por isso Marx (2010, p. 146) ressaltou a importância da crítica à filosofia especulativa: “A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões desprovidos de fantasias ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche”.
Lyotard deixou seu legado na arte de produzir flores e frutas imaginárias e ilusórias. O fenômeno escolhido por ele para especular e inverter a realidade, dando-lhe aparência de concretude, foi o saber. Por isso, desfere um golpe letal e encaixa os saberes na sua “agonística” cama de Procusto do capital neoliberal. Nessa dicotomização, nota-se um tratamento especial a um tipo de saber que mais lhe interessa, por ele chamado de “saber científico”. O outro saber é uma espécie de saber natural, imposto pelas culturas e automatizado a todos os indivíduos singulares que o integram, portanto, característico de todos os seres. A este segundo saber ele denomina de “saber narrativo”. São saberes que operam por oposição. Não são coincidentes entre eles, mas o especulador francês consegue enxergar e justificar em todos os indivíduos as mesmas condições para a recepção do “saber narrativo” como se fossem essenciais e idênticas, prontas para a assimilação cultural, independente do seu nível de complexidade. Isso não vai acontecer em seu trato com o que denomina de “saber científico” que não seria para todos as mentes. Mas, para Lyotard apreciar a variedade narrativa é como contemplar as espécies animais e vegetais, não se pode fazer juízo de valor: “Não se poderia assim julgar a existência nem o valor do narrativo a partir do científico, nem o inverso: os critérios pertinentes não são os mesmos para um ou outro. Há apenas, que se admirar com esta variedade de espécies discursivas, como se faz com as espécies vegetais e animais” (LYOTARD, 2018, p. 49).
Nesse prisma de aparente cordialidade e respeito à diversidade dos saberes é que o especulador instaura a cisão baseada não no seu próprio cérebro, mas sobre o que ele se esforçará a todo custo para legitimar como verdadeiro. Por isso, ele se apropria de uma linguagem considerada científica para favorecê-lo e dedica o terceiro capítulo do seu livro à exposição do que denomina “método dos jogos de linguagem”. Basicamente, resume a obstinada busca por edificar um enunciado denotativo. Tal edificação significa que o cientista venceu o jogo da linguagem que se fez aceita como verdade pelos seus pares. Por isso, é necessário que haja um remetente e um destinatário para que o enunciado se efetive:
[...] de uma maneira específica: o remetente é colocado e exposto por este enunciado na posição de quem sabe [...] o destinatário é colocado na postura de ter de conceder ou recusar seu assentimento, e o próprio referente é apreendido de uma maneira própria aos denotativos, como qualquer coisa que precisa ser corretamente identificada e expressa no enunciado que a ele se refere (LYOTARD, 2018, p. 15).
Esse é o método que Lyotard (2018, p. 4) se respalda a fim de fazer com que o referente do seu enunciado, qual seja: “[...] o saber é e será produzido para ser vendido[...]” seja assentido por seus destinatários e o consagre como um remetente consensual do jogo da linguagem.
A exposição especulativa acerca do saber narrativo
A “exposição especulativa” (MARX; ENGELS, 2011) realizada por Lyotard tem como instrumento os jogos de linguagem. Em sua aplicação ao saber narrativo, Lyotard afirma existir uma pragmática específica desse saber que o diferencia e o coloca em um caminho completamente oposto ao do saber científico. Para explicar, utiliza a fórmula do jogo linguístico, porém destaca as suas diferenças com relação à pragmática do saber científico. O saber narrativo, sob o ponto de vista, constitui-se em uma pragmática técnico-comportamental engendrada por culturas e diz respeito especificamente a modos de vida, capacidades, competências adquiridas no cotidiano, concepções consensuais acerca da verdade sobre as pessoas e as coisas:
Mas pelo termo saber não se entende apenas, é claro, um conjunto de enunciados denotativos. A ele misturam-se as ideias de saber-fazer, de saber-viver, de saber-escutar etc. Trata-se então de uma competência que exerce a determinação e a aplicação do critério único de verdade, e que se estende às determinações e aplicações dos critérios de eficiência (qualificação técnica), de justiça e/ou de felicidade (sabedoria ética), de beleza sonora, cromática (sensibilidade auditiva, visual), etc. Assim compreendido, o saber é aquilo que torna alguém capaz de proferir ‘bons’ enunciados denotativos, bons enunciados prescritivos, avaliativos... Não consiste numa competência que abranja determinada espécie de enunciados, por exemplo, os cognitivos, à exclusão de outros. Ao contrário, permite ‘boas’ performances a respeito de vários objetos de discursos: a se conhecer, decidir, avaliar, transformar... Daí resulta uma de suas principais características: coincide com uma ‘formação’ considerável de competências, e é forma única encarnada em um sujeito constituído pelas diversas espécies de competência que o compõem (LYOTARD, 2018, p. 36).
Nessa perspectiva, fica naturalizado que o saber opere como uma doutrina que se volta para disciplinar a conduta das pessoas. Não existe certo ou errado para os enunciados nessa perspectiva especulativa do saber. Ela se reproduz linearmente em toda história humana para todas as sociedades. É uma substância antropológica universal e absoluta que Lyotard identifica como suprema característica educacional e cultural civilizatória de todos os povos humanos. Assim, o que tal pragmática do saber prescreve deve ser cumprido. Trata-se aqui do “[...] consenso que permite circunscrever tal saber e disciplinar aquele que sabe daquele que não sabe (o estrangeiro, a criança) é isto o que constitui a cultura de um povo” (LYOTARD, 2018, p. 36).
Esse saber é denominado de narrativo, pois é por meio do relato que essa pragmática se apropria dos enunciados. A narrativa é, portanto, a sua proeminente forma tradicional de transmissão. O filósofo francês chega a dar detalhes de como as novas gerações se apropriam dos enunciados denotativos e incontestáveis da sua cultura através desse instrumento de valor histórico e intransferível que é a narração. Segundo o autor, levam-se em conta nesse processo de aprendizagem, na qualidade de referente da mensagem, os valores embutidos no próprio ato de narrar, isto é, releva-se também a forma de como se conta a história. Nesse aspecto, ele invoca a arte de “produzir flores e frutas imaginárias” para analisar a relação entre metro e acento e suas implicações na aquisição de comportamentos dos destinatários durante o jogo de linguagem do especulativo e universalmente abstrato saber narrativo:
A forma narrativa obedece a um ritmo, é a síntese de um metro que marca o tempo em períodos regulares e com um acento que modifica o comprimento ou a amplitude de algumas dentre elas. Esta propriedade vibratória e musical torna-se evidente na execução ritual de alguns contos cashinahua: transmitidos nestas condições iniciáticas, de uma forma absolutamente fixa, numa linguagem que torna obscuros os desregramentos lexicais e sintáticos que se lhe inflige, são cantados em intermináveis melopéias. Estranho saber, dir-se-á, que nem ao menos se faz compreender pelos jovens a quem se dirige (LYOTARD, 2018, p. 40).
A sua tese central é a de que, no jogo de linguagem, independente do saber, é necessário que o remetente compreenda o teor denotativo e assinta o referente do enunciado. Aqui, para Lyotard, o enunciado pouco importa, não tem problema se não for compreendido pelos jovens. Na forma narrativa em epígrafe, o que importa é que os jovens aprendam por meio desse ritual dos gestos dessa iniciação. O saber narrativo invoca as seleções de conteúdos populares e é pelos gestos que os mais velhos os transmitem rotineiramente, mesmo que não sejam tão claros para o destinatário. Essa é a função do saber narrativo, capaz de promover as competências e regular a sociedade. A forma mecânica de lembrar das competências e das responsabilidades sociais independe da memória dos conteúdos das mensagens, basta que os indivíduos se recordem meramente dos gestos e das formas de recitar versos. Como o autor francês ensina, o importante não é a significação do relato contado, mas o ato de recitá-lo (LYOTARD, 2018).
Ao especular sobre o “saber narrativo”, a concepção pós-modernacriou um grande exército de seguidores nas universidades. Essa concepção chegou também à educação escolar, assumida por muitos educadores considerados progressistas, do campo da esquerda, que aderiram aos modismos pedagógicos na década de 1980 (SAVIANI, 2013) inspirados na pós-modernidade, e tentaram fazer um mix entre a defesa do saber narrativo e a organização do trabalho pedagógico. Esse enunciado adentrou nos sistemas públicos de educação, especialmente dos países explorados pelo grande capital, como no caso do Brasil.
As consequências da legitimação do enunciado, ou melhor dizendo, da especulação lyotardiana acerca do saber popular tem sido catastrófica. Dentre tantos aspectos, destaca-se a perspectiva de aquisição e desenvolvimento da linguagem e do psiquismo dos indivíduos, implicada na especulação acerca dos saberes narrativos e suas consequências, perante a unilateralidade da aquisição da individualidade e do desenvolvimento do gênero humano. Sobre este aspecto, Lyotard destaca que:
[...] a forma narrativa, diferentemente das formas desenvolvidas dos discursos de saber, admite nela mesma uma pluralidade de jogos de linguagem: encontra facilmente lugar no relato dos enunciados denotativos, que versam, por exemplo, sobre o céu, as estações, a flora e a fauna; dos enunciados deônticos que prescrevem o que deve ser feito quanto a estes mesmos referentes ou quanto ao parentesco, à diferença dos sexos, às crianças, aos vizinhos, aos estrangeiros, etc.; dos enunciados interrogativos que estão implicados, por exemplo, nos episódios de desafios (responder a uma questão, escolher a um elemento em um lote), enunciados avaliativos etc. As competências cujos critérios o relato fornece ou aplica encontram-se aí misturadas umas às outras num tecido cerrado, o do relato, e ordenadas numa perspectiva de conjunto, que caracteriza esse gênero do saber (LYOTARD, 2018, p. 38).
Nesse fragmento, Lyotard faz uma referência velada ao processo de apropriação dos conteúdos da realidade objetiva pelos indivíduos. Do ponto de vista do próprio desenvolvimento da linguagem e do pensamento, isso implica em um empobrecimento. Esta forma de apropriação da cultura limita o desenvolvimento e a efetivação da genericidade humana. A abordagem tomada por Lyotard não coaduna as relações entre comunicação e pensamento. É um modelo de comunicação unilateral que não percebe a complexidade do psiquismo. O desenvolvimento da comunicação pode, a partir de outra perspectiva, propiciar a elevação das funções psicológicas, do pensamento, como explicou Lev Vigotski:
[...] a comunicação sem signos é tão impossível quanto sem significado. Para se comunicar alguma vivência ou algum conteúdo da consciência a outra pessoa não há outro caminho a não ser a inserção desse conteúdo numa determinada classe, em um grupo de fenômenos [...] a comunicação pressupõe necessariamente generalização e desenvolvimento do significado da palavra, ou seja, a generalização se torna possível se há desenvolvimento da comunicação (VIGOTSKI, 2009, p. 12).
Diferente da perspectiva espontaneísta de Lyotard, Vigotski deixa claro que o processo de apropriação da realidade pelo pensamento se dá a partir da realidade, mas não em seu caráter imediato ou mecanicista de transmissão por gestos. Para se apropriar da realidade, é necessário ao indivíduo a utilização do que Vigotski esclarece ser instrumentos psíquicos, isto é, signos. Sem essa mediação, é impossível que as pessoas se apropriem do significado dos objetos e fenômenos da realidade no pensamento. O signo, portanto, cumpre a função de converter o que existe fora do pensamento em algo real para o pensamento. Porém, a utilização do signo não é permanente e automatizada. Essa mediação ocorre por meio de estruturas de generalização e desenvolvimento de significado histórico e social da palavra no pensamento. Em síntese, “[...] a verdadeira compreensão e a comunicação só irão ocorrer quando eu conseguir generalizar e nomear o que estou vivenciando” (VIGOTSKI, 2009, p. 13). Sendo assim, no âmbito das estruturas de generalização, são os conceitos científicos que possibilitarão aos indivíduos a realização do salto qualitativo para a aquisição das capacidades propriamente humanas. Isto é, o desenvolvimento multilateral dos seus sentidos físicos e das suas funções psicológicas superiores como a atenção voluntária, a memória lógica e todos os processos funcionais que dependem do desenvolvimento sociocultural mediado pelo ensino, que é o que Vigotski chama de instrução.
Como aponta Martins (2013, p. 282), esperar que haja um salto de generalização dos conhecimentos espontâneos para os científicos, na perspectiva da psicologia histórico-cultural, “[...] representa uma negligência em face das possibilidades reais de formação de quaisquer operações psíquicas da criança”. Nota-se, então, todos os prejuízos que podem ser causados perante a dicotomização entre os saberes populares e eruditos ao desenvolvimento multilateral dos indivíduos. Saviani (2013, p. 69), orienta que: “[...] se o povo tem acesso ao saber erudito, o saber erudito não é mais sinal distintivo das elites, quer dizer, ele torna-se popular”. Assim, “[...] a cultura popular, entendida como aquela que o povo domina, pode ser a cultura erudita, que passou a ser dominada pela população”. Considerando que o popular já está acessível aos trabalhadores, o problema que se coloca é a disputa pelo que lhes falta, pelo acesso ao conhecimento científico. Isso implica em uma luta constante para desarticulá-lo dos interesses dominantes e a forma dominante do saber está sendo posta na forma da mercadoria, sob as regras dos valores propugnados pela condição pós-moderna de Lyotard acerca do saber científico.
A exposição especulativa do saber científico
O conhecimento produzido pela ciência interessa ao modo de produção capitalista e aos sujeitos que devem se alimentar da sua nova forma de produzir riqueza, prometida por Lyotard, na forma de informações. Destarte, os beneficiários diretos do conhecimento elaborados no âmbito das instituições científicas deveriam ser, do ponto de vista do filosófico, os experts:
O saber científico exige o isolamento de um jogo de linguagem, o denotativo; e a exclusão de outros. O critério de aceitabilidade de um enunciado é o seu valor de verdade [...]. Assim, é-se um erudito (neste sentido) se se pode proferir um enunciado verdadeiro a respeito de um referente; e cientista se pode proferir enunciados verificáveis ou falsificáveis a respeito de referentes acessíveis aos experts. (LYOTARD, 2018, p. 46 e 47).
Se o saber deve ser uma mercadoria e a sociedade pós-moderna terá, como fonte de riqueza e desempenho da “performance” dos sistemas e as informações, então, é dever do saber científico entrar na guerra competitiva para produzir esse saber e legitimá-lo como verdadeiro. As regras do jogo linguístico são aqui as mesmas do “saber narrativo”, porém, o contexto é distinto, os jogadores e os “lances” são mais arrojados. O objetivo no “jogo” é tentar convencer os destinatários da verdade verificável ou falseável:
[...] ele não é mais uma componente imediata e partilhada como o é o saber narrativo. É uma componente indireta, porque torna-se uma profissão e dá lugar a instituições, sendo que nas sociedades modernas os jogos de linguagem se reagrupam sob a forma de instituições animadas pelos participantes qualificados, os profissionais. A relação entre o saber e a sociedade (quer dizer, entre o conjunto de participantes da agonística geral, enquanto eles não são profissionais da ciência) exterioriza-se (LYOTARD, 2018, p. 47).
Fazendo a separação entre os saberes, Lyotard destaca que o saber científico possui caráter indireto, profissionalizante, institucional e demonstra a distinção desses seres que são profissionais da ciência e pessoas comuns condenadas ao saber narrativo, no polo oposto à sociedade. Trata-se de um grupo de elite de jogadores capazes de produzir as mercadorias desejadas:
No seio do jogo da pesquisa, a competência requerida versa unicamente sobre a proposição de enunciador. Não existe competência particular como destinatário referente. Mesmo se se trata de ciências humanas, o referente que é então determinado aspecto do comportamento humano, é em princípio colocado na exterioridade em relação aos parceiros da dialética científica. Não existe aqui, como no narrativo, algo como saber ser o que o sabe que se é (LYOTARD, 2018, p. 47).
O autor admite que não existe competência para outro indivíduo no “seio do jogo da pesquisa”, exceto para o cientista. Até mesmo no que ele denomina de “didática”, a única competência requerida do estudante é ser inteligente. Todas as competências do saber científico são inerentes ao cientista, enquanto a competência do saber narrativo diz respeito a um comportamento de domínio de uma técnica por parte do indivíduo. Quer dizer: o saber narrativo serve para desenvolver condutas, comportamentos desejáveis, competências sociais e emocionais e deve ser aceito por toda a sociedade, desde que verificado ou falseado, isto é, aprovado por um grupo de cientistas ou experts. Aqueles que conseguem ter acesso ao saber científico, como os estudantes, são considerados inteligentes. Mas o portador de todas as outras competências é o pesquisador. Aos que estão fora desses espaços, os destinatários, Lyotard aponta que inexiste competência.
O ambiente científico defendido para o pensador francês deve contar com integrantes que reúnam capacidades para mapear todas as provas do remetente que afirma dizer uma verdade a propósito do referente; refutar qualquer enunciado contrário ou contraditório versando sobre o mesmo referente; possuir potencialmente as mesmas competências do remetente, que é “seu par” (LYOTARD, 2018, p. 45); assim, enquanto o destinatário dissentido não falar “[...] não poderá ser considerado como alguém que efetivamente conhece a matéria [...]”; criar “enunciados” para provar que o “referente” é verdadeiro, como, por exemplo “a trajetória dos planetas da qual fala Copérnico, supõe-se ‘expressa’ pelo enunciado conforme o que ela é”. Só se pode saber o que é o referente através de “enunciados”. O “enunciado” é a forma de tornar verdadeiro o que o remetente diz; mas, é preciso lembrar que todas as provas constantes nos “enunciados” são verdades passíveis de serem refutadas.
Para solucionar o problema da verdade, Lyotard orienta que sejam aplicadas duas regras na execução desse jogo linguístico da pragmática de seu saber científico: a) regra “dialética” ou mesmo a “retórica do tipo judiciário” (criada por Bruno Latour): tomar como referente somente aquilo que for considerado matéria comprobatória para o debate. Vale tudo para que isso ocorra, então, cabe agir como advogado intransigente a fim de vencer e, para tanto, o conselho do mestre dos jogos e da manipulação dos enunciados deve ser seguido: “[...] posso provar porque a realidade é como eu a digo; mas, quando posso provar, é permitido pensar que a realidade é como eu digo [...]”; b) a regra metafísica: espécie de discurso desprovido de incoerências, visto que “[...] o referente não pode fornecer uma pluralidade de provas contraditórias ou inconsistente [...]”, pois, como diria Descartes: “‘Deus não é falacioso’” (LYOTARD, 2018, p. 45).
Conclui-se que o enunciado é a mercadoria do cientista e a verificação são os discursos que se edificam em torno dessa mercadoria enunciativa a fim de manter o seu valor de troca pelo maior tempo possível. Desse modo, ampliam-se os lucros capitalistas em torno desse saber científico e a classe dominante agrada-se do bom remetente que sabe aplicar o jogo de uma “retórica do tipo judiciário” para ser aceita por seus destinatários.
Para Lyotard (2018), a forma de valor do enunciado científico se baseia no domínio da competência à medida que os estudantes melhoram sua competência. Sob este prisma, dominar enunciados é ser competente cientificamente e é isso que qualifica alguém como um novo remetente. O enunciado tem o valor de competência e poderá ter o seu correspondente universal mensurado em dinheiro. Poderá ser comercializado. Mas essa não é a única forma de comercializar os produtos da ciência.
Os lucros capitalistas são assegurados de diversas outras maneiras através da comercialização do saber científico, usurpado do seu conteúdo real. Quanto mais um enunciado se sustenta convertendo-se em verdade, mais seguidores a ciência gera criando o consenso necessário para a circulação de mercadorias objetificadas (livros, tecnologias, alimentos, roupas, agrotóxicos, concepções filosóficas, além de redes sociais “gratuitas” que veiculam os enunciados para os seus destinatários e que são mantidas por meio do marketing de produtos dos seus patrocinadores, entre outros).
Para Lyotard, o ensino torna-se um complemento da investigação científica: uma necessidade de que o investigador possua um destinatário que possa ser convertido em remetente, tornar-se seu parceiro. Ao que nos parece, o ensino é a forma de organizar algo parecido como uma célula, um time, um exército, uma Igreja para combater rivais e manter a falsificação do consenso que está triunfando.
A concepção de pós-modernidade, portanto, é um disfarce abstrato, especulativo, para a conjuração neoliberal. A concordância com seus postulados significa a adesão ao projeto de conversão do saber em mercadoria, e, em sua totalidade, de máxima exploração das massas e, do ponto de vista objetivo, de óbices concretos que levam à neutralização de toda e qualquer perspectiva de superação da realidade.
Considerações finais
A dicotomização entre saberes narrativos e saberes científicos proposta por Lyotard esconde múltiplas determinações objetivas e relações diversas. Trata-se de um projeto de degradação do desenvolvimento e efetivação dos indivíduos do gênero humano em uma conjuração que trama a interdição da sociedade para deixar livre o capital especulativo e a ganância da qual depende a manutenção do modo de produção capitalista em seu projeto de expansão.
A proposta apresentada por Lyotard consiste em um projeto intencional de naturalização da realidade do modo de produção capitalista e de um total servilismo e docilização dos indivíduos ao neoliberalismo. Escamoteado através de um discurso de respeito e de contemplação dos saberes, como se estes fossem uma espécie comparada aos animais e vegetais, Lyotard se esforça para ocultar em sua obra a perspectiva filosófica que se propôs a disseminar o conhecimento científico como propriedade privada e mercadoria acessível a quem possa por ela pagar.
Com efeito, desde a invenção de ficção pós-moderna se avolumou uma imensa adesão de estudiosos e pensadores a esse modismo que degrada e interdita o desenvolvimento omniltareal, aprisiona os indivíduos no reino da necessidade e distancia-os cada vez mais do reino da liberdade. Desse modo, o projeto de pós-modernidade é para os trabalhadores um convite à hominização e um boicote à humanização.