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Revista Educação em Questão

Print version ISSN 0102-7735On-line version ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.58 Natal Oct./Dec 2020  Epub Oct 16, 2020

https://doi.org/10.21680/1981-1802.20120v58n58id21865 

Artigos

A forma-escola inovadora: permanências, ressignificações e deslocamentos

The innovative school-form: permanences, resignifications and displacements

La forma-escuela innovadora: permanencias, resignificaciones y dislocamientos

Antônia Regina Gomes Neves1 
http://orcid.org/0000-0001-8883-8542

Sabrine Borges de Mello Hetti Bahia2 
http://orcid.org/0000-0002-2786-6854

Elí Terezinha Henn Fabris3 
http://orcid.org/0000-0002-3622-0289

1Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Brasil)

2Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Brasil)

3Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Brasil)


Resumo

Neste artigo, buscamos analisar e problematizar os deslocamentos da “forma-escola” (RANCIÈRE, 1988), bem como demonstrar como o conceito opera nas escolas da série Destino: Educação – Escolas Inovadoras, produzida pelo Canal Futura. A análise desenvolveu-se a partir de 12 episódios de documentários dessa série, utilizando-se o discurso, em uma perspectiva foucaultiana, como ferramenta teórico-metodológica em articulação com referenciais sobre formação de professores, inovação e estudos foucaultianos. Partindo do que Larrosa (2017) chama de profanação, conclui-se que as escolas analisadas mantêm, ainda que de forma profanada, os cinco elementos da “forma-escola” (tempo, espaço, materiais, atividades e sujeitos), com diferentes ênfases e de diferentes modos, constituindo o que nomeamos de forma-escola inovadora.

Palavras-chave: Inovação; Forma-escola; Escolas inovadoras; Análise do discurso

Abstract

In this article, we seek to analyze and problematize the "school-form" displacements (RANCIÈRE, 1988), as well as to demonstrate how the concept operates in the Destino: Educação – Escolas Inovadoras (Destination: Education – Innovative Schools) TV series, produced by Canal Futura (Future Channel). The analysis was developed from 12 episodes of documentaries of this series, using the discourse, from a Foucaultian perspective, as a theoretical-methodological tool, in connection with references on teacher formation, innovation and Foucaultian studies. Based on what Larrosa (2017) calls profanity, it is concluded that the schools analyzed maintain, even in a profaned way, the five elements of the "school-form" (time, space, materials, activities and individuals), with different emphases and in different ways, constituting what we call innovative school-form.

Keywords: Innovation; School-form; Innovative schools; Discourse analysis

Resumen

En este artículo, buscamos analizar y problematizar el desplazamiento de la "forma-escuela" (RANCIÈRE, 1988), así como demostrar cómo opera el concepto en las escuelas en la serie de televisión Destino: Educação – Escolas Inovadoras (Destino: Educación – Escuelas Innovadoras), producida por Canal Futura. El análisis se desarrolló a partir de 12 episodios de documentales de esta serie, utilizando el discurso, desde una perspectiva foucaultiana, como una herramienta teórico-metodológica en articulación con referencias sobre la formación de profesores, la innovación y los estudios foucaultianos. A partir de lo que Larrosa (2017) llama profanidad, se puede concluir que las escuelas analizadas mantienen, aunque de forma profana, los cinco elementos de la "forma-escuela" (tiempo, espacio, materiales, actividades y personas), con diferentes énfasis y de diferentes maneras, constituyendo lo que llamamos forma-escuela innovadora.

Palabras clave: Innovación; Forma-escuela; Escuelas innovadoras; Análisis de discurso

Imperativo da Inovação1

Neste artigo, buscamos analisar e problematizar os deslocamentos da “forma-escola” (RANCIÈRE, 1988), bem como demonstrar como o conceito opera nas escolas da série Destino: Educação – Escolas Inovadoras, exibida pelo Canal Futura.

Organizamos este texto em quatro seções. Inicialmente, apresentamos o entendimento do “imperativo da inovação”. Em seguida, discorremos sobre as escolas inovadoras analisadas e apresentamos as escolhas teórico-metodológicas que orientaram este texto. Na sequência, desenvolvemos os capítulos analíticos, nos quais apresentamos o material de pesquisa e a análise. Para finalizar, apresentamos as considerações finais, reforçando alguns argumentos a partir das análises desenvolvidas. Concluímos que a forma-escola permanece com uma atmosfera moderna, relativa ao período da Modernidade, mesmo nas escolas inovadoras contemporâneas.

A inovação tem sido uma palavra de ordem na contemporaneidade. Em uma perspectiva foucaultiana, colocando em questão o discurso da inovação, buscamos compreender de que modo esse discurso adquiriu o status salvacionista em nossa sociedade, não para negá-lo, mas para colocá-lo sob suspeita por meio da crítica radical, que nos possibilita exercitar o próprio pensamento. Nessa perspectiva, o único a priori que consideramos é o histórico, e, assumindo a radicalidade da crítica como hipercrítica (VEIGA-NETO, 1996), colocamos todos os discursos e verdades sob suspeição.

Desta forma, buscamos compreender de que maneira o discurso da inovação é constituído e que verdades se engendram na área da educação para mantê-lo como um imperativo de qualidade, estratégia pedagógica para resolver as questões contemporâneas. Pensar no discurso da inovação como um imperativo implica compreender que um imperativo é “[...] mandamento que opera com força na subjetivação e objetivação e age em todas as posições, inclusive e de forma potente, sobre o próprio sujeito envolvido em suas tramas discursivas imperativas” (FABRIS, 2010, p. 6). Para este exercício, buscamos compreender quais fatores tornaram possível que o discurso da inovação emergisse com tal força.

Tratado como culto, obsessão ou objetivo (LÓPEZ-RUIZ, 2007; SIEVERS, 2007), o novo destaca-se em detrimento de tudo que deixa de ser novidade e que, por isso, se torna descartável; contemporaneamente, esse entendimento é o que move a economia e a fabricação de bens de consumo nas sociedades capitalistas.

De acordo com Schumpeter (1997), nem sempre a inovação nasce de uma necessidade; pelo contrário, é a partir desta que as necessidades são criadas/inventadas. Aqui estaria o alimento do capitalismo contemporâneo: criar necessidades. A inovação passa a ser compreendida como um agenciamento, ou seja, é “[...] um poderoso aparato discursivo que coloca a inovação e a gestão do conhecimento sob um mesmo princípio explicativo, sob um novo regime de verdade [...]” (FONTENELLE, 2012, p. 107).

É nesse cenário de culto ao novo que a inovação é tida como um status permanente, em que a mudança também se torna algo constante, indispensável e com um ritmo frenético de aceleração. É preciso que a mudança aconteça, se possível, em cada instante do presente.

A partir dessa problemática podemos compreender que o discurso da inovação se tornou recorrente e potente não só no mundo empresarial, mas principalmente na área da educação, como um imperativo deste tempo, tornando-se a justificativa inegável para que haja uma mudança de práticas e uma negação exacerbada da tradição pedagógica.

Para atender às necessidades dos tempos (NARODOWSKI, 2016), escolas de diversos lugares do mundo buscam desenvolver uma educação que tenha o aluno como foco, que se preocupe com seu bem-estar, com sua alegria e com o despertar de sua vontade de aprender. O Canal Futura produziu uma série de documentários, analisada neste artigo, que mostram tais iniciativas.

A série Destino: Educação – Escolas Inovadoras é uma produção conjunta do Canal Futura e da Confederação Nacional das Indústrias – CNI. Apresenta escolas de várias partes do mundo consideradas inovadoras por desenvolverem algumas tendências identificadas pelo Instituto Inspirare2 para a educação inovadora, tais como: personalização do ensino, uso de tecnologias, desenvolvimento de atividades práticas e projetos, desenvolvimento de algumas habilidades e competências, gamificação e envolvimento da escola com sua comunidade.

O material de análise é composto por 12 episódios que compõem a 1a temporada da série. Cada episódio apresenta uma escola, com depoimentos de gestores, professores, pais e estudantes, além de cenas do cotidiano escolar. Das 12 escolas, quatro se localizam na América do Sul, três na América do Norte, quatro na Europa, e uma na Ásia. Quatro são privadas, três são públicas, e cinco recebem fundos públicos, mas têm uma gestão privada. Esta modalidade de gestão é a mais numerosa entre as escolas da 1a temporada. Quanto ao nível de ensino, quatro escolas desenvolvem os três níveis de educação: educação infantil e ensino fundamental e médio. Duas desenvolvem dois níveis de educação, quatro escolas dedicam-se exclusivamente ao equivalente no Brasil ao ensino médio, e duas dedicam-se somente ao ensino fundamental.

Escolhas teórico-metodológicas: o discurso como ferramenta

O conceito de discurso que utilizamos foi desenvolvido por Foucault na aula inaugural no Collège de France, em 2 de dezembro de 1970, intitulada A Ordem do Discurso. Para Foucault, discurso é:

Um bem – finito, limitado, desejável, útil – que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização: um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas “aplicações práticas”), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta, e de uma luta política (FOUCAULT, 1995, p. 136-137).

De acordo com Foucault (1996), os discursos produzem verdades, produzem realidades segundo “regimes de verdade” que definem o que pode e deve ser dito, pensado, sentido, proclamado ou silenciado em diferentes tempos e culturas. Cada sociedade estrutura e faz operar seu regime de verdade, ou sua “política geral” (FOUCAULT, 1996), estruturando “[...] os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e falsas, os meios pelos quais cada um deles é sancionado” (FOUCAULT, 1996, p. 12). Desse modo, a produção do discurso é “[...] controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos” (FOUCAULT, 2014, p. 9).

Os discursos utilizam a linguagem que, além de designar as coisas que enunciamos pelos atos de fala, é o meio pelo qual se constroem os elos de sentido com o que é enunciado. Poder e saber estão imbricados na constituição de objetos e sujeitos e Foucault esclarece que é importante “[...] não mais tratar os discursos como conjunto de signos [...], mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 1986, p. 56).

Para analisar o discurso, cabe levar em consideração duas ações que o movimentam: interdição e repetição. As interdições “[...] se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se modificar” (FOUCAULT, 2014, p. 9). Já a repetição em comentários é explicada por Foucault da seguinte maneira: “A multiplicidade aberta, o acaso são transferidos, pelo princípio do comentário, [...] O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 2014, p. 24).

É por conta do entendimento de que as repetições também constituem os discursos e são por estes constituídas, fazendo circular determinados enunciados e não outros, que se torna possível buscar por repetições nos discursos fílmicos e midiáticos. Pode-se compreender, então, o modo de analisar que fabris (2008, p. 129) nomeia como “articulação fílmica”, que possibilita “[...] compor um mosaico de fragmentos fílmicos para analisar regularidades e silêncios [...] de certos discursos”. Essa articulação implica compreender que cada episódio da série de documentários aqui analisada “[...] produz certos significados, os quais se juntam aos demais criando um campo de significação” (FABRIS, 2008, p. 129).

O material empírico foi composto pela transcrição de depoimentos de pessoas das comunidades escolares que fazem parte do processo de construção da escola, apresentados nos episódios da série. Por ser do tipo documentário, o material fílmico aqui analisado carrega consigo a especificidade de não manter um roteiro com cenas em sequência, mas apresenta blocos de cenas e depoimentos que constituem temas. A partir da transcrição de todos os depoimentos da 1a temporada da série, realizou-se a análise de recorrências e repetições dos enunciados, mas também, na medida do possível, foi analisado o que Foucault (2014) nomeia de interdição dos discursos, quando percebemos que discursos muito recorrentes no campo da educação deixam de ser citados.

Buscamos, portanto, tensionar os discursos que constituem a forma-escola nas escolas inovadoras e seus deslocamentos, permanências e ressignificações.

Escolas inovadoras e a profanação da forma-escola

Pensar a escola como uma instituição que tem uma forma, como nomeou Ranciére (1988), implica perceber mais do que as práticas escolares apresentadas nos documentários, requer historicizar essa instituição e pensar nos modos como tem se constituído enquanto parte fundamental da sociedade. De acordo com Rancière (1988, n.p.), “[...] a escola não é um lugar ou uma função definida por uma finalidade social externa. É antes de tudo uma forma simbólica, uma norma de separação dos espaços, dos tempos e das ocupações sociais.” Masschelein e Simons (2017, p. 22) destacam que “[...] o que a forma-escola faz, [...] é o duplo movimento de trazer alguém para uma posição de ser capaz (e, portanto, transformar alguém em um aluno ou estudante), o que é ao mesmo tempo uma exposição a algo de fora”. Esses mesmos autores, inspirados pelo sentido de educação proposto por Hannah Arendt, escrevem que:

A escola, assim, é um lugar e o tempo organizados para lidar com os recém-chegados e os estranhos. Em outras palavras, a escola é uma arquitetura social que nós (como representantes do mundo) construímos e organizamos especificamente para ‘estranhos e recém-chegados’ (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 173, grifo dos autores).

A série Destino: Educação – Escolas Inovadoras mostra escolas situadas em diferentes partes do mundo, com características sociais diversas em seu entorno, com diferentes metodologias e compreensões dos processos de ensino e aprendizagem. Apesar de cada escola manifestar o desejo de afastamento de muitos elementos que constituem as escolas chamadas de tradicionais, cada uma delas mantém, em maior ou menor escala, o que Rancière (1998), Masschelein e Simons (2014) e Larrosa (2017) chamam de forma-escola.

Masschelein e Simons (2017, p. 21) defendem uma instituição baseada no ponto de vista educacional “[...] em termos das operações efetivas e reais realizadas por um arranjo particular de pessoas, tempo, espaço e matérias”. De acordo com esses autores, a língua escolar é constituída principalmente por cinco componentes:

(1) A operação de considerar cada um como ‘estudante’ ou ‘aluno’, isto é, suspendendo, não destruindo, os laços de família e do Estado ou de qualquer comunidade “fechada” ou definida; (2) a operação de suspensão, isto é, de colocar temporariamente fora do efeito da ordem ou do uso habitual de coisas; (3) a operação de criar ‘tempo livre’, isto é, a materialização ou espacialização que os gregos chamavam de skholé: tempo para o estudo e o exercício; (4) a operação de fazer (conhecimento, práticas) públicas e colocar (a elas) sobre a mesa (o que também poderia ser chamado de profanação); (5) a operação de tornar-se ‘atento’ [...] (MASSCHELEIN, SIMONS, 2017, p. 21).

Pensando nessa ideia de escola como lugar de suspensão do tempo e da separação da família, Masschelein e Simons argumentam que a igualdade está intimamente ligada à função da escola, já que todos os sujeitos que entram na escola têm (ou pelo menos deveriam ter) suspensas suas diferenças de família e de classe, por exemplo, para se tornarem todos alunos. Na escola da Idade Moderna, quando não apenas os filhos de famílias abastadas, mas todos são convocados a ir à escola, “[...] a igualdade deixa de ser então uma condição dos bem-nascidos e passa a ser oferecida a todos na forma de uma promessa” (LÓPEZ, 2017, p. 182). De acordo com López (2017, p. 182) “[...] o que define a forma-escola moderna não é a igualdade, mas a promessa de igualdade”.

É com esses delineamentos que a forma de ser instituição escolar moderna perdura até os nossos dias, atualizando-se em maior ou menor medida, mas mantendo-se reconhecível como escola. Larrosa (2017) relata a experiência que teve ao ser convidado a compor, junto a artistas e educadores, uma exposição sobre a escola, em um dos capítulos do livro Elogio da Escola, de sua autoria. Para a montagem da instalação, foi preciso definir quais elementos constituíam a forma-escola, para então poder (re)significá-los por meio da arte. O grupo passou a compreender a escola como um dispositivo, no sentido de “[...] um modo particular de dispor, compor, impor, opor e expor coisas heterogêneas” que buscam desenvolver a separação dos seguintes elementos na forma-escola: “tempos, espaços, matérias, atividades e sujeitos [...]” (LARROSA; MALVACINI; RECHIA; AUGSBURGUER; FAVERE; CUBAS, 2017, p. 255). Alguns adultos se separam do mundo para tornarem-se professores e algumas crianças e jovens em alunos e estudantes.

Com essas definições de forma-escola, retornamos ao argumento de que optamos por manter os episódios como uma unidade por enxergarmos as instituições apresentadas em cada capítulo da série como implicadas com a forma-escola em maior ou menor medida.

Identificamos aproximações e deslocamentos entre as escolas ditas inovadoras e aquelas ditas tradicionais – ou que mantém práticas típicas das escolas da Modernidade. Nos excertos abaixo, vemos dois exemplos de deslocamentos, ou do que temos chamado de profanações da forma-escola, nos cinco aspectos: tempo, espaço, atividades, matérias e sujeitos.

Larrosa (1998) em uma coleção de textos na obra Pedagogia Profana, salienta que o processo de ensino e aprendizagem ocorre com a “[...] experiência da liberdade, com essa curiosa relação de alguém consigo mesmo, à qual chamamos de liberdade, e com a experiência da amizade, com essa curiosa forma de comunhão com os outros que chamamos de amizade” (LARROSA, 2017, p. 174). Esse é o jogo de ensinar e aprender. No livro, o autor busca suspender esse caráter “sagrado” e “universal” da pedagogia e dos processos educativos e pensá-los de outro modo, o que chama de profanação. O autor entende que promover uma pedagogia dessacralizada ou profana implica proporcionar uma experiência mais aberta às diferenças, sem a pretensão de um caminho ou um final preestabelecido.

Para Agamben (2007, p. 66), a profanação devolve “[...] ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado”. Trata-se, assim, de perceber que os elementos sagrados – neste caso, o que é sagrado para a escola moderna – podem ser pensados de outras formas e profanados mediante outros usos. Parece-nos que profanar, nesse sentido, é muito mais do que apenas ressignificar ou criar algo diferente, uma novidade. Implica conhecer com profundidade o que é considerado sagrado para poder compreender as construções em seu entorno e, assim, compor novas práticas com esses elementos. Mais do que novas e diferentes, desenvolver práticas que sejam significativas e efetivas para os sujeitos envolvidos. Rejeitam-se tanto a celebração da forma-escola moderna quanto da inovação como imperativo da qualidade e da racionalidade neoliberal. Forma-escola pode ser entendida como uma atmosfera, um clima que une a todos como pertencentes a uma comunidade – a comunidade de aprendizes –, pois alunos e professores estão interagindo nesse espaço para aprendizagens específicas. A forma-escola é reconhecida em todos os lugares do planeta por sua linguagem, sua atmosfera, que cada vez mais se apresenta múltipla e plural, pensando o ensino e as aprendizagens como uma questão pública.

A fim de compreendermos de que modo as escolas inovadoras se organizam para garantir a sua forma-escola, sem estarem diretamente ligadas ao modelo tradicional moderno, analisamos um a um os elementos que constituem essa forma, com a consciência de que, em muitos momentos, esses elementos, que atuam conjuntamente, podem misturar-se e constituir mais de um enunciado. Para fins de melhor compreensão, organizamos os elementos da análise por aproximação: tempo e espaço; matérias e atividades; e, por fim, os sujeitos que são constituídos na (e constituem a) forma-escola.

Tempos e espaços: “A escola, ela não tem série, aula, turma [...]”

A partir da fala de um dos coordenadores das escolas analisadas, apresentada no título da seção, passamos a nos questionar sobre a possibilidade de uma escola não ter aula, nem série e nem turma. Seria possível uma escola onde esses elementos não estão presentes?

Tempo e espaço são dimensões da organização escolar moderna que deixam significativas marcas no imaginário escolar e na constituição dos sujeitos. A escola moderna foi constituída como o tempo de ir para um espaço de confinamento. Essas duas dimensões cruzam-se e conectam-se nessa organização. O espaço escolar moderno já é aquele que recebe acusações de possuir uma arquitetura de prisão, que privilegia a vigilância e o exame e que é, em parte, responsável por dividir o mundo dos estudantes entre dentro e fora da escola. Quando adentra em uma sala de aula moderna, o estudante tende a desconectar-se, a separar-se do mundo externo – aquele espaço conforma a divisão de tempo. Trata-se, como diz Foucault (1987), de uma instituição de sequestro.

O tempo é um componente importante da forma-escola, que, no discurso imagético aqui analisado, está imbricado com a escola a partir de dois entendimentos. O primeiro diz respeito ao que já temos apresentado, alicerçadas em Rancière (1988) e Masschelein e Simons (2014; 2017), entendendo a forma-escola como suspensão do tempo do trabalho para a dedicação ao estudo, característica que esses autores buscam na skholé grega. O segundo entendimento é a construção social do tempo desde as vivências da infância escolar, a partir de Norbert Elias. De acordo com o autor:

O indivíduo não tem capacidade de forjar, por si só, o conceito de tempo. Esse, tal como a instituição social que lhe é inseparável, vai sendo assimilado pela criança à medida que ela cresce [...] ao crescer, com efeito, toda criança vai-se familiarizando com o ‘tempo’ como símbolo de uma instituição social cujo caráter coercitivo ela experimenta desde cedo (ELIAS, 1998, p. 15).

Sobre as mudanças de ênfase no entendimento do tempo por diferentes sociedades, Parente (2010) aponta que, se compreendemos o tempo como uma construção histórica, social e cultural, é preciso levar em conta que as “estruturas, os processos e as formas de organização social que utilizam a categoria tempo também passaram e passarão por transformações.” (PARENTE, 2010, p. 138 e 139). Isso implica aceitar a “[...] inter-relação do tempo sócio-histórico e cultural com o tempo escolar”.

A divisão do tempo escolar não é, pois, uma invenção da contemporaneidade, mas nasce na Modernidade, como é possível verificar neste excerto da Didática Magna, de Comenius:

[...] a arte de ensinar nada mais exige, portanto, que uma habilidosa repartição do tempo, das matérias e do método. [...]. E tudo andará com não menor prontidão que um relógio posto em movimento regular pelos seus pesos (COMENIUS, 2002, p. 186).

Vejamos, nos excertos3 abaixo, como se desenvolve e se organiza o tempo na forma-escola profana.

Quadro 1: Forma-escola: Tempo 

Aqui, como cada estudante tem um plano individual, ele pode começar em qualquer época do ano. Então, como começa em qualquer época do ano, também pode terminar em qualquer época do ano. Fora isso, alguns estudantes vão mais rápido que outros (Julio Fontán – Diretor do Colégio Fontán).

Temos mais flexibilidade com o horário. Por mais que eles tenham duas horas de Humanas, duas horas de Ciências, se os professores quiserem abrir suas paredes e dar aula juntos, eles podem ter quatro horas juntos como um time ou podem fazer um passeio (Lillian Hsu – Diretora da High Tech High).

Fonte: Material da pesquisa.

Nas escolas inovadoras, percebe-se uma flexibilidade maior do tempo de atividades escolares, embora, em algumas delas, que desenvolvem aulas com turmas preestabelecidas, haja o tempo de estar em aula com os colegas e um professor – um tempo coletivo, mesmo quando programado individualmente. Nota-se um afastamento da rigidez de tempo, tão característica da escola tradicional moderna, mas se mantêm alguns aspectos desta organização, como o tempo para entrada e saída da escola, para os intervalos e para o estudo. As escolas inovadoras, portanto, proporcionam “[...] tempo livre, separando o tempo escolar do tempo do trabalho” (LARROSA, 2017, p. 255).

Tempo e espaço estão articulados, e isso fica claro nos depoimentos da série do Canal Futura quando enfatizam a liberdade dos alunos em utilizar todos os espaços da escola como espaços de aprendizagem. Vejamos no quadro abaixo alguns excertos que mostram as relações que se estabelecem com os espaços.

Quadro 2: Forma-escola: Espaços 

A criança, ela circula por vários espaços do Âncora, e todos os espaços são espaços de aprendizagem (Caroline da Silva – Tutora e Especialista de Português do Projeto Âncora).

A arquitetura da aprendizagem demanda que as pessoas estejam se vendo. Não pode estar um olhando para a nuca do outro (Ana Penido – diretora do Instituto Inspirare).

A ideia por trás dos espaços abertos foi que se pode aprender em qualquer lugar. Você pode se inspirar em qualquer espaço. [...] A ideia é que a aprendizagem não tem barreiras (Kiran Seth – Diretora e Fundadora da Riverside School).

Fonte: Material da pesquisa.

Podemos visualizar nos excertos o que temos chamado de profanação da forma-escola, a partir da análise de seus elementos. O espaço escolar moderno ou tradicional é algo muito enraizado no imaginário popular da sociedade contemporânea. Um prédio contendo salas de aula fechadas, com algumas janelas e uma porta, com as carteiras dos alunos viradas para a frente da sala, onde se encontra a mesa do professor ao lado do quadro-negro ou da lousa interativa (se atualizarmos a imagem). No exterior das salas de aula, na forma-escola moderna, imaginamos, por experiência, um corredor que liga as salas e um pátio, interno ou externo, onde os alunos se encontram nos horários de intervalo. Esse é o espaço escolar moderno atualmente frequentado por crianças no mundo todo. Podemos ver que o espaço nas escolas inovadoras também é um elemento que, apesar de indispensável – afinal, ainda é preciso um lugar para onde enviar as crianças –, pode ser configurado para tornar-se outro, com outras possibilidades.

Com exceção de umas poucas escolas que, em sua criação, utilizaram prédios que já existiam anteriormente, a maioria das escolas dos documentários nasce como uma construção nova, com um projeto de arquitetura novo, de forma que o prédio que abriga a escola não é em nada semelhante ao que coletivamente se entende como escola. Ao contrário do cenário que há pouco descrevemos, são ambientes abertos, com vidros e transparência, com a possibilidade de mudar espaços quando for necessário e com a intenção de que a circulação das crianças dentro da escola seja a mais livre possível. No conjunto dos excertos, percebe-se que não há preocupação com o ensinar, mas com os espaços e tempos de aprendizagem. Essa é uma das profanações da forma-escola. O professor continua ensinando, mas de outras maneiras, para que a aprendizagem também aconteça de outros modos. Cada espaço e tempo são aproveitados para que a função e finalidade da escola sejam recolocadas, redefinidas.

Ao tratar da Era da Leveza, Lipovetsky (2016) diz que um dos primeiros indícios da era contemporânea em que pulsa o imperativo da leveza foi justamente a mudança da arquitetura, com novos materiais, mas também a partir de novas demandas. O elemento arquitetônico é muito importante para a concepção pedagógica. Ao mesmo tempo em que as escolas, quando da sua criação, decidiram ter outro tipo de arquitetura e promoveram uma mudança, também são “forçadas”, por esse outro tipo de construção, a retrabalhar seus processos pedagógicos numa organização onde “todos os espaços são de aprendizagem”, o que “implica que as pessoas estejam se vendo”.

Embora pareça que essa organização, que se afasta do modelo da sociedade de vigilância, proporcione mais liberdade aos alunos – afinal, eles circulam por vários lugares e têm uma visão mais abrangente da escola, vão além da “nuca de seus colegas” –, também exerce um controle maior, que não é somente de um professor sobre todos os alunos, mas de todos sobre todos. Na era em que tudo é hiper (LIPOVETSKY, 2004), o controle descrito por Deleuze (2008) torna-se hipercontrole – já não externo, mas mais interno do que nunca, com todos vigiando-se mutuamente por entre as paredes de vidro dos novos prédios escolares.

É possível perceber a circulação de discursos pedagógicos da linguagem da aprendizagem, discursos arquitetônicos que mostram e definem como os espaços dessa forma-escola devem ser. Discursos que entram em conflito e que continuam preservando algumas marcas da Modernidade. A aula é uma delas. As aulas são definidas como inovadoras, chamadas de não aulas, mas é importante salientar que acontecem, pois há professor e estudante. Uma aula é isso; a docência só acontece na relação com um sujeito na posição de professor e outro na posição de aluno. As posições podem ser intercambiadas, mas precisam existir nessa forma-escola.

Atividades, matérias: “[...] a gente não fica olhando para a lousa com a professora lá na frente”

Para analisarmos atividades e matérias, destacamos o conceito de maquinaria escolar (VARELA, 1995), uma criação de rotinas de controle dos corpos e dos pensamentos, uma rotina ritualizada, porém esvaziada (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014) que gerou muitas críticas à escola moderna. Essas críticas são decisivas na construção de novas escolas. Porém, a escola na contemporaneidade ainda é um espaço para o qual as crianças devem ir. Ao ir para esse lugar, ainda devem ocupar o seu tempo com os conhecimentos socialmente construídos, organizados no currículo e aprendidos por meio da organização diária de atividades.

Com essas ressalvas, apresentamos as recorrências do que é dito pelos participantes da série sobre o elemento atividades, com ênfase no afastamento da tradição, no estabelecimento de roteiros de estudo planejados pelos alunos e na metodologia de projetos.

Quadro 3: Forma-escola: Atividades 

Afastamento da aula “tradicional”
A gente tem as salas de estudos, só que, tipo assim, a gente não fica olhando para a lousa com a professora lá na frente. A gente pega computadores, livros, e a gente pode estudar com os nossos amigos (Kayo Pereira – educando do Projeto Âncora).
Roteiro
Cada criança tem, no seu plano de desenvolvimento individual, um objetivo de aprendizado. Quando há uma atividade que beneficia esse objetivo, eles se inscrevem para fazer essa atividade. [...] Então, a ideia é não somente oferecer uma escolha, o que é muito importante em nosso conceito, mas também oferecer um acompanhamento (Tijl Rood – coordenador pedagógico da Steve Jobs School).
Projetos
Eu gosto muito da maneira como as crianças aprendem de forma interativa através da aprendizagem baseada em projetos, aprendendo a se comunicar uns com os outros (Leslie Johnson – mãe de aluno da e 3 Civic High School).

Fonte: Material da pesquisa.

As três recorrências encontradas nas atividades das escolas são: afastamento do que se conhece culturalmente como aulas tradicionais, roteiros de planejamento e ênfase na metodologia de projetos. Os episódios da série do Canal Futura mostram o afastamento das aulas consideradas tradicionais, que escolas inovadoras buscam e enfatizam por meio das falas, principalmente de alunos, quando dizem que “não precisam ficar olhando para a lousa”, que podem buscar “maneiras diferentes da fazer as coisas”, que “não ficam todo o tempo estressados” e que “recebem orientação, ao invés de o professor dar aulas”.

Podemos visualizar atividades que não são realizadas em grupos ou no coletivo, como nas aulas tradicionais, mas que são planejadas individualmente por cada aluno ou para cada aluno. Essas atividades individualizadas são planejadas/organizadas/escolhidas de acordo com interesses e necessidades dos alunos por meio do que chamam de roteiro.

Outra grande recorrência de atividades nas escolas inovadoras, apresentadas na série de TV, é o desenvolvimento de projetos, configurando-se como uma repetição dos discursos. Grande parte das escolas trabalha com essa metodologia, que recebe grande ênfase. Essa maneira de trabalho tem sido visibilizada como sendo capaz de permitir que os alunos tenham motivação e maior curiosidade, além de poderem aprender os conteúdos obrigatórios das escolas por meio dos projetos. Mais ainda observamos que em algumas escolas há a obrigatoriedade de que os alunos desenvolvam projetos.

Todas essas falas mostram o quanto são considerados os desejos e as vontades dos alunos, seu conforto e suas escolhas. Além disso, há menções às necessidades dos alunos, ao que devem aprender do currículo, socialmente e legalmente instituído, e ao que têm interesse em aprender que possa aderir a esse currículo, em um planejamento individual. Para ajudar nesse planejamento individual, algumas das escolas contam com plataformas digitais de atividades, que são ferramentas para o planejamento dos roteiros individuais dos alunos, como podemos ver no quadro abaixo.

Quadro 4: Plataformas de Atividades 

Você já viu a plataforma de ensino? Então, a gente ousou construir uma de aprendizagem, e não de ensino. Então, nessa plataforma, tem tudo o que precisa de registro, de orientação, de organização, tudo para que educando e educador possam se relacionar e que a avaliação realmente seja formativa, contínua e sistemática, que é a nossa avaliação, que é avaliação que a Lei, a LDB fala, mas que pouca gente sabe aplicar. Aqui não (Claudia dos Santos – Coordenadora Pedagógica do Projeto Âncora).

Fonte: Material da pesquisa.

Apesar das escolas usarem os aplicativos ou plataformas de planejamento como uma ferramenta de personalização, em que os alunos podem escolher muitas atividades, isso não significa que não haja intervenções dos adultos responsáveis pela aprendizagem, ou mesmo a imposição de tarefas, como podemos ler no excerto acima. Ou seja, ao mesmo tempo em que há uma liberdade para os alunos escolherem, há uma responsabilidade dos professores da escola para direcionarem o que os alunos precisam aprender. Dessa forma, essas escolas, mesmo utilizando outros recursos e ferramentas, mantêm a ação de desenvolver atividades escolares e exercícios que os alunos devem realizar, seja por meio de aplicativos, seja mediante roteiros ou projetos, como “[...] o tempo e o espaço que, por estar separado da produção, permite o exercício e o estudo”. (LARROSA, 2017, p. 255). O que se modifica radicalmente é que essas atividades, além de dar ênfase aos interesses e necessidades dos alunos, são planejadas individualmente para cada aluno, diferentemente das atividades da forma-escola tradicional, planejadas para uma turma inteira, mas também desenvolvidas individualmente.

Seguindo as recorrências da forma-escola, temos as matérias, entendidas como o conhecimento socialmente instituído e estruturado. Percebemos que as escolas trabalham com as especificidades de cada área de conhecimento – metas, matérias obrigatórias, linhas de estudo que compõem um currículo mais flexível, mas que mantém os objetivos do conhecimento comum. O conjunto de excertos abaixo ajuda-nos a construir esse entendimento.

Quadro 5: Forma-escola: Matérias 

Nós não partimos de um objetivo nosso. Nós não elencamos quais os objetivos que queremos que a criança aprenda naquele ano, naquele tempo. Nós temos todos os objetivos das áreas do conhecimento com base nos PCNs, que são os Parâmetros Curriculares da Educação Nacional. Nós temos eles listados (Edilene Brito – Coordenadora Pedagógica do Projeto Âncora).

As matérias obrigatórias são Inglês, História, Ciências e, depois, Matemática, duas línguas e duas eletivas, além de uma aula de bem-estar (Chris Angel – Diretor da Ross School).

Fonte: Material da pesquisa.

No caso das matérias, vemos que a diferença entre as escolas inovadoras e as escolas tradicionais não está nas disciplinas, nos conteúdos ou no currículo propriamente dito, já que as escolas inovadoras também estão dentro de sistemas de ensino e precisam cumprir determinados parâmetros e a legislação.

Não nos esqueçamos de que as escolas, sejam as do modelo moderno, sejam as do modelo “inovador”, ainda são as responsáveis pelo currículo escolar. De acordo com Michael Young, “[as escolas] capacitam ou podem capacitar jovens a adquirir o conhecimento que, para a maioria deles, não pode ser adquirido em casa ou em sua comunidade, e para adultos, em seus locais de trabalho” (YOUNG, 2007, p. 1294). A esse conhecimento adquirido na escola que possibilita que os alunos tenham acesso a setores da sociedade aos quais não teriam se não fosse pelo conhecimento escolar, Young chama de conhecimento poderoso.

Nas escolas analisadas, o conhecimento poderoso continua presente. Os conteúdos estão lá; o que muda é o modo como são trabalhados e desenvolvidos, mediante contextualizações maiores, estrutura diferenciada ou mesmo vinculação de conteúdos de diferentes matérias e áreas do conhecimento em projetos. A escola permanece como o “[...] espaço (público) em que as coisas do mundo se transformam em matéria de estudo” (LARROSA, 2017, p. 255).

Os sujeitos na forma-escola profanada: “São estudantes que se adequaram à norma e que se autogerenciam completamente”

A título de conclusão, trazemos a ênfase nos sujeitos, uma vez que a escola é um espaço de formação de pessoas, de um processo civilizatório entendido como necessário nas sociedades desde a Modernidade. Os modos de formação dos sujeitos adultos e não adultos, transformados em professores e alunos nas escolas da série exibida pelo Canal Futura, podem ser visualizados nos excertos abaixo.

Quadro 6: Forma-escola: Sujeitos 

O colégio está dividido por níveis de autonomia, levando em conta as capacidades que vão adquirindo no desenvolvimento das habilidades. [...] São estudantes que se adequaram à norma e que se autogerenciam completamente, justamente por conseguir desenvolver seu nível de autonomia, levando em conta as características que vão desenvolvendo a partir do processo que têm no colégio (Angélica Cruz – tutora do Colégio Fontán).

Falamos de processos cognitivos básicos: atenção, memória, pensamento, linguagem, função executiva, motivação, e também falamos de ter em conta características pessoais próprias, particulares de cada ser humano (Eduardo Yepes – Coordenador do Learning One to One do Colégio Fontán).

As pessoas que trabalham nesta escola precisam ser colaboradoras. Se você não é colaborador, você não pertence a esta escola (Carrie Clark – Diretora de Assuntos Acadêmicos da Ross School).

Fonte: Material da pesquisa.

Podemos observar nas falas que a ênfase na formação desses sujeitos é muito mais voltada à dimensão subjetiva, de características socioemocionais, do que à formação e aprendizagem com foco em conteúdos disciplinares e na avaliação classificatória propriamente dita. Essa ênfase é para alunos e para professores. Nessas escolas, os alunos devem ser considerados em sua inteireza, integralmente, para que se sintam bem. O interesse está em formar alunos que sejam futuros bons cidadãos. Os professores devem desenvolver para si certas características socioemocionais, tanto quanto ou mais do que seus alunos, tais como ser um designer do tempo, do espaço e das atividades, ou ser alguém colaborativo, que trabalha com os outros.

Retomando a pergunta com a qual iniciamos o capítulo analítico sobre a possibilidade de uma escola não ter aula, nem série e nem turma, recorremos a Masschelein e Simons, que desenvolvem uma argumentação que para nós foi produtiva para pensar na organização escolar que distingue uma escola de qualquer outra instituição.

Defendemos que as escolas inovadoras profanam a forma-escola em suas práticas, em um exercício constante de modificar/transformar os modos de fazer aulas, séries e turmas sem que se perca a intencionalidade da escola e dos conhecimentos. De acordo com os autores, podemos pensar a profanação como a ressignificação, mas sem perder o clima, a atmosfera do que nos lembra a forma-escola:

Muitas delas [práticas de fazer escola], na realidade, poderiam ser chamadas de rituais; contudo, se são rituais escolares, deveriam ser vistos como um tipo de rituais profanados (rituais como um puro meio sem finalidade, para usar as palavras de Agamben). [...] Provavelmente, a prova ou teste é um bom exemplo, e especialmente quando se considera como se tornou um instrumento de qualificação ou normalização. Em vez de questionar radicalmente a prova – e Foucault, ou pelo menos algumas leituras de Foucault vão nesse sentido –, talvez seja mais frutífero olhar para ela como um instrumento para a “pressão pedagógica”. Não há aprendizagem como formação – no sentido de transgressão das fronteiras do seu mundo da vida – sem um tipo de pressão. Portanto, em vez de abolir a prova porque ela passou a carregar as marcas institucionais das normas sociais e das exigências de qualificação, o que poderia ser mais relevante é a profanação da instituição da prova, e transformá-la de novo em uma técnica pedagógica (MASSCHELEIN, SIMONS, 2017, p. 203-204, grifos nossos).

A partir desse entendimento, em articulação com as análises, destacamos que as escolas, mesmo as consideradas “inovadoras”, mantêm a forma-escola, porém profanada, que toma seus cinco elementos (tempo, espaço, materiais, atividades e sujeitos) para ressignificá-los e torná-los outros, com diferentes ênfases e de diferentes modos de desenvolvimento.

A constituição da instituição escolar é uma construção histórica e cultural (espaço-temporal) que mantém, em maior ou menor medida, marcas históricas que caracterizam esse espaço e o distingue dos demais espaços da sociedade. Portanto, a profanação dos elementos da forma-escola não se constitui em um problema a ser combatido pela área da educação. Muito pelo contrário, esse exercício de compreender que mesmo os elementos “sagrados” da forma-escola podem ser modificados e tornados outros, com objetivos atualizados, é muito produtivo e potente para a continuidade da tradição de educar pessoas e de conduzir as condutas, de modo a apresentar o mundo aos recém-chegados (ARENDT, 1992). A profanação, todavia, não pode ocorrer de forma a manter os fundamentos da escola moderna. Precisa assumir uma crítica radical para evitar os fundamentalismos e basear o seu desafio cotidiano na diferença, na construção de outra finalidade da escola e de concepção de sujeito humano, mantendo sua intenção e responsabilidade pedagógica. Uma escola que contribua para a vida em uma sociedade mais plural e justa pode ser indício da profanação.

Contudo, a profanação não se concretiza apenas com práticas estetizadas e novidadeiras. Precisa quebrar verdades estabelecidas e criar outras formas de ser e existir, buscando outras racionalidades emergentes e passíveis de serem matizadas com a racionalidade neoliberal, que é a dominante no contemporâneo. “A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem”, diz Agamben (2007, p. 79). Esse parece ser o desafio lançado por algumas das escolas inovadoras analisadas. E os desafios das escolas pós-pandemia4, quais serão?

Notas

1Em articulação com os estudos do grupo de pesquisa do qual fazemos parte, este trabalho deriva de uma pesquisa sobre inovação na educação e docência contemporânea. Conta com apoio da Coordenação de Apoio ao Pessoal do Ensino Superior (CAPES), por meio de Bolsas Proex, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

2O Instituto Inspirare apresenta-se como “um instituto familiar” que tem como principal missão “inspirar inovações em iniciativas empreendedoras, políticas públicas, programas e investimentos que melhorem a qualidade da educação no Brasil”. O Instituto Inspirare é mantido integralmente com recursos da família Gradin. Tem apoio do poder público e da sociedade civil. Informações disponíveis no site: http://inspirare.org.br/

3Todos os excertos do material são oriundos de depoimentos extraídos dos documentários da série analisada e, sempre que possível, serão apresentados com a identificação dos entrevistados, da escola e do episódio.

4Este artigo foi produzido em 2020, ano em que uma pandemia causada por um vírus chamado Sars-CoV-2, que atingiu e alterou todo o processo educacional em nível mundial.

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Recebido: 24 de Julho de 2020; Aceito: 14 de Setembro de 2020

Dra. Antônia Regina Gomes Neves

Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Porto Alegre – Brasil)

Gerência de Educação Profissional

Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Docências, Pedagogias e Diferenças (GIPEDI/Unisinos/CNPq)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-8883-8542

E-mail: antoniargneves@gmail.com

Ms. Sabrine Borges de Mello Hetti Bahia

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Brasil)

Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação

Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Docências, Pedagogias e Diferenças (GIPEDI/Unisinos/CNPq)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-2786-6854

E-mail: sabrinehb@edu.unisinos.br

Profa. Dra. Elí Terezinha Henn Fabris

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Brasil)

Programa de Pós Graduação em Educação

Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Docências, Pedagogias e Diferenças (GIPEDI/Unisinos/CNPq)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-3622-0289

E-mail: efabris@unisinos.br

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