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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.58 Natal out./dez 2020  Epub 16-Out-2020

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n58id21540 

Artigos

O Pandemônio de 1918: testemunho de um médico

El pandemonio de 1918: el testimonio de un médico

André Luiz Venâncio Junior1 
http://orcid.org/0000-0002-9285-9116

Ana Chrystina Mignot2 
http://orcid.org/0000-0001-8944-2021

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)

2Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)


Resumo

Problematizar como o médico Moncorvo Filho narra a pandemia da gripe espanhola, em O Pandemônio de 1918, além de interpretar como ele estava inserido num movimento comprometido em pensar o exercício da medicina articulado a preceitos pedagógicos de higiene, constituem o horizonte deste texto. Na interpretação da atuação do médico, nos orientamos pela perspectiva de intelectual de Sirinelli (2003). Nos detivemos na rede de sociabilidade de Moncorvo Fillho, no seu engajamento político na saúde e no modo como sua geração enfrentou aquela pandemia. Concluímos que Moncorvo Filho, com a publicação do livro, em 1924 – no qual denunciou os problemas sociais e a falta de condições sanitárias que dificultaram a ação naquele momento – pretendia deixar registrado o testemunho de um médico que viveu aquela que até então era a maior epidemia da história, a partir de uma concepção intervencionista que se traduzia em práticas voltadas para impedir a disseminação da doença.

Palavras-chave: Moncorvo Filho; Gripe espanhola; Pandemia; Testemunho

Resumen

Cuestionar cómo el doctor Moncorvo Filho narra la pandemia de gripe española en el libro O Pandemônio de 1918 (El Pandemonio de 1918), además de interpretar cómo formó parte de un movimiento comprometido a pensar en el ejercicio de la medicina articulada con preceptos pedagógicos de higiene, constituye el horizonte de este texto. En la interpretación del desempeño del médico, nos guiamos por la perspectiva del intelectual de Sirinelli (2003). Nos quedamos en la red de sociabilidad de Moncorvo Filho, en su compromiso político con la salud y en la forma en que su generación enfrentó esa pandemia. Concluimos que Moncorvo Filho, con la publicación del libro, en 1924 –en el que denunciaba los problemas sociales y la falta de condiciones sanitarias que dificultaban la acción en ese momento pretendía registrar el testimonio de un médico que vivió lo que hasta entonces fue la epidemia más grande de la historia desde una concepción intervencionista, que se tradujo en prácticas destinadas a prevenir la propagación de la enfermedad.

Palabras clave: Moncorvo Filho; Gripe española; Pandemia; Testimonio

Abstract

To question how the doctor Moncorvo Filho narrates the Spanish flu pandemic in the book. O Pandemônio de 1918 (The 1918 Pandemonium), in addition to interpreting how he was inserted in a movement committed to thinking about the exercise of medicine articulated with pedagogical precepts of hygiene, constitute the horizon of this text. In interpreting the physician's work, we were guided by Sirinelli's (2003) intellectual perspective. We focused on Moncorvo Filho's sociability network, on his political engagement in health and onthe way his generation faced that pandemic. We concluded that Moncorvo Filho, with the publication of the book, in 1924 – in which he denounced the social problems and the lack of sanitary conditions that hindered the action at that time – intended to record the testimony of a doctor who lived what was until then the biggest epidemic of history from an interventionist conception, that translated into practices aimed at preventing the spread of the disease.

Keywords: Moncorvo Filho; Spanish flu; Pandemic; A testimony

Depois da pandemia

Pouco tempo depois da pandemia da gripe espanhola, chegou às mãos dos leitores um livro escrito na primeira pessoa, trazendo um testemunho pungente sobre a crise que se abateu sobre a sociedade brasileira. Medo e perplexidade povoavam as lembranças do médico Moncorvo Filho na medida em que descreveu as cenas com as quais se defrontou, quando homens e mulheres de todas as idades e classes sociais acorriam em gritos de desespero aos hospitais com febre, vômito e dores:

Grande vozerio, gritos e gemidos de repente ouvi que partiam do saguão da entrada e contiguo à minha sala. Corro a ver o que era. Uma onda humana invadia o prédio de nossa sede: eram homens, mulheres e crianças, em sua maioria andrajosos, comprimindo-se para entrar e agasalhar-se em todas as salas do nosso estabelecimento. Havia gente de todas as classes sociais, indivíduos brancos e de cor, velhos, moços e crianças, carregados uns pelos outros, alguns que entravam a cambalear, esquálidos, ardendo em febre, outros a vomitar e finalmente alguns encontrados já a expirar na via pública... Eu, que era o único medico presente, porque os demais profissionais científicos, se achavam impossibilitados de comparecer, como disse, a maioria já acometidos da espanhola, senti-me arruinado, e no primeiro momento, confesso, ante quadros tão trágicos, sem saber como resolver a cruciante situação, tive ímpetos de fugir, de ir para bem longe, onde se me apagassem do espirito aquelas cenas macabras e dos meus ouvidos lancinantes gemidos que me dilaceravam a alma. O cumprimento do dever, o amor à humanidade, condoído da sorte de tanta gente, alguns que de joelhos e mãos postas me imploravam socorro imediato, fizeram-me refletir sobre a gravidade do momento. Era preciso toda a presença de espírito e imperioso se tornava, com rapidez, dispor um plano a seguir em face de tão dura eventualidade (MONCORVO FILHO, 1924, p. 49).

Deixou, assim, registrado os horrores por ele vividos naqueles dias, em meio às dificuldades que enfrentavam o poder público, médicos, cientistas e, em particular, o Instituto de Proteção e Assistência à Infância (IPAI) – órgão por ele criado para cuidar de crianças, a partir de práticas que vinha desenvolvendo em suas pesquisas. A gripe espanhola era, até então, “a maior epidemia da história, uma pandemia”. Para dimensionar o impacto que teve no mundo, Bertucci-Martins quantifica o número da população atingida.

Ao passo que a Primeira Guerra Mundial, de 1914-1918, matou, aproximadamente 8 milhões de pessoas, a gripe espanhola foi fatal para mais de 20 milhões de seres humanos em todo o mundo. Nada matou tanto em tão pouco tempo. Quanto ao total de enfermos: para uma parcela significativa de estudiosos, 600 milhões de pessoas teriam sofrido com a pandemia gripal, mas alguns supõem que adoeceram entre 80 e 90% da população do planeta, o que somaria 1 bilhão de pessoas (BERTUCCI-MARTINS,2003, p. 105-106).

Publicado em 1924, pelo Departamento da Criança no Brasil, no Rio de Janeiro, o livro O Pandemônio de 1918 traz em seu subtítulo Subsídio ao histórico da epidemia de gripe que em 1918 assolou o território do Brasil. Escrito alguns anos após os fatos, a tessitura da narrativa traz o relato da experiência permeada por informações históricas possibilitando compreender, nessa estratégia discursiva como médicos, cientistas e poder público em geral enfrentaram epidemias no mundo e no Brasil e, em particular, diante das especificidades da gripe espanhola que trouxe muitas dificuldades para se lidar com ela. Em suas primeiras palavras, ficam claros os motivos que o levaram a esperar alguns anos para escrever e publicar o livro.

Quem se atreve a escrever as linhas que se seguem ainda está até hoje, já lá são passados mais de cinco longos anos, sob o peso da angustiosa impressão que lhe dilacerou a alma nos tétricos dias do 1918. Somente agora, valendo-me de relativa calma, pude reunir em páginas de sincera revelação o que me foi dado observar e anotar no doloroso surto da tremenda catástrofe que baixou sobre a nossa urbe e por ocasião da qual tive, involuntariamente, que assumir um papel de destaque nos esforçados serviços dia e noite prestados à população. Sendo testemunha de cenas as mais comoventes, encontrando-me em face de quadros capazes de constranger os corações mais estoicos, pretendo, com o presente e modesto subsidio, contribuir de alguma sorte para a história do grande acontecimento que de modo tão pungente enlutou a nossa sociedade. Propositalmente dei a este livro o título de Pandemônio de 1918, para bem caracterizar o cataclisma que sobre nós se desencadeou nesse ano terrível, pois esse vocábulo bem exprime o que então todos assistimos e sofremos (MONCORVO FILHO, 1924, p. 9).

De seu testemunho, pode-se depreender que o acontecimento, além de marcar a sociedade brasileira como um todo, marcou a sua própria vida. O médico foi coparticipante dos fatos ali narrados e assumiu uma posição de destaque no combate à gripe espanhola. Trata-se de alguém que pessoalmente sentiu as dores de uma tragédia coletiva, experimentada intensamente no front de batalha: um médico do Instituto de Proteção e Assistência à Infância que interferiu na sociedade, ajudando no lidar com os doentes de comunidades cariocas, mostrando, assim, uma concepção de medicina que tinha como objetivo, além da cura e dos cuidados em geral, ensinar aos indivíduos princípios de higiene e prevenção de doenças.

Moncorvo Filho estava inserido no movimento que Oliveira (1990), denominou “nacionalismo militante”, uma perspectiva nacionalista articulada em torno de pensar ações de salvação nacional. Nele, os intelectuais, sem importar a origem social ou profissional a qual se vinculavam, usavam sua formação e campo de atuação para propor caminhos, visando à superação dos problemas que assolavam o Brasil. O médico pretendia enfrentar os problemas da infância como os altos índices de mortalidade infantil no Brasil. Esses missionários do progresso buscavam criar um ideário que pudesse ser construído a partir de uma nova tradição, com a inserção de novas práticas que se alinhassem a dos países europeus e norte-americanos.

Dentre os que pregavam o progresso, estavam aqueles que se alinhavam ao movimento higienista, surgido na segunda metade da década de 1910. Entendiam que poderiam implementar no país práticas ideais de higiene que pudessem prevenir doenças, diminuir a mortandade e conduzir, assim, o país a galgar o progresso. Essa perspectiva talvez tenha orientado o médico Moncorvo Filho a colocar no papel a sua experiência, na esperança de que a história daquele momento no Brasil pudesse ser estudada no futuro.

O historiador que no futuro procurar descrever as principais epidemias que assolaram o Brasil, com muita dificuldade poderá fazer ideia da formidável calamidade que foi a gripe epidêmica. E é perfeitamente exata a afirmação, porque de surpresa fora o assalto que de tantos horrores encheu aqueles dias tenebrosos, em que chegamos a perder a noção de que vivíamos em um país ultracivilizado e cercado do maravilhoso conforto de que sempre gozamos. Ali estão motivos que me levaram a escrever o presente livro (MONCORVO FILHO, 1924, p. 10).

Dessa forma, a luta pela vida, próxima à crença de que era necessário superar as mazelas sociais, eleva o livro à condição de documento histórico e relato autobiográfico de quem viveu aquele período e nele atuou. Longe de estar apenas repleto de dados e nomes de enfermidades durante o enfrentamento da pandemia, o leitor se vê diante de um depoimento reflexivo e emocionado. Em muitos momentos, Moncorvo Filho revela como aquele momento se tornou uma memória significativa para a sua formação pessoal e profissional, constituindo-se um relato de quem viveu e atuou decisivamente para conter o avanço da doença, na medida em que se dedicou a cuidar, curar e ensinar práticas de higiene para as pessoas se precaverem.

O reconhecimento da vulnerabilidade do ser humano, talvez também tenha sido uma motivação importante para a escrita do livro. Possivelmente, o autor colocou a experiência no papel para melhor entender que nenhum lugar, mesmo que “ultracivilizado e confortável”, estava isento de ser acometido por algo tão avassalador que podia mudar o curso da vida das pessoas, da economia e das regras sociais de convívio. A perda da noção de civilização, resultado da pandemia de 1918, pôde ter sido a motivação para a escrita do livro.

Moncorvo Filho mostrou que a pandemia, além de acometer as pessoas pela doença, transformou a maneira pela qual o Brasil e o mundo se constituíram como sociedade. Essa perda de noção de civilização foi possivelmente o que motivou o médico a escrever o livro. Todavia, é importante entender quem foi esse sujeito para que possamos interpretar a importância do livro em 1924, quando chega ao leitor, e também o legado que deixou para a formulação de práticas médicas e preceitos higiênicos à população.

Um médico no combate à pandemia

Quem é este médico que trabalha no combate à gripe espanhola e deixa seu testemunho publicado em livro? Para a interpretação de sua atuação, assumimos a noção de intelectual de Sirinelli (2003) para examinamos seu percurso pessoal, sua rede de sociabilidade, seu engajamento político na saúde e o modo como sua geração enfrentou aquela pandemia.

Carlos Arthur Moncorvo Filho nasceu em 1871, no Rio de Janeiro. Em 1897 concluiu seus estudos na Faculdade Nacional de Medicina, apesar de ter sonhado, quando mais jovem, em seguir a carreira militar. Por influência de seu pai, o médico Carlos Arthur Moncorvo de Figueredo, mudou seus projetos profissionais, e, igualmente, depois de formado, também passou a se preocupar com a saúde das crianças. Oriundo de uma família de médicos, como o seu pai, desde o começo de sua trajetória profissional, esteve envolvido com as questões sociais e, para tanto, usou seu prestígio para poder intervir no mundo ao seu redor e transformá-lo.

O autor de O Pandemônio de 1918 se destacou, segundo Freire e Leony (2011), em iniciativas como a Obra de Cruz Verde, em 1920, com foco no combate ao analfabetismo, na fundação de um curso popular de higiene infantil, em 1915, e na criação e participação em diversas instituições de cunho científico. Destas, podemos destacar a Sociedade Científica Protetora da Infância, a Sociedade Eugênica de São Paulo e a Sociedade Brasileira de Pediatria.

Seguindo o exemplo de seu pai, Moncorvo Filho sempre demonstrou interesse com a questão social do povo brasileiro, com um foco ampliado para a infância. Considerava que as crianças, em sua maioria, viviam sem noções básicas de higiene, o que ia na direção contrária a todas as noções científicas e sociais que se esperavam para o desenvolvimento de uma vida mais digna. Essas posturas o fizeram um pioneiro no Brasil na criação e desenvolvimento de práticas específicas, ou seja, um projeto para intervir na sociedade e garantir uma melhor qualidade de vida às crianças.

O Instituto de Proteção e Assistência à Infância, localizado no Rio de Janeiro, foi o espaço no qual atuou com maior destaque. Ali, consolidou seus princípios de medicina social com foco na infância e conseguiu destaque e respeito nacional e internacional. De acordo com Camara (2014), o IPAI, seria a expressão máxima da empreitada rumo à civilização e ao progresso. Isso pode nos dar pistas do motivo pelo qual o combate à pandemia seria o espaço que Moncorvo Filho usou para implementar suas ideias de medicina progressista, que desenvolvia ao longo do tempo, uma prática médica pautada na intervenção sobre os indivíduos, assim como no ensinamento de práticas que os ajudassem a prevenir as doenças.

Além de fazer divulgação científica em jornais, se mobilizava para escrever em revistas com a mesma finalidade. Isso corresponde à perspectiva de Sirinelli (2003), quando mostra que os intelectuais usavam diversos espaços de sociabilidades, tais como jornais e revistas, buscando manter um campo de disputa. Desse modo, Moncorvo Filho fazia circular suas ideias para que outros a elas se associassem. Sua ação não se limitou apenas a assistir a infância, pois desenvolveu e divulgou uma extensa produção científica. Em jornais do período, como O Paíz, ou em revistas, como a Revista Nacional, Revista Fon-Fon, Revista ABC, ou na de sua própria autoria, como os Archivos de Assistência à Infância. Divulgava artigos científicos, trazendo para o diálogo outros intelectuais com os quais compartilhava ideias. Empenhava-se, também, na pauta social, propondo medidas para a infância, divulgando trabalhos no campo do higienismo ou comentando a situação da pandemia de 1918.

Destacamos a publicação na Revista Nacional, de 1923, sobre o trabalho do médico em favor da infância e o papel do IPAI como referências institucionais de cuidado da infância, que influenciaram outras instituições no Brasil.

Não basta, porém, que se fundem asylos e orfanatos que abriguem as creanças e hospitais onde ellas encontrem proteção e tratamentos quando enfermas. É preciso que vá muito além desses limites a ação a desenvolver-se. Deve ella penetrar até os lares, onde, ministrando-se, a todos, os conhecimentos de regras de hygiene, eduquem-se e orientem-se as mães e os chefes de família para a observância dessas normas, sem o que a luta continuará sempre, por isso que sobreviverão as raízes de onde brota o mal (Apud GOLINELLI, 2017, p. 16735).

Fundou, ainda, o Departamento da Criança do Brasil, em 1919, que realizaria congressos, organizaria um Museu da Infância e dialogaria com a intelectualidade em torno da temática da infância, criando redes de sociabilidade e buscando, através delas, fazer com que suas ideias e projetos circulassem na sociedade. Desse modo, Moncorvo Filho pode ser visto como um intelectual comprometido com a transformação da sociedade.

As iniciativas de assistência, como as implementadas por Moncorvo Filho, segundo Sanglard e Gil (2014), foram uma das diversas formas de amenizar a pobreza. De acordo com esses autores, tais práticas iniciaram-se através de irmandades devocionais e confrarias profissionais e, depois, a partir de instituições filantrópicas laicas ou confessionais. Se vincularam especialmente à infância a partir da questão da mortalidade infantil. Essas ações se alinharam a uma sociedade que sofria mudanças políticas e sociais, obrigando os governos centrais e intelectuais a buscar formas de resolver problemas vinculados à pobreza, especialmente a questão da mendicidade e dos considerados vagabundos, ou seja, a população pobre que circulava pelas cidades. A organização da assistência foi, entre outros, um dos mecanismos postos em prática, assim como a manutenção de hospitais, entre outros. Foi um momento no qual se pensava na redenção pelo trabalho como condutor do país ao progresso, pois evitaria a conversão do pobre em miserável.

Sua atuação teve o Rio de Janeiro do começo do século XX como cenário de amplas transformações urbanas e sanitárias que, de certa forma, contribuíram para a formulação de propostas inspiradas em modelos europeus e norte-americanos que garantissem que a sociedade brasileira galgasse o progresso e a civilização, como bem lembra Câmara (2013). Dessa forma, medidas realizadas por setores filantrópicos, privados e assistenciais, como o IPAI, constituíram-se em tentativas de firmar o discurso científico e racional, bem como sua importância na reconfiguração da cidade, nos modos de vida e no comportamento da população.

Conforme Bonato (2014), Moncorvo Filho reconhecia que existiam muitos problemas sociais que deveriam ser combatidos pela sociedade e pelas autoridades. Seria a forma de debelar todos os males que existiam, como doenças hereditárias, alcoolismo, sífilis, tuberculose, entre outros, que provocavam a degeneração do ser humano. A proteção à infância emergia com centralidade na agenda do médico que tinha por objetivo intervir na vida das crianças para impedir que fossem acometidas desses males. Em seus projetos de proteção à infância, constava a pauta de instruir as famílias para os cuidados higiênicos e profiláticos, a partir do ensino de puericultura, medicina caseira e educação doméstica, com o objetivo de educar para civilizar os indivíduos.

O médico não se restringiu apenas a assistir a infância, mas sim a desenvolver uma extensa produção científica. Além do livro em análise, publicou centenas de trabalhos, muitos deles destinados à tuberculose, doenças parasitárias, febre amarela e mortalidade infantil. Observamos, assim, seu desvelo com uma infância saudável, tema com o qual se ocupou ao criar projetos e ao dialogar com aqueles que podiam compartilhar do seu ideário. Assim como outros intelectuais que, na perspectiva de Sirinelli (2003), são indivíduos engajados politicamente nas questões de seu tempo, Moncorvo Filho usava diversos espaços de sociabilidade, buscando manter um campo de disputa de modo a fazer circular ideias e se juntar a outros que a elas se associavam. O próprio livro traz essa perspectiva, ao mostrar a defesa que Moncorvo Filho faz do campo da ciência, higiene, infância e política. A assistência à infância, a divulgação científica e implementação de modelos médicos inovadores de prática de medicina são desvelados durante a pandemia de 1918, conforme a narrativa de Moncorvo Filho, como veremos a seguir.

Balanço da pandemia: histórico, desafios e iniciativas

A título de introdução, o livro começa com “As primeiras palavras”, onde Moncorvo Filho justifica a sua escrita. Primeiramente, destacando a importância de se estudar o período que denominou de “caos” para o Brasil. Também mostra como foi atuar nesse período, combatendo a pandemia, apresentando seus anseios, medos e incertezas diante do que seria o futuro, não somente dos acometidos pela doença, mas dos médicos, enfermeiros e autoridades, estas últimas muitas vezes apresentadas como incapacitadas para lidar com o combate ao “Pandemônio”.

No primeiro capítulo, “A gripe no Brasil”, o médico recupera historicamente as epidemias que acometeram a Europa e o Brasil. Comenta as epidemias de gripe na Itália, em 1328, e as da França, em 1387, 1403,1410,1414 e 1420. Assinala que a gripe devastou a Europa no século XVI, e, em 1505, poucos países europeus não sofreram consequências graves de alta mortandade com a gripe. Destaca, ainda, as epidemias de gripe em 1515, 1543, 1555, 1675,1691,1693 e 1695 como as de menor importância na Europa e no restante do mundo.

Aqui é perceptível a análise que faz de epidemias e pandemias ao longo da história, mostrando o impacto que provocavam, dizimando a população e desequilibrando a civilização por sua elevada potência de levar ao óbito pessoas em todo o mundo. Cita um surto epidêmico em 1850 que dizimou mais de 600 mil pessoas na Europa e em toda parte chamando a atenção para as 8 mil mortes apenas na cidade de Roma. Mostra, ainda, que, durante os séculos XVIII e XIX, em países como Bélgica, Dinamarca, Alemanha, França e Itália, apareceram vários focos epidêmicos de gripe que infectaram muitas pessoas.

Após a retrospectiva histórica de epidemias de gripe que vinham afe-tando o mundo, Moncorvo Filho volta-se para o surgimento de epidemias no Brasil.

Pelas descrições existentes nesses subsídios da literatura medica nacional, interessantes dados encontram-se mostrando nas lufadas espetaculosas e devastadoras dos vários surtos epidêmicos, guardada a relatividade das situações, das épocas e dos computados da população, há muita semelhança com o que se verificou no pandemônio de 1918 (MONCORVO FILHO, 1924, p. 13-14).

A partir daí, Moncorvo Filho nos apresenta uma percepção de como a doença se manifestou em nosso país através do tempo. Mostra que seu objetivo é dar a dimensão que a mortalidade alcançou em 1918, permitindo aos leitores estudar e perceber a gravidade daquele momento na história brasileira.

Um histórico das epidemias no Brasil

Moncorvo Filho apresentou em seu livro um importante estudo do Barão do Lavradio que mapeou o avanço de epidemias no Brasil. Ele era um cirurgião preocupado com a saúde pública, estudioso de enfermidades tropicais. Deste modo, revela como seu percurso profissional intelectual carrega as marcas do “patrimônio dos mais velhos” como “elemento de referência explícita ou implícita” (SIRINELLI, 2003, p. 255).

Moncorvo Filho deu esse destaque ao Barão do Lavradio pelos estudos que realizara, sobre a epidemia de catarro em 1864 que teve duração de oito meses, além de ter estudado epidemias de gripe em 1867 e as de 1889 e 1890. Essa mesma gripe teria acometido a população em 1903, deixando 511 mortos e, em 1904, 646 mortos. No ano de 1905, foram 530 mortos, com números que evoluíram de 1906 a 1908. Entre 1909 e 1918, a gripe ainda teria provocado de 163 a 481 óbitos por ano. O médico relatou no livro de que maneira a epidemia de gripe se alastrou no país, convivendo com outras doenças como a peste bubônica.

A disseminação e a frequência da gripe entre nós, o seu incremento por ocasião do aparecimento nesta capital da peste bubônica, já em 1903 fazia supor as suas relações com esse terrível morbo e essa presunção despertou não raras discussões a respeito. Graças às medidas de higiene ofensiva e defensiva postas então em prática, a peste foi sufocada, mas a gripe surda e insidiosamente continuou a acometer todas as camadas sociais, pela sua constância e pela sua frequência, habituando os médicos e até o povo a considerá-la uma cousa inerente ao nosso meio, não se a entranhando mais e registrando-se como factos vulgares os resfriamentos (indevidamente cognominadas pelo povo constipações) (MONCORVO FILHO, 1924, p. 26).

Além de apresentar o número de enfermos Moncorvo Filho indicou que as práticas higiênicas que vinha desenvolvendo para educar a população tiveram efeito satisfatório para conter a quantidade de mortos pela doença. O médico apresenta dados não apenas de mortos, mas de todos os infectados por gripe, entre 1904 e 1917, na cidade do Rio de Janeiro, ano a ano, num esforço de quantificação.

Ao trabalhar os números, entre 1915 e 1919, incluindo o número de mortos pela pandemia de gripe espanhola no Brasil, ressaltou que houve um total de 14.845 vítimas. Entre outubro e novembro de 1918, momento mais crítico da crise sanitária, foram registrados 13.424 mortos, realçando, assim, a grave perturbação que se instaurou no país a partir dos primeiros dias de manifestação da gripe, em 1918.

Os chamados de clínica civil triplicavam as enfermarias dos hospitais apresentavam pletora de doentes e nas consultas dos ambulatórios crescia a olhos vistos o movimento. Todavia a mortalidade não correspondia ao grande número dos atacados, sobretudo de afecções do aparelho respiratório. A esse tempo, em 10 de setembro, explodia com caráter maligno, a epidemia de influenza em Dakar, porto francês do Senegal onde ancoravam navios de guerra brasileiros e o paquete que conduzia a Missão médica chefiada pelo Deputado Dr. Nabuco de Gouveia e que se dirigia para o teatro da guerra. Pairavam então no espirito brasileiro as maiores dúvidas sobre o verdadeiro diagnostico dessa entidade terrível que dizimava impiedosamente na Europa e já começava a ser cognominado entre nós de hespanhola, como se pretende diferencia-la da gripe, por muitos denominada de nostras e desde tempos idos aclimada em nosso meio e com a qual tão familiarizados se mostravam os médicos (MONCORVO FILHO, 1924, p. 29-30).

Chama a atenção como a gripe espanhola se alastrou de maneira rápida no Brasil. O país não estava preparado para lidar com a doença, o que permitiu que a gripe se proliferasse infectando uma grande quantidade de pessoas. O movimento de doentes que buscavam os hospitais levou o aparelho médico estatal ao colapso e, também, imobilizou o governo, impedindo a prevenção e causando uma situação de calamidade.

O avanço da gripe espanhola no Brasil

Com o título “O que foi o Pandemônio”, o segundo capítulo do livro é um relato a respeito daqueles dias de avanço da curva da pandemia de gripe espanhola no Brasil. Além de um relato histórico é, sobretudo, um testemunho de suas próprias ações, do que viveu naquele período, rico para análise e reflexão da percepção do médico sobre esses fatos.

Nesse capítulo, Moncorvo Filho destaca a atuação imediata do doutor Carlos Seidl, importante higienista e então diretor de saúde pública. Eleito membro titular da Academia Nacional de Medicina, em 1895, se notabilizara por desenvolver estudos para a profilaxia defensiva no Rio de Janeiro, além de ter realizado estudos sobre a febre amarela e a lepra, que o tornariam um importante sanitarista. No livro A propósito da pandemia de 1918: fatos e argumentos irrespondíveis, publicado em 1919, Carlos Seidl, além de ter narrado suas experiências pessoais, apresentou suas opiniões e rebateu as críticas que recebeu naquele momento. Em seu livro, Moncorvo Filho não faz apenas a defesa da pessoa do médico, mas também de seu pensamento, comprometido com uma perspectiva de atuação médica então implementada por ambos, que pregava a adoção de práticas intervencionistas, alinhando o fazer médico a uma perspectiva educativa.

De acordo com Goulart (2005), Carlos Seidl foi um bode expiatório usado pelo governo para culpabilizar alguém e se defender da incapacidade de implementar medidas eficientes para combater a epidemia. Essa parece ser também a percepção de Moncorvo Filho que dedicou boa parte do capítulo II do seu livro para defender a atuação do médico.

É, portanto, evidentíssimo não caber ao Diretor de Saúde Federal, na orbita das suas funções normais e regulamentares, nem a lembrança da execução da totalidade das medidas precisas, na conjuntura criada pela invasão da gripe epidêmica. E si esse Diretor, querendo dar asas a uma previdência quase divina, invadindo atribuições do Prefeito, dos Ministros de Estado e do Presidente da República, solicitasse o preparo de todas as providencias, para as eventualidades decorrentes da enfermidade súbita de 400.000 habitantes da cidade, sendo desses pelo menos 100.000, sem recursos de alimentação e medicação, depauperados, organicamente miseráveis: si esse Diretor da Saúde Pública declarasse ser preciso, antes da explosão epidêmica, transformar as escolas em hospitais, requisitar gêneros alimentícios, monopolizar medicamentos, organizar ambulâncias, mandar preparar caixões fúnebres em número suficiente, pôr nos cemitérios traz centenas de homens cavando sepulturas, enfim, prever tudo quanto os acontecimentos obrigaram a fazer apressadamente, que diria o governo, que diria o quarto poder nacional, tão pronto em criticar? (MONCORVO FILHO, 1924, p. 37).

A crítica de Moncorvo Filho concomitantemente com a defesa de Carlos Seidl, mostra a dificuldade que o governo central e os governos locais tiveram para construir uma unidade na ação de combate à pandemia. Também reforça, em mais um momento, a incapacidade governamental em lidar com a doença, mostrando que tanto o governo, quanto a imprensa, chamada de quarto poder nacional, faziam críticas deveras injustas. Para dimensionar como a pandemia atingia no Rio de Janeiro, o médico usa como parâmetro o Estado de São Paulo, visto como avançado, equipado com aparelhagem adequada, serviços de higiene e assistência pública, que permitiram um melhor combate à doença. Segundo Moncorvo Filho, no último trimestre de 1918, 14.504 indivíduos haviam sucumbido no Rio de Janeiro, mais do que o dobro de São Paulo, onde o número de óbitos atingira 6.861 pessoas. Segundo Moncorvo Filho, no entanto, o higienista Carlos Seidl atuou de forma incisiva, buscando verbas antes mesmo da chegada do “Vapor Samara”, vindo de Dakar, que se tornou o estopim para disseminar a doença no país, porque não passou pela quarentena, o que viria a se confirmar algum tempo depois.

Bertucci-Martins (2003) assinala que a imprensa paulista, como o Estado de S. Paulo, publicou diversas de matérias sob o título de “Conselhos ao povo”, em que foram veiculadas uma série de prescrições para esclarecer a população sobre os cuidados higiênicos que deveriam adotar para se precaver do contágio e da disseminação da doença.

A Epidemia Reinante

CONSELHOS AO POVO (Extraídos pelo “Estado” do comunicado do Serviço Sanitário, já publicado)

Evitar aglomerações, principalmente à noite.

Não fazer visitas.

Tomar cuidados higiênicos com o nariz e a garganta: inalações de vaselina mentolada, gargarejos com água e sal, com água iodada, com ácido cítrico, tanino e infusões contendo tanino, como folhas de goiabeira e outras.

Tomar, como preventivo, internamente, qualquer sal de quinino nas doses de 25 a 50 centigramas por dia, e de preferência no momento das refeições.

Evitar toda a fadiga ou excesso físico.

O doente, aos primeiros sintomas, deve ir para a cama, pois o repouso auxilia a cura e afasta as complicações e contágio.

Não deve receber, absolutamente, nenhuma visita.

Evitar as causas de resfriamento, é de necessidade tanto para os sãos, como para os doentes e os convalescentes.

Às pessoas idosas devem aplicar-se com mais rigor ainda todos esses cuidados (BERTUCCI-MARTINS, 2003, p. 110-111).

Por outro lado, Moncorvo Filho enfatiza que a imprensa carioca fazia pressão constante nas autoridades cobrando medidas enérgicas. Segundo o médico, muitos dos governantes não acreditavam na força da gripe, chegando a compará-la à peste bubônica e à cólera, ambas com menor poder letal, o que pode ter dificultado uma ação mais enfática por parte das autoridades nacionais.

Os jornais viviam cheios desses reprováveis apodos as autoridades, movidos pelo pavor e pelo desespero ante a mais horrorosa das epidemias que hão assolado o nosso querido torrão e então não pouparam hostilidades aos homens do governo que, de facto, sem dispor do mais rudimentar aparelhamento para sufocar qualquer incursão violenta de doença epidêmica, sem a mais elementar organização de Assistência Pública, a despeito dos clamores de velha data partidos de toda a imprensa do pais, dos homens de coração e de todos nós, médicos e higienistas, nada podiam fazer naqueles momentos de dor e de angustia para o Brasil do cruel pandemônio de 1918 (MONCORVO FILHO, 1924, p. 32).

Apesar de destacar que, além da imprensa, ele e outros médicos e higienistas também clamassem por mais ação diante da pandemia de gripe. O que estaria por vir, segundo o autor, deixaria muitos impossibilitados de agir para sanar as consequências daquela doença. Isso porque, segundo o médico, as “perturbações meteorológicas proeminentes” da gripe espanhola, não poderiam ter sido previstas por ninguém, nem também a profunda “miséria orgânica e social” que causaria a morte de grande parte da população nacional.

A pandemia da gripe espanhola de 1918, no seu entendimento, teria ultrapassado todos os cálculos e que, portanto, nenhuma cidade poderia lidar de maneira satisfatória com o seu avanço. Com tal compreensão, Moncorvo Filho se contrapôs às inúmeras críticas que foram feitas ao diretor de saúde federal, que pediria demissão e seria substituto por Carlos Chagas.

Diante deste facto não é logico nem sensato exigir que uma cidade qualquer, por mais adiantada, esteja aparelhada, em seus serviços de assistência pública e particular, para acudir eficazmente á morbidade colossal da quase metade de sua população, em poucas horas afetada de um mal cuja influência profundamente deprimente do sistema nervoso é a nota dominante e característica (MONCORVO FILHO, 1924, p. 35).

O IPAI do Rio de Janeiro, onde o médico atuou e foi coordenador, também não escapou das consequências provocadas pela gripe espanhola, acometendo estudantes, parteiras, enfermeiras e enfermeiros que, segundo Moncorvo Filho, caíam um a um por causa da doença, o que o fez buscar ajuda entre a população leiga para o combate à pandemia.

Com o escasso pessoal de que, como foi dito, dispunha, utilizandome já de algumas pessoas do povo, colhidas mesmo entre as que conduziam os doentes mais graves, transformei as instalações comuns do Instituto, em um Posto de Socorros, enchendo as maiores salas com todas as mesas e leitos que possuíamos. Apesar de deficiência quase absoluta de recursos, a boa vontade, a relativa calma no modo de agir, a enorme atividade desenvolvida e o desejo ardente de servir a toda aquela gente que ardia em febre, delirando uns, a caírem outros acometidos pelo colapso, a sucumbirem ainda outros acometidos pelo colapso, a sucumbirem ainda outros sob o jugo de modalidades as mais graves de bizarras de terrível doença, supriram muitas de nossas insuficiências e, passados os primeiros momentos de intensa turbação do animo que aquele dantesco espetáculo em mim gerou, conseguia eu organizar todos os serviços, embora sobrecarregado com o trabalho superior às minhas forças ante a multidão que se premia em todos os recantos da nossa instituição (MONCORVO FILHO, 1924, p. 50).

A primeira ação do médico foi convocar acompanhantes, e até mesmo pessoas da rua, para ajudar na condução dos doentes. Depois, agiu para que o Instituto se tornasse um posto de socorros, preparado para atender a população. Isso permitiu assistir um grande contingente de doentes que seria maior se não lançasse mão de tal medida, pois a doença avançava com muita rapidez. O poder público e a iniciativa privada também organizaram postos de socorros como é revelado nos capítulos seguintes quando o autor abordou o “Desaparelhamento da nossa assistência pública. Postos de Socorros organizados pelo Governo, pela Prefeitura e por particulares.”

Medidas educativas diante da pandemia

Os postos de socorros foram criados com o objetivo de contribuir para o combate a pandemia num momento em que o poder público não conseguia lidar com o avanço da doença. Sobre isso, o médico Moncorvo Filho teceu várias considerações a respeito das condições que favoreciam a proliferação da doença entre a população mais pobre em nosso país.

Nas habitações coletivas, em estado grave caiam quase fulminados pelo terrível morbo inúmeros de seus moradores. A população estava muito justamente alarmadíssima e todos os serviços públicos já se mostravam em 10 de outubro sensivelmente desfalcados do seu pessoal, por doença afastado de seus misteres, sendo em número assaz elevado as guias extraídas pelas Delegacias de Polícia para o internamento de gripantes no Hospital da Misericórdia. Os miseráveis e mendigos, como sempre sucede, eram os que primeiro caiam vítimas do devastador morbo e nos quais a doença de maior gravidade era desde logo emprestada. Começava a paralisação da vida habitual da cidade: as casas de diversão fechavam-se, antes pelo acometimento do seu pessoal impossibilitando-o de realizar os espetáculos e sessões, do que mesmo por medida de profilaxia. As escolas municipais e colégios particulares cerravam também suas portas. Os estabelecimentos do comércio, sobretudo hotéis, bares e botequins, onde a frequência era então quase nula, iam pouco a pouco deixando de funcionar porque simultaneamente a totalidade dos empregados eram surpreendidos pela apavorante espanhola (MONCORVO FILHO, 1924, p. 52).

A doença, em sua interpretação, saiu do controle do poder público quando começou a atingir os mais pobres, como mendigos, miseráveis e a população de baixa renda em geral, obrigando a adoção de medidas, tais como fechar o comércio, paralisar as atividades culturais, escolares e toda e qualquer atividade que gerasse aglomeração de pessoas. Isso levou não só o IPAI, mas os hospitais e as delegacias de polícia, por exemplo, a atuar como espaços de acolhida de doentes e, assim, ajudá-los no processo de cuidados e cura. Os hospitais ficaram lotados, assim como os necrotérios, o que levou os funcionários a trabalhar dia e noite: “Nos diversos necrotérios havia algumas dezenas de cadáveres insepultos. Ahi trabalha-se dia a noite para sepultar os que pagam, mas os indigentes esperam que chegue a sua vez” (MONCORVO FILHO, 1924, p. 54).

Moncorvo Filho cita a preparação de um medicamento usado por ele no posto de assistência que fundou no IPAI e ajudou no cuidado de 10 mil doentes, dos quais 945 morreram. Foram criadas as Caravanas do Bem que atuaram no Morro do Salgueiro, Morro da Cruz, Morro do Telégrafo, Estação da Mangueira, Engenho de Dentro, Encantado de Cascadura, Porto de Maria Angu, Ramos e em outros lugares. Profissionais – em sua maioria médicos e enfermeiros – e voluntários, levavam remédios e ajudavam no combate à doença, ensinando práticas de higiene para a população que não tinha acesso a esse tipo de educação científica, reforçando, portanto, uma postura já pensada e praticada em sua ação como médico no IPAI.

Dos diversos casos relatados no livro, destacamos dois. O primeiro trata de Laurentina Cordeiro, de 19 anos, que foi acometida de gripe e, após desfalecer na rua de fraqueza, foi levada para a Santa Casa, onde foi enrolada num lençol para ser enterrada. No dia 25 de setembro de 1918, acordou dentro do caixão antes de ser levada ao cemitério do Caju. Com a ajuda dos médicos, voltou para o hospital e se curou da doença. Todavia, segundo Moncorvo Filho, virou uma assombração na Santa Casa, onde acreditavam que ela tinha morrido e voltado para assombrar os profissionais do local.

Outro caso, mais emblemático, se trata de uma família no Catumbi, que passou por dificuldades para enterrar seus entes queridos que haviam morrido há alguns dias atingidos pela pandemia.

Uma pobre família de Catumbi, que desgraçadamente havia perdido dois entes queridos, há mais de quatro dias, conserva os cadáveres em casa por já ter esgotado todos os meios afins de obter para eles condução. Num duplo desespero pela impiedade que consistia em manter insepulto aqueles corpos e pelo estado de alta decomposição em que eles já estavam empestando de podridão toda a vizinhança, estudava o chefe daquela família um meio de resolver o caso. Ficou então a porta da casa à espera de um dos muitos caminhões que a todo momento atravessavam a rua conduzindo, amontoados, os cadáveres das vítimas do Pandemônio e ao passar um deles, fê-lo parar e, de joelhos, impetrou do condutor do veículo que levasse para o cemitério os cadáveres há tanto tempo involuntariamente existentes em sua casa. Depois da calorosa discussão, o homem do caminhão disse que tinha ordens terminantes de não receber mais corpo algum e bem assim estar completa a lotação do veículo; insistido, porém, condoem-se da situação daquela pobre gente, propôs, e foi aceito, trocar dois cadáveres frescos por aqueles cuja podridão era insuportável, dando tempo a que a condução destes fosse possível (MONCORVO FILHO, 1925, p. 66).

Os destaques dados por Moncorvo Filho a esses casos expressam a sua compreensão de que a falência do poder público dificultava o combate eficiente à pandemia, especificamente no que se referia à população mais pobre.

Lições da pandemia: o legado de um testemunho

O Pandemonio de 1918, escrito pelo médico Moncorvo Filho, traz um relato sobre o gripe espanhola no Brasil, entremeado de estudos sobre epidemias de gripe, números, estatísticas e histórias de vida de sujeitos que, abandonados à própria sorte em meio à condições precárias de vida, se constituíram em vítimas da pandemia. Aborda, também, as deficiências do sistema de saúde, a falta de proteção daqueles profissionais que lidavam mais de perto com os infectados, o despreparo da própria sociedade e a ausência de estrutura sanitária que permitisse colocar em prática os preceitos higiênicos que o autor advogava para todos.

Mais do que retratar o que foi a pandemia da gripe espanhola, em 1918, isto é, como a doença surgiu, avançou e se disseminou em nosso país, o livro chama a atenção por não ser um simples relato de um observador distante, que toma conhecimento de uma doença, ou de um sujeito que se debruça para estudar o ocorrido. Trata-se de um testemunho de quem viu, viveu e refletiu sobre a chegada de uma nova doença, o desconhecimento existente sobre a sua propagação e cura.

À frente do combate, em particular no IPAI, presenciou sofrimentos, perdeu colaboradores, arregimentou voluntários, atuou na cura de doentes, agiu de forma intervencionista, curando os doentes, prescrevendo e divulgando práticas higiênicas para minimizar a disseminação da doença e evitar as mortes.

Decorrido um tempo entre a pandemia e a escrita do livro, Moncorvo Filho teve tempo para refletir melhor sobre as dificuldades enfrentadas até mesmo para contabilizar os mortos diante da falta de confiabilidade dos dados de que dispunham. Apesar de todo o empenho para articular higiene, educação e medicina, não se tinha um quantitativo preciso de todos os que foram afetados.

A balbúrdia do Pandemônio de 1918 não permitiu que se tivesse até hoje uma estatística perfeita da mortalidade ocasionada pela espanhola nos seus angustiosos dias, a despeito dos hercúleos e louváveis esforços da Demografia Oficial. Sabe-se vagamente que o total do obituário de outubro e novembro daquele funesto ano acusou 16.996 falecimentos (MONCORVO FILHO, 1924, p. 87-88).

O médico comenta que houve uma possível subnotificação da doença ao apontar que pode ter matado muito mais pessoas do que os registros daquele período. Todavia, comprometido com o desenvolvimento do progresso da nação, é perceptível a maneira com a qual, junto com outros intelectuais, se dedicou para superar a propagação da doença.

De tudo que comentei se conclui que nós achávamos, em contraste com o que se tem feito em todos os países cultos, no mais deplorável estado em matéria de Assistência Pública, continuando até hoje nas mesmas condições apenas dos reclamos de todos: imprensa, médicos, higienistas e homens de coração, sempre a clamarem contra a nossa desídia sob tal ponto de vista (MONCORVO FILHO, 1924, p. 24).

Como outros médicos de seu tempo, Moncorvo Filho atuou para curar, educar e vencer a gripe espanhola, quando chegou ao Brasil e, em especial, ao Rio de Janeiro. Com seu pensamento progressista, entendia que era preciso unificar o país, superando, portanto, as críticas feitas às autoridades científicas no enfrentamento da pandemia.

Além de mostrar as dificuldades enfrentadas por ele e pelo IPAI no combate ao elevado índice de óbitos, deixa evidente que lançou mão de práticas de intervenção dirigidas à população, especialmente à mais carente, educando para práticas de higiene e puericultura, mas também para debelar a pandemia, então crescente, que tinha vitimado muitas pessoas. Sua ação no combate à gripe espanhola também se baseou, em muito, nas práticas que já vinha implementando no IPAI por alguns anos, quando pensava e exercitava uma medicina que, ao mesmo tempo, curava e educava os indivíduos para que pudessem cuidar de si mesmos e, assim, contribuir para o desenvolvimento da nação.

Essas práticas eram pautadas em uma perspectiva de medicina que Moncorvo Filho desenvolvia desde a criação do IPAI, em 1899. Práticas que ganharam visibilidade na medida em que circularam em outros espaços, como agremiações, entidades científicas, jornais e revistas, busca de simpatizantes para as ideias sobre infância, ciência, higiene, política e educação. Esse processo aponta para o conceito de intelectual, desenvolvido por Sirinelli (2003), como aquele que atua em vários espaços, cria laços e faz com que as suas ideias circulem e ganhem adeptos. Isso fica claro em O Pandemônio de 1918, pois, além de trazer reflexões que nos ajudam a pensar o que foi a gripe espanhola no Brasil, Moncorvo Filho também fez uma defesa enfática dos sujeitos com os quais tinha laços e também participaram desse processo como Carlos Seidl, fortemente criticado durante a pandemia, mas que contou com a sua defesa.

As reflexões incitadas nesse livro são atuais. Nele, Moncorvo Filho mostrou que a pandemia transformou a maneira com a qual o Brasil e o mundo se constituíram como sociedade e, neste sentido, é um legado para os nossos dias, na medida em que nos ajuda a ampliar a compreensão sobre a relevância das ações sanitárias como um permanente desafio. Também, não nos permite esquecer que a disseminação de doenças como epidemias/pandemias tem causas sociais, o que aflora em nós a percepção e o sentido de uma vida em sociedade, onde medidas de prevenção e manejo só podem ter êxito em ações coletivas.

Sobre a pandemia da gripe espanhola, Moncorvo Filho registrou como atuou, em meio às dificuldades e possibilidades com as quais se defrontou, assumindo a tarefa política de intervir em favor da vida, dos mais pobres e dos que teriam menos amparo do poder público. A publicação do livro indica sua preocupação em deixar seu testemunho não só do surgimento da pandemia da gripe espanhola, mas sobre o modo como diferentes sujeitos de sua geração se engajaram na tarefa de prevenir o contágio e impedir a disseminação da doença para evitar mortes, procurando interferir nas medidas sanitárias, denunciando as decisões políticas e a falta de estrutura no serviço público. Todas essas ações passavam necessariamente, no seu entendimento, pela educação.

Referências

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Recebido: 29 de Junho de 2020; Aceito: 20 de Julho de 2020

Prof. Ms. André Luiz Venâncio Junior

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação

Linha de Pesquisa Instituições, Práticas Educativas e História (ProPEd-UERJ)

Bolsista de doutorado da Capes

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-9285-9116

Email: ured_ured@hotmail.com

Profa.. Dra. Ana Chrystina Mignot

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Linha de Pesquisa Instituições, Práticas Educativas e História (ProPEd-UERJ)

Pesquisadora do CNPq

Cientista de Nosso Estado (Faperj)

Procientista (UERJ-Faperj)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-8944-2021

E-mail: acmignot@terra.com.br

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