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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.58 Natal out./dez 2020  Epub 16-Out-2020

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n58id21587 

Artigos

Políticas públicas, gênero e currículo: notas para equidade

Public policies, gender and curriculum: notes for equity

Políticas públicas, género y currículo: notas para la equidad

Cláudio Eduardo Resende Alves1 
http://orcid.org/0000-0001-9426-7950

1Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil)


Resumo

Este artigo tem como objetivo refletir sobre gênero, currículo e políticas públicas na experiência de elaboração do Plano Municipal de Equidade Gênero de Belo Horizonte. No contexto nacional de retrocesso nas políticas públicas de gênero, a área de educação tem sido duramente afetada, apesar de sua relevância na promoção da cidadania e no enfrentamento às violências sexistas. O texto analisa o Plano e os silenciamentos de gênero a partir dos estudos teóricos pós-críticos que destacam a dimensão relacional e discursiva de gênero em interface com o currículo. Para isso, foram selecionados e problematizados quatro relatos do diário de campo como norteadores da pesquisa teórica e empírica. Os resultados evidenciam convergências e divergências na concepção de políticas públicas de gênero entre poder público, movimento social, sociedade civil e academia. O estudo aponta que o Plano pode ser tomado como uma forma de existência e resistência no campo da equidade de gênero.

Palavras-chave: Currículo; Educação; Gênero; Política pública

Abstract

This article aims to reflect on gender, curriculum and public policies in the experience of preparing the Belo Horizonte city Municipal Plan for Gender Equity. In the national context of regression in public gender policies, the area of education has been severely affected, despite its relevance in promoting citizenship and confronting sexist violence. The text analyses the Plan and gender silences from post-critical theoretical studies that highlight the relational and discursive dimension of gender in interface with the curriculum. To this end, four reports from the field diary were selected and problematized as guidelines for theoretical and empirical research. The results show convergences and divergences in the conception of gender public policies among public power, social movement, civil society and academia. The study points out that the Plan can be taken as a form of existence and resistance in the field of gender equality.

Keywords: Curriculum; Education; Gender; Public policy

Resumen

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el género, el currículo y las políticas públicas en la experiencia de la elaboración del Plan Municipal de Equidad de Género de la ciudad de Belo Horizonte. En el contexto nacional de retroceso en las políticas públicas de género, el área de educación se ha visto gravemente afectada, a pesar de su relevancia en la promoción de la ciudadanía y en el enfrentamiento de la violencia sexista. El texto analiza el Plan y los silencios de género de los estudios teóricos postcríticos que resaltan la dimensión relacional y discursiva del género en interfaz con el currículo. Con este fin, se seleccionaron y problematizaron cuatro informes del diario de campo como directrices para la investigación teórica y empírica. Los resultados muestran convergencias y divergencias en la concepción de las políticas públicas de género entre el poder público, el movimiento social, la sociedad civil y la academia. El estudio señala que el Plan se puede tomar como una forma de existencia y resistencia en el campo de la igualdad de género.

Palabras clave: Currículo; Educación; Género; Política pública

Introdução

Uso as palavras para compor meus silêncios. Não gosto de palavras fatigadas de informar [...] dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes [...] Amo os restos. Só uso a palavra para compor meus silêncios (BARROS, 2014, p. 25).

Entre palavras e silêncios! A provocação poética de Barros (2014) instiga um olhar e um ouvir atentos para as coisas menores e desimportantes da vida. Nesse sentido, falar ou silenciar a questão de gênero na educação e no currículo consiste num grande desafio para as políticas públicas. Afinal, seria gênero uma coisa desimportante? Este artigo objetiva analisar criticamente os silenciamentos de gênero no processo de elaboração do Plano Municipal de Equidade de Gênero do município de Belo Horizonte/MG. O texto é parte da investigação de pós-doutorado realizada na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, sob a orientação da Profª Drª Marlucy Alves Paraíso, no biênio 2019/2020.

Apesar do atual contexto político nacional e transnacional caracterizado pelas ofensivas antigênero e de seus “[...] efeitos deletérios na vida política e social [...]” (PRADO; CORREA, 2018, p. 445), no âmbito das políticas públicas, a discussão da equidade é uma pauta fundamental no enfrentamento às violências, inclusão das diferenças e garantia de direitos e de acesso democrático aos equipamentos públicos. O movimento de retrocesso nas políticas públicas consiste num “[...] artefato retórico e persuasivo em torno do qual reor-ganiza-se seu discurso e desencadeiam-se novas estratégias de mobilização política e intervenção na arena pública” (JUNQUEIRA, 2018, p.451). Como política pública, entende-se o “[...] campo do conhecimento que busca colocar o governo em ação e/ou analisar essa ação e propor mudanças no rumo ou curso dessas ações [entendendo] como as ações tomaram certo rumo em lugar de outro” (SOUZA, 2003, p. 13).

Gênero tem caráter polissêmico e pode ser lido, segundo Butler (2003), como uma ficção discursiva e relacional, disseminada e performada pela linguagem, produzindo efeitos nos modos de subjetivação (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Instituições e suas práticas discursivas produzem concepções de gênero que, muitas vezes, enquadram (BUTLER, 2016) sujeitos e corpos a partir de uma norma hegemônica – a cisheteronorma. Aqueles(as) que se desviam da suposta uniformidade imposta pela norma, são estigmatizados(as) e classificados(as) como: 1. Abjetos (BUTLER, 2003), ou seja, sem direito a ter direitos; 2. Dissidentes (PRECIADO, 2014), pois divergem da norma; ou ainda, 3. Queers (MISKOLCI, 2012), vistos como indivíduos que rompem com o essencialismo – feminino e masculino – de gênero.

Na instituição escola, gênero pode ser tomado como uma categoria histórica e analítica (SCOTT, 1995) que impacta o aprender (LOURO, 2004), bem como as relações entre docentes e discentes que integram o currículo. Nos estudos pós-críticos, currículo é lido como um artefato cultural de valorização das diferenças que atravessa espaços, afirma a vida e produz sujeitos (PARAÍSO, 2010; 2018). Nessa direção, urge a construção do currículo numa perspectiva rizomática (DELEUZE; GUATTARI, 1995) e em movimento, um verdadeiro “[...] território de proliferação de sentidos e multiplicação de significados” (PARAÍSO, 2010, p. 588).

Este artigo problematiza, a partir das metodologias do diário de campo e da observação participante, os desafios enfrentados pelo poder público em interface com o movimento social, sociedade civil e academia no processo de elaboração do Plano Municipal de Equidade de Gênero, desvelando alguns ditos, não ditos e interditos na discussão da temática no campo curricular.

Metodologia investigativa: entre palavras e silêncios

Para a realização da investigação que subsidia o artigo, foi utilizado um diário de campo aliado à observação participante como estratégias metodológicas (REY, 2010) na coleta de dados e no registro de impressões e problematizações. Ambas as estratégias partem da noção do conhecimento como produção e da realidade como um domínio infinito de campos interrelacionados. Uma pesquisa que considera a observação e a interação participante investiga situações específicas numa determinada organização ou comunidade (CHIZZOTTI, 2010) com foco na elaboração coletiva de possíveis caminhos, para tanto, é importante o registro cuidadoso e sistematizado de todo o processo e das atividades realizadas.

Um diário de campo exige disciplina no registro dos eventos observados ou compartilhados e no acúmulo de materiais para análise de práticas, discursos e posições dos grupos investigados. Para Rey (2010), no campo da epistemologia qualitativa, é necessário considerar a implicação do(a) pesquisador(a) reflexivo(a) na construção do conhecimento pelos vieses da sub-jetividade e da ética. O(A) pesquisador(a) “[...] como sujeito não se expressa somente no campo cognitivo, sua produção intelectual é inseparável do processo de sentido subjetivo marcado por sua história, crenças, representações e valores” (REY, 2010, p. 36).

O tempo e a cronologia são fatores relevantes na elaboração de um diário de campo, pois, para Weber (2009), é fundamental considerar a ordem dos fatos, do tempo e do texto em um diário de campo, uma vez que as datas são fundamentais para a inteligibilidade da investigação. “As notas de observação são descritivas, mas elas se apresentam também como uma narração, pela força das interações” (WEBER, 2009, p. 162). Outro aspecto importante a ser destacado numa pesquisa de campo de cunho participante (CHIZZOTTI, 2010) é a manutenção do estranhamento e do distanciamento durante o processo para não ocorrer a contaminação dos dados e das análises feitas.

Weber (2009) problematiza os limites científicos, e mesmo literários, entre a dimensão íntima e a dimensão social na escrita de um diário. A autora explora os cuidados que se deve ter ao separar no diário o que pode e o que não ser publicado, correndo sempre o risco de uma autocensura. Nesse sentido, busca-se inspiração em Barros (2014), autor citado no início do artigo, que propõe um olhar poético e sensível para as palavras e para as coisas. Além de palavras, um diário de campo também é composto por silêncios, por traços memores, discretos, quase imperceptíveis. Motivado pela astúcia do poeta, o diário recebeu a alcunha de Caderno de Palavras e de Silêncios.

No intuito metodológico e com base nas discussões de gênero, políticas públicas e currículo foram selecionados quatro relatos do diário, realizados entre 2019 e 2020 para compor o artigo. Cada relato é iniciado por uma questão problematizadora à guisa de uma sinalização entre os espaços da dimensão social e íntima na pesquisa. Apesar da pesquisa ter um enfoque municipal, as discussões apresentadas apresentam caráter nacional, considerando as similitudes dos desafios encontrados na elaboração de políticas públicas intersetoriais de gênero.

Os quatro relatos que compõem o artigo estão organizados cronologicamente e foram realizados durante as reuniões mensais do comitê permanente de elaboração do Plano, das quais o pesquisador participou no âmbito da investigação de pós-doutorado. A investigação segue os pressupostos éticos da pesquisa acadêmica ao manter o anonimato dos (as) participantes, bem como na clareza e honestidade na condução do processo. Antes de apresentar os relatos, faz-se necessário uma breve contextualização do processo de elaboração do Plano Municipal de Equidade de Gênero.

Plano Municipal de Equidade de Gênero: histórico, participantes e etapas

Em 2017 o prefeito da cidade de Belo Horizonte assumiu junto à Organização das Nações Unidas o compromisso de implementar a Plataforma Cidade 50/50: todas e todos pela igualdade (ONU MULHERES, 2016). A Plataforma se origina do reconhecimento da importância em fomentar, elaborar e executar ações e políticas públicas que promovam a equidade de gênero e o empoderamento das mulheres no território das cidades. Tem foco na economia, política, ambiente de trabalho, saúde, educação, cultura, lazer, mobilidade e outras áreas de incidência na cidadania em alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O Plano de Equidade de Gênero consiste num desdobramento municipal da Plataforma e prevê ações em 6 eixos norteadores: Eixo 1 – Governança e Planejamento; Eixo 2 – Empoderamento Econômico; Eixo 3 – Participação Política; Eixo 4 – Enfrentamento à Violência Contra a Mulher; Eixo 5 – Educação Inclusiva e Eixo 6 – Saúde.

No segundo semestre de 2018, a Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, por meio da Diretoria de Políticas para Mulheres, instituiu o Comitê Municipal de Equidade de Gênero com objetivo de implementar a Plataforma Cidade 50-50 a partir da elaboração do Plano Municipal de Equidade de Gênero. O Comitê, de caráter permanente, é composto por cerca de vinte e seis pessoas assim distribuídas: 1. Poder público com quinze secretarias municipais; 2. Conselho Municipal dos Direitos da Mulheres (colegiado híbrido entre governo e sociedade civil), Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher de Minas (composta por representações da sociedade civil, movimento social e poder público); 3. Movimento social de Mulheres Negras, Mulheres Lésbicas e Mulheres Trans; e 4. Universidade com docentes e discentes dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

As ações do Comitê realizadas entre os anos de 2018 e 2020 podem ser organizadas, sucintamente, em dez etapas: 1. Indicação de representantes de cada secretaria; 2 Publicação dos nomes no Diário Oficial do Município; 3. Estudo coletivo sobre epistemologias de gênero e políticas públicas; 4. Diagnóstico de ações realizadas nas secretarias pela ótica de gênero; 5. Escrita dos textos que compõem os eixos do Plano e indicação das ações relativas a cada eixo; 6. Realização de uma plenária ampliada do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher para apresentação e debate com a sociedade civil; 7. Realização do 1° Seminário Municipal Diálogos para Equidade: políticas públicas e cidadania em Belo Horizonte; 8. Discussão em cada secretaria das propostas apontadas e debatidas no seminário para validação pelos respectivos gabinetes institucionais; 9. Revisão do texto final para publicação do Plano por meio da Resolução CMDM nº 03/19 (BELO HORIZONTE, 2019); 10. Monitoramento das ações previstas.

1° Relato do diário de campo: Gênero é sinônimo de mulher?

O relato consiste numa discussão periodicamente retomada e polemizada pelo grupo, qual seja, sobre a concepção de gênero que permeava o Plano, evidenciando alguns incômodos e/ou desconhecimento epistemológico.

Gênero é sinônimo de mulher? Essa foi uma questão recorrente nas reuniões, enquanto algumas defendiam veementemente essa posição, outras permaneciam em silêncio e havia ainda aquelas que argumentavam sobre o caráter relacional intrínseco ao termo gênero que demandaria uma ampliação na abordagem. Considerar gênero como mulher é retomar uma concepção ultrapassada pelos estudos pós-estruturalistas, uma vez que as feminilidades e as masculinidades consistem em aspectos relacionais e, portanto, inseparáveis. Porém, ao final do debate e de algumas divergências, a maioria das integrantes do Comitê reiterou a delimitação das ações do Plano Municipal às mulheres, considerando a trajetória histórica tanto nas políticas públicas quanto nos movimentos sociais de enfrentamento à violência contra a mulher (ALVES, 2019a).

Historicamente, os estudos de gênero levaram à desconstrução da explicação naturalizada e essencialista das diferenças entre mulheres e homens por razões biológicas. Como um campo de estudos interdisciplinares em interface com os movimentos sociais, abriga diversas correntes teóricas, como categoria de análise (SCOTT, 1995), performatividade (BUTLER, 2003), estudos sobre masculinidades (WELZER-LANG, 2001), interseccionalidades (COLLINS; BILGE, 2016), teoria queer (MISKOLCI, 2012; PRECIADO, 2014) etc.

A falaciosa continuidade existente entre a tríade sexo/gênero/desejo é problematizada por Butler (2003) ao evidenciar o caráter fluido e performativo de gênero com foco nos efeitos discursivos sobre os corpos. A autora propõe o rompimento com o modelo universalista de mulher ao questionar qual seria o sujeito do feminismo (BUTLER, 2003). Afinal, o que define uma mulher? O genital, a capacidade de reprodução, a maternidade, o desejo sexual por homens ou simplesmente o desejo? A partir desses questionamentos, é possível alargar o conceito de mulher, sinalizando outros modelos desconectados da anatomia e da fisiologia humana que leve em consideração os modos de subjetivação (DELEUZE; GUATTARI, 1995) na produção de diferentes formas de “ser mulher”. Segundo a teoria queer (MISKOLCI, 2012), a concepção de mulher deve ser ampliada nos textos das políticas públicas para além da cisgeneridade (JESUS, 2012) de forma a incluir mulheres transexuais e travestis, assim como mulheres lésbicas e bissexuais, promovendo rupturas no pseudouniversalismo do sujeito.

Macedo e Dell'Aglio (2019, p. 20), no VI Seminário sobre Mulheridades e Políticas Públicas realizado pelo Centro de Referência em Direitos Humanos, Relações de Gênero, Diversidade Sexual e Raça da Universidade Federal do Rio Grande do Sul questionam o que representa ser mulher pela perspectiva da interseccionalidade, destacando que essa perspectiva “[...] considera fatores econômicos, políticos, culturais, físicos, subjetivos e de experiência [uma vez que] é importante pensar como eles se articulam e produzem subjetividades”. Marcadores sociais múltiplos atravessam corpos de mulheres (e de homens) engendrando diferentes formas de ser e estar no mundo.

Pensar em gênero é pensar em relações de poder (SCOTT, 1995). No campo das políticas públicas, as relações de poder, quando assimétricas e desiguais como no caso de mulheres e homens, geram submissão, discriminação e violência. Quando um modo de ser homem ou de ser mulher é eleito como único, todos os outros que não seguem o padrão estabelecido serão excluídos ou levados a se adaptar ao modo hegemônico (LOURO, 2004) por meio da divulgação e repetição de normas instituídas em diferentes espaços, “inclusive no currículo escolar” (PARAÍSO, 2018, p. 24). A promoção da equidade de gênero nas políticas públicas pode produzir relações de poder mais justas e democráticas, buscando considerar e incluir as diferenças, e não as desigualdades, no enfrentamento às condições precárias de existência (BUTLER, 2018). Assim, desnaturalizar as relações assimétricas de gênero é um passo importante na busca pela garantia dos direitos de cidadania (ALVES; SOUZA, 2017).

Apesar da universalidade dos direitos humanos, as desigualdades de gênero têm gerado a sua violação para contingentes expressivos da sociedade ao redor do mundo. Para que todos(as), independentemente de suas condições singulares, sejam sujeitos dos direitos humanos é necessário um esforço contínuo e cotidiano de enfrentamento e de eliminação das desigualdades (MOREIRA, 2015). Pela dimensão relacional de gênero, toda política pública deve ter como objetivo o enfrentamento ao sexismo e a garantia da equidade. Por sexismo compreende-se a discriminação em função do sexo (designado ao nascer), podendo operar do homem para a mulher, da mulher para o homem, entre homens e entre mulheres.

Nesse cenário, os estudos das masculinidades e a categoria de análise do homem devem ser incluídos nos estudos de gênero uma vez que evidenciam um “[...] paradigma naturalista que [...] normatiza o que deve ser a sexualidade masculina [produzindo] uma norma política androheterocentrada e homofóbica que nos diz o que deve ser o verdadeiro homem” (WELZER-LANG, 2001, p. 468, grifo do autor). Sexismo e homofobia são discriminações homólogas, pois partem da ideia de um modelo hegemônico masculino opressor que sobrepuja qualquer traço feminino, seja em mulheres ou em homens. No currículo escolar, é recorrente a violência homofóbica contra meninos ditos femininos, independentemente da idade e da modalidade de educação (LOURO, 2004; JUNQUEIRA, 2009; PARAÍSO, 2018). Vale destacar que essa violência é exercida tanto por outros homens quanto por mulheres.

Sendo assim, duas questões retóricas podem ser levantadas, a primeira: Um homem pode ser feminista? Sem resposta unívoca, a partir dos debates acalorados nos encontros do Comitê, foi possível perceber três caminhos: 1. Não, homens não podem ser feministas; 2. Sim, homens podem ser feministas; e ainda 3. Homens podem ser pró-feministas (WELZER-LANG, 2001), ou seja, por homens não terem acesso às experiências de opressão como as mulheres, não podem se declarar feministas, mas apoiadores da pauta política.

Ferreira (2012) em sua dissertação de mestrado, Homens Feministas: a emergência de um sujeito político entre fronteiras contingentes defendida na Universidade Federal de Pernambuco, problematiza os novos contornos na reivindicação de uma identidade política feminista por parte de homens e pessoas trans, colocando em xeque concepções feministas que tem como base única o critério “ser mulher”, evidenciando possíveis descontinuidades entre corpos e prescrições de gênero.

A segunda questão, decorrente da anterior, é: Políticas Públicas para mulheres devem ser gerenciadas apenas por mulheres? À guisa de resposta, a composição do Comitê aponta uma concepção institucional endógena de gênero, pois é composto por treze servidoras municipais e apenas dois servidores municipais. Os mecanismos sociais de exclusão masculina não se restringem à concepção teórica de gênero no Plano, mas também à subrepresentação no Comitê. Nas políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres, usualmente os homens são tidos como potenciais agressores, gerando a autoexclusão masculina dessas pautas. No entanto, retomando a concepção relacional de gênero, o enfrentamento à violência contra mulheres é função de qualquer cidadão ou cidadã, principalmente quando se trata da gestão pública (MACEDO; DELL'AGLIO, 2019).

Elaborar, colocar em ação e monitorar políticas públicas pela ótica de gênero é um grande desafio, nesse sentido, em um dos encontros do Comitê, houve a apresentação da pesquisa de mestrado Mudanças climáticas, gênero e vulnerabilidade: a experiência vivida dos moradores do Conjunto Paulo VI emBelo Horizonte de Pereira (2019) que procurou investigar a ocupação diferenciada da cidade por mulheres e homens e os impactos no meio ambiente e na saúde. Além de abrir um espaço de debate para algumas secretarias do Comitê refletirem sobre políticas públicas, tornou-se possível pensar gênero em órgãos institucionais até então alheios à questão como a Secretaria Municipal do Meio Ambiente.

Por fim, a concepção de gênero do Plano oblitera seu aspecto relacional ao silenciar a perspectiva masculina, se referindo exclusivamente à mulher, inclusive as mulheres trans, travestis, lésbicas e bissexuais interseccionadas com os marcadores sociais de raça, classe social e idade.

2° Relato do diário de campo: Escrever gênero não pode, mas falar pode?

O relato se refere às estratégias alternativas para falar sobre gênero sem utilizar por escrito o termo gênero e teve como ponto de partida a realização do 1° Seminário Diálogos para Equidade no âmbito das ações de elaboração do Plano.

Escrever gênero não pode, mas falar pode? Desde o início das reuniões de organização do seminário, surgiu uma polêmica quanto ao uso da palavra gênero no título e nas peças gráficas do evento. O título original era 1° Seminário do Plano Municipal de Equidade de Gênero de XXXX, entretanto, após muitas ponderações de ordem estratégica e política, optou-se por retirar a palavra gênero, evitando assim o confronto direto com o Prefeito e com alguns representantes da Câmara Municipal de Vereadores. Um fato que agravou a situação de vigília e o temor da palavra gênero foi que o seminário estava agendado no auditório principal da sede da Prefeitura, ou seja, teria grande visibilidade. Vale destacar que além da supressão do termo gênero do título, o termo também foi banido dos nomes das três mesas de debate com representantes das políticas públicas, da academia e da sociedade civil, ficando assim: 1° Painel Estudo sobre as relações entre mulheres e homens e seus impactos na promoção da equidade nas políticas públicas; 2° Painel A experiência da Prefeitura de XXX com a ONU Mulheres e a Plataforma 50-50: diagnóstico do município e construção do Plano; e 3° Painel Experiências da Sociedade Civil na promoção da equidade. Apesar do interdito ao termo, por escrito, a discussão explícita sobre gênero permeou todas as apresentações, sendo debatido entre convidados(as) (ALVES, 2019b).

Essa situação pode ser vista como grande retrocesso na pauta política da equidade de gênero, uma vez que revela como a manipulação da linguagem pode adquirir uma dimensão higienista e eugenista ao excluir do vocabulário termos encarados como temerários, uma espécie de silenciamento léxico seletivo.

Contudo, no jogo político, em alguns momentos torna-se necessário um recuo estratégico (D'ANDRÉA, 2014) para permanência na luta pelos direitos humanos e para viabilizar avanços políticos posteriores. Em sua pesquisa de doutorado Movimentos e Articulações: uma análise das iniciativas de formação de educadoras/es em sexualidade na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte de 1989 a 2009, D'Andréa (2014) investigou políticas públicas educacionais de gênero e sexualidade, destacando experiências exitosas com articulações intersetoriais e interinstitucionais no movimento de conquistas e retrocessos políticos durante duas décadas.

Corroborando com essa abordagem, Vianna (2012) aponta no contexto macropolítico brasileiro que o exame das políticas públicas educacionais a partir da ótica de gênero e seu contexto de produção evidenciam tensões nos processos de negociação entre o Estado e os movimentos sociais na implementação de projetos, planos, programas e outras ações institucionais.

No campo do currículo escolar, pelo viés do chamado “[...] pânico moral contemporâneo [...]” (MISKOLCI, 2017, p. 725), outras palavras e terminologias também se tornaram temerárias como “diversidades”, “diversidade sexual”, “sexualidade” e “direitos humanos”. Como alternativa, nos textos de políticas e diretrizes educacionais são utilizadas expressões como: “assimetrias na aprendizagem entre meninas e meninos”, “equidade entre mulheres e homens”, “educação para cidadania” e “práticas pedagógicas de enfrentamento às discriminações e preconceitos”.

Tais expressões, por mais que mantenham uma abordagem binarista de gênero, ao menos propiciam acesso seguro e estratégico aos territórios escolares, muitas vezes vigiados por verdadeiras patrulhas familiares e mesmo docentes. Afinal é preciso garantir a integridade física e psicológica de docentes que desafiam cotidianamente o currículo tradicional escolarizado, propondo outras concepções de currículo que favoreçam debates e diálogos acerca das subjetividades e das diferenças na escola. Assim, é mister conceber um currículo que considere as subjetividades como parte intrínseca à aprendizagem (PARAÍSO, 2018), suficientemente volátil ao jogo político de acordos e ajustes, ainda que temporários, evitando um total “apagamento” (CALDEIRA, 2018, p. 68) de gênero e garantindo o diálogo nas práticas educativas.

O fato de retirar o termo gênero do texto final do Plano Nacional de Educação ou do título e das mesas de debate de um determinado evento municipal não silencia as situações, os conflitos e as vivências de gênero do cotidiano escolar (MISKOLCI, 2017; JUNQUEIRA, 2018; PARAÍSO, 2018). Ainda que não seja escrito, o trato pedagógico e ético com as diferenças de gênero na oralidade desempenha papel fundamental numa concepção de currículo que seja permeável à alteridade.

Na esfera das políticas públicas, as disputas são recorrentes e, muitas vezes, necessárias para avançar na discussão e garantir os direitos de cidadania. Porém, em outros momentos, tais disputas são desgastantes, ilegítimas e não produzem resultados práticos na construção política (VIANNA, 2012). Os embates políticos entre o Estado, movimentos sociais e sociedade civil devem fomentar a elaboração de projetos de governabilidade equânimes e inclusivos na educação, saúde, assistência, social, trabalho, segurança, meio ambiente etc.

3° Relato do diário de campo: O que pode um currículo sobre gênero?

O relato propõe pensar o que pode e o que não pode conter um currículo sobre gênero e sexualidade na escola, desvelando interditos educacionais como a discussão articulada entre gênero e infância.

O que pode um currículo sobre gênero? Durante a discussão das ações propostas no eixo Educação da Plano Municipal de Equidade de Gênero, ficou evidente a ausência da modalidade da educação infantil. Conforme discutido no Comitê, essa foi uma recomendação da Secretaria Municipal de Educação, sendo validadas apenas as propostas de ações no ensino fundamental (adolescentes) e na EJA (adultos). Percebo essa ausência como uma estratégia de se precaver de possíveis ataques políticos à educação por parte de representantes da Câmara Municipal. A constante negociação (hora se perde, hora se ganha) no campo das políticas públicas atua como forma de existência, de resistência e até mesmo de higienização de currículos. Enquanto as palavras gênero e educação podem “até” dialogar em alguns currículos, as palavras gênero e infância usadas conjuntamente estão, definitivamente, silenciadas e interditas (ALVES, 2019c).

Interdições de gênero no campo educacional ganharam fôlego a partir da falaciosa ideologia de gênero e do movimento Escola sem Partido. Para Junqueira (2018, p. 453), “[...] a defesa da primazia da família na educação moral dos filhos se faz acompanhar de ataques aos currículos e à liberdade docente”. Ao questionar a figura da criança apregoada por tais movimentos conservadores, Preciado (2013, p. 2) aponta que “[...] invocam a figura política de uma criança que eles constroem de antemão como heterossexual e gênero-normado [assim] a criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto”. A manipulação política dos discursos e dos modos de subjetivação (DELEUZE; GUATTARI, 1995) produz silenciamentos de gênero e sexualidade nos currículos.

Nesse cenário caótico, é importante sinalizar certa contradição presente na gestão da Prefeitura de Belo Horizonte no ano de 2017, pois apesar do prefeito ter assumido o compromisso com o desenvolvimento de políticas públicas de equidade de gênero (Plataforma 50/50 da ONU Mulheres), “[...] recuou e retirou todas as citações sobre a inclusão de ações de igualdade de gênero e diversidade sexual do Decreto que regulamentava a atuação da Secretaria Municipal de Educação” (PARAÍSO, 2018, p. 34-35).

Tal contradição política revela o terreno movediço sob o qual a educação está instalada, em especial, quando as temáticas de gênero e sexualidade estão presentes. A educação tornou-se um campo de disputa política de grupos religiosos conservadores que veem a discussão de gênero como uma suposta ameaça à integridade de crianças estudantes (JUNQUEIRA, 2018), além de desconsiderar completamente outros(as) educandos(as) – adolescentes, jovens, adultos (as) e idosos (as).

O modelo de currículo exigido por um grupo de vereadores(as) acaba por visibilizar e potencializar os interditos e os não ditos morais determinados por uma parcela da sociedade, se tornando refratário a qualquer modelo que escape ao padrão cisheteronormativo, invisibilizando a diversidade de sujeitos e corpos na escola. Os discursos políticos que permeiam o atual cenário retrógrado brasileiro operam pela “[...] técnica do apagamento [...]” (CALDEIRA, 2018, p. 68) de gênero nos currículos, não apenas no âmbito municipal, mas nacional, a partir da exclusão do termo gênero do Plano Nacional de Educação.

Em qualquer modalidade de educação, incluindo a educação infantil, o currículo deve ser receptivo às escolhas, às críticas e às mudanças da sociedade, em vez de ser hermético e refratário ao movimento (PARAÍSO, 2019). A educação ocorre no movimento crítico e reflexivo (PERRENOUD, 2000), no processo e na prática, resultante dos modos de socialização e subjetivação presentes na relação entre educadores(as) e educandos, considerando um determinado contexto histórico, político, cultural e espacial. Para Penna (2018, p. 562), no Brasil, um dos grandes problemas do contexto de fortalecimento do discurso reacionário é “[...] a tentativa de restringir a educação à instrução, à transmissão de conteúdos [...]”. As dimensões da socialização e da subjetivação seriam explicitamente negadas como algo que não é tarefa da escola.

Para uma educação de qualidade que se preocupa com a equidade de gênero, é essencial conceber um currículo permeável e conectado aos movimentos presentes no cotidiano escolar (LOURO, 2004) desde a infância. Crianças brincam com bonecas e carrinhos, crianças usam a cor rosa e a cor azul em mochilas e materiais escolares, crianças se fantasiam de princesas e super-heróis e crianças fazem presentes artesanais diferenciados para pais e mães. Mesmo que negado, o binarismo de gênero está arraigado nas práticas da educação infantil (ALVES; SOUZA, 2017). Merece investimento da gestão da política pública na formação de professoras(es) dessa modalidade de educação, bem como na problematização dos lugares ocupados por mulheres e homens na sociedade. Entretanto, tais investimentos ficaram de fora do rol de ações propostas no eixo da educação durante a elaboração do Plano Municipal de Equidade de Gênero.

Paraíso (2019, p. 147), aponta para “[...] um currículo que circula, percorre, move-se, atravessa vários espaços para ensinar elementos de culturas conflitantes [...] produzindo sujeitos”. Investir nas relações interpessoais, visibilizar as diversas formas de ser e estar no mundo, problematizar práticas pedagógicas excludentes e discriminatórias na escola e combater as desigualdades nos processos de ensino e aprendizagem pode produzir um currículo potente, vivo e inclusivo. A autora ainda completa “[...] se o mundo não pode ficar fora do currículo, um currículo que se abre para experimentar, por sua vez, não pode funcionar segundo as regras do mundo” (PARAÍSO, 2018, p. 37). Assim, novas regras são necessárias para transformar o currículo num território de acolhimento das diferenças. Caldeira (2018) aponta que no contexto de acirramento dos discursos de exclusão de gênero e sexualidade das práticas escolares, “[...] o modo como a dimensão de gênero é tratada em um currículo de repercussões nacionais merece uma análise minuciosa para possibilitar modos diferenciados de se pensar tais questões” (CALDEIRA, 2018, p. 69).

No âmbito internacional, segundo a ONU Mulheres, uma abordagem democrática e inclusiva da educação busca assegurar as condições adequadas para a garantia de ambientes de aprendizagem seguros, eficazes e não violentos. Tais práticas são determinantes no enfrentamento às desigualdades de gênero, raça e etnia do Brasil pois se baseiam na perspectiva de valorização da diversidade de sujeitos envolvidos nos processos educativos. Na concepção da ONU Mulheres, a educação deve incluir conteúdos de gênero e raça nos currículos escolares do sistema público de educação e realizar a formação sobre a temática para docentes e comunidade escolar.

Uma abordagem educativa polissêmica ocorre a partir da reivindicação ao direito à diferença (DAYRELL, 2001) que se contrapõe a uma perspectiva homogeneizante que toma o sujeito educando de forma universalista, reducio-nista e higienista. O direito à diferença na educação implica necessariamente numa prática docente reflexiva e dialógica como elemento primordial na profissão docente em ação (PERRENOUD, 2000). Nesse sentido, a materialização das ações previstas no Plano Municipal no território do currículo podem fomentar práticas pedagógicas de equidade, por exemplo, na formação docente continuada sobre as relações de gênero na educação, seleção de livros de literatura sem estereótipos de gênero ou raça, visitação mediada a museus da cidade a partir da ótica crítica da (in)visibilidade feminina nesses espaços – Projeto História de Mulheres: vozes e silêncios (ALVES; SOUZA, 2017), produção de material de apoio à prática pedagógica entre outras.

4° Relato do diário de campo: Afinal, de quem é o Plano?

O último relato discorre sobre a problemática da autoria do Plano Municipal de Equidade de Gênero publicado no dia 10 de dezembro de 2019 no Diário Oficial do Município de Belo Horizonte como a Resolução CMDM nº 03/19. A redação do texto do Plano ficou a cargo, majoritariamente, do poder público por meio do Comitê intersetorial com suas quinze secretarias municipais e coordenado pela Diretoria de Políticas para Mulheres. Já a publicação do Plano levou a assinatura e a chancela do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher que, no caso da capital mineira, tem caráter híbrido entre governo e sociedade civil. Tal situação gerou muitas controvérsias nas reuniões do Comitê.

Afinal, de quem é o Plano? Da Prefeitura, do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher ou dos movimentos sociais? Na falta de um denominador comum entre as disputas políticas de autoria, poder e controle, uma representante do Comitê pediu a palavra na reunião e afirmou em alto e bom tom: “o Plano deve ser entendido como das mulheres da cidade de XXXX – mulheres cis, mulheres trans, mulheres negras, mulheres lésbicas, mulheres pobres, mulheres bissexuais, mulheres idosas, mulheres deficientes, mulheres trabalhadoras, mulheres estudantes [...] temos que parar com essa briga por poder e pensar nelas, nas mulheres”. Após um breve e incômodo silêncio, todos(as) concordaram e a reunião seguiu. (ALVES, 2020).

Esse impasse se situou na retomada dos trabalhos do Comitê no início de 2020, pois, de um lado, o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher não tem caráter deliberativo e, de outro, o governo municipal não abre mão do monitoramento das ações de curto, médio e longo prazo, previstas até o ano de 2030.

Em meio a essa disputa política, aprovar o Plano via Conselho Municipal também consiste numa estratégia para evitar o confronto político com a Câmara Municipal, pois se o Plano tivesse sido aprovado via decreto municipal, se configuraria uma maior legitimidade política ao documento, uma vez que seria uma política governamental. Nesse bojo, é importante salientar que além do Plano Municipal de Equidade de Gênero, foram publicados na mesma data o Plano Municipal de Igualdade Racial e o Plano Municipal da Pessoa com Deficiência, também aprovados pelos respectivos conselhos municipais.

A polifonia discursiva entre os(as) diversos(as) atores/atrizes produz ruídos na gestão de políticas públicas evidenciando divergências na concepção, na elaboração e no monitoramento de ações de enfrentamento à discriminação de gênero (GOHN, 2011). O discurso do poder público, o discurso do movimento social, o discurso da sociedade civil e o discurso da academia se entrecruzaram no processo de elaboração do Plano, porém não sem gerar fraturas ideológicas e políticas.

No Brasil, muitas vezes, a gestão pública desconsidera a trajetória do governo anterior de lutas e conquistas políticas no ímpeto de inovar e deixar sua “marca” pública no governo. Com isso, muitas políticas públicas voltam à estaca zero ao fim de determinado mandato eletivo. Já movimentos sociais atuam em rede, construindo ações coletivas que agem como uma forma de resistência à exclusão e lutam pela inclusão social. Para Gohn (2011, p. 336) “[...] movimentos sociais constituem e desenvolvem o chamado empoderamento de atores [e atrizes] da sociedade civil organizada à medida que criam sujeitos sociais para essa atuação em rede”.

Como dito, a participação no Comitê é majoritariamente de mulheres, porém existem limites na representação de determinados grupos sociais como a ausência de representantes dos movimentos de mulheres indígenas, quilombolas e deficientes, revelando a dificuldade em contemplar, no âmbito da política pública, as multiplicidades representativas do sujeito mulher. O Comitê possui representantes do movimento de mulheres negras, do movimento de mulheres lésbicas e do movimento de mulheres trans. Vale destacar que as docentes dos programas de pós-graduação que integram o comitê são feministas e têm a importante tarefa de problematizar a realidade, tensionar concepções e promover uma ampliação de perspectiva na abordagem dos problemas sociais pela ótica das epistemologias feministas.

É praticamente consenso na literatura que a diversidade de opiniões e a pluralidade de instâncias representativas são fundamentais na elaboração de políticas púbicas (AMARAL; RIBEIRO, 2009), pois enriquecem o debate público em busca da eficiência e da eficácia no atendimento à população e na busca pela garantia de direitos de cidadania. Para Butler (2018), o estabelecimento de alianças consiste num fator potencializador das ações na luta por justiça social, política e econômica e, para tanto, requer uma “ética de coabitação” [...], por meio da qual seja exercitado, não o respeito, mas o “reconhecimento” (BUTLER, 2018, p. 43) das humanidades em suas diferenças.

Assim, é importante destacar que a construção das políticas tem uma dimensão relacional à medida em que seus resultados dependem das interações entre agentes políticos e sociais estratégicos, em determinadas condições institucionais e conjunturais (GURGEL, 2010; AMARAL; RIBEIRO, 2009). O Plano Municipal não tem dono(a), ele é de todos(as) e deve contemplar ao máximo a diversidade de sujeitos, funcionando em rede, uma vez que se propõe democrático.

Em busca de considerações

Retomando a interpelação poética de Barros (2014) – entre palavras e silêncios – o artigo apresentou uma reflexão sobre gênero, currículo e políticas públicas na experiência de elaboração do Plano Municipal de Equidade de Gênero de Belo Horizonte. Ficou evidenciada a importância dessa pauta política no enfrentamento às desigualdades de gênero, às condições precárias de existência (BUTLER, 2018) e às violências sexistas.

Alguns processos de silenciamento problematizados no campo dos estudos de gênero merecem destaque, como a ausência dos estudos sobre masculinidades na concepção de gênero do Plano, a evitação da utilização por escrito do termo gênero em peças gráficas de divulgação de eventos públicos e a suspensão da discussão articulada entre os termos gênero e infância no currículo escolar.

Ao longo da experiência investigativa de participação na elaboração do Plano foi possível reconhecer fragilidades conceituais, estratégias de negociação, potências de ação, limites léxicos, disputas políticas, enfim, muitas convergências e divergências na arena das políticas públicas de gênero. Entre palavras e silêncios, a pluralidade discursiva que caracterizou o Comitê permanente de elaboração do Plano sinalizou alianças (BUTLER, 2018) necessárias entre diferentes instâncias do poder público, do movimento social, da sociedade civil e da academia na proposta de construção em rede.

No campo do currículo, urge uma política pública de educação discente e docente para as relações de gênero (ALVES; SOUZA, 2017) que não quer destruir a família, nem corromper crianças como dizem os discursos inflamados das ofensivas antigênero (PRADO; CORREA, 2018), mas que estabeleça estratégias pedagógicas e políticas de enfrentamento aos discursos deletérios de apagamento de gênero (CALDEIRA, 2018) em currículos. Uma educação que proponha uma ampliação da visão de mundo, exercitando a inclusão das diferenças como uma prática almejada nas escolas. Para tanto, é preciso conceber um currículo em constante movimento, permeável à alteridade e receptivo ao estranhamento como condição para a aprendizagem (PARAÍSO, 2018). Um currículo que permita os diálogos, as problematizações e a coexistência de pontos de vista diversos. Afinal, a instituição escolar, além de realizar a (re)construção do conhecimento, é o lugar de reflexão crítica acerca das implicações políticas e sociais desse conhecimento.

Ainda há muito a ser feito, pois se inicia no ano de 2020 a etapa mais complexa do Plano, a implementação das ações propostas paralelamente ao monitoramento com previsão de término para o ano de 2030, em acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas. A partir do Plano, concebido como forma de existência e resistência no campo político de gênero, fica o convite para continuarmos pesquisando, divulgando, ensinando, produzindo outros planos, colocando propostas em ação e ocupando espaços na discussão de gênero nas políticas públicas.

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Recebido: 01 de Julho de 2020; Aceito: 24 de Julho de 2020

Prof. Dr. Cláudio Eduardo Resende Alves

Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Linha de Pesquisa Currículos, Culturas e Diferença

GECC – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Currículos e Culturas – FaE/UFMG

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-9426-7950

E-mail: cadupbh@gmail.com

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