SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.58 número58Amor, sexo y distancia física: pedagogías del webnamoro en la pandemia de Covid-19El tiempo y su esencialidad en la escuela a tiempo completo índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.58 Natal oct./dic 2020  Epub 16-Oct-2020

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n58id21827 

Artigos

Métodos Espiritográfico e Sonhográfico: poéticas tradutórias na pesquisa-docência

Métodos Espirito-Gráfico y Sueño-Gráfico: poética de la traducción en la investigación-docencia

Maria Idalina Krause de Campos1 
http://orcid.org/0000-0002-0016-7455

Marina dos Reis2 
http://orcid.org/0000-0002-2088-5358

Sandra Mara Corazza3 
http://orcid.org/0000-0002-1237-198X

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

3Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)


Resumo

Este artigo tem como objetivo apresentar uma análise teórica e prática, a partir de dois métodos criados com aportes da Filosofia da Diferença-Educação, a saber: Método Espiritográfico e Método Sonhográfico. Trata-se da expressão intercambiante de duas pesquisas que se articulam em um movimento tradutório, com apreço pela ação transcriadora de um espírito que lê, escreve e sonha ao manipular arquivos. Afirma uma poética investigativa ao propor-se a traduzir as matérias curriculares que desafiam o fazer docente. Mostra o uso de uma didática artista, vista como um caleidoscópio que oscila e transforma a matéria, seja literária, filosófica, científica, onírica ou poética. Conclui que os procedimentos tradutórios postos a funcionar em ambos os métodos possibilitam a efetivação de um sonho didático e de uma poesia curricular, capazes de gerar uma escrita indomesticada e aventureira que renova as práticas da docência.

Palavras-chave: Métodos; Filosofia da diferença; Aula; Tradução

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar un análisis teórico y práctico, a partir de dos métodos creados con aportes de la Filosofía de la Diferencia-Educación, a saber: El Método Espirito-Gráfico y El Método Sueño-Gráfico. Se trata de la expresión intercambiable de dos investigaciones que se articulan en un movimiento de traducción, con apreciación de la acción transcreadora de un espíritu que lee, escribe y sueña al manipular archivos. Afirma una poética de investigación al proponerse traducir las materias curriculares que desafían el hacer docente. Muestra el uso de una didáctica artística, vista como un caleidoscopio que oscila y transforma la materia, ya sea literaria, filosófica, científica, onírica o poética. Concluye que los procedimientos de traducción, puestos a funcionar en ambos métodos, posibilitan la ejecución de un sueño didáctico y de una poesía curricular, capaz de generar una escrita indomable y aventurera que renueva las prácticas de la docencia.

Palabras clave: Métodos; Filosofía de la diferencia; Clase; Traducción

Abstract

This paper aims to present a theoretical and practical analysis through two methods created with the use of Philosophy of Difference-Education, namely: Spiritographic Method, and Dreamgraphic Method. It concerns to the interchangeable expression of two researches articulated in a translating movement, with an emphasis on the transcreating action of a spirit that reads, writes and dreams while manipulating archives. It states an investigative poetics in proposing to translate curriculum materials that challenge the teaching action. It shows the use of an artistic didactics, regarded as a kaleidoscope that both oscillates and transforms the matter, be it literary, philosophical, scientific, dreamlike or poetical. It concludes that the translating procedures put to work in both methods enable the realization of a didactical dream and a curricular poetry, capable of generating an untamed, and adventurous writing that renovates teaching practices.

Keywords: Methods; Philosophy of difference; Class

Introdução

O texto tem como objetivo apresentar uma análise teórica e prática de dois percursos de docência-pesquisa, que afirmam um fazer tradutório de arquivos no campo da educação. Os métodos são atualizados a cada operacionalização prática. Abordaremos, para tanto, o uso de dois métodos de transcriação: o Método Espiritográfico (CAMPOS, 2017; 2018) e o Método Sonhográfico (REIS, 2019), ambos vinculadas ao Grupo de Pesquisa do CNPq Rede de Pesquisa Escrileituras da Diferença em Filosofia-Educação, com a supervisão da Dra. Sandra Mara Corazza, no Programa de Pós-Graduação em Educação, na Linha de Pesquisa: Linha de Pesquisa Filosofias da Diferença e Educação. Os dois últimos projetos nos quais as pesquisas estão inseridas contemplaram as temáticas: Didática da tradução, transcriação do currículo: escrileituras da diferença (2015-2019) e A-traduzir o arquivo em aula: sonho didático e poesia curricular (2019-2023).

Ao tratar criticamente a técnica e a temática propostas, dividiremos nossa explanação e resultados em quatro sessões. Na primeira, apresentaremos o Método Espiritográfico, que tem apreço pela escrita e pela leitura – escrileitura – encarado como um campo aberto à formação e ao fazer docente, na medida em que investiga e manipula arquivos de múltiplos saberes e os transforma em invenção de nova escrita. Na segunda sessão, apresentaremos o Método Sonhográfico, que captura e traduz sonhos didáticos para desenvolver seu plano sonhográfico como poesia curricular. A terceira sessão discutirá a aula-tradução nas suas práticas de oficinar pensamentos, com apresentação dos resultados transcriativos, frutos da aplicação intercambiante dos dois métodos, em atividade para a formação de professores, que contou com 23 participantes da rede municipal de ensino. O formato em oficina aproximou pensamentos funcionais de cunho literário, filosófico, onírico e poético no espaço-aula-tradução. A última sessão conterá as considerações finais.

A pesquisa em escrileituras não finda em conclusões, mas é um continuum, uma vez que está sempre em processo. Os resultados de um fazer docente não são apenas a consequência de uma ação, mas parte ativa e renovada pelos acidentes dos elementos transcriados nessa ação. Nessas condições, desenvolvemos a investigação por intermédio de dois métodos postos a funcionar através de uma oficina inventiva na docência. Tais métodos não são concebidos como doutrinários, ao contrário, configuram-se em criação de campos empíricos propulsores de Espaços, Imagens e Signos (EIS) via operações empíricas de um espírito do tipo Autor, Infantil, Currículo, Educador (AICE). Assim, no espaço-aula, uma abertura poética expande-se pelos a-traduzir: o não-visto, o ainda não-dito, o não-pensado. Na medida em que manipulamos esses conteúdos manifestos da matéria estamos justamente (re)criando os acessos aos métodos de transcriação usando do rigor intelectual elaborado sobre o arquivo da educação (o qual não é estanque ou imutável, mas deveniente e aberto como os nossos sonhos).

Por isso, os métodos são manipulados como mecanismos de criar e transcriar a pesquisa-educação e despedem-se das metanarrativas, estas mormente de ambição universal no campo pedagógico: muitas vezes herméticas, tornam-se impeditivas à discussão aberta e não-reprodutora de conhecimentos. Mas a vontade de poesia e sonho impele-nos a fazer vicejar “uma didática-crítica-vivificadora” (CORAZZA, 2013). Para tanto, nossa investigação tratou de mergulhar fundo no plano do impossível linguageiro: e com escafandros poéticos, percorremos lentamente as entranhas dos corpos de uma aula em suas possibilidades de serem afetados pelos signos do arquivo de sonhos, explorando potências literárias, filosóficas e artísticas. Emergimos dessa inconsistência onírica carregando a herança de traduzir currículos e, transpirando a-traduzir no espaço-aula, desenredamos didáticas. O prazer de fazer uma aula torna-se irrepetível, pois traz esses elementos à baila em outros corpos linguísticos. Tal multiplicidade atualiza-se graças à per vivência oriunda da transcriação poética de arquivos. Entendemos que essa elaboração auleira funciona como um canteiro de experimentações, lugar de passagem, sempre incompleto, onde o pensamento e a linguagem estranham-se. Por esse motivo, algo acontece. Surge uma escrita indomesticada e aventureira que nos pergunta: o que pode uma aula que sonha poesia?

Método Espiritográfico

O Método Espiritográfico toma a vida e a obra do pensador Paul Valéry (1871-1945), cuja produção intelectual se foca em múltiplas temáticas do conhecimento. Interessa a ele – mais do que o próprio conhecimento em si – o pano de fundo do funcionamento do intelecto gerador de conhecimento, ou seja, as ações de pensar o próprio pensamento verificando o que esses pensamentos implicam. Tal interesse vivifica as ações de pensar e de escrever utilizando formas e estilos variantes, como, por exemplo, diálogo, prosa, poesia, ensaio, carta, discurso e aula. Esses tipos de escritos contemplam uma multiplicidade de áreas do saber, como Filosofia, Matemática, Música, Poesia, Teatro, além de análises e críticas sobre cultura e sociedade.

Nos escritos de Valéry é possível observar também a maneira original com que ele trata da palavra francesa esprit para aludir ao Eu; embora haja, em seu pensamento, a distinção entre dois tipos de espírito: Moi que seria o Eu empírico (self-variance) e Moi que seria o Eu puro (Idolle de l’Intelect), a ser cultuado e buscado. O Eu puro necessita ser entendido com uma significação peculiar, qual seja: o Eu como intelecto, como inteligência. O espírito então é abordado como um signo de pura possibilidade, de uma virtualidade, ao qual o Eu empírico aspira e tende. O espírito, portanto, é sempre visto em circunstância, em situação, num dado tempo e espaço, em sua tenuidade real.

Visto a partir da perspectiva valéryana, o espírito, por meio dos movimentos de escrileitura – com o artifício da literatura – movimenta sua malha intelectiva, possibilitando, assim, a construção de espiritografias. Para sua elaboração, necessariamente, vamos ao mundo de um espírito (seja ele da Arte, da Ciência ou da Filosofia) e, com ele, escrevemos a partir de um estudo de vida e de obra. Trata-se do interesse “[...] por Vida (Biografia) e por Obra (Bibliografia). Só que, em vez de Vida e Obra tomadas em separado, ou uma derivada e mesmo causa da outra, trata de Vidarbo [...]” (CORAZZA, 2010, p. 86), ou seja, são tomadas conjuntamente. Essas operações das faculdades intelectivas, repletas de afecções, permitem e compõem um Método do Espiritográfico, um mecanismo que exige construção, em que o inesperado é condição do processo. Trata-se, então, de utilizar esse método de criação, que leva em conta a self-variance (autovariação) espiritual para falar, ler e escrever sobre educação com Valéry.

Sendo assim, é preciso reativar uma história de vida, a de Valéry, traduzi-la com a curiosidade pelo passado, isto é, aprender a lê-la e servir-se dela, o que se impõe como processo simulatório de viver outra vida além da nossa. Isso porque algo nessa vida nos impele necessariamente a investigá-la. O que aconteceu existencialmente é organizado e reordenado, como em um mapa, por nossa vontade, por nossa força, e é de nossa maneira atenta de pensar que tornamos essa vida essencialmente atual.

Tomar tal história não é repeti-la, pois entraríamos “[...] no futuro de marcha à ré” (VALÉRY, 2011, p. 125). Antes, é tomá-la pelos conhecimentos que gerou e, diante deles, fazê-los passar atualizados pelos nossos próprios olhos, nossas próprias experiências, nossas vísceras, por um sangue bombeado através das veias da própria vida que se vive, tornada composição de escrita – e nisso se prefigura a paixão que vagueia, fazendo a existência sedutoramente interessante. É necessário, todavia, pesquisar, nesse processo de escrita variante, o ambiente humano, a vida que é fonte poética, repleta de potenciais vicissitudes. E que servem como disparadores para uma invenção produtora de uma escrita-errante, um texto-manifesto, que é exposto por via da linguagem e suas convenções.

Então, com a pesquisa dessa escrita valéryana informe colocada em curso, passou-se a gerar e explorar os meios para afirmar e proporcionar possibilidades criadoras em Educação. Esse é o foco e essa é a sedução, justamente porque “[...] o espírito humano enfrenta dificuldades para pensar o informe. Daí surge à necessidade [...] de uma Educação ou pedagogia dos sentidos, associando a vivência dos limites formais com a criação artistadora” (CORAZZA, 2010, p. 2). Por esse viés, tornou-se possível ler e escrever em meio à vida com Valéry concebendo um Método Espiritográfico via pesquisa. Pois a vida e a obra deste poeta e pensador possibilitam engendrar na didática e no currículo uma vontade de expressão como processo para uma escrita tradutória manipuladora de arquivos.

O Método Espiritográfico apresentado na tese de doutorado (CAMPOS, 2017) sustenta-se em quatro pilares: 1) o método informe, usado como processo experimental para, ao modo de Paul Valéry falar, ler e escrever sobre educação; 2) mediante uma self-variance do espírito, colocar-se em movimento funcional, prático e construcionista em que o espírito se autoeduca no entre-lugar variante de estudante-escritor-educador; 3) a escrileitura conceituada como um campo aberto à formação e ao fazer docente que mescla linguagem e conhecimento; 4) em uma dracomédia humana – misto de drama (Deleuze) e comédia (Valéry) – que rabisca novos traçados de escrita possível, eivada pelo pathos (paixão) que nos arremesse novamente para um fora de nós mesmos, para que uma nova empiria poética possa assim surgir e, com ela, novos personagens que emitem vozes.

Essa escrita tradutória é também transcriadora e serve aos professores-tradutores – fazedores de aulas – como meio para lidar com as matérias informes na medida em que se assumem como alquimistas do saber, e flertam alquimicamente com arquivos da Literatura, da Filosofia, do sonho e da poética no espaço-aula. Arquivos que são compostos por um cabedal plural de linguagens a serem artistadas no cotidiano do magistério, através de transmutações de montagem e desmontagem de escrita.

Cientes, como afirma Valéry, de que somos constituídos por uma trindade Corpo-Espírito-Mundo (CEM), “[...] pois tudo passa-se entre o que denominamos o Mundo externo, o que denominamos Nosso Corpo e o que denominamos Nosso Espírito” (VALÉRY, 2011, p. 215). Essa tríade é vista como uma atividade funcional de ação geométrica, porém mutante como uma passagem contagiosa, uma abertura cujos efeitos autoeducativos estimulam a invenção. Cuja ocorrência se dá em atravessamentos de linhas ondulantes de escrita, capazes de elaborar estratégias significativas de pensar e viver e de dar vida a uma nova práxis de ensino, como uma geometria única que mede o mundo por meio “[...] do conjunto de nossa sensibilidade” (VALÉRY, 2011, p. 216).

Vislumbramos tal acontecimento de sensibilidade ao colocarmos em prática o Método Espiritográfico como um dispositivo capaz de criar tipos variados de espiritografias para que uma verdadeira alquimia de escrita se faça. Durante a trajetória de pesquisa (doutorado e pós-doutorado) foi possível à criação de onze tipos de espiritografias (CAMPOS, 2018), utilizando o Método Espiritográfico. Elas foram gestadas por intermédio de escrileituras de perspectiva valéryana. Essa perspectiva contrária à anestesia do gesto passa a sonhar com uma segunda natureza que possa se apresentar ao texto, produzindo uma nova escritura visceral e singular. Assim, o campo ambiental da linguagem, abre-se para um fazer (poïen) uma poética da multiplicidade que funciona como contágio tensional na elaboração de escrileituras transcriadoras. Pois, há neste movimento de composição espiritográfica um trânsito entre um antigo arquivo de partida a-traduzir que tomamos e um novo arquivo em processo de tradução, que se presentifica em uma nova escrita transmutada. Pois, como afirma Valéry:

Escrever o que quer que seja, desde o momento em que o ato de escrever exige reflexão, e não é uma inscrição maquinal e sem detenças de uma palavra interior toda espontânea, é um trabalho de tradução exatamente comparável àquele que opera a transmutação de um texto de uma língua em outra (VALÉRY apud CAMPOS, 2013, p. 61-62).

É por essa perspectiva que a pesquisa defende a tarefa tradutória de uma educação transcriadora, levando em conta que o currículo é composto pelas seguintes unidades analíticas: Espaços, Imagens e Signos (EIS) (CORAZZA, 2014), as quais são postas em movimento por meio de um nomadismo intelectual, experimentado no próprio território da educação, valendo-se dos procedimentos múltiplos de escrita de Valéry para um fazer tradutório em educação. Nesse fazer, os conceitos de percepção e de criação tornam-se, assim, dois meios possíveis para movimentos experimentais do pensar, que visam a falar e escrever sobre Autor, Infância, Currículo e Educador – unidades analíticas referidas como AICE (Didática). Isso se configura como uma didática da novidade que, por via de um mecanismo – operatório e conceitual –, dá impulso ao pensar exploratório, recusando a intervenção do juízo, desconstruindo os saberes constituídos para criar uma nova escrita porvir.

Dessa maneira, AICE (Didática) e EIS (Currículo) tomam para si uma poética de pesquisa, que se quer empírica, num processo de releitura e de reescrita do vivível no campo educativo e que produz um currículo e uma didática da Diferença na medida em que cria novas cintilações de sentido educacionais, possibilitando “[...] pensar uma didática e um currículo tradutórios [...]” (CORAZZA, 2014, p. 5) por via de um Método Espiritográfico. Nessas condições, criam-se meios para uma escrita-artista que propicia lidar com o ainda não visto, exercitando as impressões visuais que se demoram nas sensações e criam uma visão singular e axiológica para o ainda não significado, não interpretado ou não atribuído de valoração por não ter sido descoberto.

A cada nova leitura que fazemos sobre determinado arquivo, gera-se um novo texto – sonhado – no texto lido. Em tal acontecimento, decretamos a morte do autor para assim celebrar a vida nova do texto, concebida pelo leitor, que também é um escritor. Conforme afirma Roland Barthes (2012, p. 62), o texto é um “[...] espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original”. Isso faz com que a didática tradutória, a qual nos referimos, entre num canto paralelo ao texto original que se desenvolve por meio de um movimento plagiotrópico em uma agoridade. Ou seja, a cada vez que colocamos um texto na esteira tradutória, fazemos emergir uma didática efetivamente marcada pelo trânsito entre o texto original e a transcriação. Transcriação que não apenas vivifica o original, mas interfere de maneira afirmativa na prática docente, pois o educador-tradutor, diz Haroldo de Campos, “[...] vampiriza, o que corresponderia à ideia de mutabilidade do original pela atuação crítica de sua tradução” (CAMPOS, 2013, p. 217).

Nessas condições, a educação é vista como um espaço de ficção, onde a aula é planejada para que, de algum modo, funcione transcriadoramente como um laboratório coletivo que reexamina conhecimentos e promove uma educação do espírito, na medida em que sobre eles passa a levantar novos problemas. Esse levantamento de questões se dá através de uma vontade de potência de educar – e também de aprender – como um exercício de atividade estética que traz em seu bojo as categorias tanto da poesia como do sonho. Pois, é preciso mais do que nunca afirmar a docência “[...] no contrapelo da consciência docente padrão, seguiremos o modelo do sonho e da poesia, considerando o professor como um intérprete-operador” (CORAZZA, 2019, p. 53). Imersos nessa perspectiva poética, tomamos o conhecimento como invenção para recriar culturas e discursos através de exercícios de pensamento.

Desse modo, o Método Espiritográfico funciona como um impulso para ação de educar possibilitando a autoformação do professor-pesquisador que é também um intérprete-operador de arquivos dispostos em uma aula-tradução. São jogos de descobertas colocadas em ação – via escrileituras espiritográficas – num processo vivível e desafiador. O que se configura como um fazer de escrita possível onde aqueles docentes, afeitos à perspectiva da Filosofia da Diferença-Educação e das Ciências Humanas e Sociais, têm meios para realizar uma pedagogia poética e onírica com a intenção de disseminar aventuras intensas do pensar.

Nessas descobertas é preciso um querer para – como sugere Theodor Adorno (2012, p. 161) ao se referir a Valéry – “[...] purificar a arte da tradicional maldição de sua insinceridade, tornando-a honesta”. Como o próprio Valéry o fez, deixando de lado a metafísica de caráter burguês, tal honestidade serve como pagamento de uma dívida adquirida pela própria burguesia que considerava que tudo estava dado em termos de arte.

E sabemos que nada está dado, Valéry pensa que o artista precisa transformar-se em instrumento e, assim, modificar a maneira de proceder diante de um mundo em transformação, pois nele não há mais lugar para o trono dos ditos gênios, mas novas fontes a serem descobertas, traduzidas. Por já não mais aceitarmos o jogo da falsa humanidade, pois a estupidez e a enganação são muito danosas e sua aprovação social “serviu” por anos para humilhar a sociedade. Visto que o sujeito estético de Valéry “não é um sujeito primitivo do artista que se expressa”, ao contrário:

O artista, portador da obra de arte, não é apenas aquele indivíduo que a produz, mas sim torna-se o representante, por meio de seu trabalho e de sua passiva atividade, do sujeito social e coletivo (ADORNO, 2012, p. 164).

Assim como a arte, a educação deve alcançar-se a si mesma, de maneira honesta, o que faria com que ela transcendesse a si própria consumando uma vida mais justa tanto para o espírito social como para o espírito coletivo. Uma nova ética nas relações se estabeleceria entre corpo, espírito e mundo sem salvacionismo, mas como condição possível de um bem viver, estabelecendo um jogo de amizade intelectual de saberes colaborativos entre professor e aluno na educação, em que ambos “[...] permeiem as regras de tal jogo. Isso porque, mesmo supondo já saber, o professor continua reatualizando seus saberes pelo simples fato de que o encontro se oferece como território empírico [...]” (AQUINO, 2014, p. 68) facilitador da reelaboração de seus saberes.

Método sonhográfico

Cada sonho é um signo heterogêneo a ser traduzido, ou seja, um a-traduzir latente que deseja realizar-se. Pois cada vez que tentamos narrar ou escrever um sonho, colocamo-nos na perspectiva de uma singularidade. Nela, estamos ativando a escolha lúcida do espírito (intelecto) sobre a profusão imagética, resultando em um tipo de imaginação. Nas provocações de Foucault (2002), o sonho é uma condição à imaginação, e não fruto desta. Freud (1966; 1996) definiu essa operação vígil, a de traduzir pela linguagem a matéria onírica, de elaboração secundária.

Nessa perspectiva deveniente entre o sonho e a sua elaboração poética é que o Método Sonhográfico cria seu plano de imanência a partir de conceitos freudianos espicaçados pela ponta tintada e onírica da Filosofia Diferença-Educação. Partindo de uma aplicação que se inter-relaciona com o Método Espiritográfico (CAMPOS, 2018), as operações de uma docência sonhográfica acontecem com o rigor intelectual (CAMPOS, 2018; VALÉRY, 2018): elaboramos maneiras de acesso lúcido ao conteúdo alucinado (latente) da matéria original, o qual pode ser recortado ora do arquivo da educação, ora das lembranças infantis, ora dos sonhos professorais e pessoais. O nosso sonho de aula não trata da imagem do sonho-comum – repleto de unicórnios rosas falantes e princesas translúcidas aladas. O sonho na pesquisa-docência não é vã espuma, mas emerge como “cosa mentale” (CORAZZA, 2011) em seu informe a-traduzir.

O fazer poético didático e artistador (CORAZZA, 2006) elaboram-se em aula-tradução, na agoridade anunciada. Deixa signos de vivência em a-traduzir da matéria original, já que há, no umbigo do sonho (FREUD, 1996), aquela parte totalmente misteriosa e intraduzível da imagem evocada, rastros que se inscrevem do choque tradutório do sonho com a linguagem vígil. Mesmo quando o professor lê uma transcriação de didática – mesmo que ache que não está pensando um sonho ou que não está a traduzir uma docência –, está elaborando novos sonhos curriculares junto ao arquivo. O professor que pensa o sonho de aula é um tradutor do tipo Dichter, isto é, um criador de literatura (CORAZZA, 2019), um condensador de signos poéticos que ressemantizam o real e torna-se, portanto, um poetador.

Considerando esse acesso ao labor onírico e inconsistente pela escrileitura, o rigor do intelecto valéryano (CAMPOS, 2018) é o princípio do trabalho do pensamento sobre as unidades díspares que formam o plano virtual do sonho lembrado. A escrita passa a dramatizar um jogo entre os signos a-traduzir e um rastro ordena-se pelo intelecto. Acaba, o sonhador, por realizar a tradução de uma tradução, reinterpretando o sonho – um sonho é feito, aliás, de tudo aquilo que não é sonho. O ato de sonhografar (REIS, 2019) torna-se potência poética ao desdobrar-se e extravasar-se, já que tal escrita elimina o sujeito-objeto na medida em que abre brechas cada vez mais profundas de reinterpretações: eis uma docência em seu “direito de sonheria” (CORAZZA, 2019).

Ao sonhografar, o docente artistador alcança o rigor de pensamento (lúcido) de que é um autor em sonho (um tipo sonhografista), de que está a tratar conscientemente de um conteúdo latente. Trabalhando oniricamente sobre o que reinterpreta, verte na escrita a sua pluralidade manifesta. Se há um acesso ao inconsciente, isso já é uma reterritorialização, uma língua de povo, uma multidão esquizóide acordada. Portanto, quando traduz um sonho de arquivo, ou uma aula, o docente aciona para si a criação de uma forma de expressão no informe Corazza (2013):

O autor é ainda aquilo que permite ultrapassar as contradições que podem manifestar-se numa série de textos: deve haver – a um certo nível do seu pensamento e do seu desejo, da sua consciência ou de seu inconsciente – um ponto a partir do qual as contradições se resolvem, os elementos incompatíveis encaixam finalmente uns nos outros ou se organizam em torno de uma contradição fundamental ou originária. Em suma, o autor é uma espécie de foco de expressão [...] (FOUCAULT, 2002, p. 53).

O professor que devém sonhografista constrói-se ao discursar o sonho, é um autor. Mas, paradoxalmente, o intelecto dilui-se a partir dessas aproximações e projeções com o original, das exclusões ou admissões, das pertinências deslocadas, estabelecidas com o arquivo-sonho. O pensamento passa a pensar no corpo que escreve e lê outras possíveis vontades de traduções. Nessa perspectiva, o poeta-professor desprende-se da função de comunicador de conteúdos e passa a sonhar a tradução de aula em sua impossibilidade linguageira (a-traduzir). O docente, agora poetado em sua sonhocência, cantarola o seu ofício de fala numa língua invisível às decodificações meramente interlinguais. Um sonho de aula fala daquilo que ainda não sabíamos.

O rastro que é deixado pelo sonho e pela aula, nos corpos, percorreu antes as linhas do original. Portanto, esses corpos não mais descrevem uma tradução literal, mas desenham sensações vivenciadas no encontro aula, disso sonham pelo incerto do original, ao sabor do informe da matéria, fazendo-se e desfazendo-se nessas forças tradutórias do acontecimento, pois:

O corpo ou a força não são uma substância, ou uma essência que se desenvolveria paulatinamente, como a criança em adulto, a semente numa árvore. Ao contrário, são forças que se chocam produzindo acontecimentos incorporais, sem ação ou impassíveis (FIGUEIREDO, 2012, p. 130).

Transcriar uma docência é elaborar didáticas das aparições de sonho que evaporam da superfície do arquivo da educação. O valor (ou valores) das configurações plásticas sonhográficas brinca com a emoção da agoridade. Uma aula-sonho fantasia-se e transcende o perigo da imagem, deseduca olhares para a periferia sombria dos a-traduzir. Corre suas proporções em pinceladas do gesto que o sonho perspectivará no domínio do inefável de cada espírito escrileitor. Na imagem dogmática de uma aula aparentemente automática, se constituída na narrativa representacional, a sonhografia opera sustos, em reverberações à natureza do arquivo. Sonhando didáticas, os desmanches de a-tradução afirmam a vocação composicional da docência, em sua língua irregular, mas não deliberada, pois ritmada por cada corpo (alunos) e feita a partir de um hábito, de um tipo de arqueologia sobre o onirismo do corpo e sobre a matéria sonhografada.

Na dimensão poética, a expressão emocional sonhográfica é traduzida de sua latência e repetição: insistimos num sonho até que ele nos faça mover o corpo, isso é, um gesto impensável? A mente contém mapas do movimento do corpo, ideias das emoções, o cérebro contém as ideias simuladas do que pode um corpo. A escrita é um mover-se do corpo na imanência, porque mente e corpo não são algo separados: “[...] de um modo geral, os sentimentos traduzem o estado da vida [incluindo reações moleculares e homeostáticas] na linguagem do espírito” (DAMÁSIO, 2004, p. 91). A instauração dessa sensação na escrita vibrará possivelmente nos olhos do leitor estejam eles: abertos, semicerrados, fechados, às piscadelas. Mas, estabelecendo uma relação poética (VALÉRY, 2018) e rompendo signos de que acionam uma invenção do pensamento.

Esse deslizamento de constelações a-transsonhar ocorre numa desaceleração e em saltos a partir da matéria a-traduzir. Ou, lentamente, por processos de ebulição e condensação psíquica (FRANZ, 1988), processos de mistério de tradução, que desfazem aquilo que não lhe diz nada como os sonhos que esquecemos. Assim, o sonhografista precisa da memória justamente para esquecer, abrindo espaços de possibilidades imaginativas do sentir. A tradução-docência-sonho da Diferença rompe a pátina sacra de um dado original, e asperge o “[...] conhecimento como releitura, reescritura e retradução do mundo [...], tal docência usa uma [...] linguagem-móbile, sem fixidez [...], é [...] docência antimetafísica” (CORAZZA, 2018, p. 21).

A sonhografia, partindo da ação vígil é um tipo de indução lúcida. O docente artistador, nesse rigor, é onividente, seus olhos são interiores e sentem os afectos a-traduzir. Se há mimese no sonho, é a do sentido da visão, o qual simula todos os demais sentidos no sonhador. O sonhografista admite-se um sujeito desdobrado, “[...] a outra coisa (para a psicanálise); sujeito que vê tudo, por toda a parte [...]”, pela visão panóptica de Foucault (BELLOUR, 1995, p. 12). Transalucina sua relação com o arquivo. Quando inicia o processo sonhográfico, prende-se ao rigor de espírito, pela seleção do ponto zero de criação sobre o Informe (CORAZZA, 2011).

O Método Sonhográfico passa a acessar também as representações internas do corpo em relação aos a-traduzir dos signos sonhados. Opera, no interior dessas imagens evocadas, relações e seleções visuais e emotivas. Por isso, a sonhografia tende a ser um movimento pré-cinematográfico, séries de encadeamento, o tipo travelling. A criação advém das respostas conscientes aos a-traduzir, somadas ao tempo e ao risco sonhado do corpo. Não há um centro único no corpo que guie ou dê ordens ao movimento transcriativo, sonhografar é uma batalha de perspectivas poéticas, não vemos nada até que não tenhamos visto algo belo ou terrível. Cada texto é fragmentado e parcial, mas a escrita-artista em si não seria dada por uma quantidade, já que o resultado é contingencial, encontra-se em devir enquanto “[...] sua perspectiva está continuamente se modificando” (CORAZZA, 2006, p. 34).

Também a potência do texto manifesto na tradução do arquivo contém o desejo inscrito no original. Como se fosse um sonho, na embriaguez de palavras latentes, o professor sonha aulas. Na presença da voz que fala uma aula, ou um sonho, a interpretação da tessitura textual também é capaz de ressignificar línguas emergentes – ouvimos sentidos que formam uma estética donde nasce o texto sobre o qual nos lançamos numa espécie de navegação ébria. Por exemplo, decidir por sentir ou não sentir o cheiro do carvalho molhado de uma embarcação em alto-mar das linhas de Poe.

Na contemplação de uma imagem sonhográfica, interpretamos um desejo alucinado por uma perspectiva que objetificou na escrita, a partir do informe, o movimento do espírito. Nasce um tipo de entreimagem que desliza entre a fotografia e a imagem cinematográfica. Não possui alta definição, mas mantém-se no borramento da memória do sonho, no flou sombreado. Estacionadas em uma tentativa de possuir aquilo que o sonhografista elaborou, são imagens trapaceiras, reais, ilusórias em sua impressão gráfica: a palavra, a frase, o poema, o traço de tinta negra. Uma sonhografia desacomoda-se entre a desilusão da aula-dada, negando a sua imagem pronta. Uma imagem de sonho sempre é uma imagem dada?

A extração de sonhos do arquivo pelo método tende à poesia, pois é um tipo de elaboração das fantasias de aula. Afirma o direito à composição prazerosa, que nos permite habitar uma condição inicial poética, ou seja, amorfa, e sobre a qual se crivam sonhos, um fazer-se poeta, de instante a instante, de agora em agora. Nessa aula bordejada de sonhos, há o desejo pela cor de uma tradução e não a busca pela palavra que nos dita uma verdade escondida. O corpo banhado por possibilidades de sonhos frescos imagina a sério e “[...] se souber escolher, se escutar os oráculos da tinta profética, terá a revelação de uma estranha solidez dos sonhos” (BACHELARD, 1991, p. 46).

Num espaço real daquilo que se extrai do arquivo escolhido, que resulta do ato de educar diferindo, a docência-pesquisa deambula e balbucia sonhos, com rigor e precisão, como vida que afirma uma hecceidade, e que dá a novidade ao atual, pois a experiência docente de pesquisar é vontade de potência de educar, “[...] como se disséssemos, pela primeira vez, as palavras que fazem aparecer sua energia, no sentido físico; seu impulso, como sensação; sua tendência, como eterno retorno” (CORAZZA, 2016, p. 3).

Aproximando mais a tradução que cria o estado poético, podemos perceber que para o espírito, desde que atento e consciente, tudo é matéria a ser esquecida de seu significado, gerando a-traduzir e afectos (sensações que deixam suas marcas no corpo), com a destreza de não abandonar a tensão causada quando do primeiro contato com o original. No estado poético, há a invasão consciente de uma existência. No sonho, há a invasão da existência inconsciente no consciente. Consideraremos, para sonhografar, a consciência que ocorre quando acordamos e lembramo-nos das partes sonhadas.

Criar é decidir de maneira ativa sobre as infinitas possibilidades que vemos surgir e morrer indefinidamente de nossas perspectivas escrileitoras. Para não repetir o já dado e desejar sonhos de aula, tal qual um pintor da escuridão do nanquim, forjamos a decisão sonhoreira de elaboração sobre os a-traduzir que fantasmagorizam o arquivo. Somos feitos de sonhos a-traduzir, ávidos por uma mão artistadora que os recolha e os torne aparição no mundo.

A educação está implicada no estudo filosófico do sonho de forma profunda e direta, não no sentido da formação humana modelo (eurocêntrica) mas na dobra de sentidos que formam um corpo poético, esta uma multidão pulsional. O ser seletivo da Filosofia da Diferença é o docente que sonha seletivamente. Suas decisões geram ficções de arquivo, de docência, de espírito. Sonhografar é, pois, prática poética de si, usa do antagonismo das forças emanadas da psique, constituindo-se não apenas em liberdade ou automatismo de espírito, já que se reinterpreta quando reinscreve parcelas do mundo em sua elaboração manifesta. As traduções do mundo e para o mundo são dramatizações que nos interessam como formação de novos valores não-representacionais. O labor da língua que sonha golpeia sobre a matéria arranjos em devir, em dessemelhanças, em minorias de linguagem. Os sonhos não cessam de marcar nossos corpos com o enigma: “Para onde vamos, pois já não sou o eu da véspera”?

Aula-tradução: práticas para oficinar pensamentos

A ação, na qual colocamos a funcionar esses dois métodos, ocorreu em atividade de formação de professores pela primeira vez com várias oficinas de transcriação. Houve o envolvimento de todo o Grupo de Pesquisa Filosofias da Diferença e Educação, coordenado pela Dra. Sandra Mara Corazza, em parceria com a Secretaria da Educação de Caxias do Sul, na data 5 de outubro de 2019, realizada na Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Ilda Clara Sebben Barazzeti. Na oficina ministrada pelas autoras, contamos com 23 professoras. As participantes autorizaram a divulgação literal de suas transcriações, já que era a condição mínima para a atividade proposta na oficina, além de que o sonho ou o pesadelo de cada uma pudesse ser compartilhado. Do total das 23 transcriações, apresentaremos apenas três exemplos, e um resumo do roteiro da oficina.

Roteiro da oficina – materiais e ambiente: cadeiras em roda, sala à meia-luz; haverá uma folha em branco no chão (tipo ou A3), um pincel e nanquim; fichas e canetas para escritas individuais. Duração prevista: 1 h e 20 minutos. No quadro ou em um cartaz, as seguintes frases direcionam o início das transcriações: “Sonhei que...”, “No sonho...”, “Acordei, mas voltei a dormir e sonhei que...”, “No meu sonho...”, “Foi um pesadelo, eu estava...”, “Acordei cansado(a), porque sonhei que...”, “Nunca me lembro dos sonhos, mas posso tentar dizer o que sinto sobre isso: ...”, “O mesmo sonho veio-me mas de outra forma: ...”, “Tendo visto um sonho...”.

Som ambiente para ser sentido enquanto as participantes rememoram os sonhos movimentando-se livremente pela sala: Bolero de Ravel (1875-1997). (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q4wb11w0ZHQ). Essa etapa é anterior à escrita e ocorre concomitantemente ao gesto com nanquim na folha em branco coletiva, gesto que cada participante extrairá a partir de um signo emotivo do sonho, que tenha sua tradução em um gesto informe. Tal ritmo de repetição foi proposital, a partir da escolha do famoso bolero de Ravel, como disparador do movimento de pensar sonhos com o corpo todo e, via rigor do intelecto, agir no ritornelo sobre a liberdade de signos a-traduzir dessa experimentação.

Depois disso, iniciaram-se as explanações dos métodos entre sonho, pensamento e escrita poética na docência (sonhografias de aula, a-traduzir, arquivo, o rigor intelectual. Poética de aula e espiritografias).

Projetamos um poema para leitura individual e silenciosa: “Um Sonho”, de Edgar Allan Poe (1809-1849), publicado no livro "Edgar Allan Poe – obra poética completa". (Tradução de Margarida Vale de Gato, Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7bSLXagAVWM).

As participantes foram convidadas a realizar um leve exercício corporal/gestual e de pensamento evocativo (do tipo memória afetiva) a partir de um sonho que desejavam compartilhar com as demais. Para tanto, ao embalo do ritornelo de Ravel, circulando livremente, cada uma desenhou no ar gestos que surgirem pela evocação onírica, até que um gesto se fixasse da condensação. Até que o gesto simbolizasse as sensações sentidas pelo sonho. Assim que sentissem ter evocado suficientemente o sonho e seu gesto correspondente (este repetido algumas vezes para si), cada uma fixou a ideia gestual em uma pincelada única de nanquim sobre a folha branca, disposta no chão ou numa mesa (essa folha é uma recolha dos gestos a-traduzir do sonho coletivo da aula).

Cada participante escreveu seu sonho em uma ficha, começando com as frases sugeridas, acima descritas. As fichas foram recolhidas e redistribuídas de modo a realizar um cruzamento entre os sonhos, e cada uma recebeu o sonho alheio (manifesto) como conteúdo latente, como o original de onde se extrai uma forma de expressão poética. Foram realizadas as transcriações e leituras em voz alta de cada tradução poética. A seguir, ouvimos as falas coletivas e questionamentos sobre as sensações sentidas durante o exercício.

Resultados: da elaboração transcriadora (o que fez cada participante com o sonho alheio): cada resultado formou-se em um heterogêneo transcriado por uma forma poética e a complementação da frase “Meu sonho hoje é...” (a transcriação e a complementação foram da mesma pessoa).

As sequências abaixo são: a) Sonho alheio (iniciados ou não pelas sugestões do exercício sonhográfico); b) transcriação; e c) resposta/complementação da frase “Meu sonho hoje é...”.

[Exemplo 1] – a) Um sonho que me lembro em primeiro lugar é de um lugarejo com casas simples e sem apartamentos. Parece algo medieval. Eu caminho pelas ruas e parece que conheço todos desse lugar. As pessoas com quem conversei têm outras fisionomias, mas são familiares e percebo ser minha mãe, meu pai, meu marido, filho e outros. Durante o sonho, lembro que sinto uma certa apreensão, um medo de invasões. Não sei. A temperatura é fria e nossas vestimentas são escuras.

b) Estava num lugarejo simples, simpático, onde a correria da cidade grande não havia chegado. Caminhava pela pequena rua e percebia a história de sua cultura pelos desenhos percebidos nas construções antigas. Estava conversando com muitas pessoas, familiares de uma grande comunidade e junto de meu marido e filho. Senti, enquanto caminhava, uma apreensão de que aquela paz e tranquilidade fossem acabar. A temperatura estava baixa, anunciando o inverno que se aproximava. O sentimento de receio foi se afastando na medida em que minha família mais perto ficava.

c) Meu eu sonho hoje é... O medo de viver um sonho, sonhado repetidamente na infância.

O sonho de voar que causava tanto bem e liberdade.

[Exemplo 2] – a) Na verdade não foi um sonho e, sim, um pesadelo. Era perseguida por pessoas estranhas, que nunca tinha visto antes. O local onde o sonho acontecia era na escola que eu estudei. No entanto, eu já era adulta. Meu filho estava nesse “sonho”. Queriam me matar. Fugia o tempo todo. Passava por lugares que já conhecia, porém estavam escuros, estranhos e me faziam sensações de medo e pavor. Ao mesmo tempo que fugia, procurava meu filho para juntos nos escondermos. As sensações eram terríveis. O medo tomou conta de mim. O medo de morrer ou de que fizessem algo para meu filho. Tinha medo de morrer e da sensação de não ter mais meu filho. Parecia interminável, não conseguia acordar.

b)

O medo ou ficar?

A fuga O pesadelo

de quem? só termina

Correr, esconder... na hora de enfrentar.

[Exemplo 3] – a) Sonhei que era uma manhã de primavera: o sol e as flores tomavam conta daquela paisagem que sempre amei nutrir vontade de chegar muito perto... estava eu nos jardins de Monet... o brilho, o perfume, a leveza daquele lugar... a companhia que trazia comigo... tudo levaria à perfeição... decidi permanecer ali.

b)

Lindas paisagens Aromas sentidos Sensações experimentadas

Sonhar o sonho de alguém é possível? E os eu sonho, onde está?

c) Meu sonho hoje é... Não deixar o sonho que habita em mim esmorecer.

Dessas artistagens, mais do que uma apresentação de resultados da oficina, interessa-nos esquadrinhar os movimentos de potência em fazer uma docência que lê-escreve-pesquisa-traduz e sonha aulas, bem como desenvolver os processos utilizados nas composições como formas de reinvenção dos métodos de transcriação.

Assim, nossos registros não são modelos, mas disparadores para novos planos de pensamento que afirmem possibilidades de criação sonhoreira e inventiva no âmbito da pesquisa-docência. Uma aula elaborada em tradução torna-se uma abertura às forças que desejam territórios ao acontecimento:

Afirmando a docência como uma ação singular, que provoca encontros, [...] a Aula não remeterá à eternidade de qualquer ideia nem à representação do passado, mas expressará o eterno retorno da diferença e o seu caráter infinitivo. Os devaneios de Aula mostrarão a personalidade interior feminina dos professores; e, embora oníricos, por serem diurnos, serão dotados de uma certa lucidez e consciência; enquanto, nos sonhos noturnos, a alma dos professores nunca descansa (CORAZZA, 2019, p. 53).

Não há uma concepção de verdade imutável, mas antes uma proposta de mover estudos, pesquisas e práticas de reinventar o espaço-aula, um lugar por excelência para o encontro de corpos e almas em singulares e diferentes ficções.

Considerações finais

As produções manifestaram escritas breves, mas de intensidade de um momento vivido por espíritos colocados a sonhar na agoridade da aula. Segundo as participantes dessa atividade em oficina, tal empiria de escrita diferiu da rotina de uma mornidão representativa do cotidiano escolar. O ato de oficinar pensamentos funcionou objetivamente como um elemento de transgressão didática (AICE), uma subversão do discurso dado e costumeiro. Um encontro de possibilidades de fruição irrompida do inesperado, eivado pelo desafio da tradução de espaços, imagens e signos (EIS) através do exercício de linguagem e no trato das palavras.

Sentimos evidenciadas as sensações de desterritorialização (intelecto e sonho) e reterritorialização (signo e tradução): o corpo em contato com um fora, e o espaço-aula concebido como uma área aberta ao jogo dos afetos. Pelo bailar dos corpos, formou-se um encontro que possibilitou às participantes e às ministrantes descolamentos de pensamento, lampejos de ideias e sensações fugidias. Tais signos a-traduzir entrecruzaram-se nos corpos em passeio. Uma espécie de dança libertária, novo ritual auleiro, falas e corpos descentrados do eu da cotidianeidade. Olhos faiscantes que espiavam as gotículas de chuva que caíam para além das janelas. Como em um sonho, foi possível ao espírito respirar outros ares, para retomar o fôlego, traduzir e traduzir-se, pois nos meandros da educação, “[...] tudo se compõe, se combina, se substitui, se compensa, se mistura e se desmistura, e isso é o Espírito” (VALÉRY, 2016, p. 32).

Nessa perspectiva da imensa massa informe de a-traduzir que se sonham e se cruzam numa transcriação para aula, temos cartografias visíveis e invisíveis, que crescem ao se chocar, extravasando linhas de fuga poéticas. O desejo docente não é uma falta, mas puro plano de imanência que se trama no agora. O direito de sonheria docente passa, portanto, a ser um espaço de criação onde é possível articular as relações transindividuais que caracterizam o compartilhar sonhos.

É nessa dimensão híbrida do gesto sonhado que a diferença pode se manifestar em processos de individualização e de formação social que provocam uma forma de pensar. Tal ação de pensar ocorre através de signos imageticamente profanados e que investe no desejo de transformação do já instituído na linguagem acadêmica com o intuito de produzir novos modos de diferenciação que se criam e se manifestam na pesquisa-docência.

Nota

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Referências

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Notas de literatura. Tradução Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2012. [ Links ]

AQUINO, Julio Groppa. Da autoridade pedagógica à amizade intelectual: uma plataforma para o éthos docente. São Paulo: Cortez, 2014. [ Links ]

BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. Tradução José Américo Motta Pessanha. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. [ Links ]

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução Mário Laranjeira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012. [ Links ]

BELLOUR, Raymond. A máquina de Hipnose (entrevista). Cadernos de Subjetividade, São Paulo, v. 3, n. 1, 1995. [ Links ]

CAMPOS, Haroldo de. Transcriação. São Paulo: Perspectiva, 2013. (Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega – organizadores). [ Links ]

Campos, Maria Idalina Krause de. Paul Valéry educador. Porto Alegre: Ed. Mikelis, 2018. [ Links ]

Campos, Maria Idalina Krause de. Educação da diferença com Paul Valéry: método espiritográfico. 2017. 194f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017. [ Links ]

Corazza, Sandra Mara. A-traduzir o arquivo da docência em aula: sonho didático e poesia curricular. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 35, p. 1-19, 2019. [ Links ]

Corazza, Sandra Mara. A-traduzir o arquivo da docência em aula: sonho didático e poesia curricular. 2019 (Projeto de Pesquisa de Produtividade (CNPq, março de 2019 a fevereiro de 2023, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre). [ Links ]

Corazza, Sandra Mara. Uma introdução aos sete conceitos fundamentais da docência-pesquisa tradutória: arquivo EIS AICE. Revista Pro-Posições, São Paulo, v. 29, n. 3, p. 1-12, 2018. [ Links ]

Corazza, Sandra Mara. Currículo e didática da tradução: vontade, criação e crítica. Revista Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 4, p. 1313-1335, 2016. [ Links ]

Corazza, Sandra Mara. Método Valéry-Deleuze: um drama na comédia intelectual da educação. In: Corazza, Sandra Mara. O que se transcria em educação? Porto Alegre: Doisa, 2013. [ Links ]

Corazza, Sandra Mara. Dramatização do infantil na comédia intelectual do currículo: método Valéry-Deleuze. 2010. (Projeto de Pesquisa apresentado ao CNPq em agosto de 2010). [ Links ]

Corazza, Sandra Mara. Notas 0 – Uma teoria da criação. In: Heuser, Ester Maria Dreher. (org.). Cadernos de Notas 1: projeto, notas e ressonâncias: um modo de ler-escrever em meio à vida. Cuiabá: EdUFMT, 2011. [ Links ]

Corazza, Sandra Mara. Artistagens. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. [ Links ]

DAMÁSIO, António. Os apetites e as emoções. In: DAMÁSIO, António Rosa. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. [ Links ]

FIGUEIREDO, Padrão de. Entre acontecimentos: Deleuze e Derrida. Revista Ítaca, Rio de Janeiro, n. 19, p. 127-142, 2012. (edição especial). [ Links ]

FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Tradução António Fernandez Cascais e Eduardo Cordeiro. 4. ed. Alpiarça (Portugal): Passagens, 2002. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Introdução (Binswanger). In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos – problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Tradução Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. (v. I). [ Links ]

FRANZ, Marie-Luise Von. O caminho dos sonhos: Marie-Louise von Franz em conversa com Fraser Boa. Tradução Roberto Gambini. São Paulo: Cultrix, 1988. [ Links ]

FREUD, Sigmund. Los sueños. Tradução Luis López-Ballesteros Y de Torres. Madri: Aliança Editorial, 1966. (Obras Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira – I, 1900). [ Links ]

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Tradução Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (v. IV). [ Links ]

Reis, Marina dos. Sonhografias de aula. São Paulo: Pimenta Cultural, 2019. [ Links ]

VALÉRY, Paul. Variedades. Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 2011. [ Links ]

VALÉRY, Paul. Maus pensamentos & outros. Tradução Pedro Sette-Câmara. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2016. [ Links ]

VALÉRY, Paul. Lições de poética. Tradução Pedro Sette-Câmara. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018. [ Links ]

Recebido: 22 de Julho de 2020; Aceito: 18 de Agosto de 2020

Profa. Dra. Maria Idalina Krause de Campos

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

Pesquisadora na Rede de Pesquisa Escrileituras da Diferença em Filosofia-Educação (UFRGS – Brasil)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-0016-7455

E-mail: idalinakrause@yahoo.com.br

Ms. Marina dos Reis

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

Pesquisadora Colaboradora da Linha Filosofia da Diferença-Educação (UFRGS – Brasil)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-2088-5358

E-mail: mdr@ufrgs.br

Profa. Dra. Sandra Mara Corazza

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

Faculdade de Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação

Linha de Pesquisa Filosofias da Diferença e Educação

Pesquisadora de Produtividade 1B do CNPq (2002-)

Líder dos Grupos de Pesquisa: Diretório do CNPq: 1) DIF – Artistagens, Fabulações, Variações (2002-); 2) Rede de Pesquisa Escrileituras da Diferença em Filosofia-Educação (UFRGS – Brasil)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-1237-198X

E-mail: sandracorazza@terra.com.br

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution NonCommercial, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais e que o trabalho original seja corretamente citado.