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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.58 no.58 Natal out./dez 2020  Epub 16-Out-2020

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2020v58n58id22507 

Artigos

Gênero na docência em Física: a pedagogia da pedra contra o labirinto de cristal

Gender in Physics teaching: education by stone against the glass labyrinth

Género en la docencia en Física: la pedagogía de la piedra contra el laberinto de cristal

Anna Luiza Martins de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0002-0620-3322

Ribbyson José de Farias Silva2 
http://orcid.org/0000-0001-9938-2456

1Universidade Federal de Pernambuco (Brasil)

2Universidade Federal Rural de Pernambuco (Brasil)


Resumo

O Brasil tem mais de dois milhões de docentes atuando na educação básica, a maioria mulheres, porém, essa proporção se inverte na área de Física. Com base na Teoria Política do Discurso e nos Estudos Pós-estruturalistas de Gênero, este artigo analisa as lógicas que têm sustentado o discurso de que a Física é uma ciência para (alguns) homens e a emergência de práticas de contestação dessa hegemonia. O corpus foi constituído por narrativas de seis docentes de Física do Agreste de Pernambuco. Os resultados apontam que as lógicas homogeneizadoras dos cânones científicos continuam ativas e reforçam barreiras de gênero que, ao se constituírem como padrões culturais, são naturalizadas. Tais mecanismos reduzem o potencial de vida e trabalho de muitas profissionais, mas, não conseguem suprimir suas existências. Conclui-se que o reconhecimento da ciência como contexto povoado por corpos vivos e expressivos é a principal alternativa para o enfrentamento dos intricados labirintos que continuam a ser erigidos.

Palavras-chave: Docência em Física; Gênero; Experiência; Discurso

Abstract

Two million individuals currently work as teachers in basic education in Brazil, most of them women. The majority of Physics teachers, however, are men. The present article uses Political Theory of Discourse and Poststructuralist Gender Studies to examine the rationale underlying the belief that Physics is an academic subject for (some) men and to explore the emergence of practices that challenge this hegemony. The corpus used comprises narrative statements from six Physics teachers from the Agreste region of the Brazilian State of Pernambuco. The results indicate that the standardization of scientific canons still prevails and this consolidates gender barriers, which are thereby established as social norms and hence seen as natural. Such mechanisms stunt the potential and impoverish the working life of many teachers but cannot expunge their existence. It is concluded that viewing science as a setting inhabited by living expressive beings is the best strategy for confronting the elaborate labyrinths that continue to be constructed.

Keywords: Physics teaching; Gender; Discourse; Experience

Resumen

Brasil tiene más de dos millones de docentes actuando en la educación básica, la mayoría mujeres, por lo que, esta proporción se invierte en el área de Física. Con base en la Teoría Política del Discurso y en los Estudios Posestructuralistas de Género, este articulo analiza las lógicas que han sustentado el discurso de que la Física es una ciencia para (algunos) hombres y la emergencia de prácticas de contestación de esta hegemonía. El corpus fue constituido por narrativas de seis docentes de Física del Agreste de Pernambuco. Los resultados apuntan a que las lógicas homogeneizadoras de los cánones científicos continúan activas y refuerzan barreras de género que, al constituirse como padrones culturales, son naturalizados. Tales mecanismos reducen la potencia de vida y trabajo de muchas profesionales, pero, no consiguen suprimir sus existencias. Se concluye que el reconocimiento de la ciencia como contexto poblado por cuerpos vivos y expresivos es la principal alternativa para el enfrentamiento de los intrincados laberintos que continúan a ser erigidos.

Palabras clave: Docencia en Física; Género; Discurso; Experiencia

Uma educação pela pedra: por lições;

Para aprender da pedra, frequentá-la;

Captar sua voz inenfática, impessoal

(pela de dicção ela começa as aulas).

A lição de moral, sua resistência fria

Ao que flui e a fluir, a ser maleada;

A de poética, sua carnadura concreta;

A de economia, seu adensar-se compacta:

Lições da pedra (de fora para dentro,

Cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão

(de dentro para fora, e pré-didática).

No Sertão a pedra não sabe lecionar,

E se lecionasse, não ensinaria nada;

Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

Uma pedra de nascença, entranha a alma

(João Cabral de Melo Neto, 2008).

Introdução

A feminização da docência é um fenômeno observado no Brasil desde o final do século passado com a expansão do ensino público primário (VIANNA, 2002). Atualmente, o país conta com mais de dois milhões de docentes atuando na educação básica, sendo a maioria mulheres (BRASIL, 2019). Estudos mais detalhados sobre o exercício da docência por área de conhecimento e por gênero, entretanto, têm revelado que essa proporção se inverte nas tecnologias, ciências exatas e naturais, especialmente, na Física (MATOS, 2010), área do conhecimento enaltecida e criticada, ao longo de sua história, por sua pretensão de objetividade, racionalidade e impessoalidade – o arquétipo das chamadas ciências duras ou hard sciences. O que a suposta voz dura, inenfática e impessoal da Física pode nos revelar sobre as experiências de gênero na docência? Que lições podemos aprender com as interações entre a sua (im)provável concretude e a fluidez das existências que transgridem os sentidos e limites cristalizados pelo tempo? Como o ato pedagógico se realiza nessa encruzilhada discursiva e na imprevisibilidade radical de seus sentidos, especialmente quando pensamos uma educação e uma docência que se entranha no Agreste? Como os dilemas indicados por essas questões reapresentam-se num tempo em que, mais uma vez, diante da sombra de uma avalanche invisível, mas letal, tudo que é sólido parece desfazer-se no ar (MARX; ENGELS, 1998)?

Experiências de gênero na docência em Física é o tema desse artigo. Concebemos experiência como ação simbólica e narrativa de produção de sentidos sobre a realidade; como o terreno discursivo onde o sujeito é constituído, reiterando ou repudiando subjetividades diferentes (BRAH, 2006). Nos aproximamos de abordagens (SCOTT, 1989; BUTLER, 2003) que reconhecem que as proposições e representações sobre o masculino e o feminino são atravessadas por relações de poder, portanto, se constituem num contexto de disputas políticas, onde elementos históricos, culturais, institucionais enlaçam-se num complexo movimento de significação, cuja totalidade é constantemente almejada, protelada e impossível de ser alcançada. A intersecção desses diversos aspectos, inclusive, é o que possibilita a contingência da produção de sentidos e forja experiências mutáveis (PISCITELLI, 2008).

Na tentativa de fixar significados, padrões de masculinidade e feminilidades são tenuemente constituídos em espaços-tempos específicos, através da repetição estilizada de atos que reiteram a fantasia de naturalidade de pensamentos, de comportamentos e de estilos corporais supostamente intrínsecos ao gênero. Diversos trabalhos (JUNQUEIRA, 2013; BENTO, 2011) enfatizam que os currículos escolares são loci privilegiados de reiteração de uma gramática de gênero que determina quais vidas podem ser reconhecidas e quais devem ser subjugadas (BUTLER, 2010). Por outro lado, essa reiteração só é necessária porque há, sempre, o perigo das subjetividades borrarem as fronteiras das estruturas normativas, gerando uma possibilidade (des)constitutiva no processo de repetição. Nesse sentido, o mesmo poder que atua sobre o sujeito, pressionando-o para a subordinação, é condição para sua existência.

Constituir-se sujeito, inclusive sujeito da docência, é, portanto, uma experiência que se dá no solo da política e do indecidível (LACLAU; MOUFFE, 2015), do conflito entre o traduzível e o intraduzível – “[...] aquilo que perturba a reapropriação de sentidos; institui o desfalecimento das coordenadas cognitivas; prenuncia a morte do significado” (CORAZZA, 2019, p. 2). Assim, a ideia de docência e de sujeito da docência enquanto entidades estáveis, consolidadas, pré-existentes à experiência, é desafiada, nesse trabalho, em reconhecimento à contingência de seus sentidos (BRAH, 2006).

Isso não significa negar que existem práticas hegemônicas sedimentadas nos campos disciplinares das ciências duras que, há séculos, constroem barreiras contra a inserção, a permanência e o reconhecimento de qualquer performance de gênero que ponha em questão sua identidade de ciências masculinas. Significa reafirmar que as práticas hegemônicas são constituídas por atos de poder situados e embebidos de afetos e cargas pulsionais que interpelam os sujeitos através de processos de identificação. Esses processos, inclusive, são tão potentes que, em geral, torna-se necessário uma força disruptiva significativa para deslocar uma ordem social estabelecida (LACLAU; MOUFFE, 2015; BUTLER, 2017).

Nesse texto discutimos, a partir de exemplos de uma pesquisa com professoras e professores do ensino médio na Região Agreste de Pernambuco (SILVA, 2017), a atuação do gênero no processo de significação da docência em Física. Em diálogo com estudos pós-estruturalistas (BUTLER, 2010; 2017; 2018; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2018), enfatizamos as lógicas que gestaram e tem sustentado o discurso que a Física é uma ciência de/para (alguns) homens. Miramos, também, a emergência de práticas sociais de contestação dessa hegemonia e suas repercussões no contexto atual.

A (im)provável concretude da Física

Refletir sobre as experiências de gênero na docência em Física exige uma aproximação dos sentidos sobre esse campo, enquanto arena inacabada de produção de verdades e subjetividades. O nosso desafio é, através de um exercício de interrogação de acontecimentos recentes e antigos, chamar a atenção para a percepção de que os processos de significação das masculinidades e feminilidades na Física se dão numa zona de ambiguidade e tensionamento entre as infinitas possibilidades de tradução da docência e da própria disciplina enquanto área de conhecimento e de atuação profissional.

Estudos feministas (STEPAN, 1986; FAUSTO-STERLING, 1985; MERCHANT, 1980) chamam a atenção para o caráter generificado das ciências modernas; para suas inflexões na triagem, sistematização e análise de dados; assim como, para o uso de metáforas androcêntricas que fundamentam o pensar e fazer científicos. Na Física, essas investigações têm seguido várias direções: i) o questionamento de seu status de ciência-modelo; ii) a ausência de discussão sobre o caráter situado e histórico do conhecimento; iii) a análise de táticas de silenciamento das mulheres; iv) o exame de estratégias pedagógicas que supervalorizam a participação masculina. Entre todos os campos de conhecimento científico, a Física é o que mais repele as estudantes com potencial intelectual para a carreira (DASGUPTA; STOUT, 2014; AGRELLO; GRAG, 2009; CARTAXO, 2012). É comum estratégias de desencorajamento das meninas desde a infância e, principalmente, durante a graduação, o que repercute no abandono do curso, fenômeno que ficou conhecido como cano furado ou leaky pipeline (HUYER, 2015).

Schiebinger (2001) chama a atenção para dois aspectos que se relacionam a esse contexto de repulsa ao feminino. O primeiro é a tradição positivista (herdada de Bertrand Russell) de atribuir à Física o caráter de ciência hard: aquela que se fundamentaria em dados inanimados, abstratos e matemáticos, exigindo elevado grau de abstração, trabalho intelectual, imparcialidade, forte aptidão analítica e longas jornadas de trabalho. Diferente das ciências soft, que teriam abertura epistemológica, seriam introspectivas, lidariam com dados qualitativos, com seres vivos e se aproximariam dos fenômenos humanos e sociais cotidianos. Segundo a autora, ao longo da história moderna, os homens foram identificados como aqueles que possuem os atributos – força, resistência, racionalidade – para atuar nas ciências hard e as mulheres – por serem supostamente sensíveis, afetuosas e cuidadosas – para investir nas ciências soft. A “dureza” também foi a medida usada para definir a hierarquia entre as ciências, colocando a Física no topo da escala. O grau de dificuldade a ela atribuído, consequentemente, resultou em maior prestígio e subsídios (SCHIEBINGER, 2001).

O segundo aspecto é sua aproximação com o serviço militar. A Física ocupou posição de destaque durante a Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos, através de uma forte articulação entre governo, indústria e pesquisa científica, financiaram projetos direcionados a missões de guerra, entre eles o mítico projeto Manhattan, que contou com a colaboração de Albert Einstein e levou à criação das bombas atômicas lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. A maioria dos físicos norte-americanos desenvolveu pesquisas na área militar até o final da Guerra Fria. As mulheres que atuavam na Física antes da década de 1970 raramente eram contratadas para esses estudos. Mas, nomes femininos de peso – como Jane Hamilton Hall, Elizabeth Riddle Graves, Maria Goeppert Mayer, Leona Woods, Jean Fuller, Lise Meitner – se destacaram em pesquisas da Física nuclear da época. Algumas não aceitaram participar dos projetos de bomba atômica e fizeram coro nas denúncias sobre a militarização da Física, outras foram contratadas para trabalhar diretamente nos laboratórios de pesquisa e no setor de cálculos equacionais.

Corroboramos a posição da autora de que o reduzido número de mulheres na Física não diz respeito ao seu grau de dificuldade ou a diferenças intrínsecas (biológicas e/ou psicológicas) entre homens e mulheres, mas, entre outros aspectos, à cultura masculina instituída na área, como já citamos anteriormente. Nesse texto, assumimos o conceito de cultura como enunciação. Nos termos de Bhabha (2005), enunciar envolve uma temporalidade continuísta, que atribui ao discurso uma autoridade baseada no pré-estabelecido e uma dimensão performática que oblitera qualquer presença anterior. Ou seja, é uma atividade política, onde sentidos anteriormente instituídos são traduzidos dentro de determinadas condições de repetição que impedem sua reprodução (ou acesso ao original) e, ao mesmo tempo, permitem sua sobrevida. No exercício da tradutibilidade, os sentidos anteriormente fixados se transformam, “[...] existe uma maturação póstuma mesmo das palavras que já se fixaram” (BENJAMIN, 2013, p. 108). Nessa perspectiva, enunciar movimenta intencionalidades, estabelece lugares simbólicos para sujeitos e instituições, dentro de uma condição de “contingência radical”, onde acontecimentos recentes guardam traços de antiguidade, mas, não repõem uma unidade orgânica original (BURITY, 1997).

Transformações envolvendo gênero, ciência e tecnologia são visíveis em várias partes do mundo. No Brasil, o acesso das mulheres à educação aumentou surpreendentemente. Atualmente, 61% das pessoas que concluíram a educação superior no país são mulheres (BRASIL, 2018). O nível de escolaridade feminina superou o dos homens no mercado de trabalho brasileiro desde o final da década de 1990, quando as mulheres com diploma universitário apresentaram uma taxa de atividade de 82,3% (MELO, 2018). Elas são responsáveis por quase 50% da produção científica do país (ELSEVIER, 2017). De maneira geral, elas continuam a formação por mais tempo que os homens, entretanto, maiores níveis de escolaridade não têm garantido as mesmas oportunidades de trabalho, reconhecimento profissional e remuneração.

A representação de mulheres na Física também está (lentamente) aumentando nos últimos anos, apesar de ainda ser pouco expressiva (PORTER, 2020). Segundo Guedes (2008), entre 1970 e 2000, elas representavam cerca de 30% das pessoas formadas nessa área, no Brasil. Saitovitch, Lima e Barbosa (2015) analisaram, a partir de dados obtidos na plataforma do CNPq, entre os anos de 2001-2012, o percentual de bolsistas presentes na Física, por gênero, nas modalidades: i) Iniciação Científica (IC); ii) Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC); iii) Mestrado; iv) Doutorado; v) Produtividade em Pesquisa (PQ). Dois dados se destacaram na pesquisa. O primeiro foi que o percentual de mulheres diminui à medida que o nível acadêmico da bolsa aumenta, ficando em torno de 21% para o mestrado e 17% para o doutorado. O segundo foi que o número de pesquisadoras se mantém estável durante todo o período na maioria das modalidades, com exceção do PIBIC, que cresceu a partir do ano de 2007, atingindo 37% em 2012. Esse crescimento no PIBIC pode estar relacionado às ações de incentivo à participação de mulheres na ciência como, por exemplo, o programa “Meninas e jovens fazendo ciências exatas, tecnologias e computação” (que explanaremos mais a frente) e à abertura de novos cursos de graduação na tentativa de suturar as fissuras do ensino médio no Brasil, que clama por docentes com formação em Física (GOBARA; GARCIA, 2007).

Apesar das pequenas conquistas, ainda há registros significativos de experiências de discriminação envolvendo orientadores/as e estudantes; de assédio sexual no trabalho, inclusive na escola; de mulheres serem mais solicitadas a mudarem seus horários de expediente; de terem progressão lenta na carreira e de perderem o emprego em função da maternidade (PORTER, 2020). Esse repertório discursivo que se repete como um método, na tentativa de manter a regularidade dos acontecimentos (FOUCAULT, 2009), também foi evocado nas narrativas das professoras e professores com quem conversamos durante a pesquisa.

Narrativas docentes no labirinto de cristal

Compreendemos narrativa como ato de significação implicado num processo de tradução, como uma comunicação artesanal que “[...] não está interessada em transmitir o puro em si da coisa narrada [...]. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1987, p. 205). Ao todo, foram entrevistados/as seis docentes de Física da Região Agreste de Pernambuco, local onde encontram-se três Instituições Federais de Ensino Superior – IFES que ofertam o referido curso de licenciatura. A seleção dos/as docentes se deu através da técnica de snowball (BIERNACKI; WALDORF, 1981), onde os/as participantes do estudo indicam novos participantes, até que seja alcançado o “ponto de saturação” – momento em que os conteúdos das narrativas começam a se repetir. Os/as docentes precisavam ser da rede pública de ensino e estar em exercício.

Ao narrarem sobre como se aproximaram da docência, as três professoras entrevistadas enfatizaram que essa não era a primeira opção de carreira profissional. A menor concorrência no processo seletivo, a proximidade entre residência e universidade e o gosto pela matemática foram os aspectos mais relevantes na escolha do curso. Somente uma fez referência à identificação com a docência desde a tenra idade, ao citar que costumava brincar de professora com suas bonecas. Entre os homens, no entanto, a relação com área emerge precocemente. Recordações de interações infantis fazendo experimentos e montando peças de carro na oficina doméstica foram recorrentes. O que mais se destaca entre os três entrevistados é que, ao contrário das professoras, todos iniciaram a docência no término do ensino médio – como monitor, professor substituto ou de aula de reforço – a convite das próprias escolas. O relato de Mario, 29 anos, que atua há 10 anos na rede de ensino é um bom exemplo dessa situação:

Eu sempre fui curioso, desde pequeno. Meu pai é serralheiro, então, desde pequeno você começa a fazer gambiarra, pega um motor, solda isso e aquilo, faz um robozinho, então, você tem sempre aquela curiosidade. Como meu pai era um cara que também mexia com som, tinha carro de som, então, a gente aprendeu muito a parte de elétrica, potência, gerador. Eu sempre vivi nesse meio, sempre fui curioso e, obviamente, nas disciplinas de Física, enquanto aluno, eu sempre me destacava porque era o que eu gostava. Eu procurava entender como as coisas funcionavam. Então, eu já fui sempre nesse caminho. [...] Eu sempre gostei de ciência, eu já era professor de música, dava aula de violão, depois passei a ser catequista. Catequista já é um professor, só não tem o diário de classe, mas é um professor. Como eu ia bem nas exatas, assim que eu concluí o ensino médio, os professores me chamaram para ser substituto aqui. Então, eu fui iniciado a ser professor antes mesmo de entrar na graduação (MARIO, 2017).

Pesquisas sobre relações de gênero e ciência têm sinalizado, recorrentemente, que as trajetórias das mulheres são marcadas por barreiras que impedem ou diminuem seu interesse, realização e persistência na área de Física (DASGUPTA; STOUT, 2014). Expectativas da família em relação às filhas; estilos de relação com os pares; sensação de deslocamento ao frequentar salas de aulas com maioria masculina; estereótipos generificados das ciências e tecnologia; vieses de gênero na contratação para empregos; avaliações tendenciosas de trabalhos acadêmicos e responsabilidades familiares estão entre os principais obstáculos. Esse processo de exclusão foi denominado por Lima (2013) de labirinto de cristal porque, apesar das barreiras ao avanço serem concretas, ao se constituírem a partir de critérios culturais amplamente naturalizados, tornam-se praticamente invisíveis.

Por causa desses obstáculos invisíveis, inclusive, as mulheres são mais suscetíveis ao sexismo automático (SEGATO, 2003), um tipo de violência moral sutil, de especificidade difusa e difícil representação que, por ser legitimada pelas tradições da sociedade, esquiva-se à formalidade da lei. São atos tecidos no imaginário social que excluem as mulheres de determinados campos, ou, no máximo, permite sua inclusão subalterna. Como enfatiza Lima (2013), esse conceito se refere a uma presença controlada, ofuscada por limitações que impedem seu reconhecimento pelos pares e até por si mesmas. Alice, 33 anos, fala muito naturalmente sobre alguns “mal-entendidos” que, às vezes, percebe. José, 23 anos, professor da rede pública há quatro anos, também faz um comentário significativo:

Quando eu vou me apresentar em sala de aula, não sei se porque eu tenho um sotaque, eles pensam que eu sou professora de português. Aí quando eu digo sou professora de matemática ou sou professora de Física, eles ficam assim olhando, como se dissessem: será que sabe? (ALICE, 2017).

[...]

Quando é uma mulher que está falando, se diz: vamos analisar esse trabalho aqui para ver se tem coerência. Se for homem, já passa aquela imagem de cientista mesmo, tipo respeitável. Eu sei que é completamente ridículo, porque não tem nada a ver uma coisa com a outra, mas, você ainda encontra (JOSÉ, 2017).

No movimento de traduzir as experiências de gênero na docência em Física, os professores e professoras desenvolveram, recorrentemente, narrativas em torno de metodologias de ensino e performances didáticas que nomearam como masculinas ou femininas.

As professoras, geralmente, demonstram uma atenção ou uma aproximação maior do aluno. São mais atentas, mais detalhistas nas suas abordagens teóricas (JORGE, 2017).

[...]

Se formos pensar, por exemplo, nas metodologias de ensino, a mulher, no geral, é mais detalhista que o homem. A mulher volta inúmeras vezes para explicar, eu mesma sempre pergunto se meus alunos entenderam e sempre vejo se consigo atendê-los (ALICE, 2017).

Para além de reiterar os estereótipos de gênero, articula-se a esse eco uma interdiscursividade (MAINGUENEAU, 2008; OLIVEIRA, 2018) que revela o complexo processo de significar a docência. Nos cursos de licenciatura em Física, por muito tempo, a didática ocupou um lugar de pouco prestígio, herança da cultura hierárquica entre as ciências hard e soft, como já abordamos anteriormente. Atualmente, entretanto, o interesse nesse campo é crescente como alternativa para a superação dos históricos índices de evasão de estudantes (mulheres e homens) na graduação que, consequentemente, repercute na escassez de docentes para a educação básica. Pesquisas sobre o tema (RIBEIRO, 2015; KUSSUDA, 2017) destacam que entre os principais fatores de evasão está a precariedade das metodologias de ensino e das estratégias de avaliação da aprendizagem. Significantes como “metodologias ativas” e “práticas dialógicas” são recorrentes nas recentes reformas curriculares das licenciaturas, nas formações continuadas, no Programa de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e em congressos sobre ensino de Física. Geralmente, inclusive, reforçando uma perspectiva da didática que renuncia seu potencial criador, em prol de uma abordagem excessivamente tecnicista e da prescrição de modos universais de agir (COSTA; LOPES, 2018; AQUINO, CORAZZA; ADÓ, 2018).

Porém, mesmo com ênfases equivocadas, a valorização de tais metodologias sinalizam a emergência de um discurso – de cooperação entre pares, estímulo ao debate, valorização da ação e fragilização da relação de hierarquia entre docentes e estudantes – que tensiona os sentidos de ciência masculina tradicionalmente atrelados à Física: imparcialidade, competitividade, domínio e racionalidade. Outro aspecto que nos dá indícios mais específicos desse processo é que os poucos estudos sobre ensino de Física e masculinidades realizados no Brasil (JULIO; VAZ, 2009) têm dedicado uma atenção significativa à análise de abordagens didáticas e práticas pedagógicas que contribuam para a construção do que denominam de “masculinidades alternativas” – aquelas que seriam fundamentadas no diálogo e em relações igualitárias. Ainda que conservem uma forte identidade instrumental e teleológica, esses projetos revelam modos de produção da atuação docente na Física que não se restringem ao horizonte habitual de normalização. Até que ponto novos padrões e enquadramentos serão realmente gerados, todavia, somente pesquisas futuras nos dirão.

É importante destacar, igualmente, que as experiências de gênero são sempre atravessadas por outros marcadores sociais de diferença – sexualidade, classe social, cor, raça, etnia, território, religião, geração etc. – que se entrecruzam gerando diversas posições de sujeito e dinâmicas de subjetivação (BRAH, 2006). Os significantes “homem” e “mulher”, portanto, não podem ser tomados como conceitos abstratos, fixos e em oposição. Eles não se estabelecem “[...] por um único investimento de sentido, ou uma única agência; não envolvem implicações unívocas; não se esgotam na pura facticidade dos acontecimentos encadeados que permitem narrar-lhes um certo desdobramento no tempo e no espaço” (BURITY, 2008, p. 66). Seus significados estão implicados numa teia de articulações entre diversos eixos de diferenciação e, portando, delineiam formas variáveis de feminilidade e de masculinidade. Articulação, nesse sentido, não é a simples adição de elementos de dominação onde um pode se sobressair sobre os demais, nem implica, exclusivamente, no fortalecimento da opressão sobre os sujeitos. É uma prática que transforma as configurações relacionais de forma que o significado atribuído a determinado acontecimento se modifica (LACLAU; MOUFFE, 2015).

Dessa forma, não é suficiente afirmar que a Física é uma ciência masculinizada, se assim fosse, todas as experiências de masculinidade seriam bem acolhidas por ela, o que não é verdade. Segundo estudos desenvolvidos nos últimos anos (AMERICAN PHISYCAL SOCIETY, 2016; SOCIEDADE BRASILEIRA DE FÍSICA, 2019), um percentual significativo de físicos e Físicas LGBT se diz desconfortável em seus ambientes de trabalho devido à sua orientação sexual. Muitos desses locais, inclusive, possuem normas que impedem a livre expressão. A pouca visibilidade de pessoas LGBT e a ausência de uma rede de apoio na área tem gerado sentimento de isolamento e situações de discriminação. Na pesquisa da American Phisycal Society (2016), mais de 40% das pessoas entrevistadas relataram ter vivido situações de exclusão social em função da identidade de gênero e/ou da orientação sexual e esses números foram maiores entre respondentes transgêneros.

Os fatos relatados englobavam: assédio sexual, assédio verbal, comentários homofóbicos, identificação errônea proposital de gênero, exclusão dos estudos em grupo e atividades sociais, estereótipos LGBT e expectativas de incompetência. Entre as mulheres LGBT a referência à exclusão social foi três vezes maior que entre os homens LGBT e, também, foram descritas situações específicas de discriminação e exclusão entre pessoas LGBT negras. No survey realizado no Brasil (SOCIEDADE BRASILEIRA DE FÍSICA, 2019), um índice alto de pessoas disse já ter presenciado ou ouvido falar de discriminação de colegas no ambiente de estudo ou de trabalho em função do gênero, orientação sexual, raça, etnia, nível sócio econômico, origem geográfica e religião. Não são apenas as mulheres ou uma única expressão de feminilidade, portanto, que trilha os intricados percursos do labirinto de cristal. Na medida que marcadores sociais de diferença se enlaçam, distintas divisões, passagens e obstáculos culturais são dispostos no tortuoso caminho, que apesar de sua dureza e rigidez, por se ancorar em parâmetros culturais naturalizados, é invisível para a maioria das pessoas.

O silêncio em relação a masculinidades e feminilidades LGBT também emergiu entre os professores e professoras que entrevistamos. Todos e todas afirmaram não conhecer qualquer docente LGBT na Física e disseram ser a primeira vez que refletiam sobre o tema, até então, associado apenas às disciplinas de sociologia e ética. Desenvolveram narrativas tensas sobre situações escolares hipotéticas onde LGBTs faziam parte do corpo docente. Em meio a esse processo de produção de sentidos, dois aspectos se destacam: a descorporificação da atividade docente e a emergência da categoria “respeito” como critério para a atuação em sala de aula.

Eu acho que uma professora mulher, um professor homem, um professor homossexual, uma professora homossexual, travesti, transexual, vai ter a mesma função que é ensinar, não vai divergir nada. Mas, as vezes ela vai ter que lidar com preconceito, com piadinhas, alguma coisa que possa surgir porque a gente sabe que vai acontecer. Pode ser até uma professora mulher ou um professor homem, todos têm que estar preparados para lidar com isso como profissional e como educador (MARIO, 2017).

[...]

O desafio deles é independente, porque hoje em dia também está mais aberto. Se ele não demonstrar para os alunos o lado homossexual dele, levar assim como o pessoal leva sempre na brincadeira, aí é diferente, está entendendo o que eu estou dizendo? Se ele se pôr o respeito, ele vai ser um professor normal (CRISTINA, 2017).

A descorporificação da atividade docente se evidencia na recusa em perceber os obstáculos específicos que o gênero e a sexualidade impõem à experiência. Nas duas narrativas, a negação das diferenças associa-se ao discurso meritocrático: é a capacidade de ensinar que conta, nenhum aspecto adicional influencia a não ser que o/a docente não seja capaz de controlar varáveis estranhas à sala de aula, como por exemplo, demonstrar que é homossexual. Como enfatiza bel hooks (2001), professoras e professores são formados pela filosofia cartesiana para entrarem em sala de aula como espíritos descorporificados. A cultura racionalista suspeita do corpo e fundamenta uma série de tecnologias educacionais para seu controle e disciplina. A identidade docente, portanto, é reconhecida mediante a (não)aparência de corpo esperada. A incorporação dessa (não)aparência possibilita que a vida goze do privilégio da legitimidade, autoridade e respeito. Como diz Cristina, “[...] se ele se pôr o respeito, ele vai ser um professor normal”.

A densidade dos corpos e o direito de aparecer

O privilégio de ser normal é para aqueles e aquelas que se enquadram em marcos epistemológicos que qualificam o que é uma vida e, nesse sentido, ninguém escapa da interpretação política. O ser do corpo é dependente de normas, de organizações sociais e ações que se desenvolvem em espaços-tempos específicos com o objetivo de maximizar para alguns e minimizar para outros a precariedade da vida (BUTLER, 2010). As experiências de gênero na docência, portanto, se constroem mediante a reiteração normativa, porém, esse processo não atua de forma determinista.

Os planos normativos são reciprocamente interrompidos entre si, feitos e desfeitos de acordo com operações de poder mais amplas e, muitas vezes, se deparam com versões espectrais do que afirmam saber [...] cada uma das construções da vida leva tempo para fazer seu trabalho e nenhum trabalho que é feito pode superar o tempo (BUTLER, 2010, p. 17).

As normas de reconhecimento mudam, portanto, em função de condições de reconhecibilidade que são historicamente articuladas, proporcionando que determinados sujeitos ou grupos sejam reconhecidos. Enquanto o reconhecimento na docência em Física ainda requer um enquadramento em performances cisheronormativas, parece que as regras de reconhecibilidade de vidas LGBT no cotidiano da escola está mudando. Todos/as se referiram a essas mudanças e aos seus próprios processos de elaboração fazendo menção ao acolhimento de crianças e adolescentes provenientes de famílias homoparentais, incentivado nas escolas públicas em Pernambuco.

As escolas, hoje em dia, não têm mais dia dos pais, dia das mães. Escola pública não tem mais. A sociedade ainda se assusta um pouco, não se acostumou com essa situação (CRISTINA, 2017).

[...]

Hoje as escolas estão mudando. Por mais que a gente veja em mídias, ainda é uma novidade no meio escolar você estudar com um aluno que tenha dois pais ou tenha duas mães. Acho que daqui a uns anos não irá ser ou não deverá ser, já não deveria. Por isso, a escola e a coordenação devem conduzir esse tipo de conversa com os demais alunos (SUZANA, 2017).

[...]

Para mim é estranho, não é uma coisa comum [...] causa um certo estranhamento inicialmente, mas quando você analisa com calma, aí você vê que aquilo não é nada, que isso é só resquício da sua construção machista (ALICE, 2017).

Vários estudos (SANTOS; OLIVEIRA, 2019; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2018) têm enfatizado as implicações da agenda política brasileira em direitos humanos nos processos de deslocamento dos discursos curriculares sobre gênero e sexualidade. Essa pauta se expandiu na primeira década do século XXI e passou a englobar a educação formal, ampliando sua significação. Em consonância com esse movimento, um novo regime de sexualidade, fundamentado na ideia de direitos sexuais como parte dos direitos humanos, desafiou fortemente os sentidos dos currículos escolares, alterando os próprios termos da legitimidade simbólica. Apesar do fortalecimento dos movimentos conservadores e a sua nefasta atuação no debate educacional recente, a agenda de direitos humanos continua mantendo seu espaço em vários contextos estaduais e municipais, inclusive no âmbito da Secretaria de Educação de Pernambuco e continua tensionando processos de significação nos/dos currículos.

Na Física, o trabalho recente de grupos de mulheres e pessoas LGBT revela que os rastros homogeneizadores dos cânones científicos que atuam para reduzir a potência de vida de estudantes e docentes não dão conta de suprimir suas existências. Desde 2002, a International Union of Pure and Applied Physics (IUPAP) promove conferências internacionais que reúnem mulheres de mais de 65 países. Um local de inscrição do feminino na escritura da Física foi oficializado e, nas pegadas da estatística, elas têm contado o passado e o presente, computam experiências bem sucedidas e obstáculos centenários que aparentam não ter fim. A partilha constrói redes e potencializa sonhos que produzem ações em diferentes partes do globo.

Várias iniciativas com vistas ao incentivo de pesquisas e desenvolvimento de políticas de equidade de gênero nas áreas de ciências e engenharias foram implementadas (PORTER; IVIE, 2019). O “Grupo de trabalho sobre relações de gênero da Sociedade Brasileira de Física (SBF)” foi instituído em 2003 e, desde então, tem desenvolvido eventos científicos, resoluções e publicações sobre o tema. A extinta Secretaria de Política para as Mulheres (SPM) também desenvolveu ações nessa direção, entre os anos de 2005 e 2016. Destaca-se o programa “Mulher e ciência”, que fomentou pesquisas e seminários e o “Meninas e jovens fazendo ciências exatas, tecnologias e computação”, que teve como objetivo despertar o interesse das estudantes do ensino médio por essas profissões e diminuir a evasão nos primeiros anos da graduação. Com o processo de interiorização das IFES, o Agreste de Pernambuco passou a contar com três universidades públicas que além de ofertarem o curso de licenciatura em Física, possuem núcleos de estudos de gênero e sexualidade e programas de pós-graduação onde se desenvolve pesquisas sobre o tema, inclusive esta. A aproximação entre academia, escola e comunidade tem se fortalecido na região e algumas professoras graduadas nesses cursos começam a atuar na rede de ensino, efetivando o que José (2017) chama a atenção em sua entrevista: “[...] é importante divulgar a imagem de cientista como mulher. Sempre se divulgou a imagem do homem. É importante dar essa quebra, porque as pessoas não percebem que aquilo é um mundo possível para elas”.

Entre os físicos e Físicas LGBT, se observa um movimento semelhante, porém, mais embrionário. A American Physical Society – APS publicou, em 2016, um relatório do comitê de questões LGBT com o resultado de um survey realizado na associação e uma série de recomendações, dentre as quais: a garantia de ambiente inclusivo nas reuniões; a implementação de estratégias que proporcionem o registro da alteração dos nomes das pessoas transgêneras nos periódicos; a promoção de práticas inclusivas na academia, laboratórios e indústria; e o apoio à criação do “Fórum de Diversidade e Inclusão”.

A adesão a esses grupos envolve a construção de redes de solidariedade, intensos vínculos afetivos, a mobilização de processos identificatórios que assumem centralidade na ressignificação da vida e, acima de tudo, significa o exercício do direito de aparecer,

[...] um direito que afirma e instaura o corpo no meio do campo político e que em sua função expressiva e significativa, transmite uma exigência corpórea por um conjunto mais suportável de condições econômicas, sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas de condição precária (BUTLER, 2018, p. 17).

Nesse sentido, os próprios processos de expansão das vagas, democratização do acesso e interiorização das universidades públicas e cursos superiores, ocorridos principalmente entre os anos de 2003 e 2011, no Brasil, representaram uma oportunidade sem precedentes para promover uma aproximação consistente e fomentar um entranhamento necessário entre a produção acadêmica e científica no país – historicamente estabelecida como um reduto das elites, uma torre inacessível ao alcance da grande maioria da população – e a vida cotidiana das famílias, comunidades locais, escolas, docentes, estudantes e futuras profissionais, inclusive do ensino básico e superior.

Considerações Finais

Ao longo desse artigo, nos aproximamos de acontecimentos recentes e passados na tentativa de compreender as lógicas que gestaram e tem sustentado o discurso que a Física é uma ciência masculina. Nesse percurso interrogativo, ressaltamos o papel da tradição positivista e do serviço militar na constituição discursiva da Física enquanto “ciência dura”, colocando-a no topo da hierarquia entre outras áreas do conhecimento e delimitando-a como campo inapropriado para o feminino (SCHIEBINGER, 2001). Destacamos os obstáculos culturalmente constituídos no percurso formativo e laboral das mulheres que ousaram ingressar nesse campo do conhecimento (LIMA, 2013) e ressaltamos que as experiências de gênero são sempre atravessadas por diversos marcadores sociais de diferença que se interseccionam produzindo distintas dinâmicas de subjetivação (BRAH, 2006). Analisamos a emergência de práticas de contestação da hegemonia masculina na Física, chamando a atenção para a realização de eventos, pesquisas e a implementação de políticas de equidade de gênero na área, especialmente aquelas relacionadas à aproximação entre academia e comunidade.

A constituição de comunidades acadêmicas e científicas locais, ao alcance dos olhos e do horizonte de possibilidades, cria condições para que a ciência seja cada vez mais percebida e reconhecida em sua dimensão humana, povoada por corpos vivos e expressivos, com os quais é possível se relacionar e se identificar. Conhecer, ter contato e construir relações significativas com outras mulheres e pessoas LGBT que estudam, ensinam e pesquisam na área de Física e em outras ciências consideradas duras torna-se, desse modo, um caminho viável para potencializar estratégias de questionamento e confrontação dos mecanismos de exclusão e controle das performances de gênero e sexualidade.

Como alternativa à clássica leitura essencialista das figuras do “Sertão” e da “pedra de nascença” na poesia de João Cabral de Melo Neto que serve de epígrafe a este texto, se assumirmos a pedra que “entranha a alma” não como traço de um caráter essencial, mas, de forma irônica, como figura da abertura implacável à experiência, enquanto dinâmica de produção de sentidos e de constituição subjetiva, talvez possamos referendar a proposição de que “no Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse, não ensinaria nada”. E, então, afirmar que é necessário despertar e mobilizar o sentido das pedras que entranham a alma para enfrentar as paredes dos labirintos de cristal que continuam a ser erguidas e posicionadas no caminho das novas gerações.

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Recebido: 10 de Setembro de 2020; Aceito: 24 de Setembro de 2020

Profa. Dra. Anna Luiza Martins de Oliveira

Universidade Federal de Pernambuco (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Grupo de Pesquisa “Discurso, subjetividade e educação”

Orcid Id: https://orcid.org/0000-0002-0620-3322

E-mail: alarmo@uol.com.br

Prof. Dr. Ribbyson José de Farias Silva

Universidade Federal Rural de Pernambuco

Programa de Pós-Graduação em Ensino das Ciências

Grupo de Pesquisa “Discurso, subjetividade e educação”

Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9938-2456

E-mail: ribbyson@gmail.com

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