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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.59 Natal jan./mar 2021  Epub 18-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n59id23046 

Artigo

No recreio: notas etnográficas sobre o adestramento do corpo e os construtos de gênero

At class break: ethnographic notes on body training and gender constructs

En el recreo: notas etnográficas sobre el adiestramiento del cuerpo y las construcciones de género

1Universidade Católica de Petrópolis (Brasil)


Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre um rito escolar no qual os corpos (in)dóceis de meninas e meninos podem, supostamente, se expressar com mais liberdade: o recreio. O que é o recreio, esse intervalo mágico, barulhento e alvoroçado que rompe momentaneamente um continuum feito de prescrições e proscrições? A partir de um olhar etnográfico (OLIVEIRA, 2000; GEERTZ, 1989) em uma escola municipal de Petrópolis/RJ, percebemos que o recreio também é feito de regras, nem sempre explícitas, que separam, classificam e hierarquizam, concorrendo para o trabalho incessante de adestramento dos corpos. Os jogos e brincadeiras que nele ocorrem são generificados, assim como os espaços nos quais se desenrolam. Da quadra ao pátio, a sanção normalizadora recai de formas distintas sobre os corpos de meninas e meninos, segundo o gênero da transgressão e as transgressões de gênero. Entretanto, apesar da vigilância, as crianças resistem, desviam, inventam: tensionam e deslocam as fronteiras de gênero em seus jogos, testando, de forma lúdica, outras formas de ser e de estar no mundo.

Palavras-chave: Escola; Corpo; Gênero; Recreio

Abstract

This article proposes a reflection on a school rite in which the (un)docile bodies of girls and boys, supposedly, can express themselves with more freedom: class break. What is the class break, that magical, noisy and bustling interval that momentarily breaks a continuum of prescriptions and proscriptions? From an ethnographic view (OLIVEIRA, 2000; GEERTZ, 1989) at a municipal school in Petrópolis/RJ, we realize that class break is also made up of rules, not always explicit, that separate, classify and rank, and contribute to the incessant work of bodies training. The games and plays that take place during it are generified, as are the spaces in which they take place. From the court to the courtyard, the normalizing sanction falls in different ways on the bodies of girls and boys, according to the gender of the transgression and the transgressions of gender. However, despite constant vigilance, children resist, deviate, and invent: they tension and displace gender boundaries in their games, playfully testing other ways of being and staying in the world.

Keywords: School; Body; Gender; Class break

Resumen

Este artículo propone una reflexión sobre un rito escolar en el cual los cuerpos (in)dóciles de niñas y niños pueden, supuestamente, expresarse con más libertad: el recreo. ¿Qué es el recreo, ese intervalo mágico, ruidoso y alborozado que rompe momentáneamente un continuum hecho de prescripciones y proscripciones? Desde una perspectiva etnográfica (OLIVEIRA, 2000; GEERTZ, 1989) en una escuela municipal de Petrópolis/RJ, percibimos que el recreo también se compone de reglas, no siempre explícitas, que separan, clasifican y jerarquizan, contribuyendo para el trabajo incesante de adiestramiento de los cuerpos. Los juegos que tienen lugar en él son generificados, al igual que los espacios donde ocurren. Desde la cancha hasta el patio, la sanción normalizadora recae de diferentes maneras en los cuerpos de niñas y niños, según el género de la transgresión y las transgresiones de género. Sin embargo, a pesar de la vigilancia, los niños resisten, se desvían, inventan: tensionan y desplazan los límites de género en sus juegos, probando, de manera lúdica, otras formas de ser y estar en el mundo.

Palabras clave: Escuela; Cuerpo; Género; Recreo

Introdução

Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. Michel Foucault

Em um artigo anterior analisamos os mecanismos invisíveis da construção hierárquica da diferença masculino/feminino em uma escola pública da rede municipal de Petrópolis, estado do Rio de Janeiro, buscando compreender de que forma a escola (re)produz os construtos e relações de gênero (WEBER; BREDER, 2020). A partir de um olhar etnográfico – isto é, “teoricamente informado” e que compreende a etnografia como uma “descrição densa” de relações sociais e simbólicas que se manifestam em discursos e práticas sociais (OLIVEIRA, 2000; GEERTZ, 1989) – foi possível perceber o processo de (re)produção dos construtos de gênero na escola por meio da constituição simbólica de seus espaços e de seus usos sociais; de seus ritos cotidianos, com suas prescrições e proscrições; da divisão sexual do trabalho entre funcionários e docente; e, não menos importante, através dos discursos e práticas pedagógicas.

Defendemos, na ocasião, a necessidade de analisar esses mecanismos simbólicos de construção da diferença na escola, posto que essas diferenças são traduzidas, socialmente, em desigualdades que incidem nas trajetórias escolares de alunas e alunos. Se o gênero é a forma por excelência de significar as relações de poder, como ressalta Scott (1995), e se o sistema escolar é o lócus por excelência da reprodução das categorias de construção da diferença, como defende Bourdieu (2002), precisamos problematizar o modo como (re)produzimos essas relações na escola.

Gostaríamos agora, neste artigo, de voltar nossa atenção para um dos ritos escolares no qual os corpos (in)dóceis de meninas e meninos podem, supostamente, expressar-se com mais liberdade: o recreio. Desde Vigiar e Punir sabemos que o poder disciplinar é exercido na escola por meio do quadriculamento do espaço, do controle do tempo, do exame, punição e vigilância constantes, entre outras técnicas disciplinares (FOUCAULT, 2014). Se já não nos admiramos de que as escolas se pareçam com as prisões, e estas com as fábricas e os quartéis na formação de corpos dóceis politicamente e produtivos economicamente, o mesmo não pode ser dito, entretanto, quando examinamos mais detidamente – ou melhor, quando “estranhamos” – essas técnicas disciplinares que incidem sobre os corpos no recreio.

Por “estranhamento” compreendemos o processo de tentar apreender o que escapa à nossa percepção em nossos discursos e práticas sociais. Segundo a célebre fórmula de DaMatta (1978), ao etnógrafo cabe uma dupla tarefa: tornar “familiar o exótico” – quando este se debruça sobre universos sociais distintos do seu “exótico o familiar” – quando, inversamente, se propõe estudar seu próprio universo social.

É com a segunda tarefa que nos identificamos: como pesquisadoras e professoras com experiência no ensino fundamental, propusemo-nos “estranhar” esse universo que nos é tão familiar – a escola. Tarefa por vezes penosa, no decorrer da qual o que nos parecia tão próximo foi se tornando, de certa forma, distante: à medida que íamos observando e tentando compreender as relações sociais e simbólicas que constituíam a escola, e nela nos constituíam, parecia que não mais a reconhecíamos nem nos reconhecíamos nela. Com efeito, o exercício constante da reflexividade para tentar, como diz Bourdieu (2002), perceber o que está no mais profundo e mais profundamente inconsciente da nossa experiência ordinária, provoca, inevitavelmente, um deslocamento do olhar. Dada a nossa dupla posição no campo, podemos dizer que, se como pesquisadoras, esse deslocamento foi fundamental para a “descrição densa” daquilo que não percebíamos em nossa experiência cotidiana, como professoras, contudo, não deixou de ser incômodo perceber, em nossas próprias práticas pedagógicas, essa espécie de aderência (mais ou menos) cega à “ordem do mundo” na escola.

O que é o recreio, esse intervalo mágico, barulhento e alvoroçado que rompe momentaneamente um continuum feito de prescrições e proscrições? O que acontece no recreio, por trás do aparente caos, do movimento frenético dos corpos e da algazarra?

Apresentamos, a seguir, mais algumas notas etnográficas resultado da pesquisa que desenvolvemos entre fevereiro de 2017 e junho de 2018 em uma escola pública situada na zona rural de Petrópolis, região serrana do estado do Rio de Janeiro. Assim como fizemos em relação a outros espaços e ritos escolares, passamos semanas convivendo com nossos interlocutores durante o recreio, observando suas brincadeiras, jogos, correria, gritos, brigas, discussões, risadas...

O trabalho etnográfico, como pondera Gerber (2013), requer uma presença “intensiva e repetitiva” em campo, pois é na repetição da observação e do convívio com nossos interlocutores que vamos apreendendo o sentido das ações mais corriqueiras – o que faculta a irrupção do inesperado: “É repetir a observação, repetir a convivência, repetir momentos como se nada fosse acontecer e, de repente, tudo acontece” (GERBER, 2013, p. 55).

Foi justamente essa repetição da observação durante o recreio – com crianças do primeiro segmento do ensino fundamental, entre 6 e 11 anos, distribuídas em 5 turmas com aproximadamente 25 alunos cada – que nos permitiu perceber, sob as técnicas disciplinares para o adestramento indiferenciado dos corpos, a constituição do que Bourdieu (2003) chamaria de “habitus sexuado”. Para o autor, é por meio do adestramento dos corpos na escola, do trabalho incessante de transformação desses corpos, através de “injunções explícitas” e “efeitos de sugestão mimética”, que são inculcadas as disposições mais fundamentais, da hexis corporal aos esquemas inconscientes de percepção, apreciação, pensamento e ação (BOURDIEU, 2003).

Organizando o “caos”

Entre o verde das montanhas, isolada em um vilarejo, destaca-se na paisagem a escola onde realizamos a pesquisa. A localidade onde está situada fica na zona rural, a pouco mais de quarenta quilômetros do centro histórico de Petrópolis. A principal via de acesso é pavimentada e as secundárias ainda se mantém em terra batida, o que impede que alguns alunos cheguem à escola em dias de chuva. Pertencente à rede municipal, a escola oferece o primeiro e o segundo segmento do ensino fundamental para aproximadamente 380 alunos.

A sua área externa é vasta e mais parece fazer parte de um sítio. O pátio, descoberto e enorme, com grama necessitando de poda, abriga árvores com galhos altos onde alguns alunos se escondem para escapar das aulas. Já as manilhas danificadas servem como refúgio para os alunos pequenos, que brincam de se esconder. Não há lixeiras e, no final do dia, o pátio fica coberto com pacotes de biscoito vazios. A quadra, embora em condições precárias – sem uma das tabelas de basquete, traves sem redes e a tela de proteção danificada –, é o centro das brincadeiras para a maioria dos meninos, servindo também como espaço para campeonatos e atividades culturais como festas juninas e gincanas. Na parte ribeirinha do rio, no final do terreno, há uma horta com cana de açúcar, aipim e chuchu. Mantida por um senhor idoso, sem vínculo empregatício com a escola, ele invariavelmente reclama dos alunos “desordeiros” que arrancam o chuchu fora do tempo: “Vou parar de cuidar”.

Nesse cenário bucólico, que remete ao sentimento de liberdade pela vastidão de seus espaços, revelam-se, contudo, práticas pedagógicas que controlam e disciplinam os corpos de meninas e meninos no recreio, tolhendo, não raro, seu potencial criativo e lúdico.

Com efeito, assim como nas demais atividades escolares, o recreio também tem suas regras, explícitas e implícitas, que separam, classificam, hierarquizam. Quando toca a sineta, prenúncio da algazarra, os alunos saem da sala de aula em fila dupla – uma para meninos e outra para meninas – e seguem para o pátio conduzidos pelas professoras. Nesse momento, já começam as recomendações, em voz alta, para manterem-se ordenados. Percebemos que os meninos saem da fila com mais frequência, movimentando-se mais que as meninas, empurrando os colegas. Uma professora adverte para que não corram, gritem ou pulem, sob pena de serem punidos: “Se continuarem correndo, vão ficar de castigo e amanhã não tem recreio”.

Os professores explicam que “organizam” o recreio para que não vire um “caos”. Baseados na percepção de que a indisciplina é caracterizada por crianças correndo, pulando, gritando, dançando ou cantando – ou seja, pela expressão livre dos corpos –, permanecem durante o recreio controlando as brincadeiras, músicas e jogos, e admoestando os mais afoitos. São ajudados nessa tarefa de vigiar e punir por dois inspetores de sexos diferentes: a inspetora responsável pelo pátio vigiando as meninas, e o inspetor responsável pela quadra vigiando os meninos. Uma “perpétua pirâmide de olhares”, como dizia Foucault (1979, p. 106), para disciplinar os corpinhos que, correndo barulhentos pela quadra e pelo pátio, resistem a se tornarem dóceis.

O recreio parece constituir um momento um tanto inquietante para professores e inspetores, no qual os alunos “ficam soltos demais!”, como nos explicaria a professora Lena. Para evitar o perigo sempre iminente de “caos”, prevenindo tumultos no pátio e na quadra, nas rampas e corredores, nos banheiros e bebedouros, as turmas foram escalonadas, reservando-se 20 minutos de recreio para cada uma, separadamente – impedindo, assim, a interação entre alunos de diferentes turmas. Outra forma de transformar “multidões confusas” em “multiplicidade organizada” pelo adestramento dos corpos no espaço, pois, como lembra Foucault (1979, p. 106), a disciplina é, sobretudo, a “[...] individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório”.

Mas nessa “arte das distribuições” não basta separar as turmas para evitar tumulto nas rampas, banheiros e corredores: o tempo também precisa ser meticulosamente controlado. Uma forma de “[...] constituir um tempo integralmente útil [...]” (FOUCAULT, 2014, p. 148) no recreio, percebido pelos professores, de certo modo, como o intervalo durante o qual o aluno deve merendar, ir ao banheiro e, se der tempo, brincar.

Um tempo, por outro lado, experimentado como insuficiente pelas crianças, que encontram inúmeras formas de atrasar o retorno à sala de aula. “Acabou de vir do recreio e já quer ir ao banheiro? O que você ficou fazendo no recreio?”, questiona uma professora, respondendo ao pedido de um aluno para ir ao banheiro assim que termina o recreio.

Essa vigilância constante para organizar o “caos” manifesta-se no recreio por meio de regras, nem sempre explícitas, que separam, classificam, hierarquizam:

Comumente, a instituição exerce um controle sobre as crianças, ditando por onde elas podem ou não circular. Esse controle estende-se até o recreio. Nesses espaços (tanto escola quanto recreio), as crianças ‘não são livres’ quanto poderíamos acreditar a partir de um olhar à distância. As crianças não brincam todas juntas, não fazem sempre o que querem, nem todas brincam em todos os espaços e, ainda, nem todas brincam do que gostariam (WENETZ; STIGGER, 2006, p. 73-74).

Com efeito, observamos que embora os meninos recebessem bola para jogar futebol, alguns preferiam jogar “malha” – um jogo muito comum na região, no qual são lançados discos de aço visando atingir tocos de madeira enfileirados a 15/18 metros de distância; outros preferiam brincar de “calango” – um jogo de rima parecido com o repente, no qual é comum o uso de palavras e expressões consideradas inapropriadas. Ambos são proibidos pela escola: a malha sob o argumento de que apresentava riscos para os alunos; o calango, por conta dos palavrões.

Fila, advertência, punição, tempo cronometrado...

O recreio, objeto de recompensa para os que se comportam bem durante a aula e negado aos que infringem as normas, tem seu tempo estritamente controlado. “Terminou o recreio!”, grita a professora cinco minutinhos antes do tempo estipulado, justificando o adiantamento: “Os alunos demoram a se organizar!”.

Já devidamente separados e enfileirados, meninos e meninas são orientados a tomar água e ir ao banheiro antes de retornarem às suas atividades, para que não necessitem mais sair da sala de aula.

Quadra/pátio: a construção simbólica do espaço e os construtos de gênero

Se a fila individualiza os corpos no espaço, designando cada aluno segundo sua turma, tamanho, comportamento e sexo, os jogos e brincadeiras que ocorrem durante o recreio reproduzem e, simultaneamente, tensionam os construtos de gênero. Observamos que na tentativa de organizar o “caos”, ao chegarem na área externa, os meninos recebiam bola para jogar e seguiam para a quadra, e as meninas recebiam corda, peteca e bambolê para brincarem no pátio. Entretanto, logo após o início da brincadeira, alguns meninos, que não gostavam de jogar bola, começavam a se arrastar pelo chão da quadra; outros, maiores, ficavam escondidos atrás dos troncos das árvores.

Ao contrário dos meninos, um grupo significativo de meninas costumava ficar mais próximo da professora, brincando ao seu redor. Algumas procuravam conversar com a professora, mas recebiam, não raro, respostas monossilábicas: “é”, “sei”; ou imperativas: “chega de conversa, vão brincar!”. Outras preferiam dançar, cantar e brincar de “maquiagem” – o que não lhes era permitido. Diferentemente dos meninos, as meninas eram instadas a ficar em fila para poder participar das brincadeiras selecionadas pelos professores. Aquelas que não queriam brincar ficavam mais afastadas, algumas dependuradas na tela da quadra assistindo ao jogo de futebol dos meninos.

Notamos que o fato de as meninas permanecerem próximas das professoras comprometia suas brincadeiras, inclusive impedindo-as de transgredir as normas escolares, explícitas e implícitas. Ao pedirem para colocar música para dançar, por exemplo, recebiam um “nem pensar, eu sei o que vocês querem dançar”, como resposta da professora, referindo-se ao funk – considerado um estilo musical moralmente impróprio por suas letras com alusões sexuais. Mas os corpos resistem, insistem: apesar da negativa, mesmo sem música, algumas meninas movimentavam o corpo como se estivessem dançando. Já os meninos, que também apreciavam funk, ficavam distantes da professora e, atrás dos troncos das árvores, conseguiam ouvir o que queriam no celular.

“Tão logo soava o sinal que dava início ao recreio, as crianças saíam da sala de aula e rapidamente se organizavam nos espaços que lhes eram definidos pela escola: o pátio para os meninos e a pracinha para as meninas” (WÜRDIG, 2010, p. 92). Na escola, a quadra e o pátio – ou o pátio e a pracinha, pois o que importa não são os termos em si, mas a sua oposição como operador da diferença – demarcam espaços simbólicos nos construtos de gênero, configurando uma espécie de “geografia do gênero”, segundo expressão de Wenetz, Stigger e Meyer (2013). A fala da professora Lena é exemplar a esse respeito:

No recreio, meus alunos brincam em vários grupos, mas sempre divididos entre meninos e meninas, as meninas têm mais uns dois subgrupos selecionados por afinidades e os meninos também, geralmente se unem os mais quietos, os mais bagunceiros, as mais nerds, e outras características que encontram entre eles [...]. Os meninos gostam muito de jogar bolinha de gude e jogar futebol, as meninas, por estarem se sentindo já ‘adolescentezinhas’, preferem ficar caminhando juntas pelo pátio, sentadinhas num canto conversando. Às vezes, trazem até revistas para ficar lendo, já os meninos são mais dinâmicos, andando, correndo, brincando mais (LENA, 2018).

Como nota Altmann (1999), diversas pesquisas, realizadas tanto no Brasil quanto no exterior, demonstram que os meninos ocupam espaços mais amplos nessa “geografia do gênero” – geralmente destinados aos esportes coletivos – e as meninas ficam restritas aos espaços menores. Segundo a autora, o esporte constituiria uma forma de socialização na qual os meninos exercitam os códigos do modelo hegemônico de masculinidade – “[...] uma masculinidade forte, violenta e vitoriosa” (ALTMANN, 1999, p. 157).

No entanto, conforme ressalta a própria autora, o fato de os meninos ocuparem espaços mais amplos, não significa, necessariamente, uma relação de dominação na qual as meninas, consideradas “passivas”, constituiriam o polo dominado:

Enfim, apesar de os meninos ocuparem espaços mais amplos do que as meninas na escola, não se pode afirmar que elas sejam dominadas por eles ou que a divisão do espaço se estabelece a partir de relações entre dominadores e dominadas, pois as meninas não são vítimas de imposições masculinas. Vitimá-las significaria coisificá-las, ‘aprisioná-las pelo poder’, desconsiderando suas possibilidades de resistência e também de exercício de dominação (ALTMANN, 1999, p. 170).

De fato, essa relação entre a construção simbólica do espaço e os construtos de gênero está sempre sujeita a muitas disputas e negociações entre as crianças no recreio. Conforme salientam diversos autores, as fronteiras de gênero são tensionadas por meninas e meninos, que testam e deslocam seus limites em jogos e brincadeiras (ALTMANN, 1999; CRUZ; CARVALHO, 2006; WENETZ; STIGGER, 2016). No decorrer da pesquisa, escutávamos frequentemente professores e inspetores advertindo alunas e alunos em voz alta: “já falei para não brincar perto dos meninos!”; ou “saiam daí, o lugar de vocês é na quadra!”. Repreendidas severamente por estarem em um lugar que supostamente não lhes cabia, as crianças resmungavam: “ih, tia!”; ou questionavam: “o que tem?!”; ou, ainda, se defendiam: “peraí tia, eu só vim falar uma coisa”.

“Falar uma coisa”... Reclamar, brincar, implicar, brigar... Inúmeras formas de “cruzar as fronteiras das divisões de gênero”, como notou Altmann (1999) em sua pesquisa, ressaltando que essa transgressão constituiria uma forma de resistência, especialmente para as meninas:

Meninas, ao cruzarem as fronteiras das divisões de gênero, resistiam ao domínio masculino do espaço na escola. Um menino urinando na beira da quadra de futebol durante o recreio demonstra o quanto a quadra de futebol era um espaço masculino. Por outro lado, se esta cena for imaginariamente associada a uma busca de demarcação de território, ela ilustra o empenho masculino na manutenção de seu domínio. Por sua vez, a necessidade de investir na manutenção de tal domínio era indício de sua fragilidade e da possibilidade de invasão daquele espaço (ALTMANN, 1999, p. 168).

Sob esse aspecto, um comportamento reiterado das meninas chamou nossa atenção: durante o jogo de futebol dos meninos, quando percebiam que a bola acidentalmente saía da quadra, partiam em sua direção e chutavam-na, aleatoriamente, ao invés de a devolverem. Essa atitude constituía claramente uma provocação – podendo ser compreendida tanto como um desafio em relação à monopolização do uso da quadra por eles, como também uma tentativa de aproximação, obrigando-os à interação pelo conflito.

Como observam Cruz e Carvalho (2006), as interações conflituosas entre meninas e meninos no recreio representam, com muita frequência, uma estratégia de aproximação, uma das únicas formas de estarem juntos em um contexto que reproduz os construtos de gênero em suas práticas e discursos:

A prática de aproximação baseada em relações conflituosas provinha de uma necessidade de as crianças re-equacionarem as relações de gênero no interior daquela cultura escolar. A aproximação parecia ser possível principalmente por meio do conflito ou dissimulada como conflito, devido ao pressuposto de uma oposição entre os sexos e à bi-polaridade entre os significados de gênero, tão marcantes em nossa sociedade. Azeite e vinagre, às vezes, queriam misturar-se, brincar juntos, fazer coisas que pareciam adequadas apenas para o outro, mas essas possibilidades deviam ser ativamente construídas e vinham carregadas de problemas, ambiguidades e desafios (CRUZ; CARVALHO, 2006, p. 142).

Conforme salientam as autoras, esses “jogos de gênero” incluem elementos lúdicos no conflito, constituindo uma das formas de sociabilidade nas relações de gênero na escola. Formas de sociabilidade nem sempre percebidas pelos professores, que tendem a ver esses conflitos unicamente como manifestações de violência.

Um fato curioso que chamou nossa atenção, sob esse aspecto, foi a discrepância entre a fala dos professores sobre essas interações nos jogos e brincadeiras e como estas se davam, efetivamente, na prática. Enquanto, na percepção dos professores, meninas e meninos gostavam de jogar queimada e pique-bandeira juntos, observamos que as crianças só jogavam juntas quando esses jogos eram dirigidos pelos professores. Na prática, nem queimado, nem pique-bandeira: o que percebemos, no recreio, foram meninas e meninos brincando juntos de pega-pega.

Resistências, transgressões, tensões... Apesar do adestramento dos corpos, da vigilância dos gestos e do controle dos comportamentos no recreio, percebemos que as crianças encontram inúmeras formas de resistência, mais ou menos veladas: invasão da quadra pelas meninas, rejeição de certas músicas propostas pelos professores, reivindicação de certos jogos proibidos pela escola em detrimento de outros, permitidos.

Da transgressão

Ao considerarmos essas diferentes formas de resistência, um fato chamou nossa atenção: a diferença no gênero da transgressão.

Com efeito, percebemos que os meninos costumavam transgredir mais do que as meninas as normas escolares. Desafiavam o lugar que deveriam ocupar no pátio e na fila; escondiam-se nas manilhas e nas árvores; ouviam músicas proibidas pela escola; questionavam e se defendiam veementemente quando advertidos pelos professores e demais funcionários.

Já as meninas, ao contrário, costumavam transgredir menos as normas escolares e mais as relações e construtos de gênero. Participavam de brincadeiras consideradas “masculinas”, como futebol e pega-pega; falavam “como meninos” abusando de palavrões, brigavam fisicamente entre si e com os meninos, dentre outros jogos que permitiam tensionar os modelos hegemônicos de feminilidade. Significativamente, não vimos os meninos participando com a mesma constância nas brincadeiras consideradas “femininas”, como casinha de boneca, por exemplo, o que sugere uma tolerância menor por parte da escola quando os construtos de gênero são tensionados pelos meninos.

De fato, observamos que quando eram as meninas que transgrediam as fronteiras de gênero, não recebiam um julgamento tão negativo quanto os meninos. Inversamente, quando as meninas transgrediam as normas escolares, costumavam ser repreendidas de forma mais severa do que os meninos, o que também sugere uma tolerância menor por parte da escola quando a indisciplina é, por assim dizer, declinada no feminino.

Em sua pesquisa, Altmann também notou que as meninas transgrediam menos as normas escolares do que os meninos, ressaltando, entretanto, que esse comportamento constituiria uma estratégia para alcançarem, por outras vias, o que queriam:

Enfim, o fato de meninas, de um modo geral, transgredirem menos as normas do que meninos e solicitarem mais a intervenção docente, não demonstra que sejam mais dependentes ou submissas que eles, mas que meninos e meninas lançam mão de estratégias distintas para conquistar o que desejam na escola: meninos usam a transgressão de normas, as meninas, a não-transgressão ou uma certa cumplicidade com a professora (ALTMANN, 1999, p. 166).

Aos considerarmos essas diferenças de gênero no próprio gênero da transgressão, duas questões se colocam. A primeira diz respeito à (re)produção pela escola dos modelos hegemônicos de masculinidades e feminilidades que conferem atributos e comportamentos distintos segundo o gênero: na escola, enquanto as meninas são percebidas pelos professores como mais “comportadas”, “caprichosas”, “interessadas”, os meninos são percebidos como mais “indisciplinados”, “descuidados”, “desinteressados” (CARVALHO, 2004; 2012). Esses modelos – expressos socialmente, na escola, por meio da aceitação/rejeição tácita de atributos e comportamentos para alunas e alunos – assentam na construção simbólica da diferença masculino/feminino.

Baseada na percepção sensível do mundo e das diferenças anatômicas do corpo sexuado, a construção simbólica da diferença masculino/feminino – esse “longo trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social”, como diz Bourdieu (2003, p. 9) – está inscrita histórica e culturalmente nos corpos, incorporada nos esquemas inconscientes de percepção, pensamento e ação:

A divisão entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas ‘sexuadas’), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação (BOURDIEU, 2003, p. 17)

Mas essa construção simbólica da diferença masculino/feminino – construção que se expressa das mais variadas formas segundo as diferentes épocas e culturas (HÉRITIER, 1996; LAQUEUR, 2001) – é assimétrica, pois opera por meio de uma série de oposições homólogas, como ativo/passivo, alto/baixo, forte/fraco, duro/mole etc., ancoradas na percepção sensível do mundo, cujos termos são diferentemente marcados e valorados (BOURDIEU, 2003, 1999). Com efeito, como descreve Preciado (2011) com muita argucia no Manifesto Contrassexual, “O processo de criação da diferença sexual é uma operação tecnológica de redução que consiste em separar determinadas partes da totalidade do corpo e isolá-las, transformando-as em significantes sexuais” (PRECIADO, 2011, p. 18). Em outras palavras, operando a partir da materialidade do corpo, de suas partes e humores, a construção da diferença masculino/feminino transforma o que são apenas diferenças anatômicas e fisiológicas em valores: obliteram-se semelhanças, ressaltam-se diferenças, ou vice-versa, transcrevendo simbolicamente diferença em assimetria. Assim, a diferença masculino/feminino é construída, também, como uma relação de hierarquia.

O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes. Esse programa social de percepção incorporada aplica-se a todas as coisas do mundo e, antes de tudo, ao próprio corpo, em sua realidade biológica: é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabaho, na realidade da ordem social. A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especialmente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho (BOURDIEU, 2003, p. 18 e 20).

Ou seja, a diferença masculino/feminino não é apenas construída simbolicamente a partir da percepção sensível do mundo e da materialidade do corpo, ela é construída, também, segundo uma visão androcêntrica que confere ao masculino uma posição hierarquicamente superior.

Essa é justamente a segunda questão que se coloca ao considerarmos essas diferenças de gênero no próprio gênero da transgressão. Por que, ao que parece, haveria uma tolerância menor por parte da escola quando os construtos de gênero são tensionados pelos meninos?

Arriscamos aqui, como hipótese, que tensionar as fronteiras de gênero no sentido masculino feminino traz embutido, simbolicamente, um valor mais negativo do que o movimento em sentido inverso. Que as meninas queiram fazer o que os meninos fazem é, até certo ponto, aceitável socialmente – podendo até ser compreendido como uma forma de resistência contra as desigualdades de gênero. Mas que os meninos queiram fazer o que as meninas fazem, é ressentido socialmente como um risco sempre iminente de “feminização”, ameaçando o valor simbólico atribuído ao masculino.

Às vezes, quando é uma brincadeira de futebol, há uma separação entre meninas e meninos, embora já tenham algumas meninas que gostem de jogar bola”, nos contaria a professora Clara, explicando que, de modo geral, as mães aceitavam que suas filhas jogassem futebol.

Então, às vezes, as mães falam: ‘menina parece um garoto jogando futebol’. Mas, eu não vejo que é assim, não acho que a menina necessariamente tenha que ter um traço mais masculino para praticar este esporte. Têm muitas meninas que são femininas e que gostam de jogar futebol também, por uma questão de preferência mesmo, de se identificarem com aquela brincadeira ou interagirem com os garotos (CLARA, 2018).

Entretanto, o fato de meninas pleitearem jogar futebol não parece tão problemático quanto o fato de meninos desejarem brincar de casinha e boneca. Ao descrever um menino brincando de casinha, por exemplo, a professora Lena explicou que ele fazia o “papel de pai”: “Às vezes tem até um garotinho brincando, que assume o papel de pai, mas, nessas coisas de casinha, observamos mais meninas [...]”. Ao tentarmos compreender o que seria o “papel de pai”, obtivemos a seguinte resposta:

Eles são, pela experiência que eu tenho, eles são assim, os que vão comprar alguma coisa, a gente observa nas brincadeiras, que pede pra comprar alguma coisa, ou que vai dirigir e levar em algum lugar, ainda tem essa coisa muito cristalizada mesmo na criança, ela repete esses modelos, do provedor, embora já não seja assim, mas na brincadeira, fica assim: a mãe com o serviço doméstico, a mãe dá banho, dá mamadeira na bonequinha e o pai aquele que vai comprar alguma coisa, que vai levar a escola. Embora a gente saiba que hoje em dia, isso, na prática, não acontece, mas nas brincadeiras ainda é reproduzido assim. Esse papel meio machista ainda do homem provedor e a mãe que fica com a bonequinha e dá de mamar, ainda tem esse estereotipo assim na brincadeira (LENA, 2018)

Em outras palavras, meninos até podem brincar de casinha, contanto que as divisões de gênero, nessas interações, estejam claramente asseguradas: pai/mãe, provedor/cuidadora, rua/casa etc., não colocando em risco os códigos do modelo hegemônico de masculinidade – o que resvalaria para o questionamento implícito da própria sexualidade da criança.

Já em relação às meninas, como vimos, a sanção normalizadora parece recair mais no que tange à infração das normas escolares do que propriamente aos construtos de gênero. As meninas podem jogar futebol – contanto que continuem sendo “femininas”, como tão bem expressou uma professora. Aqui, do mesmo modo, parece-nos que tensionar as fronteiras de gênero no sentido feminino masculino não implica, simbolicamente, um valor tão negativo quanto a situação inversa. Esse tensionamento, contudo, tem limites e não pode fugir ao modelo hegemônico de feminilidade (re)produzido na escola, que naturaliza o comportamento socialmente construído de meninas e meninos e espera, delas, que sejam mais “dóceis”, “tranquilas” e “educadas” do que eles.

É nesse sentido que compreendemos um fato reiteradamente observado no recreio: o tratamento diferenciado conferido às crianças segundo o gênero do “infrator” ainda que a infração fosse exatamente a mesma. Quando as meninas se envolviam em brigas e agressões físicas, por exemplo, eram invariavelmente advertidas de modo mais severo do que os meninos, como se o comportamento agressivo fosse menos tolerável entre as primeiras do que entre os segundos.

Como nota Louro (1994, p. 37-38): “[...] há comportamentos, falas, gestos, posturas físicas, além de atividades e funções, que são socialmente entendidas como adequadas, ‘naturais’, apropriadas, para as mulheres ou para os homens”. Na escola, esses comportamentos, falas, gestos e posturas físicas esperados de meninas e meninos – isto é, o “habitus sexuado” – estão tão naturalizados socialmente que causa estranheza quando ocorre um “desvio”: é por isso que a sanção normalizadora em relação ao gênero da transgressão se abate de formas distintas sobre meninas e meninos.

Considerações finais

Mas também existem silêncios no recreio, o das vozes que não se ouvem. Quem não fala ou fala e se confunde com as outras falas? Quem resiste a fazer alguma coisa não permitida? Quem desvia? Quem cria?

Ileana Wenetz

Neste artigo debruçamo-nos sobre um dos ritos escolares no qual os corpos (in)dóceis de meninas e meninos podem, supostamente, se expressar com mais liberdade: o recreio. O que é o recreio, esse intervalo mágico, barulhento e alvoroçado que rompe momentaneamente um continuum feito de prescrições e proscrições? O que acontece no recreio, por trás do aparente caos, do movimento frenético dos corpos e da algazarra?

Como vimos, esse intervalo mágico também é feito de regras, nem sempre explícitas, que separam, classificam e hierarquizam, concorrendo para o trabalho incessante de adestramento dos corpos na escola. Os jogos e brincadeiras que nele ocorrem são generificados, assim como os espaços nos quais se desenrolam. Da quadra ao pátio e do pátio à quadra, a sanção normalizadora recai de formas distintas sobre os corpos de meninas e meninos, segundo o gênero da transgressão e as transgressões de gênero.

De fato, se a escola é um dos lugares privilegiados de reprodução das categorias de construção da diferença, como afirma Bourdieu (2002), não espanta encontrar, sob as técnicas disciplinares para o adestramento dos corpos, a inculcação de um “habitus sexuado”, configurando, na materialidade dos corpos de meninas e meninos, modos diferenciados de sentir, de estar e de se expressar no mundo.

Para Bourdieu (2009), como sabemos, o habitus constitui um sistema de disposições incorporadas – duráveis, transponíveis e plásticas – que configura modos de sentir, pensar e agir no mundo. Matriz de percepções e apreciações que se expressam na materialidade dos corpos, em seus modos de falar e fazer (ou de “saber-dizer”, “saber-fazer”), o habitus é história corporificada, naturalizada e, portanto, esquecida como história. Dito de outro modo, entre a sociedade e o indivíduo, entre a estrutura e a agência, constitui a interiorização das estruturas sociais pelo indivíduo e a sua exteriorização em uma trajetória social única, cuja singularidade é dada, justamente, por uma configuração específica de um determinado conjunto de relações sociais objetivas e de interações intersubjetivas (interações estas, nunca é demais lembrar, sempre distintas, mesmo entre indivíduos de uma mesma origem social, mesmo entre indivíduos de uma mesma família). Assim, o habitus é a própria sociedade – com suas divisões de classe, raça, gênero e desigualdades de toda ordem –, encarnada no indivíduo, tornada natureza e convertida, ao longo da singularidade de cada vida, de cada trajetória social, em memória somática, em sistema de disposições e posturas corporais inconscientes.

O “habitus sexuado” constituiria, pois, a inscrição da diferença masculino/feminino na materialidade dos corpos, das estruturas mentais – da hexis corporal às disposições que configuram modos de sentir, pensar e agir no mundo. Um mundo, por sua vez, estruturado em princípios de visão e de divisão ancorados nessa oposição simbólica, cuja lógica hierárquica é preciso romper. E, como defende o autor, para escapar do essencialismo biológico e de todos os determinismos que teimam em naturalizar o que é fruto de um processo incessante de construção social, o importante não é negar as constantes que fazem parte da história: é preciso, em suas palavras, “[...] reconstruir a história do trabalho histórico de des-historicização [...]” (BOURDIEU, 2003, p. 100).

Trabalho histórico de des-historicização para o qual a escola também concorre. O recreio, com suas regras, silêncios e interditos não escapa desse trabalho incessante de construção simbólica da diferença.

Assim, observarmos que o recreio escolar está vinculado a diversas formas de controle/regulação sobre o corpo infantil, onde diversos mecanismos contribuem para uma construção/conformação de meninas e de meninos, agindo no sentido de produzir uma imagem feminina ou masculina. Aqui vemos as pedagogias culturais e outras instâncias sociais, que, de diferentes modos, atuam na construção de meninos e meninas como possuidores de diferentes características (WENETZ, STIGGER, MEYER, 2013, p. 123).

Mas poderíamos indagar com os autores: “Quem resiste a fazer alguma coisa não permitida? Quem desvia? Quem cria?”. Como vimos, apesar da vigilância dos gestos e do controle dos comportamentos, meninas e meninos resistem, desviam, inventam: tensionam e deslocam as fronteiras de gênero em seus jogos e brincadeiras, testando, de forma lúdica, outras formas de ser e de estar no mundo.

Defendemos, neste artigo, que a escola deve propiciar um espaço maior para a reflexão sobre os modos pelos quais reproduz, em seus discursos e práticas pedagógicas, os construtos de gênero, pois esses construtos são traduzidos, socialmente, em desigualdades que incidem nas trajetórias escolares de alunas e alunos. Enquanto os meninos, obrigados a corresponder ao modelo hegemônico de masculinidade, que exalta a força, a competitividade e a violência, sofrem um elevado número de reprovação por indisciplina, as meninas, obrigadas a corresponder ao modelo hegemônico de feminilidade, acabam incorporando um comportamento mais dócil e submisso – comportamento este que provoca, não raro, uma espécie de invisibilidade para eventuais dificuldades de aprendizagem (CARVALHO, 2012).

Mas isso não é tudo. Sabemos que a diferença transcrita em desigualdades na escola ajuda na reprodução da ordem simbólica, com seus sentidos únicos, binarismo e desigualdades de toda ordem. “Nós queremos efetivamente que os garotos [e as garotas] mudem? Que formas de masculinidade [e feminilidade] aceitamos e incentivamos? [...]”, interroga Carvalho (2004, p. 38). A essas questões convém acrescentar outras: nós queremos efetivamente acolher os corpos dissidentes que embaralham os construtos de gênero e sexualidade na escola? Como romper com a lógica binária que leva à reprodução do “heteroterrorismo” na escola? (BENTO, 2011, p. 552). As respostas para essas questões, segundo Bento (2011), não podem ser encontradas exclusivamente nos limites da escola.

Para se compreenderem os motivos que fazem da escola um espaço destinado, fundamentalmente, a reproduzir os valores hegemônicos, é necessário sair desse espaço, ampliar nosso olhar para a própria forma como a sociedade produz as verdades sobre o que deve ser reproduzido, quais os comportamentos de gênero sancionados e por que outros são silenciados e invisibilizados, qua a sexualidade construída como “normal” e como gênero e sexualidade se articulam na reprodução social (BENTO, 2011, p. 255).

Para tentarmos responder a essas questões com ações efetivas, talvez seja necessário considerar os construtos de gênero, simultaneamente, tanto em sua dimensão macro quanto micro sociológica. Não somente em termos de sistemas simbólicos e/ou estruturas sociais, por um lado, ou apenas em termos de relações intersubjetivas, por outro (CARVALHO, 2020). É preciso articular essas diferentes perspectivas em nossas pesquisas: a dimensão simbólica da construção da diferença, assentada em uma oposição irredutível à materialidade do corpo; a dimensão institucional, traduzida socialmente pelas desigualdades de gênero; e a dimensão propriamente individual, constituída por relações sociais objetivas e interações intersubjetivas que (des)constroem identidades individuais e coletivas. Pensamos que a noção de “habitus sexuado”, sob esse aspecto, pode constituir uma ferramenta útil para articular esses diferentes níveis de análise, da perspectiva micro que se debruça sobre a experiência singular dos agentes em suas interações intersubjetivas à perspectiva macro que perscruta as estruturas simbólicas e sociais que atravessam a escola.

Como vemos, o problema está longe de ser esgotado, há uma profusão de questões a serem exploradas no campo dos estudos de gênero e no da educação. Se queremos efetivamente uma sociedade mais justa e igualitária precisamos continuar enfrentando o debate sobre os construtos de gênero dentro e fora da escola.

Nota

1Todos os nomes foram alterados para resguardar a identidade de nossos interlocutores, alunos (as), professores(as) e demais funcionários(as).

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Recebido: 16 de Outubro de 2020; Aceito: 05 de Novembro de 2020

Profa. Dra. Debora Breder

Universidade Católica de Petrópolis (Brasil)

Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UCP)

Grupo de Estudos em Educação, Cultura e Contemporaneidade (GRECCA/UCP)

Orcid id: 0000-0002-8785-4265

E-mail: deborabreder@hotmail.com

Ms. Girlaine Vieira Weber

Universidade Católica de Petrópolis (Brasil)

Grupo de Estudos em Educação, Cultura e Contemporaneidade (GRECCA/UCP)

Orcid id: 0000-0002-5894-7235

E-mail: webergir1@yahoo.com.br

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