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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.60 Natal abr./jun 2021  Epub 19-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n60id24237 

Artigo

O estágio docente como uma comunidade de prática crítica-experimental

The teaching internship as a critical-experimental community

La práctica docente como comunidad de práctica crítica-experimental

1Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas (Brasil)


Resumo

Desenvolvo neste ensaio alguns argumentos que pretendem relacionar o estágio docente à concepção de comunidades de prática. Noção desenvolvida por Etienne Wenger, a comunidade de prática é pensada como um agrupamento de sujeitos que, engajados na aprendizagem do ofício pelo qual são apaixonados, reúnem-se para firmar, aperfeiçoar e manter esse compromisso. Tomando por base essa construção, argumento que alguns obstáculos históricos do estágio supervisionado de professores, em especial a desvinculação entre teoria e prática e o tímido diálogo entre universidade e escola, podem ser confrontados por intermédio do estabelecimento de uma comunidade de prática pedagógica. Contemplada por atores de diversas instituições, manteria sua unidade, devido à paixão pelo ensinar, ao desejo de aprender e à aventura de experimentar didáticas no âmbito da diferença e da tradição pedagógica. Porém, não teremos fórmulas prontas para o êxito desse processo: os parâmetros de cada comunidade teriam que ser pautados localmente e artesanalmente.

Palavras-chave: Estágio docente; Comunidades de Prática; Ensino; Aprendizagem

Abstract

In this essay I develop some arguments that intend to relate the teaching internship to the conception of communities of practice. A notion developed by Etienne Wenger, the community of practice is thought of as a group of individuals who, engaged in learning the craft they are passionate about, come together to establish, improve and maintain this commitment. Based on this construction, I argue that some historical obstacles of supervised teacher training, especially the disconnection between theory and practice and the timid dialogue between university and school, can be confronted through the establishment of a community of pedagogical practice. Contemplated by actors from different institutions, it would maintain its unity due to the passion for teaching, the desire to learn and the adventure of experimenting with didactics within the realm of difference and pedagogical tradition. However, we will not have ready-made formulas for the success of this process: the parameters of each community would have to be guided locally and by hand.

Keywords: Teaching internship; Communities of Practice; Teaching; Learning

Resumen

En este ensayo, desarrollo algunos argumentos que pretenden relacionar la práctica docente con la concepción de comunidades de práctica. Noción desarrollada por Etienne Wenger, la comunidad de práctica se considera una agrupación de sujetos que, comprometidos con el aprendizaje del oficio que les apasiona, se unen para establecer, perfeccionar y mantener este compromiso. Con base en esta construcción, sostengo que algunos obstáculos históricos de la práctica tutelada de docentes, especialmente la desconexión entre la teoría y la práctica y el diálogo tímido entre la universidad y la escuela, se pueden enfrentar mediante el establecimiento de una comunidad de práctica pedagógica. Contemplado por actores de diferentes instituciones, mantendría su unidad debido a la pasión por la enseñanza, el deseo de aprender y la aventura de experimentar con la didáctica en el ámbito de la diferencia y la traducción pedagógica. Sin embargo, no tendremos fórmulas listas para el éxito de este proceso: los parámetros de cada comunidad tendrían que ser guiados local y artesanalmente.

Palabras clave: Práctica docente; Comunidades de práctica; Enseñanza; Aprendizaje

Sobre um problema que se impõe

“E assim nós prosseguimos, barcos contra a corrente, empurrados incessantemente de volta ao passado”. Foram com essas palavras que o escritor F. Scott Fitzgerald encerrava o seu principal romance: O grande Gatsby, de 1925. É possível que ao nos referirmos às políticas administrativas e pedagógicas que abarcam a formação de professores no Brasil, não estejamos em situação tão diferente do texto em questão. Por um lado, as licenciaturas são há muito tempo debatidas, mas pouco valorizadas; os problemas de antes se repetem no agora; os avanços que se deram parecem tímidos, perante os desafios que se impõem atualmente. Em contrapartida, é com pesar que vemos uma certa manutenção de propostas surradas e requentadas, em que certas pedagogias e certas reformas curriculares, “à direita” e “à esquerda”, dizem e repetem as mesmas ideias e, por isso, parecem não ter nada a dizer.

No interior de um tema dessa magnitude uma pauta se mantém: a questão dos estágios supervisionados nos cursos de formação de professores. Se não é novidade escrever que a profissão docente no país está alojada na maior parte das vezes em um sistema precário que abrangeria também a trajetória acadêmica inicial, menos novo é colocar que o desenvolvimento de propostas que formem bons professores passa diretamente pelas práticas de ensino empreendidas ao longo das licenciaturas, sob a supervisão de um orientador capacitado. Mais do que isso. Os estágios supervisionados são condição sine qua non para levar a bom termo a implementação de bem-sucedidas licenciaturas. No entanto, semelhantemente à frase de O grande Gatsby, parece que nesse caso também estamos a nadar contra a corrente, com o passado a nos atormentar.

É daí então que o fio condutor deste texto perpassa o estabelecimento de algumas possíveis condições de possibilidade para os estágios supervisionados na contemporaneidade. Para tanto, o texto é dividido daqui para frente em dois tempos. No primeiro deles, faço um apanhado geral da implementação do estágio supervisionado nos cursos de licenciatura no país. A partir dessa perspectiva, descrevo algumas possibilidades que vêm sendo pensadas nas últimas décadas para aperfeiçoar o processo de formação docente por intermédio dos estágios curriculares. Em um segundo momento, parto do que foi enunciado para introduzir a possibilidade de alavancar o estágio supervisionado na formação de professores enquanto uma comunidade de prática (CoP), nos termos do que propõe o antropólogo Etienne Wenger. Em meio aos elementos estruturais que compõem uma CoP, proponho que se considere o estágio docente como uma atitude simultaneamente crítica e experimental. Crítica, pois desnaturaliza as teorias pedagógicas e procura saber de onde elas vieram e a serviço de quais relações de poder e saber elas se estabeleceram. Experimental, onde se pode fazer o exercício de criação de práticas pedagógicas semelhantes a obras de arte, singulares e dotadas de ineditismo e transgressão; nesse télos, a Didática da Tradução oferece importantes contribuições.

Com esses propósitos devo, entretanto, ressaltar dois avisos. Primeiro: estou ciente da diferença entre condição necessária e condição suficiente e, exatamente por isso, sei que as reflexões aqui postas têm limites e não podem, por si só, solucionar as complexas mazelas e contradições alocadas nas licenciaturas. Sem pretensões universais, portanto. Segundo: este texto se aproxima mais de um ensaio. Por querer ser ensaio, ativa a função cética de tornar o presente menos familiar e efetuar uma atitude de estranheza do pensamento sobre o próprio pensamento (LARROSA, 2003). Portanto, abdica de 1) ser disciplinado por teorias que foram chanceladas empiricamente; 2) fazer uso de ilustrações que podem ser comprovadas em processos quaisquer de ensino e aprendizagem. Em suma, nem tudo aqui proposto foi “aplicado” e, se caso vir a ser, tampouco poderá oferecer garantias. Logo, desenrola-se na esteira daquilo que Gallo (2002) considerou como uma “Educação Menor”, na qual as metodologias universais e os mantras salvacionistas pretendidas pelos ministérios, secretarias e gabinetes educacionais são preteridos em prol de uma ação expressa na micropolítica das escolas e das universidades.

A prática orientada: um voo panorâmico sobre o estágio

O termo estágio possui um longo percurso no seu processo de constituição. Palavra de origem latina, a palavra stagium surge pela primeira vez na literatura por volta de 1008, referindo-se ao termo residência e/ou a moradia em um determinado lugar; não por acaso, stagium advém de stare, que, por seu turno, tem a ver com “estar em um lugar” (COLOMBO; BALLÃO, 2014).

Na Época Clássica, período de transição entre a Idade Média e a Modernidade, a palavra incorpora uma nova conotação, relacionada à relação entre os mestres e os aprendizes no interior das corporações de ofício. Estagiar tinha a ver com uma certa aprendizagem construída em um dado espaço, sob a supervisão de um sujeito mais experiente. Uma outra variação etimológica da palavra estágio, em contexto temporal semelhante, aconteceu com o uso do termo stage, proveniente do período em que os jovens padres residiam em uma igreja antes de receberem sua titularidade (COLOMBO; BALLÃO, 2014). Com efeito, pode-se perceber que a ação de estagiar tem uma vinculação próxima com duas ações constituintes: a introdução de um recém-chegado em um determinado espaço institucionalizado, sob a égide atenta de um supervisor ou condutor habilitado, ao qual compete iniciar e orientar o novato na respectiva prática.

Se a investigação do termo estágio nos indica uma palavra antiga e se, de forma semelhante, ser um estagiário faz parte da própria constituição das relações humanas, sua institucionalização enquanto componente curricular tem uma história recente, cuja origem remonta à primeira metade do século XX. É preciso frisar que a regularização das práticas orientadas não começa no bojo da formação de professores, mas nos cursos das áreas industriais, cujo boom remete ao período da industrialização brasileira na década de 1940. Naquele momento, com o Decreto-Lei nº 4.073, que institui o Ensino Industrial, o estágio aparece como um mero período de trabalho, em que o aluno realizaria ações profissionais sendo observado por um supervisor. Embora pareça haver semelhanças com a contemporaneidade, o que acontecia era a disponibilidade de mão-de-obra precária para as empresas, que podiam se valer da força de um trabalhador mal remunerado (COLOMBO; BALLÃO, 2014).

Nem poderia ser diferente: terminologia vaga e mal estruturada, acontecia de não haver diálogo entre os centros de formação e as empresas, faltando documentos que firmassem um compromisso de constituição profissional que tivesse tonalidade pedagógica. Assim, sem obrigações definidas de parte a parte, caberia ao aluno tão somente moldar-se ao cotidiano do local escolhido para estágio. Embora outras normativas posteriores tenham buscado superar esse quadro, vide o exemplo das leis 5.692 de 1971, 8.859 de 1994 e 11.788 de 2008, é fato que ainda não deixamos para trás essas históricas mazelas (PIMENTA; LIMA, 2004).

No que tange ao processo de formação de professores, foi necessário esperar até 1962, quando o Conselho Federal de Educação procurou normatizar a prática orientada por meio do Parecer 292 (CACETE, 2014). Naquele documento, o estágio aparecia como um componente curricular obrigatório, que deveria ser realizado ao final do curso pelos licenciandos, de modo que eles pudessem aprender a ensinar no interior das escolas a partir da condução de um orientador experimentado. Ressalta-se, no entanto, o caráter eminente prático dessa normativa, posto que havia um enaltecimento do período de estágio ter que se realizar ao final do curso. Temos aí uma das sementes na constituição do velho modelo 3 + 1, em que o aluno aprende a teoria para depois aplicá-la.

Mas não se trata da única. Fundamentalmente, a ampla reforma universitária no final da década de 1960, que deu origem às faculdades de educação, também é responsável pela manutenção desse viés tecnicista, em que o estagiário se vê numa responsabilidade de aplicar os conteúdos aprendidos anteriormente (COLOMBO; BALLÃO, 2014). Conforme explica Cacete (2014), a partir do Decreto 19.851, de 1931, conhecido como o Estatuto das universidades brasileiras, competiria ao Ensino Superior realizar a formação de professores, através de uma “faculdade de educação, ciências e letras”. Tal alcunha foi substituída pela das “faculdades de filosofia, ciências e letras”, mas o objetivo permanecia o mesmo: ofertar aos futuros professores uma formação científica permeada por estudos pedagógicos.

Implementadas satisfatoriamente pela Universidade de São Paulo e pela então Universidade do Brasil, as faculdades de filosofia, ciências e letras também se expandiram nos centros confessionais e no setor privado, que, ao se valerem dos baixos custos necessários para a criação de um curso na área das humanidades, ofertaram grande quantidade de vagas.

Todavia, é justamente essa unidade que Newton Sucupira criticava em 1969, a fim de justificar uma nova reforma universitária:

A ideia da Faculdade de Filosofia como instituição englobante repousa numa concepção da unidade do saber cujos fundamentos metafísicos e epistemológicos já se encontram ultrapassados. Além disso, a extrema especialização que define o saber científico moderno torna praticamente impossível reunir numa mesma unidade disciplinas tão diversas, sem acarretar sérios inconvenientes, tanto de ordem administrativa como funcional (SUCUPIRA, 1969, p. 271).

É daí que, sob a égide de parâmetros gerenciais e administrativos, a proposta no final da década de 1960 se movimentava com o fito de formar o maior número de professores possível com eficiência e velocidade, tendo em vista a expansão da escolarização pública nesse período. Ora, não sejamos ingênuos: com as faculdades de filosofia, não se pode dizer que a formação docente permeava um dado curso por inteiro, haja visto que um aluno de licenciatura primeiro frequentava as aulas do curso de bacharelado e, apenas após isso, concentraria forças nas disciplinas pedagógicas. No entanto, por permanecerem em um mesmo espaço e sob a orientação de professores do mesmo curso, é provável que a docência tivesse maior potencialidade para transformar-se em uma preocupação acadêmica geral.

Porém, a partir dos Decretos-leis nº 53/66 e 252/67 e da Lei 5.540, de 1968, paulatinamente as faculdades de educação foram instituindo um lugar à parte, responsável por tomar para si a incumbência de apresentar conhecimentos sobre a estrutura escolar, a psicologia da educação, a didática e as práticas orientadas. No decreto de 1966, em que foram fixadas as normas de organização das universidades federais, o Artigo 3º definiu a necessidade de criação de unidades voltadas especificamente para a formação de professores; no decreto de 1967, com o adendo de normas complementares, restringia-se a oferta dos estudos pedagógicos básicos às faculdades de educação, através do Artigo 4º; por fim, a Lei 5.540, de 1968, na esteira da Reforma Universitária, reforçava essa divisão por meio do Artigo 30, §1º, posto que a formação de professores deveria, legalmente, estar alicerçada na cooperação entre as unidades com as faculdades de educação. Com efeito, no centro de tal modelo residia o desejo de que “[...] a formação do profissional de educação assumisse um caráter científico e acadêmico, além da necessidade de preparação de quadros especializados em administração, planejamento e professores para a escola secundária” (CACETE, 2014, p. 1008).

É provável que o tiro tenha saído pela culatra. Concebidas em um contexto em que as disciplinas científicas já tinham dificuldades de dialogar com o componentes didático-pedagógicos, o protótipo das faculdades de educação não só intensificava o engavetamento disciplinar como a ele agregava uma nova característica: a distância física, afinal o aluno estudaria as questões didático-pedagógicas em uma outra unidade, quando não mesmo (e não raro) em outro campus.

Retomado com a lei 8.859 de 1994 e o parecer 28 de 2001, e melhor regulamentado com a lei 11.788 de 2008, o estágio foi abandonando o sentido de ser um momento terminal do curso, em que o futuro professor aplicaria os conteúdos. Além disso, alinhava-se ao que era ressaltado por especialistas nessa área, como Pimenta e Lima (2004), Alarcão (1996), Cury (2003), Lima (2008), Tardif (2002) e França (2006): a prática orientada é um componente curricular com saberes específicos e reflexivos, dotado de conceitos e traços epistemológicos próprios; não é ritual de passagem e/ou caixa de ferramentas pedagógicas para serem utilizadas. Trata-se de um campo do conhecimento escolar.

A lei de 1994, por exemplo, enfatizava nos três incisos do seu primeiro artigo que o local no qual o estágio seria realizado não só deveria ter condições de proporcionar experiências próprias à formação como estar em consonância com o currículo, a concepção pedagógica e o calendário da instituição formadora.

Já o parecer 28 foi mais direto no que se refere à carga hora mínima do estágio supervisionado, além de colocar como fundamental que a prática é um componente curricular cujo processo deve se dar durante todo o curso, visando a articulação entre teoria e prática social.

E a lei 11.788, de 2008, ao dispor detalhadamente a respeito do estágio, normatizou os seguintes elementos: a definição, a classificação e as relações estabelecidas no estágio; as obrigações das instituições de ensino e das partes concedentes; os modos de fiscalização das práticas; os direitos e deveres do estagiário, no que se refere à jornada de atividade.

Entretanto, se a atenção dada ao estágio supervisionado foi aumentada, tendo ele se transformado em razão de estudo para centenas de pesquisas lato e strito sensu nas últimas décadas, é com resiliência que uma série de problemas didáticos, operacionais e administrativos vêm permanecendo nas políticas de formação de professores. Ainda que mapeados por especialistas da área, tratam-se de obstáculos de difícil resolução, cujo encaminhamento satisfatório raramente é levado a bom termo. Dentre os principais, poderíamos citar: 1) dificuldade de executar termos de compromisso entre a escola e a universidade; 2) supervisão insatisfatória dos estagiários no local da prática; 3) pouca responsabilidade pedagógica das escolas que concedem os espaços aos licenciandos; 4) os cursos não costumam oferecer feedback às escolas, que se sentem “usadas”; 5) o calendário do componente curricular não coincide com aquele da instituição na qual a prática pedagógica é realizada; 6) o professor regente não supervisiona as atividades do estagiário; 7) a tríade observação-participação-regência talvez não seja a mais adequada; 8) a cristalizada dicotomia entre teoria e prática; 9) predomina a percepção utilitária do estágio supervisionado, que seria um momento de aplicação ao invés de criação; 10) desprestígio da licenciatura em relação ao bacharelado, fazendo com que os docentes deste não dialoguem com aquela; 11) desconexão entre a formação específica dos cursos com as disciplinas pedagógicas, como se entre uma e outra não pudesse haver uma relação de imanência; 12) as práticas orientadas costumam aparecer no final do curso, dando a impressão que é chegada a “hora da prática”; 13) nas disciplinas científicas se “produz” conhecimento, no estágio se “reproduz” conhecimento; 14) pouco espaço disponibilizado nas disciplinas de estágio supervisionado para estudos históricos, filosóficos e epistemológicos referentes à educação, ao ensino e à aprendizagem; 15) a tripla comunicação entre o professor orientador, o estagiário e professor regente da escola não funciona a contento, quando não mesmo é inexistente (FRANÇA, 2006).

Em meio a um cenário de grande complexidade, seria injusto colocar que aquilo que descrevi anteriormente não esteja sendo motivo de sensíveis preocupações. Do próprio lugar acadêmico ecoam não só os limites e os desafios das práticas orientadas na formação inicial de professores, como também propostas cuja ressonância vêm adquirindo materialidade nas últimas duas décadas. A partir do que foi sinalizado por referências como as de Lima (2008), Tardif (2002), França (2006), Pimenta e Lima (2004), Martins e Tonini (2016), Milanesi (2012), entre outros, um princípio de mudança nos estágios supervisionados deveria partir: 1) da construção de um “portfólio” de escolas que acompanham satisfatoriamente os estagiários, dando-lhes assistência didática, pedagógica e administrativa; 2) do estímulo à uma formação pedagógica menos tecnicista e mais teórica-reflexiva; 3) da vinculação direta e não-hierárquica entre teoria e prática durante todo o curso; 4) do despojamento de uma postura passiva por parte do licenciando, que colocará sua formação como objeto de análise crítica; 5) do diálogo mútuo e contínuo entre o orientador, o estagiário e o professor supervisor da escola em que a prática está acontecendo; 6) da necessidade de empreender o estágio docente como campo de pesquisa e experimentação; 7) do aperfeiçoamento de políticas institucionais que estabelecem uma instância de diálogo e parceria entre universidade e escola.

Esses encaminhamentos são profícuos e atribuem ao estágio docente possibilidades interessantes. Envolvem uma política de redefinição desse singular momento da formação do professor e buscam torna-la objeto de investigação à parte, cuja pedra de toque é a oportunidade de formar um docente crítico, reflexivo e, principalmente, um profissional-autor. Entretanto, como colocado por Zanten (2009), dificilmente tais movimentos serão suficientes para introduzir o estudante na complexidade das relações que acontecem no contexto da sala de aula, quanto mais nas particularidades de uma escola. Não por acaso, esse pesquisador coloca que parte expressiva da formação do professor se dá em serviço, por intermédio de uma socialização ocorrida no local do trabalho pedagógico. A docência tem assim uma característica diferente de outras profissões: a entrada do jovem professor no cenário da escola é abrupta e sem intermediários, de forma que “da noite para o dia” estará frente a frente com os seus alunos e, consequentemente, deverá tomar decisões solitárias, recorrendo a soluções individuais ou até mesmo improvisadas (ZANTEN, 2009).

Por outro lado, o exercício do seu ofício será aperfeiçoado e, outrossim, moldado pela interiorização de técnicas, valores e representações incrustadas na solidariedade de um quadro organizacional, que se faz na diferença dos exercícios nele construídos. Nesse sentido, o docente receberá influências locais que foram construídas historicamente pelos devidos colegiados e, por meio delas, desenvolverá uma “[...] competência profissional fundada na reflexão sobre a experiência, mas a partir de quadros elaborados coletivamente com outros colegas do estabelecimento” (ZANTEN, 2009, p. 207).

Esse quadro em perspectiva nos impõe a ideia de que, de qualquer maneira, a passagem de aluno a professor será traumática e inerentemente forjada no interior das experiências da sala de aula. Porém, se esse cenário parece não permitir receituários a partir dos quais a docência seria exercida a contento, ele não é uma justificativa para que o estágio não seja discutido, aperfeiçoado e passível de problematização científica, política e filosófica. As pesquisas que vêm tomando esse momento da licenciatura como campo de pesquisa e experimentação, vide as de Martins e Tonini (2016) e Milanesi (2012), nos mostraram que inúmeras oportunidades estão sendo prospectadas. E que os desafios estão circunscritos à realidade provisória e singular de cada ambiente escolar e universitário onde a prática acontece (TARDIF, 2002; FRANÇA, 2006).

É em meio a esse pressuposto que nas próximas páginas discutirei a viabilidade de constituir o estágio docente por intermédio da noção de comunidade de prática, desembocando na didática tradutória. Trata-se de uma tentativa de concatenar o ato pedagógico ao currículo em um contexto, nas palavras de Nóvoa (2009), de transposição deliberativa, em que a ação docente é discutida coletivamente e submetida à opinião dos seus colegas de trabalho.

Uma comunidade engajada na aprendizagem

A concepção de comunidade de prática, construída por Étienne Wenger, não foi pensada em torno da velha dicotomia entre teoria e prática, nem como um espaço em que a segunda seria alavancada de maneira soberana pela primeira. Também ela não se fundamenta por intermédio de dualismos comuns na seara educacional, como ação versus conhecimento, saber versus fazer, atividade manual versus atividade mental e conteúdo concreto versus conteúdo abstrato. Wenger (2001) imaginou a possibilidade de elaborar espaços em que certos atores sociais, provenientes de um mesmo ofício, reunir-se-iam para compartilhar experiências comuns no âmbito da sua profissão, através de um engajamento cujo foco principal é a aprendizagem.

Uma comunidade de prática é prospectada por apaixonados por aquilo que fazem, paixão intensa ao ponto deles se encontrarem para discutir e pensar em maneiras de aperfeiçoar suas experiências em contextos de ensinar e aprender. Em tal ambiente a socialização de atitudes e procedimentos não se reduz à transmissão, mas carrega a oportunidade de construir novos saberes, a partir da troca de ideias entre seus membros. No seio de uma comunidade de prática identidades são empreendidas e redefinidas, de modo que a constituição dos sujeitos se faz nessa rede de mútua aprendizagem (WENGER, 2001). Embora estejam lado a lado nesse processo profissionais experientes e profissionais aprendizes, não se procede como se houvesse subordinação dos segundos aos primeiros, posto que num contexto de interação contínua, todos ensinam e aprendem em algum momento.

Além dessas características, outro ponto a se destacar é que uma comunidade de prática pode até ser formada institucionalmente, mas para que ela se mantenha enquanto tal é necessária certa dose de informalidade. Isso quer dizer que não existe alguma obrigação legal que una seus membros que não seja a responsabilidade de manter acessa a chama do ofício pelo qual são fascinados. Não se trata de um agregado de pessoas mantido por meio de protocolos e imperativos formais. É a criação e o compartilhamento de experiências que mantém esse movimento ativo e operacional, tendo em mente que a aprendizagem se define em condições ativas e singulares, o que a torna provisória e passível de reconstruções. Os participantes irão formar sua comunidade de modo orgânico e auto seletivo, em que o princípio de organização é fabricar e trocar conhecimentos que todos podem manejar e aproveitar. Interessados pelo progresso das suas ações, os membros não delimitam o início, meio e fim do projeto que estão engajados, sendo que a durabilidade de uma comunidade se manterá enquanto houver interesse e compromisso cognitivo e afetivo com os objetivos do grupo (WENGER, 2001).

Tomando por base as noções definidas por Wenger (2001) para elaborar sua proposta, é um raciocínio natural concatenarmos uma comunidade de prática à perspectiva escolar. Afinal, ninguém discordaria que o cerne de uma aprendizagem se relaciona à interação com outras pessoas em ambientes acolhedores e significativos, em que o compromisso por um objetivo comum tende a alcançar resultados satisfatórios. E no que tange ao tema central deste texto – o estágio supervisionado -, as oportunidades parecem que estão abertas e poderiam, mediante disposições específicas forjadas em contextos particulares, operaram a partir do espírito de Wenger. Isso significaria pensar o estágio docente como uma comunidade de prática. Sabemos que esse momento da graduação pertence a relações curriculares, institucionais e departamentais; em outros termos, está entranhado por arranjos de poder e regulamentos definidos a priori. Mas caso o desafio não assuste e se os limites podem ser alocados como degraus para a concretização de uma ideia, o que parece que precisaríamos fazer para levar a bom termo tal projeto?

Inspirando-se no fio condutor criado por Wenger (2001), proponho que essa comunidade conjecturada no interior da prática docente orientada deveria apresentar três traços principais: a) a constituição dos relacionamentos; b) o domínio filosófico; c) o inventário das práticas.

No que toca a constituição dos relacionamentos, refiro-me à implementação da comunidade de prática enquanto tal. É preciso, em primeiro lugar, levar em conta qual é o objetivo central que alinhará seus participantes; esse deverá ser o desenvolvimento de competências e experiências no âmbito do trabalho pedagógico, com especial foco na formação de professores. Trata-se de discutir, refletir e criar, através de uma troca de histórias, atos e propostas que sirvam a todos e que busquem introduzir futuros professores nos rituais da sala de aula e nos procedimentos institucionais da escola. Esse objetivo parece vazio e nada inédito em comparação aos elementos já dispostos em disciplinas de estágio supervisionado. Para fazer diferente e construir, então, uma comunidade de prática, é preciso definir quem serão os participantes dela.

Explico por que isso não é fácil.

Ora, um dos principais obstáculos que impedem uma formação pedagógica satisfatória reside na excessiva fragmentação curricular existente nas licenciaturas, que pode ser representada pela divisão entre as disciplinas da formação específica e aquelas subjacentes à docência. Muito embora o famigerado modelo “3+1” há algum tempo vem sendo criticado e, até certo ponto, superado, não podemos negligenciar o fato que a vinculação entre os conteúdos gerais e os saberes pedagógicos raramente acontece, inclusive com situações lastimáveis em que a formação do professor é vista de maneira pejorativa ou como um percurso inferior. Por outro lado, se existe uma “boa vontade” departamental com as licenciaturas, dificilmente isso se traduz na ultrapassagem da ideia de que o estágio docente é o tempo apropriado para a “aplicação” do que foi aprendido em domínios científicos como a Matemática, a História, a Biologia, etc. (PIMENTA; LIMA, 2004; CURY, 2003).

Um outro desafio aparece na acanhada aproximação da universidade – na figura do orientador de estágio – com as escolas (capitaneadas pelos supervisores e os professores regentes). Esse problema não será resolvido com um aumento de visitas do supervisor de estágio às escolas, que até podem ser produtivas, mas terão resultados tímidos se o professor responsável por “ceder” o espaço aos licenciandos não estiver engajado na evolução de ofício do seu futuro colega. E que esteja ao lado – ainda que com jurisdições diferentes – do professor orientador, refletindo sobre as experiências que acontecem (COLOMBO; BALLÃO, 2014).

Em vista da identificação desses dois impasses, uma comunidade de prática comprometida com a formação de professores deve ser intra e interinstitucional. Inicialmente, para o seu agrupamento todos os membros devem atender, sobretudo, à paixão pelo ensinar e ao prazer pelo aprender. Esse é o ponto de corte, sem ele o edifício desaba. Feito esse credenciamento, o próximo item define de que lugar virão os participantes. Obviamente, estarão presentes os supervisores da prática pedagógica e os respectivos estagiários. Mas com duas importantes adições.

Uma delas advém do recrutamento facultativo de membros nos próprios cursos da licenciatura em questão. Serão especialistas em áreas como Climatologia, Filosofia da Linguagem, Literatura Brasileira, Antropologia, Botânica, Física Experimental, Geometria, Química Orgânica; profissionais que não têm a formação de professores como preocupação primeira, mas que, pelo fato de serem apaixonados pelos processos de aprendizagem e pelo ofício da docência, engajar-se-ão no enriquecimento de experiências pedagógicos no terreno das licenciaturas. Eles formariam um corpo proveniente dos próprios cursos, ao qual haveria uma destinação de carga horária específica para tal atribuição. Desta forma, não só planejariam tempos das suas disciplinas para exercícios de ensino como ajudariam a romper com a concepção de que o estágio é etapa de aplicabilidade; como se um professor não pudesse ser perspectivado desde os primeiros dias em que começa a frequentar uma licenciatura.

A outra adição terá como ponto de emergência as próprias escolas em que as práticas dos estagiários serão realizadas. Competirá ao supervisor dos estágios estabelecer uma rede de contatos com professores da Escola Básica que aceitem fazer parte dessa comunidade, ao mesmo tempo em que se sintam motivados pelo desenvolvimento desse processo. Docentes experientes que podem contribuir com a aprendizagem dos jovens professores, acompanhando-os na aurora das suas práticas e buscando orientá-los nas situações-limite e aleatórias imanentes à sala de aula. Não se trata de uma mera tutoria ou acompanhamento ferrenho, que cercearia a criatividade do estagiário e/ou o protegeria de eventos educacionais que, inevitavelmente, terá que enfrentar. Opostamente, esse trâmite se assemelharia mais a um fazer/refletir juntos, mirando a aprendizagem dos alunos e a autoria do estagiário, que gradualmente tomará as rédeas da sua profissão.

Uma comunidade de prática perspectivada sobre o estágio docente seria formada mediante o engajamento com a aprendizagem, a paixão pelo ato de ensinar e a criação constante de elementos pedagógicos. Formar-se ia uma rede não-hierárquica, mas com atribuições diferenciadas, que envolveriam não só orientadores e estagiários, mas docentes das áreas gerais das licenciaturas e também aqueles que se dispõem a trabalhar junto com os futuros professores no chão das escolas. É uma rede que não necessariamente deveria encontrar-se em um espaço físico, com horários estabelecidos. Cada comunidade de prática funcionaria ao seu modo, segundo as especificidades e a agenda dos membros que a compõem; seus laços comunicacionais seriam orgânicos e difusos, cabendo aos seus agentes criar e recriar maneiras de manter a identidade acesa e operar segundo o objetivo que é razão da sua existência, não importando os meios físicos ou virtuais para tal.

Ao tratar do domínio filosófico, estou me referindo a caminhos investigativos que busquem a superação de um outro agravante nesse tempo acadêmico, ou seja, a relação entre teoria e prática. No entanto, a ideia é mais de espírito filosófico do que propriamente procedimental. Historicamente, o campo da prática orientada é refém do pressuposto de que nele se espera que o jovem professor aplique os conhecimentos aprendidos ao longo da sua licenciatura, tomando por lastro teorias provenientes da pedagogia, da didática e da psicologia da educação. Essa prerrogativa até tem um fundamento de verdade, haja visto que ensinar difere de instruir e, logo, existem saberes de ofício subjacentes ao magistério que devem ser de conhecimento e uso do futuro professor. Todavia, um dos principais nós górdios da formação de professores reside na busca por preceituários que alcancem a isomorfia entre ensino e aprendizagem, de modo que a segunda possa ser garantida e verificada. Embora nunca alcançadas, tais pretensões se mantêm acesas, o que as fazem assemelhar-se às pragas pedagógicas enunciadas por Veiga-Neto (2012), como o prescritivismo e o metodologismo.

Essa colocação significaria uma extração dos conceitos do ensino e da aprendizagem presentes nos currículos das licenciaturas? De modo algum. Embora eu acredite que tais teorias não só são incapazes de imporem-se como válidas em toda parte como, não raramente, colocam o professor como reles correia de transmissão de suas técnicas, o maior problema não está na presença delas nos cursos, mas sim no desconhecimento dos seus processos enquanto práticas socioculturais. Parece que as licenciaturas estão devendo um pouco mais de Filosofia da Educação nas suas grades curriculares. Citemos, por exemplo, a herança que o pensamento platônico nos deixou. Na sua Doutrina dos Dois Mundos, foram prospectadas uma série de dualismos, dentre elas as diferenças – sempre hierárquicas – entre aparência e essência, doxa e episteme, coisas sensíveis e formas, opinião e conhecimento. Compete ao indivíduo colocar-se na linha de irradiação do sol, como foi representado no Livro VII da República, através da Alegoria da Caverna (VEIGA-NETO, 2004). A saída desse buraco é uma espécie de purificação do terreno da sensibilidade, em que a luz nos possibilita ver as ideias puras, até então obliteradas pelas trevas e pela cegueira da corporeidade.

A influência da tese da Linha Dividida na tradição pedagógica ocidental é evidente e já foi discutida por Veiga-Neto (2004). Fiquemos em duas características tão comuns quanto contemporâneas. Uma delas é, mediante a busca de um conhecimento seguro e infalível – pretensão própria ao positivismo -, ou o acesso, por meio do método, a ideias claras e distintas (como queria Descartes), a possibilidade de encontrarmos teorias supremas, que nos dirão passo a passo como executar o ofício professoral. A crença nisso resulta ora no descarte do conceito por si mesmo, ora em uma atitude de tributo sagrado a uma teoria, ao ponto de cogitarmos que estamos aplicando-a de maneira errada – como se a culpa fosse nossa! A outra herança da filosofia de Platão se trata de uma certa desconfiança sobre experiências pedagógicas que não tenham passado pela chancela do Método ou verificadas através de experimentações científicas; assim, visões que tendem a perspectivar a aula como uma obra de arte costumam ser moeda fraca no discurso pedagógico, posto que, para Platão, arte é mímeses: imitação de algo inferior, isto é, o mundo da sensibilidade.

No entanto, em uma comunidade de prática cujo fio condutor é a formação professores, a Filosofia da Educação aparece como um indexador reflexivo, em que conjecturaríamos as teorias do ensino e da aprendizagem como tentativas de abstração da realidade, ao contrário de tomá-las como espelhamento nítido e neutro dela mesma. Postularíamos noções como as de experiência (John Dewey), epistemologia genética (Piaget), sociointeracionismo (Vygotsky) e aprendizagem significativa (Ausubel) enquanto esforços de apreender a realidade cognitiva e pedagógica e que, ao fim e ao cabo, podem nos oferecer apenas verdades provisórias.

Mais do que isso. Na ótica de uma filosofia como a de Kant (1980), elas deveriam passar por uma crítica, a fim de entender as condições de possibilidade que deram alicerce a esses conceitos; ao lado de alguém como Foucault (2000), realizaríamos uma genealogia desses saberes, acoplando-os a relações de poder e saber. Dessa maneira, consideraríamos que o conhecimento pedagógico de uma certa época estaria incessantemente concatenado a questões como a economia, a demografia, a acumulação do capital, os arranjos produtivos, a ideologia e a racionalidade do Estado. Isso não quer dizer que ele não seria útil nem que não poderia servir ao trabalho pedagógico. Porém, passaria pelo crivo da crítica e sob a égide da discussão franca, que só poderia dar-se após, e somente após, um estudo rigoroso dos pensadores que costumam ser utilizados amiúde nas licenciaturas. Isso significa não apenas respeitá-los: também tem a ver com a abertura de oportunidades à autoria dos professores, visto que esses, ao problematizarem seu ofício como palimpsesto cultural, político e filosófico, tomariam as rédeas de uma história que lhes será suas, sentindo-se responsáveis pelas suas criações pedagógicas e educacionais. Como resultado, o estagiário docente nessa comunidade de prática não replica, mas teoriza; não aplica, mas cria; estuda e problematiza, ao invés de receber; não espera, mas considera-se autor do que vai desenvolver.

Finalmente, a tríade da comunidade de prática se fecha com o inventário das práticas. Wenger (2001) comenta sobre a importância de a comunidade agregar um arsenal de recursos, esquemas de trabalho, ideias, documentos, informações, estilos e modos de linguagem que serão compartilhados entre seus membros, desde os mais experientes até os iniciantes. Esse conjunto constitui o significado por meio do qual a comunidade é representada, funcionando assim como um elã que padroniza os princípios de ação dos componentes e lhes dá identidade de ação e gradeamento de reflexão.

Tal inventário compactua das características que Foucault (2000) se valia para construir o seu conceito de arquivo. Para ele, o arquivo pode ser problematizado como um conjunto de textos, práticas e invenções culturais que foram pronunciadas ao longo de um dado período e que delimitam o perímetro de afiliação a partir do qual um grupo se apresenta perante o mundo. No entanto, ao cogitarmos que uma certa comunidade de prática possui um arquivo dos seus atos, ditos e escritos, não tomaríamos ele como se fosse uma massa empoeirada de recursos e sim um substrato flexível do que o grupo fez e faz; assim, esse inventário produz a identidade dos seus atores e também é moldado por eles, mediante uma esfera de permanente negociação e discussão (WENGER, 1998).

Quais elementos poderiam estar presentes nesse inventário, conectando-o ao estágio docente? Teorias pedagógicas, fichas de leitura, discussões sobre didática, relatos de aprendizagem, narrativas sobre gestão de classe, planos de ensino, diários de bordo, experiências diante de uma aula, enfim, um material agregado e potente de rotinas, palavras, ferramentas, gestos, símbolos e visões de mundo que a comunidade criou e que se tornou parte de suas práticas (WENGER, 2001). Essa multiplicidade de experiências servirá aos docentes mais experientes, pois é caixa de ressonância de histórias em que eles foram protagonistas e, sobretudo, fabricantes; aos aprendizes de magistério, emerge enquanto carta de apresentação, introduzindo-os nos modos pelos quais a comunidade se coloca diante de problemas recorrentes no âmbito da escola, do ensino e da aprendizagem.

Esse inventário não incorre, porém, no engodo de transformar-se em guia de incumbências e/ou prontuário de práticas pedagógicas. Vamos pensa-lo no horizonte de uma tradução. Como escreve Corazza (2013), muitas semelhanças são possíveis entre os professores e tradutores: são pouco notados, raramente lembrados e tidos como meros copistas de textos originais realizados por sujeitos mais talentosos que eles. Contudo, há um equívoco nessas representações. Para Benjamim (2011), a tradução é um formato incapaz de reproduzir plenamente o sentido presente na obra original. Ela o “[...] toca fugazmente, e apenas no ponto infinitamente pequeno do sentido do original” (BENJAMIN, 2011, p. 117). Nessa esfera, o tradutor não deve ter pretensão à objetividade nem a uma cópia perfeita do original, sendo que ela se configura apenas como “[...] um modo algo provisório de lidar com a estranheza das línguas” (BENJAMIN, 2011, p. 110). É objetivo do tradutor que ele expresse o significado da obra; não há dívida com o original. Por outro lado, visto que a tradução não se trata de uma cópia, não só a reprodução fiel do original é impossível como ele passará, no processo tradutório, por uma transformação. Para Derrida (2002), esse recondicionamento provoca novidade, remarca a afinidade com linguagens contemporâneas e atribui vitalidade ao original. Como escreve Benjamin (2011, p. 110): “Na tradução, o original cresce e se alça a uma atmosfera por assim dizer mais elevada e mais pura da língua”.

O inventário das práticas se constitui no ponto de conexão mais instigante da comunidade com a escola e essa com as licenciaturas. Representa o que foi e vai sendo feito no âmbito de uma aprendizagem que acontece expressivamente quando estamos ensinando, docência in locu, como dizem Tardif e Lessard (2011). Agrega à dimensão do trabalho docente as histórias dos sujeitos que o designam, através de experiências que foram registradas e podem ser passadas adiante, sob o crivo, é claro, da subjetividade e do meio interativo no qual cada professor se insere profissionalmente. Esse arquivo também catalisa a crítica tão necessária aos atores escolares, aquela atitude de vigilância epistemológica que lhes permite distanciar-se dos parâmetros curriculares, das teorias formais e das normativas legais que lhes são impostos hierarquicamente e de maneira universal, como se tais diretrizes funcionassem igualmente em quaisquer tempos e espaços. Finalmente, as práticas inventariadas pela comunidade do estágio docente são transponíveis por intermédio de uma tradução, em que as ações pedagógicas são atualizáveis aos sinais de contextos que se anunciam no bojo do seu próprio movimento, relação imanente em que alunos e professores podem ser sujeito e objetos das suas intervenções. Para os orientadores das práticas supervisionadas e os professores das escolas em que essas ocorrem, é o patrimônio da maneira pela qual eles vêm se colocando diante de certos problemas. Para os aprendizes, é uma catapulta à maestria do ensinar, cuja chama se mantém acesa pela transmissão de uma geração a outra de professores.

Alinhar-se, engajar-se, energizar-se

A docência se instaura na presença do outro; a formação do professor acontecerá, inevitavelmente, através de um “discurso-em-ato”, isto é, quando a sua história acadêmica e pessoal será conjugada (e confrontada) com as vicissitudes do trabalho pedagógico instituído na sala de aula. É por tais motivos que o estágio na docência não deixará de ser razão de preocupação e motivo de ansiedade, divisor de águas ao qual futuros professores terão que passar e que, provavelmente, não estarão integralmente preparados para tal. Porém, embora esse cenário esteja claro e esteja posto, ele não nos autoriza a deserdamos de ações e reflexões que o tornem mais instigante, operacional, efetivo e academicamente enriquecedor. Afinal, não estamos nós, orientadores e licenciandos, lidando com um tempo acadêmico de ciência aplicada e/ou treinamento pedagógico. Por ser, simultaneamente, campo de pesquisa/nexo de autoria/terreno de experimentação, ele é efeito da multiplicidade de relações que envolvem a universidade, a escola contemporânea, a formação docente, a questão social e as políticas públicas. Campo aberto para devires filosóficos, críticos, reflexivos e interventivos na realidade.

É daí que a concepção de comunidade de prática proposta por Etienne Wenger vem oportunizando discussões profícuas no âmbito da aprendizagem. Problematizando a existência de um espaço comum, em que participantes de uma determinada área se reúnem voluntariamente por identificação à prática que realizam, Wenger mostra que a construção do conhecimento pode dar-se de modo satisfatório quando as experiências ocorrem coletivamente, no âmbito da interação e através da troca de ideias, ferramentas, dúvidas, documentos etc. Não só essa noção é um notável operador metodológico na esfera da teoria do conhecimento como vem a calhar com o debate sobre os estágios docentes supervisionados.

Nessa aventura de ideias, em que os arcabouços teóricos são preliminares e estão longe de passar pelas evidências de um projeto materialmente apreensível, conjecturei que o estabelecimento do estágio docente enquanto uma comunidade de prática pode potencializar respostas para alguns problemas históricos existentes nas práticas orientadas dos futuros professores. No entanto, para o êxito desse processo não teremos fórmulas prontas, de forma que os parâmetros internos de cada comunidade teriam que ser feitos e pautados artesanalmente, a partir de cada espaço educacional e cultural que os envolvem. Sem imperativos categóricos, eis uma das conclusões. A outra conclusão está fora de dúvida: esse projeto comunitário deverá alinhar-se à aprendizagem constante e indefinida, engajando-se no compromisso da aula lutada pelos professores por meio das suas criações e invenções. Terá, enfim, uma energia corrente a ser alimentada por um fio desencapado, cujo curto-circuito foi alavancado pela autoria do professor, Didata-Tradutor.

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Recebido: 03 de Março de 2021; Aceito: 22 de Abril de 2021

Prof. Dr. Bruno Nunes Batista

Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas(Brasil)

Membro do Grupo de Pesquisa “Formação continuada de Professores” da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-3862-1465

E-mail: brunonunes.86@hotmail.com

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