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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.60 Natal abr./jun 2021  Epub 19-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n60id24692 

Artigo

A medicalização na educação e a formação inicial do pedagogo

Medicalization in education and the initial formation of the educator

La medicalización en la educación y la formación inicial del pedagogo

Vânia Aparecida Calado1 
http://orcid.org/0000-0001-9529-5347

Herculano Ricardo Campos2 
http://orcid.org/0000-0003-0366-9773

Cynara Teixeira Ribeiro2 
http://orcid.org/0000-0002-7109-2630

1Universidade Potiguar (Brasil)

2Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)


Resumo

A medicalização reduz aspectos sociais, políticos, educacionais a doenças de origem biológica do sujeito que fracassa na escola, por isso, é necessário abordar esse tema na formação inicial do professor. O objetivo deste trabalho foi analisar mediações pedagógicas no processo de aprendizagem do conceito científico “medicalização na educação” com estudantes de pedagogia. A partir da teoria da psicologia histórico-cultural com base em Vigotski e do método do materialismo histórico-dialético de Marx, foi realizado um experimento formativo com uma turma de pedagogia de uma universidade pública. As mediações pedagógicas se basearam na hierarquia conceitual sobre o referido conceito através de reflexões críticas, do brincar, da prática de estágio, das leituras e dos registros escritos. O experimento formativo possibilitou maior aprendizagem conceitual sobre a medicalização na educação e seus determinantes, e contribuiu com a identificação de possibilidades de enfrentamento. Conclui-se que as práticas pedagógicas humanizadas, juntamente com a mediação do brincar, podem ser estratégias de combate à medicalização.

Palavras-chave: Medicalização; Conceitos científicos; Pedagogia; Brincar

Abstract

Medicalization reduces social, political, educational aspects to diseases of biological origin of the person who fails in school, so, it is necessary to address this theme in the initial teacher formation. The objective of this work was to analyze pedagogical mediations in the learning process of the scientific concept of “medicalization in education” with pedagogy students. Based on Vygotsky’s theory of cultural-historical psychology and Marx’s historical-dialectical materialism method, a formative experiment was carried out with a pedagogy class from a public university. The pedagogical mediations were based on the conceptual hierarchy of the aforementioned concept through critical reflections, fun and games, internship practice, readings and written records. The formative experiment allowed a greater conceptual learning about medicalization in education and its determinants, and contributed to the identification of confrontation possibilities. It is concluded that humanized pedagogical practices, along with the mediation of playing, can be strategies to combat medicalization..

Keywords: Medicalization; Scientific concepts; Pedagogy; Playing

Resumen

La medicalización reduce los aspectos sociales, políticos, educativos a enfermedades de origen biológico del sujeto que fracasa en la escuela, por lo que es necesario abordar este tema en la formación inicial de los docentes. El objetivo de este trabajo fue analizar las mediaciones pedagógicas em el proceso de aprendizaje del concept científico de “medicalización em la educación” con estudiantes de pedagogía. A partir de la teoría de la psicología histórico-cultural basada em Vygotsky y del método del materialismo histórico-dialéctico de Marx, se llevó a cabo un experimento formativo con una clase de pedagogía de una universidad pública. Las mediaciones pedagógicas se basaron en la jerarquización conceptual sobre el referido concepto, a través de reflexiones críticas, juegos, práctica de pasantías, lecturas y registros escritos. El experimento formativo permitió un mayor aprendizaje conceptual sobre la medicalización em la educación y sus determinantes, y contribuyó a la identificación de posibilidades de confrontación. Se concluye que las prácticas pedagógicas humanizadas, junto con la mediación del juego, pueden ser estrategias de combate a la medicalización.

Palabras clave: Medicalización; Conceptos científicos; Pedagogía; Jugar

Introdução

A medicalização da vida pode ser compreendida como um processo que reduz questões sociais e culturais relacionadas a diferenças de classe social, raça, etnia, gênero, sexualidade, desempenho escolar, por exemplo, a um determinismo biológico, podendo fazer com que a não adaptação de algumas pessoas às normas sociais seja diagnosticada como doença orgânica e/ou neurológica (FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE [FMES], 2015a). Tal processo é consequência de uma série de mudanças históricas nas políticas sociais, econômicas e na cultura que tiveram início na transição entre os séculos XVII e XIX decorrentes do mercantilismo e do capitalismo e que atingiram diversas áreas e estruturas da sociedade, dentre elas a ciência, a saúde e a educação (LEONARDO; SUZUKI, 2016).

Nesse período, a Medicina obteve status de ciência moderna a partir da influência do positivismo e passou a estudar a saúde e o comportamento humano por meio dos seus pressupostos, atribuindo doenças de origem biológica ao que era diferente, realizando uma forma de controle da população, definindo o que era considerado normal e anormal, atuando hegemonicamente a partir da lógica do capitalismo e alinhada à indústria farmacêutica. Nesse sentido, a medicalização atinge várias esferas, dentre elas, as políticas educacionais, atribuindo os problemas que o sistema educacional enfrenta a supostas doenças neurológicas ou psiquiátricas de estudantes, seus familiares e docentes, ignorando as condições sociais, as próprias políticas educacionais, dentre outros (FMES, 2015a).

A medicalização da educação compreende aspectos macrossociais que caracterizam a elaboração de políticas educacionais, a estruturação e organização de instituições escolares e a formação docente. Quando se trata das consequências nas práticas pedagógicas, como seu esvaziamento e a alienação dos professores, que acreditam que devem encaminhar esses alunos a especialistas em saúde e que nada podem fazer em prol de seu aprendizado, se trata da medicalização na educação. Os três processos relacionados à medicalização, da vida, da e na Educação estão interligados e possuem relação dialética entre si. Isso posto, o presente trabalho aprofundará reflexões acerca da medicalização na educação.

No Brasil, a medicalização da e na educação teve início com a higiene mental escolar, no século XX. O higienismo se baseia nos pressupostos da Eugenia, que defende uma concepção de sujeito ideal, espelhada nas classes sociais dominantes. A escola realizava uma profilaxia mental para identificar crianças doentes, para tanto, os professores, durante a graduação, recebiam formação realizada por médicos para contribuírem com essa profilaxia (FIGUEIRA; BOARINI, 2014). O higienismo culminou em concepções que naturalizaram o fracasso escolar, deram origem a investigações e teorias a-históricas, que influenciaram a formação e atuação de profissionais da saúde, da educação e a elaboração de políticas sociais que visam tratar o sujeito doente.

Para Leonardo e Suzuki (2016), a partir da lógica capitalista e da medicalização da educação, no contexto educacional se estabeleceu uma relação de mercadoria com os medicamentos e a medicina, sendo que os remédios começaram a terceirizar o trabalho que deveria ser realizado pelos familiares e docentes, atingindo as práticas e funcionamentos da escola.

Como possibilidade de enfrentamento a essa realidade, Santos, Tuleski e Franco (2016), sugerem que os docentes, familiares e profissionais da saúde sejam informados e conscientizados acerca da gênese do fenômeno da medicalização na educação, dos diagnósticos equivocados e dos malefícios dos medicamentos, através de um processo de formação que possibilite repensar as práticas realizadas e as concepções adotadas.

Nesta perspectiva, tendo em vista se constatar que a formação dos futuros professores, sua experiência profissional posterior, assim como a organização da sociedade não visam a compreensão crítica do processo da medicalização na educação defende-se, particularmente no que se refere aos estudantes de pedagogia, um experimento formativo que articule a aprendizagem de conceitos científicos sobre medicalização na educação com a formação de uma consciência crítica a respeito desse fenômeno, revelada na elaboração de estratégias de enfrentamento ao mesmo por meio de práticas pedagógicas não medicalizantes. Assim, esse texto se trata da descrição e análise de pesquisa caracterizada como experimento formativo em sala de aula, no qual se desenvolveu mediações pedagógicas para o aprendizado científico do conceito de medicalização na educação e sua aplicação pelos estudantes de um curso inicial de Pedagogia.

A orientação teórica da pesquisa foi a psicologia histórico-cultural, tal como proposto por Lev Semenovich Vigotski (1896-1934), fundamentada pela diretriz filosófica, ou método, do materialismo histórico-dialético a partir de Marx. O artigo está dividido em duas partes, quais sejam a do referencial teórico e a do relato e análise do experimento formativo.

Fundamentos teóricos e definição metodológica do estudo

Conforme esclarece Paulo Netto (2011), Marx entende o homem como um ser constituído em relações interpessoais e com a natureza, marcadas pela forma de organização da dinâmica social decorrente de estrutura produtiva particular, em contexto histórico específico, de modo que para esse processo de constituição contribuem decisivamente sua inserção de classe, sua relação com a arte e a educação, dentre outros. Assim, coerente com tal concepção, a investigação de um fenômeno ou objeto impõe a necessidade de resgatar os determinantes fundamentais na dinâmica social que constitui sua gênese, bem como apontar as formas que toma o fenômeno no seu desenvolvimento.

Ao contrário de certa perspectiva gnosiológica, que atribui ao pesquisador o poder de dizer o que é o fenômeno com base em pressupostos subjetivos, a perspectiva ontológico-histórica, depreendida da obra de Marx, demanda que o pesquisador lance mão de estratégias metodológicas diversas na busca pela essência do fenômeno, que o constitui mas que não está aparente na sua forma e que se revela nas determinações fundamentais de caráter social e histórico que possibilitaram sua constituição enquanto fenômeno particular. Trata-se, portanto, de processo crítico de construção do conhecimento, no qual se explicitam as condições para a transformação do objeto estudado.

Coerente com tais princípios, Vygotski (2013) investigou a gênese, a estrutura e o funcionamento das funções psicológicas superiores, ressaltando nesse processo o papel das aprendizagens em diferentes contextos, mas notadamente no contexto educacional formal, em que são trabalhados os conceitos científicos. Ele entendia que o ser humano tem duas linhas de desenvolvimento, uma biológica e outra cultural, que embora profundamente integradas possuem características e funções bastante diferenciadas. A primeira remete aos aspectos genéticos e maturacionais que configuram as funções psicológicas elementares, e a outra foca as funções psicológicas superiores, fruto da inserção do sujeito no meio social e na cultura, como são exemplos a linguagem oral e escrita, a atenção voluntária, a formação de conceitos e o pensamento abstrato.

O trabalho do psicólogo russo estava fundado em três pressupostos: o primeiro, defendia que se deve estudar processos, e não partes isoladas do fenômeno investigado, através do resgate histórico do seu desenvolvimento; o segundo, apontava a importância de explicar, e não descrever, pois o propósito é compreender as relações e mediações que constituíram o que é estudado; e o terceiro, propunha a análise genética até o ponto de partida, identificando as funções psicológicas fossilizadas que estariam na base das funções superiores atualmente observadas. Estas, com base na sua lei genética do desenvolvimento cultural, primeiro são externas, sociais e interpsíquicas, e só posteriormente, através da internalização, se tornam intrapsíquicas. Para tanto, a mediação social efetivada por meio dos signos, instrumentos psicológicos que possibilitam ao sujeito, através da linguagem, se apropriar dos objetos e da cultura, exerce papel fundamental.

Ou seja, aqui é ressaltado o papel do processo de aprendizagem, compreendido pelo autor como uma fonte de desenvolvimento, embora não idêntico a ele, ou seja, dois processos diferentes entre si. Ao enfatizar a relação entre aprendizagem e desenvolvimento Vigotski ressalta o papel da aprendizagem escolar, capaz de dinamizar o desenvolvimento em face da intencionalidade, do planejamento e da mediação pedagógica sob que está fundado. Como esclarece Prestes (2010), Vigotski propôs o conceito de zona de desenvolvimento iminente, que pressupõe dois níveis de desenvolvimento: o atual, compreendido pelas funções psicológicas já estabelecidas e que podem ser avaliadas por meio das ações que a pessoa faz sozinha, sem apoio, e o iminente, relativo ao que está amadurecendo e que requer colaboração de um terceiro – como no caso do professor.

Ou seja, tanto a educação escolar tem papel de destaque para o desenvolvimento, quanto o professor ocupa lugar diferenciado nesse contexto. Sua função é organizar intencionalmente as atividades e mediações, considerando a zona de desenvolvimento iminente dos alunos, para promover a qualificação dos processos de pensamento que se efetiva no decorrer da aprendizagem de conceitos científicos, oportunizando aos estudantes – e a si mesmo – maior consciência acerca da realidade.

Como ensina Vygotski (2013), os conceitos possuem relação supraordenada e subordinada, formando um sistema que possui interrelação, hierarquia e generalização. Sua formação pressupõe três fases, a saber: sincrética, na qual a criança forma significados a partir do agrupamento de objetos, conforme a impressão do momento; pensamento por complexos, considerada a fase mais importante, em que os significados são formados a partir de relações concretas, e não por impressões ocasionais, sendo composta por cinco tipos de complexos que constituem uma sequência: associativo, por coleções, em cadeia, difuso e pseudoconceito; e a fase do conceito potencial, marcada pela abstração, necessária para examinar um aspecto do objeto separado dele e hierarquiza-lo em relação aos demais elementos que constituem o objeto.

Essas diretrizes, que tanto apontam a perspectiva filosófica que norteia a abordagem do tema, quanto delineiam o contexto teórico mais amplo em que se insere o estudo, foram também fundamentais para a definição da estratégia metodológica a ser adotada, qual seja o experimento formativo. Nesta direção, o planejamento dos procedimentos obedeceu aos pressupostos do ensino desenvolvimental, como pensado por Davydov (1986). Por meio de uma articulação teórica que integra a Psicologia Histórico-Cultural, a Teoria da Atividade e os estudos da Didática, o autor contribui com a reflexão sobre a aprendizagem de conceitos científicos, a constituição do pensamento dos alunos e as funções psicológicas superiores.

No entender de Libâneo (2004), a Teoria da Atividade pode ser compreendida como uma continuidade da Psicologia Histórico-Cultural, desenvolvida por Rubinstein, Leontiev e Luria. A atividade, que remete ao conceito marxista de trabalho, é compreendida como principal mediação entre o homem e o mundo, consistindo na condição sine qua non para a apropriação cultural e a consequente constituição do psiquismo humano, da consciência. Para que promova desenvolvimento, deve satisfazer uma necessidade, estar orientada para um objeto que se refere a um motivo para sua realização. Tais componentes garantem que a realização da atividade não seja mecanizada e nem alienada, pois o sujeito terá consciência do objeto.

Leontiev (2006) propôs a atividade principal como a que promove maior desenvolvimento das funções psicológicas superiores, não a que é mais realizada pelo sujeito. Há diferentes atividades principais, conforme a história do desenvolvimento humano, como o brincar na infância, o estudo na idade escolar e na adolescência e o trabalho para os adultos. Como esclarecem Rigon, Asbahr e Moretti (2016), a mudança da atividade principal não significa que a anterior deixou de contribuir com seu desenvolvimento, mas sim que surgiu outra, com maior relevância.

A atividade principal de estudo ressalta a função da educação escolar e da atividade pedagógica mediada pelo professor. É esperado que a educação escolar difunda o conhecimento acumulado historicamente, de forma que o professor deve organizar intencionalmente as atividades pedagógicas para que os estudantes possam se apropriar dos conceitos científicos, desenvolver funções psicológicas superiores, se emanciparem e se humanizarem (RIGON, ASBAHR; MORETTI, 2016).

Davydov (1986) criticava o ensino tradicional, por possibilitar apenas o desenvolvimento do pensamento empírico, sem a apropriação da essência dos fenômenos estudados. Embora tenha adotado o conceito de atividade tal como proposto por Leontiev (2006), no tocante ao processo de humanização e estruturação do pensamento através do ensino, defendia que tal efeito somente pode ser observado se a prática pedagógica desenvolver o pensamento teórico. Assim, propôs o ensino desenvolvimental, de acordo com o qual a aprendizagem dos conceitos científicos e a atividade de estudo devem possibilitar a análise dos determinantes do objeto de estudo, de forma que os estudantes compreendam sua gênese, constituição e desenvolvimento (RIGON; ASBAHR; MORETTI, 2016).

Com base em tais pressupostos teóricos e filosóficos, Davydov (1986) propôs a metodologia do experimento formativo. Ao abordar a relação entre ensino, aprendizagem e desenvolvimento psíquico integral como um problema pedagógico, colaborou com a elaboração de subsídios para repensar a organização da mediação docente. Assim, seu experimento formativo envolve ensino e pesquisa e permite que o professor e/ou pesquisador realize uma intervenção e observe a gênese das novas funções psicológicas superiores. Nas suas palavras,

A realização do experimento formativo pressupõe a projeção e modelação do conteúdo de novas formações mentais a serem constituídas, dos meios psicológicos e pedagógicos e das vias de sua formação. Na investigação dos caminhos para realizar esta projeção (modelo) no processo do trabalho de aprendizagem cognitiva com as crianças, pode-se estudar também as condições e as leis de origem, de gênese das novas formações mentais correspondentes (DAVYDOV, 1986, p. 187).

De acordo com essa metodologia, as atividades devem iniciar com um diagnóstico do conhecimento dos alunos em relação ao que será estudado; suscitar a reflexão, análise e planejamento para a resolução de problemas; associar teoria e prática, para apreenderem as particularidades do objeto estudado e sua gênese; e oportunizar a reflexão sobre a intervenção (DAVYDOV, 1986).

O experimento formativo com estudantes de pedagogia

Tratou-se de estudo em contexto de doutorado, no qual os participantes, inicialmente, foram 25 estudantes com idade entre 20 e 35 anos, sendo cinco do sexo masculino e vinte do feminino, do sexto período noturno do curso de pedagogia de uma universidade pública de Natal, Rio Grande do Norte. Posteriormente, constatou-se que apenas sete estudantes cumpriram todas as etapas indicadas no experimento, sendo decorrente do material por eles produzido a análise realizada do processo de trabalho que se apresenta ao longo deste texto.

A opção pela pedagogia considerou, por um lado, a constatação de que é grande o número de professores que contribui com práticas medicalizantes no interior das escolas e, por outro, que sua formação para atuar nos anos iniciais da educação básica e na gestão escolar não tem oportunizado reflexão sobre o fenômeno da medicalização na educação.

O experimento formativo foi realizado entre final de julho e dezembro de 2016, junto aos alunos da Disciplina Integradora do Curso de Pedagogia 31 (DICP3), que é curricular e obrigatória. A escolha dessa disciplina levou em conta seu plano de ensino, que propunha a elaboração de práticas pedagógicas e aprendizagem de conteúdos que possibilitassem a reflexão crítica, a indissociabilidade entre teoria e prática, o respeito à diversidade, o trabalho em equipe e interdisciplinar e a integração entre todas as disciplinas cursadas no semestre. Tendo em vista essa integração com as disciplinas a serem cursadas no semestre e considerando que dentre elas se encontrava um estágio curricular obrigatório na educação infantil, avaliou-se junto com a coordenação do Curso que o estágio representava ótima oportunidade para o experimento formativo.

Sem perder de vista a ementa e os objetivos da disciplina, inicialmente organizou-se os conceitos especificados para a compreensão acerca da medicalização da vida e na educação. Para tanto, os conceitos foram previamente analisados tendo em vista uma hierarquia nas suas relações, de modo que alguns foram considerados como principais e outros como secundários. Os conceitos principais definidos foram medicalização da vida, da e na educação. Definiu-se como conceitos secundários associados com medicalização da vida os de saúde e doença, normatização da sociedade, determinismo biológico e papel da indústria farmacêutica.

Para os conceitos principais medicalização da e na educação, foram definidos como secundários os de relação entre a sociedade e a escola, a função social da escola e do pedagogo. Além de obedecer às relações hierárquicas identificadas entre os conceitos, eles foram apresentados a partir do resgate das transformações históricas que tinham relação com eles.

A realização do experimento junto à educação infantil ensejou uma reflexão sobre o papel do lúdico como estratégia formativa, levando a contemplar o brincar no trabalho com os participantes do estudo. Para tanto, considerou-se a proposição do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade acerca da realização do brincar como forma de enfrentamento ao fenômeno da medicalização nos contextos da saúde e da educação (FMES, 2015a), bem como proposições teóricas da psicologia histórico-cultural. Segundo Elkonin (1998), o brincar envolve afetividade e cognição, não sendo uma ação biológica, instintiva no ser humano. Ao contrário, tem origem social e inaugura um período de desenvolvimento da infância que promove a apropriação cultural e a formação de conceitos e de novas funções psicológicas, como atenção, abstração, controle voluntário do comportamento. O adulto também tem suas brincadeiras e jogos, mas já não geram a mesma qualidade no desenvolvimento psíquico, pois o trabalho adquiriu esse papel.

Alguns autores enfatizam que o brincar se trata de uma dimensão significativa do ser humano, que é relevante para a prática docente e deve ser inserido na formação inicial (LUCKESI, 2014; PEREIRA, 2005; TELES, 2004). Para Luckesi (2014), além do estudo teórico sobre o tema, a formação docente deve contemplar a experiência do brincar para propiciar a aprendizagem, por meio de atividades que suscitem a reflexão acerca da trajetória pessoal e formativa, da função social da escola, do pedagogo e de sua futura prática pedagógica com os alunos. Pereira (2005) considera que atividades envolvendo a brincadeira na formação inicial do professor, garantem aos futuros profissionais experiências que podem resgatar uma dimensão essencial de seu desenvolvimento, que influencia seu psiquismo, as relações que estabelece e o trabalho que desenvolverá.

Esclarece a autora (PEREIRA, 2005) que essa dimensão é ocultada em função de mudanças sociais, políticas e econômicas decorrentes do capitalismo, que fizeram com que o foco da educação fosse disciplinar, racionalizar, controlar os alunos, enfatizando a aprendizagem de conteúdos teóricos, dissociados de aspectos afetivos, espirituais, culturais. Ou seja, uma educação que prepara o indivíduo para o trabalho, de forma passiva e obediente, excluindo a diversidade, a reflexão crítica e o brincar, desumanizando o processo de ensino e aprendizagem, os sujeitos aprendizes, os docentes e a sociedade, que são elementos importantes que caracterizam o fenômeno da medicalização na Educação.

Para o estudo em tela, as atividades do experimento de ensino foram planejadas em conjunto com a professora doutora Beatriz, docente responsável pela disciplina DICP3. As aulas eram semanais, com duração de duas horas, totalizando 16 aulas no semestre; foram organizadas em três etapas, conforme as unidades avaliativas da disciplina.

A etapa inicial constou de cinco aulas, sendo que na primeira, por meio de um questionário, buscou-se identificar os conhecimentos dos estudantes acerca da função do pedagogo na escola, do fenômeno da medicalização e da importância do brincar para a atuação do pedagogo. As três aulas seguintes tiveram por objetivo refletir criticamente sobre os conceitos de função social da escola e do pedagogo e da relação entre escola e sociedade, utilizando imagens, letras de música, contos e poesias que tratam da infância e da escola, além de dois textos acadêmicos (CORTELLA, 2008; NADAL, 2009) que discutem a história das políticas educacionais, as mudanças na escola e na atuação do professor.

A última aula foi destinada a conhecer e a refletir sobre experiências alternativas de escolas brasileiras, que pudessem trazer outras formas de organização e planejamento pedagógico, a partir do livro “Volta ao mundo em 13 escolas”, de Gravatá (2013), e de imagens da Campanha Pé no Chão também se Aprende a Ler (FÓRUNS EJA BRASIL, 2006), ocorrida em Natal, em décadas anteriores. No final da etapa, foi solicitado aos alunos que elaborassem um texto em que discorressem acerca do que compreenderam sobre o papel da escola e do pedagogo na sociedade e na escola atual.

No diagnóstico inicial, os sete estudantes cujo trabalho é objeto da análise aqui efetuada, expressaram que o brincar contribui para a aprendizagem de forma prazerosa, mas nada foi mencionado sobre a importância para a própria formação e sua influência na futura atuação profissional. No que tange à medicalização na educação, cinco dentre os sete não souberam explicar, sendo que os outros dois conseguiram elaborar algo que pode ser compreendido como pseudoconceito. Ou seja, apresentaram alguns tópicos e conceitos secundários que integram a hierarquia conceitual, como consumo de remédios, mas reproduzindo algum material consultado para responder à questão.

Esse déficit conceitual e o desconhecimento a respeito dessa realidade parece contraditória, pois o fenômeno cresce no país cada vez mais, incluindo os diagnósticos e o consumo de medicamentos (FMES, 2015a). Contudo, essa aparente contradição se revela como uma face do próprio fenômeno da medicalização, qual seja aquela em que se identifica a manipulação ideológica no sentido da naturalização das práticas medicalizantes e do comportamento estereotipado. Alguns estudantes, na terceira etapa, ao serem expostos ao conceito, reconheceram que já tinham ouvido falar, mas sem perceber a dimensão do problema.

O segundo trabalho escrito revelou vários registros reflexivos sobre a própria formação em andamento, o quanto era baseada em conteúdos teóricos dissociados da prática e sem criticidade. Disseram que essas atividades reflexivas, críticas, que resgatam a historicidade da função da escola e do professor, juntamente com a exposição de experiências alternativas de escola, pois ajudam a compreender que a realidade foi construída pelos sujeitos e pode também por eles ser transformada.

Nessa etapa, a mediação pedagógica planejada visou um primeiro resgate histórico dos determinantes da medicalização, através do estudo de mudanças que afetaram a economia, a cultura, a ciência e as políticas sociais, como a saúde e a educação. Por mais que esses conceitos, juntamente com a discussão acerca da função social da escola e do pedagogo, já tivessem sido estudados, a aprendizagem obtida não havia propiciado compreensão crítica acerca da realidade atual. Esse aspecto foi considerado como o primeiro determinante da alienação dos alunos a respeito da medicalização na educação, identificado no experimento.

A segunda etapa constou de três momentos, distribuídos em nove aulas, a primeira das quais teve por objetivo refletir sobre a importância do brincar na prática pedagógica do professor. Foi disponibilizado para leitura um artigo científico (VINHOTI; SANTOS, 2007) que aborda a relevância do brincar para o desenvolvimento infantil e para a prática pedagógica do professor, juntamente com um estudo de caso em que era elucidada uma situação na qual a medicalização na educação estava presente.

Na segunda aula a turma assistiu ao documentário brasileiro Tarja Branca (2014), com o propósito de resgatar memórias da infância e pensar acerca da relevância do brincar para todos os períodos de desenvolvimento do ser humano. Vale ressaltar que esse documentário também aborda o fenômeno da medicalização da vida, mas sem uma explicação científica.

O documentário discute o quanto as mudanças sociais e culturais têm alterado a infância e as atividades dos adultos. É apontada a cobrança para que a criança desenvolva sempre mais habilidades e competências, tendo em vista sua posterior inserção no mercado de trabalho. São demandas que visam cada vez mais aspectos cognitivos e menos os afetivos, retirando o brincar do seu dia a dia, em detrimento de atividades de estudo. Sobre os adultos é mostrado que, diante de tantas responsabilidades, exigências e excesso de trabalho, brincam cada vez menos, acarretando desânimo, desinteresse, sofrimento, prejuízo da afetividade e das relações sociais.

Para as duas aulas seguintes foi proposta oficina de brincadeiras, seguida de uma roda de conversa que oportunizou reflexão sobre os momentos vivenciados até então, nessa etapa e na anterior.

O terceiro momento dessa segunda etapa foi organizado em torno do estágio curricular obrigatório, contexto prático da formação docente. Alguns problemas ocorreram nessa fase do experimento formativo, pois os alunos com os quais se trabalhava eram do turno noturno. Primeiro, eles deveriam estagiar em escolas de Educação Infantil, ou seja, no matutino ou vespertino, mas a maioria trabalhava e a prática ocorreu em salas da Educação de Jovens e Adultos, no turno noturno. Depois, constatou-se que quase todos já tinham concluído seu estágio, e que apenas cinco ainda estavam fazendo observações e iniciando o planejamento da prática do estágio. Mesmo assim, todos os estudantes foram orientados a analisar criticamente as instituições onde estagiavam, tendo em vista a infraestrutura, projeto político pedagógico, trabalho realizado, comunidade escolar, para identificar uma situação problema e planejar uma intervenção tendo como base o brincar.

Dois registros escritos foram elaborados nessa segunda etapa, sendo o primeiro para refletir acerca dos sentimentos vivenciados em função das atividades feitas e sobre a importância do brincar no trabalho do pedagogo, e o segundo, sobre a análise diagnóstica da escola onde estagiaram e a proposta de intervenção planejada e – possivelmente – executada.

O primeiro registro proporcionou a expressão de muita afetividade, reflexão acerca da própria trajetória pessoal, da formação profissional e da futura atuação. Apreenderam que o brincar não é algo restrito à infância e que a sociedade atual, a escola e o trabalho, da forma como estão estruturados, acabam afastando-os dessas atividades lúdicas. Demonstraram perceber as consequências desse estado de coisas para seu desenvolvimento pessoal e para seu trabalho, assim consolidando a reflexão realizada na primeira etapa. Alguns questionaram se, ao desaprender a brincar, seriam capazes de trabalhar com crianças e planejar adequadamente as atividades, com medo de se relacionarem com elas como miniadultos, sem compreenderem as reações e comportamentos próprios daquele período de desenvolvimento.

Essa reflexão corrobora com dados da pesquisa de Teles (2004), que verificou que a concepção sobre o brincar, de professoras que trabalhavam com a Educação Infantil, influenciava a relação que estabeleciam com as crianças e, consequentemente, as mediações pedagógicas, prejudicando ou favorecendo o processo de ensino e aprendizagem dos alunos. As docentes que consideravam o brincar como uma atividade que apenas representava lazer e passa tempo estabeleciam condutas mais disciplinadoras e conflituosas com os alunos, enquanto as que compreendiam o brincar como promotor do desenvolvimento e da aprendizagem apresentavam uma relação mais próxima, o que contribuía com a aprendizagem das crianças.

O segundo registro revelou análises diagnósticas bem críticas das quatro escolas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e de uma de Educação Infantil, onde os sete alunos que tiveram seus registros analisados estagiaram. A escola de Educação Infantil possuía boa infraestrutura para possibilitar muitas brincadeiras. No caso da EJA, as aulas se caracterizavam por atividades de cópia do conteúdo do quadro e exercícios individuais, com pouco debate ou esclarecimentos de dúvidas. Os projetos de intervenção buscaram valorizar a cultura dos alunos, identificando o que para eles era lúdico. Além disso, na intenção de melhorar as relações interpessoais entre os estudantes das turmas acompanhadas e entre eles e seus professores, de modo a motivar e estimular a participação em sala, incluíram atividades como simular compras em supermercado, aplicando os conceitos das quatro operações matemáticas, aprendidos em sala.

Nessa segunda etapa, as mediações pedagógicas relacionadas ao brincar proporcionaram outro resgate da trajetória pessoal dos estudantes, o que possibilitou entender a relação entre a própria história, o lugar social que ocupam na sociedade como adultos, as condições concretas de vida, as transformações causadas pela escolarização e pelo trabalho. Concluíram que a proposta de educação e de trabalho vigentes na sociedade capitalista engendrou práticas desumanizantes, e que lhes era atribuída doença caso não se adaptassem. A experiência do estágio, assim, se revelou práxis transformadora, com aprendizagem de conceitos científicos e reflexão crítica, para aqueles que conseguiram realizar o diagnóstico, planejar e intervir em uma situação problema, a partir do brincar.

Os aspectos citados que caracterizavam a cotidianidade da realidade social apenas permitiam aos estudantes uma explicação pseudoconcreta das razões para os fenômenos com que lidavam. Todavia, a práxis pedagógica baseada no brincar e a experiência do estágio possibilitaram identificar e analisar alguns determinantes de fenômenos como a medicalização, qualificando seu pensamento e superando a fragmentação e visão unilateral (KOSIK, 1976).

A terceira e última etapa do experimento, em razão de paralisações ocorridas na instituição de ensino onde ele foi realizado, foi bem curta, com apenas duas aulas. Elas tiveram como objetivos promover a compreensão acerca do fenômeno da medicalização e refletir sobre a atuação do pedagogo para o seu enfrentamento. Os conceitos medicalização da vida e na educação foram abordados, juntamente com os de normatização da sociedade, determinismo biológico, saúde e doença. Na primeira aula, os conceitos foram trabalhados por meio de poesias de Perez (2016), da escala Snap IV (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO DÉFICIT DE ATENÇÃO, 2010), para diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, de um vídeo com o título Medicalização da vida escolar (2006) e de três estudos de caso publicados por Souza (2014).

Na segunda aula, foram exibidos dados da indústria farmacêutica, do consumo de medicamentos no Brasil e em outros países (FMES, 2015b); também foi feito relato de uma experiência de estágio em psicologia, realizado numa escola de ensino fundamental, com crianças submetidas ao processo de medicalização na educação. Essa experiência contribuiu para a elaboração de práticas pedagógicas desmedicalizantes, que abordaram os conteúdos escolares por meio do brincar, respeitando as possibilidades de aprendizagem e de desenvolvimentos dos alunos.

Por fim, foi desencadeada reflexão geral sobre todas as atividades vivenciadas e aprendizagens proporcionadas no decorrer do semestre, integrando os conceitos abordados, com o objetivo de ajudar na compreensão das relações e da hierarquia entre eles. Para concluir, foi solicitado o último registro escrito, no qual os estudantes deveriam expressar o que entenderam sobre medicalização na educação e acerca dos limites, possibilidades, desafios na formação e atuação do pedagogo para o enfrentamento desse fenômeno.

O conteúdo desses registros revelou que quatro estudantes desenvolveram conceito científico sobre medicalização na educação, muito embora a aluna que não conseguiu também demonstrou ter avançado conceitualmente sobre o tema. Fundamentalmente, os sete estudantes refletiram criticamente acerca do papel da escola, de como ela está atravessada pelo fenômeno da medicalização, o que isso acarreta aos alunos e ao processo de ensino e aprendizagem, os prejuízos para a atuação do professor, que deixa de planejar atividades à espera de que o medicamento faça efeito e resulte em aprendizado, esvaziando sua prática pedagógica. Em decorrência, puderam conceber possibilidades de enfrentamento ao fenômeno, identificando o papel do pedagogo.

Para ilustrar os resultados do experimento formativo é importante comparar as respostas de uma aluna, aqui denominada Bianca, primeiro para o diagnóstico, e depois para a atividade escrita final. Sua definição inicial de medicalização é boa, porém imprecisa, faltando-lhe associar o fenômeno à sala de aula e ao processo ensino-aprendizagem, bem como identificar o papel do professor para que a situação se consolide.

Acredito que Medicalização seja o termo usado para o uso de remédios, talvez de forma exagerada e inapropriada, por meio de diagnósticos frágeis, para crianças em idade escolar que não apresentam um comportamento considerado ‘adequado’ por parte dos profissionais que atendem essa criança (BIANCA, 2016a)

Na última resposta ela conseguiu expressar outros elementos conceituais, sua relação e maior generalização, demonstrando compreender o impacto do fenômeno na escola.

Medicalização é o processo de tornar médico um problema ou alteração de ordem social. O Conselho Nacional de Psicologia diz que a medicalização é o processo que transforma questões de ordem social, política, cultural em distúrbios, transtornos, atribuindo ao indivíduo uma série de dificuldades que o inserem no campo das patologias. Vivemos em uma sociedade que pretende “normalizar” todos os aspectos da vida do ser social. Então as pessoas que não se encaixam no perfil ‘normal’ consequentemente têm uma patologia, uma doença, e isso é sério. Um dos versos de Elaine Perez em seu poema perturbador Transbordamento alerta: “Estamos imersos em olhares viciados em mirar a falta. Olhar clínico para identificar toda e qualquer distorção, distúrbio, pontos que incomodam”. O que falta é doença, o excesso é doença, então se recorre ao médico e ao remédio. Esse enquadramento se torna ainda mais evidente no cotidiano escolar. Na escola essa visão patológica de um comportamento, ou desvio do comportamento padrão vai ser estabelecido nas doenças do não-aprender: dislexia, transtornos de déficit de atenção com ou sem hiperatividade (TDAH), transtorno opositor desafiador (TOD) (BIANCA, 2016b).

[...]

É preciso que a escola olhe esse ‘escolar’ com problemas de comportamento e dificuldades de aprendizagem de uma maneira integral, minimizando as consequências desastrosas de uma medicalização. Nesse panorama não adentramos nas condições de trabalho do professor, nem da escola, a qual este aluno pertença. Sabe-se que no geral existem contextos difíceis e que realmente necessitam de melhorias, mas essa realidade não pode esvaziar a importância desse olhar integral e individual para cada aluno, e da responsabilidade de cada profissional em entender e atender de forma eficaz as necessidades pedagógicas desse alunado (BIANCA, 2016b).

[...]

Acredito que a brincadeira pode e deve ser usada para além da atividade pedagógica, deve ser usada como forma de potencializar a afetividade, a criatividade, a interação entre os pares, a emoção e o entendimento dessa emoção, o conhecimento e todos os benefícios citados ao longo desse pequeno texto. Que pode ser uma ferramenta extremamente eficaz no combate à medicalização escolar. Que o professor mesmo com suas condições difíceis de trabalho, precisa ter responsabilidade e olhar além do ‘normal’, e vencer a tentação de buscar uma solução mágica para o enfrentamento de dificuldades de aprendizagem (BIANCA, 2016b).

O avanço conceitual de Bianca (2016b), obtido por meio da participação no experimento formativo, em que as mediações pedagógicas são planejadas intencionalmente, possibilitou a elaboração de uma proposta de enfrentamento ao fenômeno a partir dos seguintes aspectos: o olhar para o aluno não deve ser homogêneo, de controle e disciplinarização, mas sim integral, considerando aspectos cognitivos, afetivos, culturais, sociais, além das questões institucionais e da condição de trabalho do próprio professor. O brincar surge como possibilidade para conquistar esse processo de humanização das relações escolares, mesmo diante de condições de trabalho precárias.

A organização da explicação acerca do conceito de medicalização também ocorreu por meio de um resgate histórico. Os estudantes leram o texto de Leonardo e Suzuki (2016), que traz concepções de professores acerca das causas do mau comportamento, do não aprender e do efeito do medicamento. Tal conteúdo, junto com dados sobre consumo de medicamentos, quando apresentados para um grupo de alunos já sensibilizados pela importância de se humanizar a educação e a sociedade, se tornou muito significativo, gerou mudanças psíquicas que qualificaram processos de pensamento e contribuíram para aprendizagem conceitual.

A análise dos registros escritos de cada etapa elucidou três categorias, quais sejam a mediação, o brincar e a práxis pedagógica. Elas possibilitam, no plano abstrato, a compreensão da gênese do fenômeno da medicalização na educação, seus determinantes e, consequentemente, dos meios de enfrentamento ao mesmo. Franco (2015) explica que a práxis acontece quando a prática pedagógica é planejada intencionalmente para promover mediações que visem à intervenção no objeto estudado para transformá-lo, por meio da indissociabilidade entre teoria e prática, ação e reflexão. Para Nascimento (2014, p. 371), tal prática só ocorre se houver mediação simbólica no decorrer do processo de ensino e aprendizagem, pois ela “[...] participa ativamente no processo de tomada de consciência e domínio conceitual de fatos e fenômenos, no processo de desenvolvimento intelectual do estudante”.

Conclusões

O experimento formativo foi planejado e realizado com estudantes de pedagogia, conforme os pressupostos de Davydov (1986), da psicologia histórico-cultural e do materialismo histórico-dialético.

Inicialmente, a partir de diagnóstico conceitual realizado, foi identificada uma contradição, pois os participantes não apresentaram nenhum conceito sobre medicalização, apesar de ser um fenômeno em crescimento nas últimas décadas. A mediação pedagógica foi planejada em três etapas, contemplou reflexão crítica, atividades de leitura, realização de brincadeiras, diagnóstico e análise de situações problema, elaboração de intervenção e de registros escritos reflexivos. A análise dos registros escritos possibilitou a identificação dos determinantes que engendraram a referida contradição identificada.

Na primeira etapa foi possível identificar o primeiro determinante, que se refere à não realização do resgate histórico acerca da função social da escola e do pedagogo com reflexão crítica, para possibilitar a compreensão das mudanças provocadas pelo homem e pela sociedade e que a realidade não deve ser naturalizada, mas sim constantemente transformada.

Na segunda etapa, promover o resgate de memórias da infância, oportunizou a identificação do outro determinante, pois oportunizou a compreensão de que a prática educativa nas instituições educacionais e o trabalho para o adulto excluem o brincar, promovendo a mecanização e desumanização, o que impacta a sua formação enquanto pedagogos e futura atuação profissional. A realização do estágio possibilitou o diagnóstico, a análise, a elaboração e realização de uma intervenção pedagógica, caracterizando a práxis pedagógica, por meio da articulação entre teoria e prática, o que se configurou como o terceiro determinante.

Na terceira etapa, através do resgate histórico dos aspectos que constituíram a medicalização da vida, da e na educação, assim como a hierarquia conceitual que o representa possibilitaram a elucidação do quarto determinante.

A análise dos registros escritos produzidos pelos participantes desvelou as categorias mediação, brincar e práxis pedagógica, que oportunizaram a apreensão, no plano abstrato, da gênese, estrutura e funcionamento da medicalização na educação e de seus determinantes Esse percurso promoveu aprendizagem conceitual, no qual os estudantes realizaram abstrações, resultando, enfim, no desenvolvimento do pensamento teórico e de funções psicológicas superiores em adultos, no contexto do ensino superior. A partir dessa aprendizagem conceitual os estudantes puderam sugerir formas de enfrentamento ao fenômeno, ressaltando práticas pedagógicas mais humanizadas, críticas e reflexivas, que respeitem a diversidade e superem os preconceitos, para as quais o brincar se revelou como importante fator de mediação.

É fundamental ressaltar que o enfrentamento da medicalização implica em propor ações que visam a qualidade do ensino e a educação democrática, para todos, que deve se estruturar em torno da diversidade e da participação, garantir a valorização docente, os direitos humanos e a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva.

Nota

1Os nomes dos participantes e da disciplina são fictícios para manter o sigilo.

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Recebido: 06 de Abril de 2021; Aceito: 04 de Junho de 2021

Profa. Dra. Vânia Aparecida Calado

Universidade Potiguar (Brasil)

Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicologia Histórico-Cultural (NEPHC/UFRN)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-9529-5347

E-mail: vaniacaladopsi@gmail.com

Prof. Dr. Herculano Ricardo Campos

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicologia Histórico-Cultural (NEPHC/UFRN)

Orcid id: https://orci.org/0000-0003-0366-9773

E-mail: herculanorcampos@gmail.com

Profa. Dra. Cynara Teixeira Ribeiro

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd/UFRN)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-7109-2630

E-mail: cynara_ribeiro@yahoo.com.br

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