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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.60 Natal abr./jun 2021  Epub 19-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n60id24757 

Artigo

Formação docente no modelo realista-reflexivo: uma aproximação do contexto brasileiro

Teacher formation within the realistic-reflective model: an approach to the Brazilian context

La formación docente en el modelo realista-reflexivo: una aproximación al contexto brasileño

1Instituto Federal de Minas Gerais (Brasil)

2Universidade de Girona (Espanhal)


Resumo

O modelo de formação docente realista-reflexivo consiste em uma abordagem neovygotskiana de construção colaborativa dos conhecimentos descritivo e normativo em simbiose com a prática por meio da reflexão crítica cíclica e autorregulada: consideram-se as experiências e os conhecimentos prévios, o sistema de crenças e os valores dos professores. Este artigo tem o objetivo de aproximar esse modelo ao contexto brasileiro, apresentando suas principais características, etapas, ciclos reflexivos, marcas de autorregulação, guia da aprendizagem e rubrica de avaliação. Observa-se a pertinência do modelo para o país e sua potencialidade, e também precauções, para sua adoção na Educação a Distância (EaD). Conclui-se que o Brasil pode ser beneficiado com a formação de professores no prisma realista-reflexivo, sobretudo na modalidade de EaD. Esse ainda é um campo pertinente que precisa ser intensamente pesquisado e praticado.

Palavras-chave: Formação realista-reflexiva; Formação docente; Educação a distância

Abstract

The realistic-reflective teacher formation model consists in a neo-Vygotskian collaborative construction approach of descriptive and normative knowledge in symbiosis with practice through self-regulated cyclical critical reflection: it considers teachers’ prior experiences and knowledge, the system of beliefs and values. This article aims to bring this model closer to the Brazilian context, presenting its main characteristics, stages, reflective cycles, self-regulation marks, and guide for learning evaluation rubric. It is observed the relevance of the model for the country and its potential, and also its precautions, for Distance Education (EaD) adoption. We conclude that Brazil can benefit from teacher formation in the realist-reflective perspective, especially in the EaD modality. This is still a pertinent field that needs to be intensively researched and practiced.

Keywords: Realistic-reflective formation; Teacher formation; Distance Education

Resumen

El modelo de formación docente realista-reflexivo consiste en un enfoque neo-vygotskiano de construcción colaborativa de los conocimientos descriptivo y normativo en simbiosis con la práctica, a través de la reflexión crítica cíclica y autorregulada: se consideran las experiencias de los docentes y sus conocimientos previos, el sistema de creencias y los valores del profesorado. Este artículo tiene como objetivo acercar este modelo al contexto brasileño, presentando sus principales características, etapas, ciclos reflexivos, marcas de autorregulación, guía del aprendizaje y rúbrica de evaluación. Se observa la relevancia del modelo para el país y su potencialidad, y también las precauciones, para su adopción en la Educación a Distancia (EaD). Se concluye que Brasil puede beneficiarse de la formación docente en la perspectiva realista-reflexiva, especialmente en la modalidad EaD. Este todavía es un campo relevante que necesita ser intensamente investigado y practicado.

Palabras clave: Formación realista-reflexiva; Formación docente; Educación a distancia

Introdução

O paradoxo socrático “ipse se nihil scire id unum sciat” traduzido do latim como “só sei que nada sei” (ADKIN, 1999) é um ponto de partida importante para a filosofia da educação. Observando homens que se achavam sabedores, Sócrates observa que sabe mais que eles: pelo fato de dar-se conta de que ele não sabe. A frase conjuga-se em um paradoxo porque Sócrates sabe pelo menos uma coisa, que ele não sabe! (DAMO, 2015).

Isso implica que sempre se sabe algo, mas nem sempre se tem consciência do desconhecido (DAMO, 2015). Kruger e Dunning (1999, p. 30) chegaram empiricamente à essa conclusão. Eles constataram que “[...] as habilidades que geram competência em um determinado domínio são, muitas vezes, as mesmas habilidades necessárias para avaliar a competência nesse domínio”. Dessa forma, ocorre um fenômeno que ficou conhecido como efeito Dunning-Kruger: aqueles que menos sabem, por serem incapazes de avaliarem o (des)conhecimento, são confiantes e sobrevalorizam suas habilidades; já aqueles que mais sabem, por vislumbrarem a complexidade do tema, tendem a ser cautelosos e, por vezes, inseguros.

A ideia da transmissão passiva de conhecimentos povoa a ficção literária: como na obra de Stoker (2020), onde Drácula aprende a língua inglesa bebendo sangue de um inglês. Ou ainda, a transmissão de conhecimentos normativos e o controle social por meio de fármacos como a droga SOMA da distopia Admirável Mundo Novo de Hurxley (2014).

Entretanto, alunos de uma formação pedagógica (inicial ou continuada), por exemplo, não são recipientes vazios aptos a serem passivamente preenchidos com conhecimentos e teorias (ALSINA; MULÀ, 2019). Podemos argumentar sobre isso apresentando dois motivos: de um lado, eles não estão vazios, pois existirão conhecimentos implícitos, crenças e experiências prévias (ESTEVE; MELIEF; ALSINA, 2010); de outro lado, eles podem não estar aptos por não saberem que não sabem e, portanto, não estarem convencidos da necessidade da própria formação. Além disso, como Korthagen (2010, p. 98) critica a transmissão passiva de conhecimentos (entendido aqui como métodos tradicionais de aula expositiva) dizendo que se desejamos alunos com “[...] capacidade de construir seu próprio conhecimento, de refletir sobre suas próprias visões de mundo e de desenvolver sua identidade pessoal e missão na vida”. Devemos pensar a formação dos professores em coerência a isso.

O modelo realista-reflexivo possui essa coerência partindo dos conhecimentos e experiências prévios, e sistema de crenças para a transformação profissional. Fomentando o desenvolvimento de uma identidade profissional adequada: por meio da reflexão individual e social, de forma autorregulada e autônoma: capacidade de decidir (ESTEVE; ALSINA, 2020), com a incorporação teórica mediante a significação dos conceitos (ALSINA; MULÀ, 2019).

Ele apresenta-se como uma terceira via à dicotomia entre o “[...] aprender a teoria antes para aplicá-la depois [...] ou o [...] aprender na prática (estágio, tentativa e erro)” (ESTEVE; MELIEF; ALSINA, 2010). Onde aprendizado ocorre de maneira simbiótica entre a prática e a teoria (ALSINA; BATLLORI; FALGÁS; GÜELL; VIDAL, 2016). A formação é planejada e executada com instrumentos e atividades que possibilitem e fomentem ciclos de reflexão completos, como no modelo ALACT (sigla melhor explicada adiante no texto - Action, Looking back on the action, Awareness of essential aspects, Creating alternative methods of action, Trial) (ESTEVE; MELIEF; ALSINA, 2010). Autonomia do professor na autorregulação do aprendizado e por meio de rubricas de avaliação específicas, como a Rubrica de Avaliação da Reflexão Narrativa (NARRA) (ALSINA; AYLLÓN; COLOMER, 2018).

O modelo já é uma realidade em países como Espanha e Países Baixos (ALSINA; BATLLORI, 2013; ESTEVE; MELIEF; ALSINA, 2010). Este artigo tem o objetivo de aproximar esse modelo ao contexto brasileiro, apresentando-se suas principais características, etapas, ciclos reflexivos, marcas de autorregulação, e rubrica de guia e verificação da aprendizagem. Observa-se a pertinência do modelo para o país e sua potencialidade e precauções para a Educação a Distância (EaD), um novo campo que se abre a novas investigações.

1. Formação realista-reflexiva

1.1. Por que uma formação realista-reflexiva?

Assim, consideramos a existência de duas matemáticas. Essas diferentes mateÉ senso comum que a prática docente não pode apoiar-se na mera intuição, no empirismo e na tentativa e erro (ESTEVE; MELIEF; ALSINA, 2010). Faz-se necessária a incorporação de conhecimentos chaves e lições a serem aprendidos de uma base científica de diversas áreas ligadas à formação de professores (ALSINA; MULÀ, 2019). Por outro lado, os cursos tradicionais apresentam uma teoria na forma descritiva que nem sempre é bem compreendida ou percebida como pertinente para o professor em formação. Este, muitas vezes, frustra-se ao tentar colocá-la em prática, percebendo que o conhecimento não se traduziu em competências e habilidades, por fim, o professor passa a enxergar a teoria como desnecessária, incorreta ou desconexa com a sua realidade (BOGHOSSIAM, 2006).

Korthagen (2010) propõe um modelo de cebola para os níveis de reflexão do docente com uma visão holística de aspectos profissionais e pessoais, incluindo contexto (físico-social), comportamento, competências, crenças, identidade e missão; desde o nível mais superficial ao mais profundo respectivamente.

Benedict XVII (2007, p. 24, tradução nossa) diferencia dois tipos de conhecimentos: cumulativo e não cumulativo. No primeiro caso é possível um progresso incremental, como na ciência, por exemplo, em que ele vai aumentando. “No entanto, no campo da consciência ética e da tomada de decisões morais, não há possibilidade semelhante de acumulação pela simples razão de que a liberdade do homem é sempre nova e ele deve sempre tomar suas decisões de novo”.

Sidorkin (2018, p. 1227) explica que o conhecimento cumulativo é descritivo, enquanto o não cumulativo é normativo. Segundo ele, “[...] [a] prática da educação não é homogênea a esse respeito: em algumas áreas, simplesmente damos às pessoas um conhecimento descritivo sem um objetivo normativo claro”. O conhecimento descritivo não atua diretamente no comportamento, educadores inclinam-se em direção à normatividade. Porém, o autor adverte sobre um paradoxo da cumulatividade e seus efeitos inesperados: conhecimentos normativos são do tipo: “você deve fazer isso” ou “você não deve fazer aquilo”, esse conhecimento “[...] aciona a cláusula de livre arbítrio e sua aceitação torna-se uma questão de escolha” (p. 1228). Dessa forma, conhecimento se tornam crenças, que são fortes em nos mover, mas fracas porque podemos não aceitá-las.

Assim, a adoção de um quadro normativo e a imposição de uma conduta e de um perfil indenitário profissional “padrão” poderá não atingir os efeitos almejados. Sendo pertinente, apresentar diversas formas diferentes de trabalhar e pensar a agencia docente: autonomia e a capacidade de saber decidir (ESTEVE; ALSINA, 2020).

Entendo a relação holística, complexa e sistêmica existente elementos explicitados Korthagen (2010) no modelo de cebola. Propomos um modelo, não hierárquico (em termo de profundidade), mas que se faça a distinção entre aspectos internos: conhecimento teórico (descritivo e normativo), competências, crenças, valores e domínio afetivo; de aspectos externamente visíveis: contexto, recursos (humanos, materiais e tecnológicos), comportamento e discurso. No centro e na interface entre o interno e o externamente visível, encontram-se a identidade profissional e pessoal e a missão do sujeito. O modelo é nomeado como campo de futebol, por seu formato como pode ser visto na Figura 1.

Figura 1 Modelo de campo de Futebol sobre a identidade pessoal e profissional e sua missão do professor. 

Por meio dele podemos observar que a externalização no comportamento do professor de um conhecimento teórico aprendido e de competências desenvolvidas é um processo complexo e que engloba mais elementos complementares e por vezes condicionantes, como o contexto e os recursos disponíveis.

Assim, o professor pode ter um determinado conhecimento teórico e as competências necessárias para aplicá-lo, mas observa-se que por efeito de algum elemento, ou mais provavelmente alguns outros combinados, ele estabelece outro discurso ou tem comportamento incoerente. Ele pode não acreditar nesse conhecimento; ter conflito com seus valores éticos, morais ou religiosos; ou achar incompatível com seu estado no domínio afetivo (pode estar desmotivado, por exemplo, e sabe que tal prática lhe exigiria maior esforço). Ou ainda, o contexto em que o docente se encontra, a exemplo a pandemia da Covid-19 ou a falta de recursos restringe a possibilidade de diversas atividades.

Hanna, Oostdam, Severiens e Zijlstra (2019, p. 22) fizeram uma revisão bibliográfica de instrumentos quantitativos sobre a identidade profissional, na qual foram capazes de “[...] categorizar seis domínios - autoimagem, motivação, compromisso, autoeficácia, percepção da tarefa e satisfação no trabalho - que podem ser vistos como demarcações importantes e relevantes da identidade do professor”. No modelo de futebol a Identidade profissional é posicionada ao meio indicando que ela interage com todos os elementos internos e externamente visíveis, e que, portanto, para atuar na construção dessa identidade a formação e as experiências vividas pelo professor devem abranger esses elementos.

Faz-se preciso uma formação realista-reflexiva que escape das dicotomias entre “aprender a teoria para aplicar depois” ou “aprender na prática” (ESTEVE; MELIEF; ALSINA, 2010), entre “conhecimento descritivo” e “conhecimento normativo” (SIDORKIN, 2018) e que incorpore fatores mais amplos da prática docente como a capacidade de decidir (ESTEVE; ALSINA, 2020) e a identidade profissional docente (HANNA; OOSTDAM; SEVERIENS; ZIJLSTRA, 2019). Esteve, Melief e Alsina (2010) propõem uma terceira via: o modelo realista-reflexivo. Este se caracteriza por aprender da prática simbioticamente com a teoria, considerando os conhecimentos e experiências prévias, diversas forma de atuar e o contexto físico-social em que o professor se insere (ALSINA, 2019).

“Como a maioria das boas ideias, entretanto, suas raízes são bem mais antigas” (SHULMAN, 1986, p. 4). Alsina (2019) explica que o modelo realista-reflexivo que converge três principais pressupostos: teoria sociocultural (VYGOTSKY, 1978), a reflexividade do profissional docente (SCHÖN, 1983) e uma perspectiva realista do ensino (FREUDENTHAL, 1991). A seguir se aprofunda o estudo do modelo realista-reflexivo.

1.2. O modelo realista-reflexivo

Para observar as principais características do modelo, começamos explorando as três etapas de desconstrução, co-construção e reconstrução de uma formação realista-reflexiva dentro de um processo de transformação de conhecimentos, crenças e valores à competência profissional (identidade profissional) (ESTEVE; MELIEF; ALSINA, 2010). Depois, apresenta-se o ciclo reflexivo ALACT (KORTHAGEN, 2010) relacionando-o com essas etapas. Então, se conhecerão as 12 marcas de autorregulação de Alsina, Batllori, Falgás e Vidal (2019) e a Rubrica de Avaliação da Reflexão Narrativa (NARRA) (ALSINA; AYLLÓN; COLOMER; FERNANDEZ-PEÑA; FULLANA; PALLISERA; PÉREZ-BURRIEL; SERRA, 2017).

Alsina, Batllori, Falgás e Vidal (2019) identificam três etapas na formação realista-reflexiva: 1) desconstrução: estudantes tomam consciência das experiências prévias, dos conhecimentos implícitos, dos valores e crenças, ocorre o conflito cognitivo; 2) co-construção: interação com a metodologia da formação (contexto universitário), com a teoria, e social (entre pares e o professor formador) de compartilhamento dos conhecimentos implícitos, valores e crenças, que suportam a reflexão e a construção de conhecimento; finalmente 3) reconstrução: envolve interação consigo e com a prática (contexto da escola), nessa etapa evidencia-se a transformação dos conhecimentos implícitos, valores e crenças em conhecimento crítico e competência profissional. Entre as etapas, observam-se os quatro tipos de interações distinguidos desde uma perspectiva socioconstrutivista por Van Lier (2004): consigo, com iguais, com especialistas e com conceitos.

Da teoria vygostkiana, pode-se destacar o processo social, esta cria uma dinâmica de aprendizagem interativa: primeiro internamente, o professor sente a necessidade de reflexão e da estruturação do pensamento para conseguir expressar um discurso sobre o seu conhecimento, suas experiências, valores e crenças (ALSINA; BUSQUESTS; ESTEVE; TORRA, 2006). Em seguida, ele observa diferentes interpretações sobre a prática e o saber docente e compara fazendo novas reflexões (ALSINA; BATLLORI; FALGÁS; GÜELL; VIDAL, 2016).

A Figura 2 ilustra o referido processo de transformação, destaca-se na parte superior (verde) a trajetória do professor em formação. Partindo dos conhecimentos prévios e sistema de crenças, passando pelas três etapas descritas anteriormente de Desconstrução, co-construção e reconstrução.

Figura 2 Elementos para a transformação profissional docente (ALSINA; MULÀ, 2019, tradução nossa). 

Conflitos cognitivos e contradições, destacado na etapa de desconstrução, ocorrem porque o professor reflete sobre comportamentos que ele desenvolveu por hábito, e não tinha refletido sobre eles. Porque ele percebe uma variedade de formas de atuação. Conforme mencionado anteriormente no modelo de campo de futebol na Figura 1, pode haver incoerência entre elementos internos e externamente visíveis, por exemplo, entre o discurso e o comportamento sobre um determinado tema; a tomada de consciência dessa incoerência também gera conflito cognitivo.

Ainda tratando sobre a mesma imagem, na parte inferior apresentam-se ações e atividades da formação (professor em formação). Estas se relacionam com os processos de transformação dos alunos, e por isso devem estar sincronizadas (SERDÀ; ALSINA, 2013). Propõem-se desafios, manejam-se os conflitos cognitivos e a incorporação de teoria, conduz-se o processo reflexivo.

O modelo circular do ciclo reflexivo permite atravessar etapas de desconstrução, co-construção e reconstrução do conhecimento (ALSINA; BATLLORI; FALGÁS; GÜELL; VIDAL, 2016). O modelo ALACT se baseia na alternância entre “ação” e “reflexão” (ALSINA; BATLLORI; 2013). Como pode ser visto na Figura 3.

Figura 3 Modelo ALACT: Sigla do inglês - ação, olhando de volta para a ação, consciência de aspectos essenciais, criando métodos alternativos de ação, comprovar em uma nova ação 

Observam-se no modelo ALACT cinco fases, ação ou experiência; olhar para trás de volta à ação; determinar os pontos essenciais; buscar e preparar comportamentos alternativos para atuar; e comprovar em uma nova situação (ALSINA; BATLLORI; FALGÁS; GÜELL; VIDAL, 2016). O ciclo permite que os próprios alunos, individual e socialmente, e de maneira autônoma e autorregulada (ESTEVE; MELIEF; ALSINA, 2010) construam o seu conhecimento normativo, a partir do desenvolvimento da capacidade de decidir (ESTEVE; ALSINA, 2020), na observação de diversas formas de agir, e a busca por conhecimento teórico (descritivo), segundo uma necessidade percebida.

1.3. Portfólio

O portfólio é um instrumento de guia que possibilita a autorregulação da aprendizagem pelo aluno (ALSINA; BATLLORI, 2013), fomentando um diálogo interno importante para a percepção da evolução (via comparação do ponto de partida e o estado atual), além de ser um espaço para observar o ciclo ALACT: com reflexão sobre a prática, sobre a aprendizagem e sobre as próprias reflexões, chamada metarreflexão (SERDÀ; ALSINA, 2013; ALSINA;BATLLORI, 2013).

Serdà e Alsina (2013) aplicaram a ferramenta portfólio continuamente à formação realista-reflexiva e, por retroalimentação dos alunos, progressivamente foram evoluindo-a. Os resultados apontaram para a necessidade de orientação para as atividades do portfólio, incluindo competências, objetivos, avaliação e bibliografia. Sugeriu-se também que os conteúdos das aulas e as atividades do portfólio estejam coordenados, por exemplo, utilizando-se um cronograma. Os resultados do trabalho direcionaram, ainda, para o uso de plataformas digitais (como o Moodle) com um portfólio misto (papel e digital), com avaliações e retroalimentações automáticas, e tutoria para suporte dos alunos, permitindo uma aprendizagem adaptável e sincronizada ao ritmo dos alunos.

A seguir são tratadas as marcas de autorregulação que são identificadas na formação realista-reflexiva com o uso de portfólio (ALSINA; BATLLORI; FALGÁS; VIDAL, 2019) e depois se aborda a Rubrica de Avaliação da Reflexão Narrativa (NARRA) que podem ser designadas com a função de avaliação progresso dos alunos (ALSINA; AYLLÓN; COLOMER; FERNANDEZ-PEÑA; FULLANA; PALLISERA; PÉREZ-BURRIEL; SERRA, 2017) e também como guia e instrumento de autorregulação (ALSINA; AYLLÓN; COLOMER, 2018).

1.4. Marcas de autorregulação

Alsina, Batllori, Falgás e Vidal (2019, p. 57) pesquisaram o conjunto de marcas de autorregulação: elementos do processo formativo que devem ser tratados de forma explicita pois permitem “[...] assumir metas, planejar sua atuação, observá-la com uma visão crítica e avaliar as próprias estratégias para formular novas ações de melhoria”. Os autores identificaram cinco marcas presentes principalmente na etapa de desconstrução: experiências prévias; crenças sobre si mesmo; crenças sobre o funcionamento da aula; conhecimento disciplinar implícito (conteúdo) e conhecimento didático implícito (pedagógico). Ainda mais sete marcas que se concentrariam nos momentos de co-construção e desconstrução: interação com o contexto do centro escolar; interação com contexto da universidade; interação subjetiva; interação com os pares; interação com o especialista; interação com a teoria e conhecimento profissional crítico.

As marcas de autorregulação são importantes para que o aprendizado não se restrinja à carga horária do curso, mas que ela ocorra ao longo de toda vida profissional (ALSINA; BATLLORI; FALGÁS; VIDAL, 2019). A seguir observa-se uma breve descrição de cada uma das doze marcas de autorregulação aplicado à formação de professores na matemática. Aqui se propõe pensar essas marcas de uma forma abrangente a outras áreas do conhecimento:

  1. Experiências prévias: situações passadas que deixaram a sua marca na construção da identidade matemática ou na construção da identidade profissional para o ensino da matemática.

  2. Crenças sobre si mesmo: o olhar interno como aluno ou como futuro professor.

  3. Crenças sobre o funcionamento da aula: os preconceitos sobre as linhas metodológicas das escolas, a forma de gerir a prática docente de cada professor e ainda as relações entre os profissionais.

  4. Conhecimento disciplinar implícito: a visão sobre a matemática e os conhecimentos que a compõem.

  5. Conhecimento didático implícito: visão sobre como ensinar matemática.

  6. Interação com o contexto do centro escolar: o contraste com o contexto da sala de aula escolar a partir da observação participante e da aprendizagem situada.

  7. Interação com o contexto da universidade: o contraste com o contexto da sala de aula universitária baseado na participação ativa e na aprendizagem situada.

  8. Interação subjetiva: diálogo introspectivo.

  9. Interação com os pares: comunicação com os outros.

  10. Interação com o especialista: comunicação com o formador.

  11. Interação com a teoria: o contraste com a teoria (disciplinar e didática) vinculado à construção da identidade profissional.

  12. Conhecimento profissional crítico: o resultado do processo de construção autorregulada da própria identidade profissional, que inclui competências profissionais e o pensamento crítico (ALSINA, 2019, p. ANO 69-70).

As marcas de autorregulação respondem aos principais aspectos da formação realista-reflexiva, como uma abordagem que considera as experiências prévias, crenças e conhecimentos implícitos dos professores junto com a interação com a teoria (ESTEVE; MELIEF; ALSINA, 2010). Além disso, observam-se elementos relacionados à realidade da prática docente e os contextos que ele transita, escola e universidade; e o sua interação social, consigo mesmo, pares e especialistas. As marcas de autorregulação veem-se refletidas em instrumentos de avaliação da aprendizagem, como a Rubrica de Avaliação da Reflexão Narrativa (NARRA), que é tratada a seguir.

1.5. Rubrica de Avaliação da Reflexão Narrativa (NARRA)

Alsina, Ayllón e Colomer (2018) explicam que a Rubrica de Avaliação da Reflexão Narrativa (NARRA) foi proposta e validada na perspectiva dual: avaliativa e guia na aprendizagem, ela se configura como uma estrutura em que se expressam as marcas de autorregulação, onde “deve haver uma internalização, de um nível de funcionamento inter-psicológico para um nível intrapsicológico, para que ele possa se tornar uma ferramenta de aprendizagem que aciona uma avaliação formativa autorregulada” (ALSINA; AYLLÓN; COLOMER; FERNANDEZ-PEÑA; FULLANA; PALLISERA; PÉREZ-BURRIEL; SERRA, 2017, p. 151).

Alsina, Batllori, Falgás, Güell e Vidal (2016) estabeleceram quatro elementos da rubrica: a) Situação, atividade ou experiência que desencadeia a reflexão; b) preconcepções e crenças; c) investigação e foco; d) transformação. Estes elementos possuem indicadores que são avaliados em níveis de 1 a 4, segundo critérios específicos a cada elemento, como pode ser observado na Tabela 1. Fernández-Peña, Saurina, Serra, Fullana, Alsina, Colomer, Ayllón, Burriell e Pallisera 2016 propõem o instrumento validado para ser aplicado sobre narrativas reflexivas feitas por alunos na etapa de reconstrução da formação realista-reflexiva de modo a se verificar de modo estrutura as marcas de autorregulação e a completude do ciclo ALACT de Korthagen, Kesseils, Koster, Lagerwerf e Wubbels (2001).

Tabela 1 Rubrica de Avaliação da Reflexão Narrativa 

Indicadores Níveis da rubrica
1 2 3 4
ELEMENTO 1: Situação, atividade ou experiência que desencadeia a reflexão. Seleção e análise de uma situação sobre a qual será feito o processo reflexivo.
1.1. Identifica e descreve o foco da reflexão de uma forma contextualizada. Não identifica fontes de reflexão sobre uma experiência específica. Identifica focos de reflexão de uma experiência concreta e vivida, mas é trivial ou pouco importante. Identifica um foco significativo de reflexão sobre uma experiência específica e vivida. Identifica um ou mais focos relevantes de reflexão sobre uma experiência concreta e vivida.
1.2. Faz julgamentos sobre o foco da reflexão. Escreve uma dissertação retórica e descontextualizada. Escreve uma descrição fora do contexto. Escreve uma descrição que carece de alguns elementos de contexto. Escreve uma descrição contextualizada.
Indicadores Níveis da rubrica
1 2 3 4
ELEMENTO 2: Preconcepções e crenças: consciência das próprias crenças, dos conhecimentos e das experiências prévios..
2.1. Especifica, analisa e elabora crenças ou ideias sobre si mesmo. Não especifica ideias ou crenças prévias sobre si mesmo. Especifica algumas ideias ou crenças prévias sobre si mesmo, sem aprofundamento na explicação Especifica ideias ou crenças prévias sobre si mesmo e as analisa. Especifica ideias ou crenças prévias sobre si mesmo, as analisa e avalia. Por exemplo, explica porque chegou nessas crenças e as relaciona com experiências pessoais e analisa sua história.
2.2. Especifica, analisa e elabora sobre ideias ou crenças prévias sobre o contexto Não especifica ideias ou crenças prévias sobre o contexto. Especifica ideias ou crenças prévias sobre o contexto sem explicá-las. Especifica ideias ou crenças prévias sobre o contexto e as analisa. Especifica ideias ou crenças prévias sobre o contexto e as analisa e avalia.
2.3. Especifica, analisa e elabora sobre ideias ou crenças sobre a disciplina / profissão. Não especifica ideias ou crenças prévias sobre a profissão ou disciplina. Especifica ideias ou crenças prévias sobre a disciplina ou profissão sem explicá-las. Especifica ideias ou crenças prévias sobre a disciplina ou profissão e as analisa. Especifica ideias ou crenças prévias sobre a disciplina ou profissão e as analisa e avalia.
ELEMENTO 3: Indagando e / ou focalizando: pesquisando possíveis ações dos alunos por meio de focalização, perguntas e hipóteses.
3.1. Foca sobre problemáticas e hipóteses e faz perguntas sobre o foco de reflexão. Não especifica problemáticas ou hipóteses sobre o foco de reflexão. Especifica problemáticas ou hipóteses gerais sobre si mesmo, mas não as examina ou discute. Especifica e se concentra em problemáticas e hipóteses sobre foco de reflexão, mas não as expande. O aluno não desenvolve um processo de investigação sobre o foco ou reflexão. Especifica e se concentra em problemáticas e hipóteses e também inicia um processo de investigação sobre o foco de reflexão.
3.2. Foca sobre problemáticas e hipóteses e faz perguntas sobre o contexto. Não especifica problemáticas ou hipóteses sobre o contexto.. Especifica problemáticas ou hipóteses gerais sobre o contexto, mas não as examina ou discute.. Especifica e se concentra em problemáticas e hipóteses sobre o contexto, mas não as expande. O aluno não desenvolve um processo de investigação em contexto. Especifica e se concentra em problemáticas e hipóteses que podem levar a um processo de investigação no contexto.
3.3. Foca sobre problemáticas e hipóteses sobre a ação profissional. Não especifica problemáticas ou hipóteses sobre a atuação profissional. Especifica problemáticas ou hipóteses sobre a profissão ou disciplina científica, mas não as examina ou discute. Especifica e se concentra em problemáticas e hipóteses sobre a atuação profissional, mas não as expande. O aluno não desenvolve um processo de investigação sobre a ação profissional. Especifica e se concentra em problemáticas e hipóteses que podem levar a um processo de investigação sobre a profissão ou disciplina.
ELEMENTO 4: Transformação: Definindo objetivos de aprendizagem concretos e futuros planos de ação, aproximando-se a um novo ciclo de reflexão. Mudança de paradigma. Argumentação sobre mudanças ou a sua necessidade.
4.1 Especifica, defende e transfere novas metas de aprendizagem. Não especifica novos objetivos de aprendizagem para a transformação de qualquer crença, experiência ou conhecimento prévio (sobre si mesmo, sobre o contexto ou a profissão). Especifica objetivos de aprendizagem para a transformação de algumas crenças, experiências e / ou conhecimentos prévios (sobre si mesmo, sobre o contexto ou a profissão), mas não os discute. Não especifica novos objetivos de aprendizagem para a transformação de qualquer crença, experiência ou conhecimento prévio (sobre si mesmo, sobre o contexto ou a profissão). Especifica objetivos de aprendizagem para a transformação de algumas crenças, experiências e / ou conhecimentos prévios (sobre si mesmo, sobre o contexto ou profissão), mas não os discute.
Indicadores Níveis da rubrica
1 2 3 4
4.2. Programa novos planos de ação, e os apoia com argumentos. Não programa ações de melhoria. Programa ações de melhoria, mas não os discute. Programa ações de melhoria, mas as discute com deficiências e / ou erros. Programa ações de melhoria e as argumenta sem deficiências e erros, fechando o ciclo reflexivo.

Fonte: (ALSINA; AYLLÓN; COLOMER; FERNANDEZ-PEÑA; FULLANA; PALLISERA; PÉREZBURRIEL; SERRA, 2017, tradução nossa).

Engelbertink, Colomer, Woudt- Mittendorff, Alsina, Kelders, Ayllón, Westerhof (2020) usaram a rubrica NARRA em um estudo empírico realizado com alunos de diferentes cursos de graduação dos Países Baixos. Eles puderam concluir que refletir sobre emoções pode ser chave em atingir a reflexão crítica. E, ainda, que distinguir os componentes identificados por Hanna, Oostdam, Severiens e Zijlstra (2019) na Identidade profissional (autoimagem, motivação, compromisso, autoeficácia, percepção da tarefa e satisfação no trabalho) fornece uma imagem mais refinada sobre a habilidade de reflexão dos estudantes.

Alguns obstáculos

Morin (1990) explora extensamente os malefícios do reducionismo de sistemas complexos. Referenciando novamente o modelo de campo de futebol apresentado na Figura 1, quando apenas um ou alguns elementos são tomados como causas para determinado comportamento do professor, observa-se a tendência à culpabilização em vez de um entendimento integrado e que se retroalimenta. Poderíamos destacar duas frequentes reduções.

Uma primeira redução é atribuir unicamente ao professor toda a responsabilidade pelo seu comportamento, desconsiderando a sua formação, o contexto em que ele está inserido e os recursos que lhes são oferecidos. Nesse caso ele sente um grande peso sobre si, culpando-se e frustrando-se por não conseguir atuar em coerência com a sua identidade pessoal, profissional e/ou missão. Ele sentirá que a sua formação não responde à sua realidade, e, além disso, perigosamente pode-se fomentar uma visão de que o professor precisa sacrificar-se a qualquer custo para atingir sua função, um objetivo a pesar de entraves que lhes são extrínsecos: com apoio material e social ausente ou insuficiente.

Uma segunda redução é a isenção da potência e da responsabilidade individual e culpabilização das condições extrínsecas: os alunos, a direção da escola, o sistema escolar, a falta de recursos o governo, etc. Nessa interpretação o professor pode ser tratado, e/ou sentir-se, como uma vítima. Desqualificando qualquer tentativa de formação que lhe é oferecida, uma vez que o seu comportamento estaria limitado unicamente a condições externas, o que geralmente não é o caso.

Alsina, Batllori, Falgás, Güell e Vidal (2016) citam alguns possíveis obstáculos na implantação desse tipo de formação. Existe a necessidade de se mudar a forma de ensinar, de aprender e de avaliar: uma tarefa desafiadora que nem toda universidade, ou outro centro de formação de professores, mostrar-se-ão dispostos a enfrentar. Requer-se a reflexão sobre a prática, consciência de conhecimentos prévios e crenças. Tudo isso emerge do contraste de ideias com o outro e com a teoria e pode provocar conflito emocional.

O manejo adequado desse conflito para culminar na transformação das preconcepções em competência profissional exigirá um arcabouço de novas ferramentas (portfólios, textos narrativos, questionários, etc.) que podem oferecer dificuldades tanto ao desenvolvimento dos estudantes quanto aos professores responsáveis no processo de avaliação (ALSINA, MULÀ, 2019). E se não for bem administrado podem atuar como barreiras à aquisição de novos conhecimentos e exercerem uma influência negativa sobre a construção da própria identidade profissional (ALSINA; BATLLORI; FALGÁS; GÜELL; VIDAL, 2016).

Alguns alunos expressam incômodos para falar em público e compartir crenças, relatam dificuldade na realização de tarefas de forma autônoma, como a pesquisa teórica (ALSINA, 2019). Alguns sugerem que o uso contínuo de ferramentas que promovem diálogos reflexivos poderia causar uma sensação de monotonia (ALSINA, MULÀ, 2019).

Os obstáculos, como estes aqui apresentados, não são impedimentos para implantações do modelo no Brasil, ou em outros lugares. Estratégias adequadas e os devidos cuidados devem ser tomados. Faz-se necessário um contínuo desenvolvimento teórico do modelo e de suas ferramentas, tal como pesquisas empíricas a fim de aprimorá-lo.

Formação realista-reflexiva na Educação a Distância (EaD)

Alsina (2019) relata experiência em curso de formação realista-reflexiva para alunos de licenciatura em matemática da Universidade (Desidentificada para avaliação por pares), na Espanha. Com via formativa dupla, modalidade presencial e outra híbrida (semipresencial) com guias de aprendizagem: apostando nessa opção para aqueles alunos que não poderiam assistir às aulas presenciais ou como solução para aqueles que se sentiam incomodados com o modelo na modalidade presencial ou apresentavam dificuldade de falar em público.

Em particular no contexto da pandemia da Covid-19, Esteve e Alsina (2020) fazem recomendações para o planejamento e gestão de atividades que promovam o desenvolvimento da identidade profissional docente na Educação a Distância. Faz-se servir fóruns de discussão com perguntas de sistematização do conhecimento e da reflexão individual e coletiva, no formato escrito ou no upload de vídeos à plataforma digital, e ainda espaços para retroalimentação. Para a efetivação desse aprendizado, os autores tratam sobre “[t]rês questões inter-relacionadas: fomentar a agência docente, projetar atividades que representem um desafio cognitivo para o aluno e direcionem a tomada de decisões com fundamentação (atividades prolépticas) e a mediação conceitual e social pelo formador especialista” (p. 03, tradução nossa).

Esteve e Alsina (2020, p. 10, tradução nossa) argumentam por uma estrutura com “[...] diretrizes específicas relacionadas a cada etapa do roteiro de trabalho [...]” (desafio cognitivo) e que funcione como um “[...] andaime construtivo planejado anteriormente e que permita incorporar ajudas pontuais segundo as necessidades que surjam ao longo de toda a atividade” (p. 8, tradução nossa). Dessa forma, Esteve e Alsina (2020) abordam como a mediação do professor formador se incorpora nessa estrutura.

[O]s apoios fornecidos pelo especialista, sejam eles quais forem, podem ser prestados online, através de aplicações como Google Meet, Microsoft Teams, Zoom ou Blackboard Collaborate, entre outros: cápsulas formativas baseadas em gravações curtas onde o conhecimento teórico é fornecido, apresentações em PowerPoint ou outros formatos semelhantes, artigos teóricos, etc (ESTEVE; ALSINA, 2020, p. 11).

Relatos de experiências do modelo realista-reflexiva em estruturas híbridas e apontamentos para cursos na modalidade de ensino de Educação a Distância, tudo isso, nos direcionam à possibilidade da formação realista-reflexiva nessa modalidade. Resguardados os cuidados que se deve tomar para não perder de vista os objetivos do modelo realista-reflexivo, há relevância impar pensar esse modelo na modalidade de Educação a Distância para um país com dimensões continentais como o Brasil.

Formação Realista-reflexiva no Brasil

No Brasil, existe o curso intitulado Formação realista-reflexiva baseada na obra “A arte de ser um perfeito mau professor”, este é oferecido pelo (Instituição suprimida para avaliação por pares) (RODRIGUES-SILVA, 2020) e é o primeiro e único curso encontrado que explicitamente se caracteriza dentro do paradigma em pesquisa no Google. Há alguns poucos cursos com abordagens similares, por exemplo, a Formação “em ação” dos cursos de Pedagogia a distância da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) (ARAGÓN; ZORZI; TURCHIELO, 2020).

Relembrando o objetivo desse estudo, propõe-se aproximar o modelo realista-reflexivo ao contexto brasileiro. Uma indagação importante a se fazer é sobre a sua pertinência aos membros da Comunidade de Países de Língua portuguesa (CPLP), dentre eles o Brasil (CPLP, 2020). É evidente que a formação docente deve estar alinhada com a realidade e cultura do país em que esse professor atuará.

O modelo realista-reflexivo, reforçando, advoga centralmente sobre a relação íntima e simultânea entre prática e a teoria. Nele se considera o ponto de partida do professor quanto às suas experiências e os conhecimentos prévios, crenças e valores (ESTEVE; MELIEF; ALSINA, 2010). O desenvolvimento das capacidades e da identidade profissional se dá por ciclos reflexivos com fases de pensamento individual e construção coletiva, de forma que o contexto social local interfere no processo de aprendizagem (ENGELBERTINK; COLOMER; WOUDT- MITTENDORFF; ALSINA; KELDERS; AYLLÓN; WESTERHOF, 2020).

Tratando agora especificamente sobre o Brasil que é numericamente muito expressivo em função do seu tamanho geográfico e populacional. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) contabilizou 176.403 docentes na rede pública e 209.670 na rede privada, totalizando mais de 386 mil professores em exercício na educação superior do país em 2019 (BRASIL, 2019). Já para a educação básica, o Inep registrou em 2020 uma quantidade de 2,2 milhões de docentes, sendo que a maior parte deles (63,0%) atua no ensino fundamental (BRASIL, 2021a). Sobre a qualificação dos docentes que atuam nos anos iniciais é interessante observar que nem todos possuem uma formação pedagógica: 81,8% possuem grau superior de licenciatura, porém 3,5% têm formação de bacharelado, 10,0% têm ensino médio normal/magistério, ainda 4,7% com nível médio ou inferior (BRASIL, 2021a).

O Conselho Nacional de Educação (CNE), quem define as diretrizes curriculares nacionais gerais para a educação profissional e tecnológica, versou sobre a formação docente, exigindo formação pedagógica (ou comprovação desse conhecimento) dos professores bacharéis para atuar nesse nível, incluindo aqueles que já estão em exercício e que ingressaram quando não havia essa exigência, conforme ratificado em resolução emitida em 2021 (BRASIL, 2021b).

Sobre os cursos de licenciatura, observa-se crescimento da EaD, que já supera a modalidade presencial. No ano de 2019 as matrículas em cursos de licenciatura presencial representam 46,7%, enquanto EaD são 53,3% no total de matrículas” (BRASIL, 2019, p. 22).

Finalmente, relacionando o panorama brasileiro, é pertinente pensar uma formação realista-reflexiva inicial, mas também continuada, pois a qualificação dos professores que atuam no Ensino Básico e as novas exigências para o docente do ensino tecnológico indicam que nem todos os professores em exercício têm formação pedagógica adequada para estarem atuando. No país observa-se o crescimento da modalidade EaD, de forma que a formação realista-reflexiva deve ter em vista a atuação do professor nessa modalidade, como em cursos massivos abertos (AMADO, 2020). Além disso, é interessante observar a própria formação realista reflexiva na modalidade EaD, já que a maioria dos cursos de licenciatura já são EaD, e ainda, associado às dimensões continentais e ao alto número de professores, futuros e em exercício.

Considerações finais

Na ficção cientifica o conhecimento pode ser transmitido de forma passiva, como Drácula o recebe pelo sangue (STOKER, 2020) ou a população recebendo conhecimento normativo por fármacos (HUXLEY, 2014). Conforme abordado nessa pesquisa, numa formação no modelo realista-reflexivo, porém, os conhecimentos descritivos e normativos, as competências e a identidade profissional, nada disso pode ser transmitido ou transferido já com significados impregnados, mas precisa ser construído pelo próprio indivíduo (ALSINA; BATLLORI; FALGÁS; GÜELL; VIDAL, 2016) exercendo a sua autonomia e autorregulação do aprendizado e, assim, desenvolvendo sua capacidade de decidir (ESTEVE; ALSINA, 2020).

Dessa forma, como o modelo realista-reflexivo parte da realidade e das preconcepções do professor e os objetivos de aprendizagem são personalizados, dependem e atuam sobre essa mesma realidade, pode-se concluir que o modelo se mostra adequado ao contexto Brasileiro, pois versará sobre essa realidade. Nesse caso, somado ao grande número de professores e ao tamanho continental do país, faz-se pertinente estudar as possibilidades do modelo realista-reflexivo na modalidade de Educação a Distância, na formação inicial e continuada, resguardados os cuidados metodológicos que garantem o desenvolvimento da Identidade profissional docente, conforme já apontado na literatura.

Por fim, ressalta-se que o contexto brasileiro abre um campo de crescimento e pesquisa do modelo realista reflexivo, requerem-se estudos empíricos, avanços em transpor limitações identificadas e futuras, com a análise de ferramentas e estratégias que possibilitem melhorá-lo, por exemplo, a validação/ tradução de rubricas como o NARRA ao português.

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Recebido: 12 de Abril de 2021; Aceito: 04 de Junho de 2021

Prof. Ms. Jefferson Rodrigues-Silva

Instituto Federal de Minas Gerais (Brasil)

Departamento de Engenharia Mecânica

Grupo de Pesquisa Grup de Recerca en Educació Científica i Ambiental (GRECA)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-8334-2107

E-mail: jefferson.silva@ifmg.edu.br

Prof. Dr. Ángel Alsina

Universidade de Girona (Espanha)

Departamento de Didáticas Específicas

Grupo de pesquisa Grup de Recerca en Educació Científica i Ambiental (GRECA)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-8506-1838

E-mail: angel.alsina@udg.edu

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