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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.60 Natal abr./jun 2021  Epub 19-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n60id25086 

Artigo

A dialogicidade nas aulas síncronas remotas: diálogo a partir das ideias de Bakhtin e Paulo Freire

The dialogicity in remote synchronous classes: dialogue based on Bakhtin’s and Paulo Freire’s ideas

La dialogicidad en las clases sincrónicas remotas: el diálogo basado en las ideas de Bakhtin y Paulo Freire

Mariangela Momo1 
http://orcid.org/0000-0001-9014-657X

Silvana de Medeiros da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-6343-4346

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)


Resumo

Neste artigo, em interlocução com as ideias de Bakhtin (1997, 2006) e de Paulo Freire (1967, 1992, 2013), analisamos os processos dialógicos mediados pela tecnologia digital em aulas síncronas remotas no ensino superior. Os dados empíricos foram construídos por meio de participação e observação nas aulas de dois componentes curriculares do curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do RN no segundo semestre do ano letivo de 2020. As análises apontam dificuldades na construção efetiva do diálogo e, portanto, na elaboração coletiva do conhecimento em uma perspectiva dialógica devido à perda de elementos visuais e extraverbais da enunciação, e os limites nas tomadas de turno da fala e impossibilidade de falas simultâneas. Além disso, há a dificuldade dos discentes em manter-se no diálogo por causa da necessidade de uso de tecnologias. Em contrapartida, a disponibilidade de ferramentas online surge como possibilidade de potencialização do diálogo no universo digital.

Palavras-chave: Educação; Ensino remoto; Linguagem; Dialogicidade

Abstract

In this paper, in interlocution with Bakhtin’s (1997, 2006) and Paulo Freire’s (1967, 1992, 2013) ideas we analyze the dialogic processes mediated by digital technology in remote synchronous classes in higher education. The empirical data were constructed through participation and observation in the classes of two curricular components of the Graduate Course in Education of Universidade Federal do Rio Grande do Norte in the second semester of the 2020 academic year. The analyses point out difficulties in the effective construction of the dialogue, thus, in the collective elaboration of knowledge from a dialogical perspective due to the loss of visual and extra-verbal elements of enunciation, and the limits in taking turns of speech, and the impossibility of simultaneous speech. In addition, there is the difficulty for students to maintain a dialogue because of the need to use technologies. In contrast, the availability of online tools emerges as a possibility to strengthen the dialogue in the digital universe.

Keywords: Education; Remote education; Language; Dialogicity

Resumen

En este artículo, en interlocución con las ideas de Bakhtin (1997, 2006) y de Paulo Freire (1967, 1992, 2013), analizamos procesos dialógicos en clases sincrónicas mediados por recursos de tecnología digital en la enseñanza superior. Los datos empíricos fueron construidos por medio de la participación y observación en clases de dos componentes curriculares del curso de Postgrado en Educación de la Universidad Federal do Rio Grande do Norte en el segundo semestre del año académico de 2020. Los análisis señalan dificultades en la construcción efectiva del diálogo y, por lo tanto, en la elaboración colectiva del conocimiento en una perspectiva dialógica debido a la pérdida de elementos visuales y extraverbales de la enunciación, y los límites en la toma de turnos de palabra y la imposibilidad de discursos simultáneos. Además, existe la dificultad de los estudiantes en mantenerse en el diálogo por causa de la necesidad del uso de tecnologías. En contrapartida, la disponibilidad de herramientas online surge como una posibilidad de potencializar el diálogo en el universo digital.

Palabras claves: Educación; Enseñanza remota; Lenguaje; Dialogicidad

Introdução

A institucionalização do ensino remoto na Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN), regulamentada pela Resolução nº 023/2020 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE), de 1º de junho de 2020, se deu em virtude do contexto da pandemia da Covid-19 causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) e diante da incerteza de uma data precisa para o retorno das atividades em modo presencial. Tal decisão foi pautada pela Portaria nº 343, de17 de março de 2020 do Ministério da Educação que autorizou a realização do ensino de forma não presencial em instituições públicas de ensino superior no período da pandemia.

No contexto da UFRN, como em outras Instituições de Ensino Superior, uma das possibilidades criadas foram as aulas remotas que aconteceram de forma síncrona e assíncrona durante o ano letivo de 2020. Síncrona referia-se às atividades realizadas a partir da plataforma digital Google Meet, possibilitando a participação simultânea e a interação de estudantes e professores(as). Assíncrona referia-se às atividades realizadas pelos estudantes em tempos/espaços diferentes, mediante orientações dadas pelos(as) professores(as) e recursos disponibilizados no Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas (plataforma SIGAA) da UFRN, como, por exemplo, fóruns de discussão, leituras e vídeos.

É importante pontuar que as aulas remotas não correspondem à modalidade de Educação a Distância (EaD), pois a EaD é uma modalidade de ensino com proposta pedagógica e princípios próprios que já existia amplamente em nosso país. Portanto, a EaD tem características adequadas aos processos de educação que se efetivam a distância. Além disso, existe uma rede de coordenadores, professores e monitores que, entre outras coisas, pensam, planejam, criam e avaliam materiais didáticos adequados às demandas desse tipo de ensino (BEHAR, 2020).

No caso das aulas remotas, o currículo, as metodologias e os materiais didáticos pensados e planejados para uma educação presencial geralmente são transportados e adaptados para as aulas online. Nesse sentido, o que se tem é uma espécie de adaptação de práticas didático-pedagógicas presenciais para o ambiente virtual. Por isso, registramos que os professores tiveram que reinventar as suas práticas na própria ação de exercê-las, sem tempo hábil para estudar sobre esses novos processos.

Feitas essas considerações, situamos nosso locus de pesquisa nas aulas síncronas de dois componentes curriculares do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da UFRN realizadas em atividade remota no segundo semestre do ano de 2020. Uma das autoras deste texto participou como estudante em um dos componentes curriculares, e a outra, como professora do segundo componente curricular.

A partir dos dados construídos, investigamos e analisamos como operam os diálogos em ambientes educacionais virtuais, evidenciando os desafios e as possibilidades da dialogicidade nas aulas síncronas observadas. Com esse fim, fundamentamo-nos nos pressupostos teóricos de Mikhail Bakhtin (1997, 2006) e de Paulo Freire (1967, 1992, 2013), entendendo o diálogo como procedimento indispensável aos processos de ensino e de aprendizagem.

Diálogo, encontro humano no qual a educação se faz: Mikhail Bakhtin e Paulo Freire

Na visão freiriana, o diálogo pode ser entendido como “[...] encontro dos homens mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu” (FREIRE, 2013, p. 80). É, portanto, uma condição existencial humana e não tem a ver com o ato de trocar ideias ou de depositá-las, ou ainda, de impô-las. O diálogo é ato de criação coletiva em que o eu e o tu, ou seja, o nós, se fundem na pronúncia e na transformação do mundo. Nas palavras de Freire:

O diálogo fenomeniza e historiciza a essencial intersubjetividade humana; ele é relacional e, nele, ninguém tem iniciativa absoluta. Os dialogantes “admiram” um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele coincidem; nele põem-se e opõem-se. Vimos que, assim, a consciência se existência e busca perfazer-se. O diálogo não é um produto histórico, é a própria historicização (FREIRE, 2013, p.15).

Por outro lado, o diálogo, em uma perspectiva bakhtiniana, pode ser compreendido como evento da interação social e cultural, materializado por meio de enunciados localizados em esferas comunicativas, com vistas ao encontro, confronto e entrecruzamento das diversas vozes sociais (FARACO, 2009). Nesse sentido, o caráter dialógico se dá porque todo enunciado provém de alguém e é endereçado a alguém para a construção dos sentidos elaborados na relação entre os enunciados (BAKHTIN, 2006).

É no diálogo que há o encontro e confronto das múltiplas vozes e verdades sociais, mas também é no diálogo que os sujeitos se encontram para pronunciar e construir o mundo, isto é, suas narrativas, os saberes sobre o mundo, sobre si, seus posicionamentos políticos e ideológicos, em um processo que se desenha em comunhão. Assim, não há saber mais importante ou válido, nem saber menos importante ou não válido; há saberes diferentes, e a soma dos saberes, ecoados nas múltiplas vozes, pode provocar em cada um dos falantes a conscientização (FREIRE, 2013).

Pronunciar o mundo implica dizê-lo de diversas formas, uma vez que a complexa vida humana exige modos diversos de dizer a palavra, configurando-se nos gêneros de discursos. Para Bakhtin (1997), as diversas atividades humanas compõem duas esferas comunicativas: a cotidiana e a ideológica.

Na esfera comunicativa cotidiana, os sujeitos dialogantes compartilham certa familiaridade; por conseguinte, a interação dialógica efetiva-se de modo mais espontâneo entre os interlocutores. Nessa esfera, efetivam-se os gêneros do discurso denominados como primários. Como exemplos desse gênero, citamos os diálogos, os relatos, as narrativas, e as cartas (BAKHTIN, 1997). Já a esfera comunicativa ideológica está relacionada às situações culturais mais complexas e demanda o uso de gêneros designados como secundários, como, por exemplo, os noticiários, os artigos científicos, as palestras (BAKHTIN, 1997).

Compreendemos, portanto, que o diálogo do qual falamos neste artigo se insere em uma esfera comunicativa cotidiana, mas também transita pela esfera comunicativa ideológica que circunscreve o universo acadêmico. Isso porque, no contexto educativo, as fronteiras dessas esferas são bastante tênues, de maneira que os gêneros textuais orais ou escritos podem ser compartilhados nas duas esferas (BAKHTIN, 1997).

Vale considerar que o diálogo, como um gênero oral primário, tem marcas e elementos que o constituem e que, por isso, o diferenciam de outros gêneros. Tomamos de Marcuschi (2003 apud BARBOZA, 2010) os seguintes aspectos que caracterizam um diálogo ou conversação: 1°) tomada de turnos de fala; 2°) falas simultâneas e sobreposição de vozes; 3°) pausas, silêncios e hesitações como organizadores para transição de turnos; 4°) mecanismo de correção, reparação.

Além desses elementos, podemos destacar, em conformidade com Bakhtin (1997), a entoação expressiva como aspecto extremamente importante na constituição do enunciado e na compreensão. Nas palavras de Bakhtin (1997, p. 292), “[...] a emoção, o juízo de valor, a expressão, são estranhos à palavra da língua e surgem unicamente no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto”. É a entonação da voz que conecta o verbal ao contexto extraverbal e que determina, em grande parte, a construção dos significados e sentidos na comunicação.

A dimensão extraverbal diz respeito aos elementos do enunciado que não estão explícitos, mas que são presumidos na interação, como, por exemplo, os contextos (espaços) da enunciação, a compreensão comum da situação, a avaliação da situação e os valores pertencentes ao grupo social. Todos esses elementos integram-se na composição do enunciado e na sua compreensão (MENEGASSI; CAVALCANTI, 2013). Em outras palavras:

[...] o extra verbal é caracterizado pelo que não foi dito explicitamente, portanto, não marcado em linguagem verbo-visual, em que o contexto pode ser compreendido pelos envolvidos na interação por meio de circunstâncias não linguísticas conhecidas pelos interlocutores e que complementam o sentido que se quer dar aos enunciados (MENEGASSI; CAVALCANTI, 2013, p. 435).

Além disso, os gestos, as posturas corporais e as expressões faciais são aspectos físicos que se materializam de forma muito imbricada com a voz e com a entonação. Desse modo, não os compreendemos como linguagens separadas. A voz e os elementos visuais – gestos, posturas, expressões faciais – compõem a dimensão verbal do enunciado como elementos visuais.

Para Bakhtin (2006, p. 157), “[...] é apenas através da enunciação que a língua toma contato com a comunicação, imbui-se do seu poder vital e torna-se uma realidade”. Nesse sentido, é no espaço dialógico que se efetiva o encontro das várias vozes sociais com toda a bagagem cultural que soa com elas – o que é denominado por Bakhtin (1997) de heteroglossia dialogizada. O campo educativo, então, seria um espaço por excelência para o encontro dessas vozes, o entrelaçamento das culturas. A esse respeito, Faraco assevera que:

Para Bakhtin, importa menos a heteroglossia como tal e mais a dialogização das vozes sociais, isto é, o encontro sociocultural dessas vozes e a dinâmica que aí se estabelece: elas vão se apoiar mutuamente, se interiluminar, se contrapor parcial ou totalmente, se diluir em outras, se parodiar, se arremedar, polemizar, velada ou explicitamente e assim por diante (FARACO, 2009, p. 58).

Nessa perspectiva, pode-se dizer que é no diálogo que acontece a interseção das vozes, das ideias, da cultura que apoiam e dão origem a outras e novas vozes, ficando evidente que é no diálogo que o ensino e a aprendizagem se efetivam. O diálogo na educação não pode ser entendido como transmissão de conteúdo, como faz a educação bancária (FREIRE, 2013), mas como construção coletiva e ativa das várias vozes que se encontram para pronunciar o mundo, construí-lo, conceituá-lo, apreendê-lo e transformá-lo. Nisso reside o papel da educação autêntica (FREIRE, 2013).

Além disso, em uma perspectiva freiriana, o diálogo efetiva-se buscando uma “[...] relação horizontal, nutrida pelo amor, pela humildade e confiança [...]” (FREIRE, 2013, p. 40), isto é, diálogo de A com B, e não de A para B ou sobre B, em que o mundo é o mediador. Conforme Freire (1967, p. 106), “[...] a educação é sempre algo a ser permutado com o sujeito, nunca a ser oferecido”. Portanto, entendemos que a educação se faz no diálogo horizontal, despido do autoritarismo e do caráter puramente expositivo.

Ainda nesse sentido, Bakhtin (1997) assevera que o diálogo exige a responsividade, isto é, o posicionamento ativo dos sujeitos perante os enunciados que escutam e pronunciam. Mais ainda, exige a responsividade perante a cadeia de enunciados pertencentes a determinada esfera comunicativa na qual o sujeito se movimenta. Essa atitude responsiva manifesta-se no compromisso com a própria voz e com a diversidade de vozes que circunscrevem a temática em questão.

Podemos dizer, em conformidade com os pressupostos freirianos, que o diálogo verdadeiro pressupõe amor ao mundo e às pessoas, manifestado no comprometimento com a causa humana, com a educação, com a transformação do mundo. Uma transformação possível por meio de cada sujeito da aprendizagem – educandos e educadores. Para isso, é imprescindível despir-se da arrogância e assumir a igualdade que habita a condição humana, para que seja possível o estabelecimento da confiança, sem a qual, não há diálogo. Por último, é preciso ter fé na humanidade, ter fé no seu poder criador, criativo, transformador – fé em que podemos, em comunhão com o outro e com o mundo, ser mais (FREIRE, 2013).

O diálogo congrega, entre outras características, perguntas, respostas, críticas, argumentos, hipóteses, reflexões e complementos. Com efeito, as falas podem ser acolhidas, rejeitadas, caladas ou ampliadas, em um jogo dinâmico na construção de significações e ampliação da capacidade de compreender o mundo e de atuar com vistas à transformação.

Seguindo essa linha de pensamento, Bakhtin (1997) assevera que o movimento que o ouvinte realiza para compreender o que o falante diz já caracteriza um processo dialógico. Além disso,

O fato de ser ouvido, por si só, estabelece uma relação dialógica. A palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua vez, responder à resposta, e assim ad infinitum. Ela entra num diálogo em que o sentido não tem fim (entretanto, ele pode ser fisicamente interrompido por qualquer um dos participantes) (BAKHTIN, 1997, p. 357).

Freire (1992, p. 61) defende o diálogo como método e caminho indispensáveis a uma educação balizada nos princípios democráticos, afirmando que, “[...] enquanto relação democrática, o diálogo é a possibilidade de que disponho de, abrindo-me ao pensar dos outros, não fenecer no isolamento”. Freire (1992, p. 20) também valida como uma das tarefas da educação popular, o “[...] desenvolvimento da sua linguagem [...] que, emergindo da e voltando-se sobre a sua realidade, perfile as conjecturas, os desenhos, as antecipações do mundo novo”.

O diálogo ocupa o cerne da prática educativa libertadora, constituindo-se no método de ensino e aprendizagem pelo qual educadores e estudantes pronunciam, conceituam, apreendem e transformam o mundo. Com efeito, o diálogo também se revela como objeto da própria educação popular, democrática. Ao colocar o diálogo como meio e, ao mesmo tempo, como objeto do ensino, Freire (1992) amplia as funções da linguagem no campo educativo, instigando o uso da fala como ferramenta de conscientização, libertação e luta pela justiça e igualdade.

Ademais, é no diálogo que os sujeitos têm a possibilidade de aprimorar as suas narrativas, de reformulá-las, de construir seus saberes. Nesse processo, vão se constituindo sujeitos expressivos, criativos, críticos e historicizados. É no jogo constante do diálogo que o sujeito se insere no mundo, o compreende e, portanto, pode transformá-lo e transformar a si mesmo.

O diálogo [...]. É ele, pois, o movimento constitutivo da consciência que, abrindo-se para a infinitude, vence intencionalmente as fronteiras da finitude e, incessantemente, busca reencontrar-se além de si mesma. Consciência do mundo, busca-se ela a si mesma num mundo que é comum; porque é comum esse mundo, buscar-se a si mesma é comunicar-se com o outro. O isolamento não personaliza porque não socializa. Intersubjetivando-se mais, mais densidade subjetiva ganha o sujeito (FREIRE, 2013, p. 15).

É importante consignar que a palavra, como elemento constitutivo do diálogo, congrega ação e reflexão, isto é, a palavra é práxis. É ação consciente reflexiva no mundo, materializada no diálogo (FREIRE, 2013). Nesse mesmo sentido, Bakhtin (2006) argumenta que não existe palavra neutra. Para ele, toda palavra é ideológica por natureza, isto é, implica responsividade e um posicionamento político no mundo. Além do mais, a palavra só emerge como expressão viva quando se funde à realidade concreta da vida por meio dos enunciados individuais.

Continuando com esse pensamento, o autor diz que “[...] a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre meu interlocutor” (BAKHTIN, 2006, p. 115). Desse modo, o diálogo não pode ser compreendido somente como uma interação face a face, pois toda interação põe em movimento a construção de sentidos, inclusive, decorrentes de elementos não verbais.

Assim, podemos dizer que o uso da tecnologia da comunicação inaugurou, desde o aparecimento do telefone, um novo tipo de diálogo, desprovido do caráter face a face e mediado por instrumentos que desconhecem a barreira tempo/espaço. Além disso, recentemente, o avanço e a disseminação do uso da tecnologia digital e da internet suscitaram a criação de novas redes de comunicação, tornando-se cada vez mais comum o uso de aplicativos de mensagens instantânea, correio eletrônico, chats online, participação em comunidades virtuais, webconferências e fóruns, entre outras possibilidades que permitem a interação verbal instantânea entre pessoas que estão espacialmente distantes. A construção desse novo formato de interação e, portanto, de diálogo tornou-se indispensável à vida moderna e presente em quase todos os âmbitos da atividade humana, pelo menos nos centros urbanos.

Dessa forma, no período da pandemia de Covid-19, o uso das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC), que já se fazia presente no âmbito educacional, tornou-se um dos mecanismos mais usuais para a manutenção das aulas. Por conseguinte, ferramentas como celular, computadores, WhatsApp e Google Meet tornaram-se recursos essenciais, pelos quais os encontros entre docentes e discentes puderam efetivar-se, permitindo algum tipo de processo de ensino e de aprendizagem.

Contudo, convém questionar: Como opera o diálogo em aulas síncronas remotas mediadas por ferramentas da tecnologia digital? Quais os desafios e as possibilidades implicados nessas interações?

Caminhos metodológicos: uma discente e uma docente compreendendo a dialogicidade nas aulas observadas

Os procedimentos metodológicos para a construção dos conhecimentos foram fundamentados na abordagem qualitativa, tendo em vista o desenvolvimento de um enfoque interpretativo. Partimos da compreensão de que os dados seriam construídos de modo articulado a nossas posições de pesquisadoras, uma na condição de estudante-pesquisadora e outra na condição de professora-pesquisadora, e ao arcabouço teórico escolhido.

Distanciando-nos de uma pretensa neutralidade, escolhemos fazer uso de técnicas que se aproximam da etnografia virtual que faz uso de princípios metodológicos da etnografia, aplicados a ambientes virtuais. O termo virtual é usado para identificar diferenças entre a etnografia tradicional e a etnografia aplicada ao ciberespaço, tais como: distanciamento do espaço físico; uso de instrumentos que se interpõem entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa; e campo de pesquisa, que, neste caso, é um espaço virtual, uma tela (POLIVANOV, 2013).

Contudo, “[...] as características principais, as bases da etnografia devem ser mantidas quando se usa a internet como lugar de pesquisa [...], referência a uma localidade específica e a observação participante” (MILLER; SLATER, 2001 apud POLIVANOV, 2013, p. 9). Aproximamo-nos, então, de alguns dos princípios da etnografia (VELHO, 1994) como possibilidade de estarmos imersas nos ambientes pesquisados, frequentando as aulas e realizando observações e registros focados no objeto a ser investigado.

Embora os procedimentos metodológicos também possam ter alguma proximidade a outras metodologias de pesquisa, escolhemos como enfoque principal a etnografia virtual uma vez que ela

[...] funciona como um módulo que problematiza o uso da Internet: em vez de ser inerentemente sensível, o universo WWW adquire sensibilidade em seu uso. O status da rede como forma de comunicação, como um objeto na vida das pessoas e como local de estabelecimento de comunidades sobrevive pelos usos, interpretados e reinterpretados, que são feitos disso (HINE, 2004, p. 80).

Feitas essas observações, convém delinear nosso locus e sujeitos do/no ambiente virtual. Tivemos como locus da pesquisa o espaço virtual, no caso, a plataforma virtual do Google Meet em que as aulas síncronas dos dois componentes curriculares do PPGED aconteceram. Ao todo foram 12 encontros com duração de duas horas cada durante o segundo semestre do ano letivo de 2020.

Os sujeitos da pesquisa foram quatro professores e quarenta estudantes que compõem as duas turmas, sendo dois professores por turma. Optamos por não revelar os nomes dos dois componentes curriculares a fim de ocultar as identidades dos(as) professores(as) e discentes. Com o mesmo propósito, nas transcrições dos diários de campo utilizamos letras maiúsculas para representar os nomes dos estudantes, assim garantindo seu anonimato.

Como principal procedimento metodológico, utilizamos a observação das aulas, tendo como foco principal as interações verbais/diálogos entre os discentes e entre estes e os(as) professores(as). Durante as observações, realizamos registros em um diário de campo. Também consideramos a gravação das aulas, realizada pelos próprios professores(as) e disponibilizada para nossas análises mediante solicitação. Na transcrição das falas registrarmos os enunciados na forma como foram elaborados oralmente, por considerarmos que a linguagem oral tem marcas que a diferencia da linguagem escrita.

Cabe destacar que, no componente em que uma das autoras deste texto atuou como professora, as aulas consideradas para a pesquisa foram somente aquelas ministradas majoritariamente por sua colega de trabalho, já que foi um componente curricular compartilhado entre duas professoras.

O material construído nas observações foi agrupado, considerando cinco aspectos – ambiente, mediação, conversas, elementos verbais e visuais, recursos digitais – que resultaram em cinco categorias analíticas: 1) Esferas ambientais: espaço virtual coletivo e espaço físico (não tão) individual; 2) Mediação dupla: instrumentos e linguagem; 3) Organização dos turnos de conversação; 4) Ruptura entre elementos verbais, visuais e extraverbais da linguagem; 5) Acesso e utilização de vários recursos digitais.

Possibilidades e impossibilidades da dialogicidade em aulas síncronas durante o ensino remoto

Primeiramente, convém esclarecer que, por dialogicidade, em consonância com nosso aporte teórico, entendemos as práticas dialógicas nas quais os sujeitos se movimentam no diálogo para a construção dos sentidos, a partir do encontro e confronto das múltiplas vozes sociais para transformação dos sujeitos da aprendizagem.

Para entendermos melhor a dinâmica das aulas síncronas dos dois componentes curriculares observados, descreveremos de forma breve alguns de seus aspectos. Primeiramente, observamos que os(as) professores(as) eram os(as) responsáveis por criar as salas, compartilhar os links e permitir a entrada dos estudantes.

A metodologia adotada nessas aulas pautava-se na interação dialógica com o objetivo de construir coletivamente os conhecimentos e os conceitos a respeito dos temas em estudo. Com esse intuito, os(as) professores(as), além de estimularem os discentes a se exporem oralmente, sempre lançando problematizações ao grupo e propondo atividades nesse sentido, também fizeram uso de ferramentas online, como o Google Jamboard, na qual todos os estudantes interagiram ao mesmo tempo, expondo suas ideias de forma escrita.

Observamos um esforço dos(as) professores(as) para manter um formato de aula dialogada, no entanto, em alguns momentos, o silêncio dos discentes causava desconforto tanto para os(as) professores(as) quanto para os estudantes. À medida que as aulas foram se desenvolvendo, se estabeleceu um maior engajamento do grupo nas discussões embora muitos discentes se mantivessem ocultos em fala e imagem.

Citamos, como exemplo, um momento em que um discente abriu a câmera e falou pela primeira vez (era uma das últimas aulas do componente curricular), e a reação de um dos(as) professores(as) foi de surpresa, porque a impressão era a de que o estudante nunca tinha estado ali (DIÁRIOS DE CAMPO, 2020). Tal sensação se deu não somente pelo fato de ele não ter aberto a câmera e não ter interagido verbalmente em outras aulas, mas também porque sua imagem na tela era de uma letra, o que possibilitou um ocultamento ainda maior de sua identidade. Apesar desse contexto de ocultamente das imagens e de silenciamento por parte de alguns estudantes, a dinâmica proposta pelos(as) professores(as) provocou certo engajamento dialógico no grupo.

Esferas ambientais: espaço virtual coletivo e espaço físico (não tão) individual

O primeiro aspecto que selecionamos para as análises diz respeito às esferas ambientais. As aulas síncronas fomentaram uma espécie de fusão entre os ambientes acadêmicos da UFRN e outros ambientes físicos onde cada indivíduo se encontrava para acessar o espaço virtual, como os ambientes familiares, de trabalho, de diversão.

Assim, de repente, vários ambientes fundiam-se e até se atritavam (muitas vezes, por descuido de algum participante que deixou o microfone ou a câmera aberta) na formação de um novo ambiente, o ambiente virtual das aulas síncronas. Com essa consideração, não estamos querendo dizer que as aulas eram uma balbúrdia ou não produtivas, até porque havia mecanismos de controle para que o ambiente acadêmico prevalecesse. Queremos demonstrar que a fusão de vários ambientes configurava um novo ambiente – um ambiente de uma sala virtual na qual o espaço físico que os corpos ocupavam, os próprios corpos e as linguagens que povoavam o ambiente da sala de aula virtual, eram incontroláveis em grande medida. Fazemos essa afirmação com base em um conjunto de informações, como, por exemplo, as que estão presentes na situação descrita a seguir:

Durante a fala da professora, um aluno acionou o ícone que representa a mão levantada para falar. A professora concluiu sua fala e disse: I está com a mão levantada, pode falar. Antes de falar o aluno abriu a câmera e o microfone e disse: “Boa tarde, me desculpem pelo lugar, mas hoje precisei estar na oficina” (DIÁRIOS DE CAMPO, 2020).

O estudante continuou a sua fala, abordando questões relacionadas à fala da professora, mas tudo que estava no ambiente físico onde ele se encontrava também operou como linguagem. Uma linguagem que nos disse que o local era provavelmente uma oficina mecânica de automóvel, que naquele dia provavelmente não havia muitos clientes já que se ouviu apenas um barulho de aceleração de motor. Não sabemos quantos participantes da aula centraram seus pensamentos para um possível diálogo a partir do que estava sendo enunciado pelo estudante e quantos gostariam de ter dado continuidade ao diálogo com o estudante a partir da leitura que fez do lugar onde ele estava.

Destacamos que ambientes distintos, com características e logísticas adequadas a seus fins específicos, se fundiram em um espaço virtual. Com isso, percebemos que estar em um espaço físico individual – que, como exemplificado, nem sempre é tão individual assim – e ao mesmo tempo em um espaço educativo coletivo virtual implica ter que lidar com aspectos dos dois espaços simultaneamente. Em caráter de duplicidade, é necessário lidar com o que acontece no espaço físico e no ambiente virtual e, ao mesmo tempo, com a multiplicidade de acontecimentos e linguagens que podem circular em cada um desses ambientes.

Disso, emana um desafio que é a concretização de diálogos consistentes, uma vez que esses diálogos são atravessados por demandas diversas, como familiares e de trabalho, e por um conjunto de situações como a carência dos ambientes físicos onde cada indivíduo se encontra. Isso muitas vezes impossibilita a concentração por causa de barulhos de animais, de televisão, de conversas dentro de casa ou no ambiente de trabalho etc.

Bakhtin (1997) aponta que os enunciados surgem arraigados aos contextos, às situacionalidades, com implicações direta na construção desses enunciados e, portanto, das significações. Nesse caso, presumimos que lidar com dois contextos simultâneos de enunciação (esfera física e virtual) representa um desafio para a construção de diálogos consistentes, uma vez que o espaço escolar/acadêmico sofre interferências da simultaneidade e multiplicidade de contextos enunciativos diversos.

Por outro lado, as aulas síncronas possibilitaram o acesso mais fácil às pessoas que moram em localidades distantes do campus universitário, evitando longos deslocamentos ou até mesmo a impossibilidade de frequentar a instituição. Nas aulas, identificamos pessoas que moram em Natal e nos estados da Paraíba, Ceará, Alagoas e Espírito Santo, entre outros. Conforme Bakhtin (1997), observamos que houve uma maior possibilidade de encontro de múltiplas vozes, isto é, de encontro de culturas e de conhecimentos oriundos de distintas realidades locais, favorecendo a construção e ampliação dos saberes pelo grupo.

Mediação dupla: instrumentos e linguagem

O segundo aspecto que ponderamos ser pertinente analisar refere-se à dupla mediação. Entendemos, apoiadas em Vygotsky (1998), que os instrumentos criados pelo homem são elementos mediadores da ação do homem no mundo e que os signos também são instrumentos mediadores, mas no âmbito das operações mentais. Como dissemos, o uso da tecnologia da informação e comunicação inaugurou novos tipos de interação dialógica, mediados pelos recursos tecnológicos. No entanto, esse tipo de interação pode trazer tanto possibilidades quanto desafios quando se trata da interação dialógica com a intencionalidade educativa.

Um desses desafios, observados nas aulas, foi o fato de que nem todas as pessoas dispunham de instrumentos adequados às demandas dos ambientes virtuais para as aulas síncronas. Falhas na internet, queda na conexão, falhas em microfone e câmeras, por exemplo, causaram confusões e dificuldades nas interações e, portanto, na concretização de diálogos no sentido que Freire (2013) aponta como método fundamental ao ensino e à aprendizagem. A fim de ilustrar essa discussão, explicitamos duas situações vivenciadas em um dos grupos observados.

Exemplo 1

A discente K inicia a sua fala perguntando e se explicando: Vocês me ouvem? Eu sou K. É que na semana passada não deu pra eu me apresentar porque meu microfone não funcionou (DIÁRIOS DE CAMPO, 2020).

Exemplo 2

A estudante M começa a falar, mas o som do seu equipamento está muito baixo, de modo que dificulta a compreensão da sua fala. O discente P intervém e diz:

P – Tá baixo o seu microfone, M.

M – Tá me ouvindo? Melhorou agora?

P – Tá bem baixinho.

M–Agora me ouvem melhor? Ou ainda muito baixo?

Falas simultâneas ininteligíveis dos(as) dois professores(as) da turma e de P.

Um dos(as) professores(as) assalta o turno de fala e diz: Pra mim, tá melhor (DIÁRIOS DE CAMPO, 2020).

Contudo, apesar dos esforços da discente M para melhorar o áudio do seu equipamento, este continuou muito baixo, dificultando a compreensão da sua fala. Nesses fragmentos, é possível perceber que o diálogo só se concretiza na medida em que todos os dialogantes dispõem de ferramentas adequadas às necessidades do ambiente digital. Fica claro que a qualidade das interações dependeu da qualidade dos instrumentos tecnológicos a que os(as) discentes e professores(as) tinham acesso.

Nesse ponto, percebemos um paradoxo. Ao mesmo tempo em que as aulas remotas podem representar um elo na democratização do saber, por tornarem-se, de certa forma, mais acessíveis aos sujeitos que se encontram distantes dos centros universitários, também podem ser excludentes, já que alguns sujeitos que não têm acesso aos recursos tecnológicos compatíveis com as demandas do ambiente escolar/acadêmico/universitário virtual ficam à margem do diálogo virtual.

No que tange à conversação, percebemos uma grande dificuldade nas trocas e tomadas de turnos da fala, assim como a impossibilidade de falas simultâneas e sobreposição de vozes. Nos momentos em que esses episódios, comuns e necessários ao diálogo, aconteciam, ruídos e interferências impediam que a interação se mantivesse. A comunicação era interrompida quando alguns falantes desligavam seus microfones. Para exemplificar, recortamos um fragmento de uma interação que envolveu três estudantes.

J – [...] é importante a gente saber o que é um método e o que são estratégias de método [...].

J – Continua a falar enquanto R e Y abrem os microfones e se pronunciam de forma concomitante. Falas simultâneas ininteligíveis de J, R e Y.

Aparentemente, J entende o que um dos colegas falou e responde:

J – Você pode afirmar, você pode afirmar.

Falas simultâneas entre J e Y ininteligíveis.

J – Y, você pode afirmar que não era método (DIÁRIOS DE CAMPO, 2020).

Nessa interação, observamos a presença de falas simultâneas e a dificuldade de compreensão gerada. Também fica claro que um dos discentes, que havia tentado tomar a fala, projetando-se no diálogo e provocando as falas simultâneas, desiste de continuar o diálogo e não retoma mais a sua fala.

Podemos ainda refletir sobre o fato de que, em uma concepção de aprendizagem dialógica, na qual se busca construir os conhecimentos no coletivo, a tomada de fala é muito importante, porque, por seu intermédio, é possível elucidar saberes diferentes, complementar informações, questionar, contestar – isso é atuar responsivamente na cadeia do diálogo (BAKHTIN, 2006). Assim, quanto mais pessoas participarem da teia discursiva, possivelmente mais rico será o encontro das vozes e mais processos de aprendizagem poderão ser desencadeados.

Outro ponto a ser destacado nas tomadas de turno da fala é que a disputa pela vez envolve uma leitura global na qual os elementos visuais e extraverbais compõem o todo da enunciação. Dessa forma, a leitura completa diz qual é o momento adequado para posicionar-se tomar a fala. No entanto, essa leitura ficou prejudicada nos diálogos virtuais, e muitas vezes as tomadas de falas foram frustradas. Isso nos mostra que o movimento dialógico de trocas de turnos, que podem envolver falas simultâneas, se torna bastante prejudicado nesse formato de interação.

Ao mesmo tempo, registramos que a plataforma Google Meet, utilizada para as aulas da UFRN, fez uma atualização em novembro de 2020, acrescentando o recurso de um ícone de uma mão. Por meio desse ícone, cada participante da aula tinha a possibilidade de indicar que queria falar, apertando no ícone que fica sinalizado em sua imagem na tela, possibilitando a troca de fala a partir da percepção do ícone que consiste em um recurso que poderá facilitar o diálogo.

Ruptura entre elementos verbais, visuais e extraverbais da linguagem

Ainda identificamos outro desafio para a dialogicidade nas aulas síncronas: a ruptura entre os elementos verbais, visuais e extraverbais que compõem o todo da enunciação. Isso porque falamos com o corpo todo, a fala, os gestos, as posturas e as expressões faciais geralmente não se divorciam no enunciado. Por outro lado, a compreensão, ou a construção de significados para que haja de fato interação dialógica, depende em grande medida da leitura do corpo que fala integralmente e não somente do som. Depende também de elementos extraverbais que podem incluir o ambiente onde se está, por exemplo.

Observamos que em todas as aulas os(as) professores(as) permaneceram com suas câmeras abertas, o que possibilitava alguma leitura de elementos visuais, como expressões faciais. No entanto, a maioria dos estudantes permaneceu com as câmeras fechadas na maior parte do tempo de aula, sendo que cerca da metade dos estudantes abria as câmeras quando se pronunciava. Observamos uma preocupação por parte de alguns estudantes em explicar os motivos pelos quais não podiam abrir a câmera. Eles citaram fatos como a conexão da internet não suportar a transmissão de imagens, a câmera não estar funcionando, não estar em casa. Já outro conjunto de estudantes falava com as câmeras fechadas sem dar explicações.

Nas aulas síncronas, observamos uma ruptura entre os elementos verbais e extraverbais, de modo que mesmo que não ocorra uma completa dissociação, pelo menos há o empobrecimento de possibilidades de conjunção de elementos verbais, visuais e extraverbais durante os diálogos nas aulas virtuais. Percebemos que muitos dos diálogos se davam em interação visual com imagens na tela, como fotos, letras que indicavam um participante, slides ou outros recursos. Falar sem poder ver o interlocutor priva o falante de fazer leituras fundamentais sobre ele. É a partir dessas leituras, o falante pode, por exemplo, modular a sua fala e conseguir ampliar a margem de interpretação e compreensão dos ouvintes, possibilitando maior engajamento nos diálogos.

Por outro lado, ouvir professores(as) e discentes vendo apenas seus rostos, ou nem isso, priva-nos de fazer leituras dos gestos, das posturas, dos movimentos corporais, das expressões faciais, elementos imprescindíveis para a interação e construção das significações na comunicação, como bem pontuou Bakhtin (1997). Consequentemente, isso traz prejuízo na construção dos saberes em uma perspectiva dialógica (FREIRE, 2013).

Além disso, no contexto escolar físico, como o universitário, praticamente tudo pode operar como linguagem: a postura corporal, a atenção, a forma de se pronunciar, de sentar-se. Os elementos extraverbais como os objetos usados – o celular, o texto para estudo –, até os aromas que circulam no ambiente, compõem os contextos de enunciação e dizem muito aos professores, permitindo-lhes modular as suas falas para efetivar interações responsivas. No espaço virtual, as telas e câmeras (abertas ou fechadas) fazem desaparecer esses cenários, que muitas vezes se fundem a ambientes alheios ao da educação.

Inferimos que esse novo formato de diálogo nos desafia, nos aguça a sensibilidade auditiva e nos impulsiona a explorar novas formas de interação verbal. Desse modo, somos impelidos a prestar mais atenção nas falas e na entonação da voz, bem como a buscar estabelecer sentidos, mesmo na ausência dos elementos visuais e extraverbais, uma vez que, como assevera Bakhtin (1997), o diálogo não se limita à interação face a face.

Acesso e utilização de vários recursos digitais

Além do que já expomos, observamos que o espaço virtual permite o uso de vários recursos e ferramentas digitais disponíveis na internet. Uma vez que todos os alunos estão conectados simultaneamente, podem-se realizar pesquisas instantâneas, compartilhar links e materiais e usar ferramentas online com possibilidades de promover processos dialógicos e, portanto, de desencadear processos de aprendizagem. Isso fica evidente na fala de uma das professoras ao apresentar e compartilhar um recurso digital que ela utilizaria nas aulas: “Se a gente conseguir […] essa ferramenta vai ser muito boa pra gente possibilitar o diálogo, não se perder e conseguir o registro dos nossos encontros” (DIÁRIOS DE CAMPO, 2020).

Outro ponto que se inscreve no processo de reinvenção da prática pedagógica no espaço virtual visando à dialogicidade é a possibilidade de usar a linguagem oral e escrita simultaneamente, de modo que enquanto alguém fala, outros ouvem, mas também escrevem no chat e leem o que nele é escrito, dialogando com os enunciados do falante e também de quem escreve. Tal possibilidade desenha uma dinâmica muito complexa, que é operar com duas modalidades de linguagem ao mesmo tempo para participar do mesmo diálogo, portanto, interagir com vários enunciados, o que se configura como um desafio aos sujeitos dialogantes com ricas possibilidades dialógicas. Entendemos ainda que o uso da linguagem escrita durante as aulas possibilitou a participação no diálogo de pessoas que talvez não se sentiriam à vontade para se expressar oralmente em um ambiente coletivo por timidez ou outras razões ou mesmo por não terem tido a oportunidade de tomar a fala.

Considerações finais

Nossa premissa, neste trabalho, foi a de que somente é possível compreendeA partir do diálogo conjunto com Freire (1967, 2002, 2013) e com Bakhtin (1997, 2006), consideramos que as aulas síncronas representam um desafio à construção de uma educação baseada na dialogicidade. Tal desafio se dá em virtude das dificuldades na construção efetiva do diálogo, evidenciadas em nosso estudo, devido à perda de elementos visuais e extraverbais da enunciação, aos limites nas tomadas da fala, e impossibilidade de falas simultâneas. Além disso, percebeu-se a dificuldade dos discentes em manter-se no diálogo pelos problemas causados durante o uso de tecnologias adequadas às demandas acadêmicas.

Assim, entendemos que as aulas síncronas configuram outros modos de diálogo mediados por instrumentos da tecnologia digital, pela internet e por outras posturas e práticas de seus participantes.

São diálogos que se realizam a partir da operação simultânea da linguagem oral e escrita, mas que, em grande medida, separam a oralidade dos gestos, das expressões faciais, e dos elementos extraverbais. Diálogos cujos contextos de enunciação podem ser múltiplos, o que ocorre em ambientes físicos e virtuais que se confundem, se atritam ou se interpõem. Diálogos nos quais os interlocutores se apresentam com imagens de letras e com fotografias, permanecendo ocultos. Certamente, muitos de nós nos perguntamos, nas leituras das imagens projetadas na tela do Google Meet: Quem é essa pessoa? Ela está do outro lado? Em situações nas quais somos nós que falamos e não conseguimos observar as reações dos ouvintes, perguntamos: Será que estão me ouvindo?

Outra questão a considerar é a presença constante, em muitas circunstâncias, do monopólio da palavra e, muitas vezes, do silêncio no ambiente virtual. Nos ambientes físicos, temos uma multidão de vozes que ecoam, muitas vezes simultaneamente, com linguagens que se encontram, se confrontam, ou se distanciam. Um constante diálogo onde emergem temas diversos que vão muito além dos conteúdos abordados em uma determinada aula.

No ambiente virtual, observamos o silenciamento das vozes de muitos estudantes e o ocultamento de suas imagens, assim como a prevalência de falas oriundas de um mesmo grupo de discentes e dos(as) docentes. Além disso, a dinâmica da tela, que impede a visualização de todas as pessoas ao mesmo tempo, a impossibilidade de acompanhá-las e fazer leituras sobre elas e seus contextos, impossibilita que os professores tentem movimentar-se na busca de engajá-las no diálogo. Contudo, convém salientar que o movimento de compreensão, por si só, já pode inserir o sujeito na dinâmica do diálogo e, portanto, promover processos de aprendizagem (BAKHTIN, 1997).

Para encerrar, salientamos que as aulas síncronas impulsionam o aprendizado com outros modos de dialogar na esfera comunicativa constituída no espaço virtual. De fato, não se trata de um transplante do diálogo que experienciamos no contato físico dos ambientes escolares para o ambiente virtual. Trata-se de construir outras formas de estar em dialogicidade, e esses outros modos podem ser construídos a partir das experiências que acumulamos, principalmente em nossas práticas dialógicas presenciais, e, por isso, essa reconstrução tem se configurado um desafio.

Constatamos, a partir de nossas análises, que a reconstrução da prática pedagógica dialógica nos ambientes virtuais apresenta vários aspectos desafiadores, mas também guarda possibilidades, entre elas, a gama de recursos digitais online disponíveis na rede, possíveis potencializadores do diálogo. Sendo assim, o que está posto é a reinvenção do diálogo horizontal e do encontro das várias vozes, com vistas à construção coletiva do conhecimento a partir de uma realidade escolar/acadêmica/universitária virtual, algo que não parece fácil. Mas é preciso construir caminhos para continuarmos a encontrar possibilidades interativas, visando à formação de sujeitos comprometidos com a comunhão, preocupados com a tão sonhada transformação da realidade por meio da aprendizagem, que pode possibilitar a construção de um mundo mais justo e economicamente e socialmente mais igualitário.

Reinventar a educação a partir de outro espaço – neste momento, um dos poucos possíveis para manter a segurança em relação à saúde das pessoas –, que não é o físico, mas que possibilita o encontro, se não dos corpos, mas possivelmente das mentes, das intersubjetividades, dos sentimentos, leva-nos a pensar sobre alguns aspectos da tese de Descartes sobre separação do corpo e da mente. Ou seja, estamos separados fisicamente, mas nossas mentes encontram-se em um grande diálogo virtual, na busca pela construção do conhecimento e do tipo de sujeito e de sociedade que desejamos formar.

Referências

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Recebido: 30 de Abril de 2021; Aceito: 21 de Junho de 2021

Profa. Dra. Mariangela Momo

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Grupo de Pesquisa Crianças, Infâncias, Cultura e Educação

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-9014-657X

E-mail: marimomo@terra.com.br

Silvana de Medeiros da Silva

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação

Grupo de Pesquisa Crianças, Infâncias, Cultura e Educação

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-6343-4346

E-mail: silmedeiros96@gmail.com

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