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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.60 Natal abr./jun 2021  Epub 19-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n60id25102 

Artigo

John Dewey e Ralph W. Emerson: educação, arte e democracia

John Dewey y Ralph W. Emerson: educación, arte y democracia

Tatiane da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-1197-054X

Horacio Héctor Mercau1 
http://orcid.org/0000-0002-8854-2204

Marcus Vinicius da Cunha1 
http://orcid.org/0000-0001-8414-7306

1Universidade de São Paulo (Brasil)


Resumo

O artigo tem por objetivo analisar a concepção de John Dewey acerca dos intercâmbios entre educação, arte e democracia, com o propósito de sugerir caminhos para uma crítica às tendências pedagógicas da atualidade. Para cumprir essa meta, são analisadas as teses de John Dewey acerca da produção intelectual de Ralph Waldo Emerson publicadas no ensaio “Emerson, the philosopher of democracy”, de 1903. O método utilizado para esse empreendimento é a análise retórica proposta por Perelman e Olbrechts-Tyteca. Em consonância com tais teses, as ideias de Emerson são examinadas à luz Sofística, em versão oposta à assumida por Platão, com especial atenção para as noções de percepção, poder e democracia, as quais são relacionadas com os conceitos deweyanos de experiência imediata, experiência estética e experiência democrática. O artigo conclui que as reflexões de John Dewey inspiradas em Emerson sugerem que a educação na atualidade seja guiada pelo poder transformador da imaginação.

Palavras-chave: John Dewey; Ralph Waldo Emerson; Sofística; Estética

Resumen

El artículo tiene como objetivo analizar la concepción de John Dewey sobre los intercambios entre educación, arte y democracia, con el propósito de sugerir vías para una crítica de las corrientes pedagógicas de hoy. Para lograr este objetivo, se analizan las tesis de John Dewey sobre la producción intelectual de Ralph Waldo Emerson publicadas en el ensayo “Emerson, the philosopher of democracy” de 1903. El método utilizado para este empeño es el análisis retórico propuesto por Perelman y Olbrechts-Tyteca . En línea con tales tesis, las ideas de Emerson se examinan bajo la luz sofista, en una versión opuesta a la asumida por Platón, con especial atención a las nociones de percepción, poder y democracia, que se relacionan con los conceptos de Dewey de experiencia inmediata, experiencia estética y democracia. El artículo concluye que las reflexiones de John Dewey inspiradas por Emerson sugieren que la educación actual debe ser guiada por el poder transformador de la imaginación.

Palabras clave: John Dewey; Ralph Waldo Emerson; Sofistica; Estética

Abstract

The article aims to analyze John Dewey’s conception of the interchanges between education, art and democracy, with the purpose of suggesting ways for a critique of the current pedagogical trends. To achieve this goal, we analyze John Dewey’s theses on the intellectual production of Ralph Waldo Emerson, published in the 1903 essay “Emerson, the philosopher of democracy”. The method used for this endeavor is the rhetorical analysis proposed by Perelman and Olbrechts-Tyteca. In line with such theses, Emerson’s ideas are examined in the Sophistic light, in a version opposite to that assumed by Plato, with special attention to the notions of perception, power and democracy, which are related to the Dewey concepts of immediate experience, experience aesthetic and democratic experience. The article concludes that John Dewey’s reflections inspired by Emerson suggest that education today must be guided by the transforming power of the imagination.

Keywords: John Dewey; Ralph Waldo Emerson; Sophistry; Aesthetics

Introdução

No rol da literatura filosófica, a obra de John Dewey (1859-1952) é certamente uma das mais extensas e abrangentes. Os temas por ele investigados abrangem áreas usualmente consideradas estanques e incomunicáveis – psicologia, educação, lógica, filosofia da ciência, história da filosofia, ética, política etc. –, formando um todo que se unifica sob a égide do Pragmatismo. Dewey dialoga com autores de filiações teóricas diversas e interage com os desafios sociais e culturais de sua época. Estes fatos explicam a dificuldade que se apresenta aos pesquisadores, motivando variadas interpretações de suas teses (CUNHA, 2008).

Para enfrentar esse obstáculo, propomos tomar como ponto de partida uma de suas obras iniciais e relacionar o seu conteúdo ao estudo de outros trabalhos de sua autoria, de modo a compor um quadro conceitual mais amplo. O texto examinado neste artigo, “Emerson, the philosopher of democracy” (DEWEY, 2003d), publicado em 1903, permite uma reflexão sobre os intercâmbios entre arte e educação na produção intelectual deweyana. Como se lê no título, trata-se de um estudo sobre Ralph Waldo Emerson (1803-1882), ensaísta e poeta reconhecido por expressar profunda fé no homem comum e no ideal de liberdade. Dewey recorre frequentemente a ele como fonte de inspiração, mas esse é o primeiro texto em que cita seu nome e o único inteiramente dedicado a suas ideias.

O ensaio de Dewey sobre Emerson será examinado na primeira seção deste artigo por meio da identificação de dissociações nocionais, método que permite observar a formação de pares antinômicos, constituídos por termos situados em polos diametralmente opostos; no desenvolvimento do discurso, esses termos articulam pares filosóficos reveladores da preferência do autor por uma noção em detrimento de outra (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002). Essa forma de organizar o raciocínio resulta geralmente em dualismos, mas, como procuremos mostrar, é característico de Dewey dissolver as dicotomias criadas por sua própria argumentação.

A segunda seção discorrerá especificamente sobre as ideias de Emerson, com o intuito de elucidar e ampliar as reflexões feitas por Dewey no ensaio, em particular a que associa Emerson aos sofistas. Nessa análise, consideraremos as realizações da primeira geração da Sofística – Protágoras (490-415 a.C.), Górgias (485-380 a.C.) e Hípias (460-400 a.C.) –, seguindo uma linha interpretativa que opõe esses pensadores a Parmênides (530-460 a.C.), cujas teses deram fundamento à filosofia platônica, a qual, por sua vez, responde pelas inúmeras avaliações negativas que pesam ainda hoje sobre os sofistas.

Na terceira seção, procuraremos relacionar as ideias apresentadas em “Emerson, the philosopher of democracy”, uma vez analisadas à luz da Sofística, com outras obras de Dewey. Nosso propósito consiste em mostrar que determinadas temáticas deweyanas são inspiradas nas concepções elaboradas pela linguagem poética de Emerson. Dewey, evidentemente, vai além da reprodução das formulações do poeta, pois efetua uma releitura de seus conceitos, procedimento este que nos permitirá concluir este artigo posicionando as reflexões de ambos na atualidade.

O filósofo e o sofista

Dewey (2003d, p. 185) assim caracteriza o problema que se dispõe a enfrentar no texto em análise: “Dizem que Emerson não é um filósofo. Eu posso considerar essa recusa falsa ou verdadeira, dependendo de ser pronunciada como acusação ou elogio, segundo as razões apresentadas”. Observa-se que não há recusa a priori da opinião que situa Emerson fora do círculo dos filósofos, mas sim disposição para discutir as razões que a sustentam. As respostas oferecidas ao problema revelam as concepções do próprio Dewey sobre o que é a filosofia, mais precisamente sobre as relações da filosofia com a arte. Como será possível notar logo mais, a chave do raciocínio que ora se inicia reside no exame das noções de filósofo e sofista.

Dewey (2003d, p. 185) informa que a referida opinião é apoiada na acusação de que Emerson peca por “falta de método, ausência de continuidade, de lógica coerente”, por ser ele “um escritor de máximas e provérbios, um arquivista de ideias brilhantes e aforismos”, quando o que se espera de um legítimo pensador é uma “lógica extensa”. Dewey contraria esse juízo por meio de uma definição do que é a lógica: “Lógica é o cortejo ou o desdobramento proporcional da intuição; mas a sua virtude é um método silencioso; quando aparece na forma de proposições e assume valor à parte, é inútil”. E acrescenta uma frase de Emerson que resume seu propósito: “Não há honra maior do que dirigir os pensamentos do ser humano às alturas e pressupor a sua inteligência”.

Dewey (2003d, p. 185-186) assume o propósito emersoniano em contraposição a uma lógica aparentemente rigorosa, mas na verdade vazia, e emite uma apreciação crítica da filosofia: os filósofos não têm obtido sucesso por ficarem presos à necessidade de “ter todas as razões cuidadosamente assinaladas e rotuladas”, atitude que os impede de assumir qualquer asserção minimamente garantida. O alvo de sua crítica, portanto, não é o raciocínio lógico, mas a estreiteza de quem o utiliza contra a possibilidade de assegurar uma proposição independente ou além da lógica: é possível, por intermédio da inteligência, levar o pensamento humano a alturas inimagináveis. Dewey trabalha com a dissociação nocional inteligência-lógica sem opor categoricamente os dois termos, apenas advertindo para o risco de o segundo sobrepor-se ao primeiro, a depender de como for concebido.

Dewey (2003d, p. 186) afirma, então, que “talvez estejam mais certos aqueles que negam ser Emerson um filósofo, porque ele é mais do que um filósofo. Como ele mesmo diz, ele opera pela arte, não pela metafísica”. Nessa passagem, evidencia-se uma dissociação nocional a separar o filósofo, aquele que recorre à esfera metafísica, e o poeta, aquele que age como “um criador, não um reverberador” – ou seja, como um artista. Dewey concorda com a esperança manifestada por Emerson de que a filosofia “um dia será ensinada por poetas”. “O poeta se revela na atitude natural, no acreditar”, enquanto o filósofo necessita de “razões para acreditar”, o que institui a separação entre crença e razão.

Aos pares inteligência-lógica e arte-metafísica soma-se crença-razão, todos servindo à distinção entre o poeta e o filósofo. Acrescentam-se ainda os pares, que Dewey (2003d, p. 186) elabora ao analisar as peculiaridades do discurso: “[...] a coisa proferida em palavras não é, por isso, afirmada. É preciso afirmá-la, ou nenhuma forma de gramática ou de plausibilidade poderá dar a ela evidência e ordenação argumentativa”. Por si mesmas, as palavras nada significam; sua efetividade reside na disposição para associar o discurso às coisas, ao mundo que se pode apreender pela percepção, que é “mais potente do que o raciocínio”, tal qual procede o poeta.

Esse par é crucial por estabelecer a distinção entre ação e discurso, bem como entre percepção e raciocínio, denotando que o poeta percebe o mundo e age sobre ele, em vez de somente raciocinar e discursar, como faz o filósofo. O poeta se vale das liberdades propiciadas pelo intercâmbio entre os falantes, que são “mais desejáveis do que as cadeias do discurso”; reconhece o valor de sua audiência, pois faz uso da “surpresa da recepção”, que é “mais demonstrativa do que as conclusões da prova intencional”.

Citando Emerson, Dewey (2003d, p. 186) menciona o silêncio que muitas vezes o poeta utiliza: “Por melhor que seja o discurso, o silêncio é melhor e o envergonha. A duração do discurso indica a distância de pensamento entre o orador e o ouvinte”; “Se eu falar, defino e confino, e me torno menor”; “O silêncio é um solvente que destrói a personalidade e nos permite ser grandes e universais”. A elaboração do par silêncio-discurso posiciona o poeta, sempre em contraposição ao filósofo, no âmbito das relações interpessoais impossíveis de serem captadas pela lógica, pelo raciocínio, pela razão, armas da filosofia. Essa dissociação parece construir um abismo definitivo e irreversível entre o filósofo e o poeta.

Mas Dewey (2003d, p. 186) afirma não pretender traçar uma “linha rápida e precisa” entre ambos, ainda que se possa identificar “certa distinção de sotaque no pensamento e no ritmo da fala” de cada um deles. Depois de projetar tantos dualismos, sua intenção agora consiste em dissolvê-los, nos guiando pela difícil tarefa de encontrar complementariedade em meio à diferença. E então reafirma o que caracteriza essencialmente a filosofia: “O desejo por uma lógica articulada, não silenciosa”, método que constitui “a única preocupação extrema do pensador abstrato”, cujo interesse não se volta para qualquer tipo de pensamento, mas prioritariamente para o pensamento racional; não lhe interessam “as coisas, mas os rumos das coisas; nem mesmo a verdade, mas os caminhos pelos quais se busca a verdade”; o filósofo interpreta “os símbolos do pensamento”, dedicando-se “à fabricação e à afinação das armas do espírito” (DEWEY, 2003d, p. 186-187).

O que está além disso diz respeito à arte, cujos desenvolvimentos não desqualificam, mas ampliam o campo específico do filósofo. Transcrevendo Emerson, Dewey (2003d, p. 187) explica que o artista possui “um respeito habitual à totalidade por meio de um olhar que ama a beleza em detalhes”; sua afeição é dirigida “para o significado dos símbolos, não para a sua constituição”, e ao manejá-los consegue forjar “a espada e o escudo do espírito”. A disposição do artista reside mais em descobrir do que em analisar, “discernir, em vez de classificar”.

Observa-se o uso de palavras cuidadosamente escolhidas com o intuito de construir pontes entre ofícios que se distinguem tão somente pelo sotaque e pelo ritmo. O artista não ignora a totalidade, característica do olhar do filósofo, mas a utiliza para enxergar particularidades; enquanto o filósofo responde pela criação de signos capazes de dar significado ao mundo, o artista trabalha justamente com o manejo dessas ferramentas; o artista produz discernimentos entre as coisas, as avalia em função dos embates concernentes ao espírito, mas essa empresa só se realiza quando o filósofo conclui a contento a análise e a classificação dessas mesmas coisas.

Dewey, portanto, desarma os dualismos por ele mesmo instituídos, considerando que a arte não se opõe à filosofia, mas dela se serve para ir além, ampliando o campo da reflexão. A dissolução do divórcio entre o particular e o universal significa que o filósofo e o artista operam com os mesmos elementos: um prioriza o pensamento racional e a busca pela verdade, fabricando as armas do espírito frente à totalidade; o outro utiliza essas armas para descobrir as nuances do específico em busca da beleza. O problema é que muitos filósofos veem “o caminho para a verdade como sua verdade; o método de vida como conduta para a vida – em suma, tomam os meios como fins”. Outros, no entanto, trilham caminhos diferentes, percebendo que “os meios se identificavam com os fins”, o que lhes permite transformar o pensamento em vida (DEWEY, 2003d, p. 187).

A opção de Dewey pela aproximação entre filosofia e arte é esclarecida pela definição dos termos filósofo e sofista.Dewey (2003d, p. 187) afirma que “o idioma preserva com justiça a diferença entre filósofo e sofista”, mas que não se pode limitar nem a definição de “pensador”, nem a de “artista”, pois ambos são movidos por “interesse, preocupação e carinho”. A discussão iniciada por Platão, que “reunia em si mesmo, mais do que qualquer outro indivíduo, as qualidades de artista e metafísico”, não é essencialmente “sobre objetivos nem sobre métodos, mas sobre afetos”. E Platão estava “dividido em seus afetos” (DEWEY, 2003d, p. 188).

Essa última é enigmática, pois Dewey não elucida a natureza da divisão afetiva sofrida por Platão. O que se infere é que, ao produzir a dissociação entre os qualificativos do filósofo e os atributos do sofista, a filosofia platônica obstruiu a identificação que havia entre os dois termos. Ao elaborar essa dissociação, Platão retira da palavra sophistes “[...] a polissemia e os valores positivos que possuía quando era associada ao conceito de sábio (sophos)” (SILVA, 2017, p. 51). Se a discussão é sobre afetos, não há justificativa razoável que não afetiva, para fazer a distinção entre o filósofo e o sofista.

Assumida a dissociação platônica, Emerson não é filósofo, mas sofista; não é filósofo, mas artista. Desfeita a distinção, Emerson é filósofo, como também sofista, artista. Eis por que Dewey inicia o ensaio dizendo que a acusação a Emerson pode ser falsa ou verdadeira, acusação ou elogio, a depender das razões apresentadas. Pensando como Platão, será acusação, e verdadeira: Emerson não é filósofo, mas poeta, sofista. Do ponto de vista deweyano, no entanto, Emerson é filósofo – mais do que isso, é poeta, sofista. O que tinha a aparência de acusação torna-se então elogio.

Ao descrever os atributos de Emerson, Dewey descreve também os qualificativos gerais do filósofo que é também poeta, sofista. Quem assume as suas concepções, assume que a história e o mundo dependem da ordenação feita pela mente humana; acredita que um pensador representa risco para o mundo, devido à sua tendência à generalização; desconfia de quem almeja revelar o segredo da natureza, sua causa última. Como filósofo, poeta e sofista, Emerson faz de sua obra “um hino à inteligência, um estímulo ao poder criador e perturbador de pensamento” (DEWEY, 2003d, p. 188).

O pensador platônico veicula um ideal educacional baseado na “imanência das ideias absolutas no Mundo e no Homem”, ensinando “que cada coisa e cada homem participa de um Significado absoluto, individualizado nele e por meio do qual se realiza a comunhão com os outros”. Na educação, esse ideal torna-se não uma verdade para todos, mas “uma verdade da filosofia, uma verdade de interpretação particular, alcançada por alguns homens, não por outros, e consequentemente uma verdade para alguns” (DEWEY, 2003d, p. 190). Em contraposição, o pensador poeta sofista age de outro modo.

Citando Emerson, Dewey (2003d, p. 190) diz que a “verdade está no caminho”, e o ensino se assenta na convicção fundamental de que “todo indivíduo é o ponto de convergência e o canal do longo e amplo esforço da humanidade”. E acrescenta que essas ideias não são declarações vazias, mas “registros naturais do curso dos eventos e dos direitos do homem”. Ao assumir a poética emersoniana, Dewey (2003d, p. 191) afirma que cabe ao filósofo devolver “ao homem comum aquilo que, em nome da religião, da filosofia, da arte e da moralidade, foi desviado da reserva comum e apropriado para uso sectário e de classe”. Em mãos platônicas, “essa malversação faz a verdade declinar de sua simplicidade”, tornando-se “o quebra-cabeça de uma lei imposta, [...] de um ideal romântico que brilha apenas ao longe”.

Essas reflexões esclarecem a concepção de Dewey sobre a educação e elucidam o tema que a ela se vincula diretamente – a democracia. Sua definição de democracia assume um caráter poético diante da afirmação de que Emerson, embora não tenha projetado um sistema filosófico, tornou-se “o profeta e arauto de qualquer sistema que a democracia possa construir e sustentar”, e “quando a democracia se articular, não haverá dificuldade para encontrá-la já proposta em Emerson”. A filosofia da democracia estabelecerá “amizade com a ciência e a arte” e não será repreendida pela religião (DEWEY, 2003d, p. 192). O Ser dessa filosofia será, como em Emerson, não o Ser dos platônicos, mas um ser que se define por intermédio de um atributo humano: o Caráter (DEWEY, 2003d, p. 193).

Emerson, o sofista

Estas reflexões de Dewey anunciam uma nova perspectiva para a investigação do pensamento emersoniano. Devemos aproximar Emerson das ideias defendidas pelos desafetos de Platão e examinar se é possível estabelecer relações discursivas entre eles. Para isso, utilizaremos a identificação de “marcos discursivos”, recurso que permite evidenciar elementos comuns em discursos que exprimem certa “proximidade de pensamento, revelando núcleos argumentativos similares”, mesmo que seus autores estejam separados por séculos (SILVA, 2017, p. 18). Assumimos ser possível identificar semelhanças no modo como certos problemas filosóficos e educacionais são respondidos por diferentes pensadores, cada qual utilizando meios próprios, segundo o contexto em que se inscrevem.

O primeiro tema que se destaca em Emerson diz respeito a como compreender o mundo. No ensaio “Self-reliance”, Emerson (2004) diz que um mundo concluído ontem não pode ser valorizado pelo homem de hoje, a menos que se adote a tese de que o mundo está em constante formação, o que nos levará a perceber que nossos atos fazem a diferença. Quando o homem atua sobre um ambiente em mudança, sua alma se envolve em uma constante atualização por meio de suas criações no mundo, tornando-se distante de uma verdade independente. O mundo, portanto, deve ser interpretado como algo em constante fluxo, dinâmico, movendo-se incessantemente e apresentando inúmeras possibilidades de intervenção.

A forma como Emerson apresenta a realidade aproxima-se de como os primeiros sofistas descreveram o mundo na Grécia Clássica nos séculos VI e V a. C. O monismo de Parmênides de Eleia, que havia caracterizado o mundo como irreal, em defesa da imobilidade e imutabilidade do mundo abstrato habitado pelo Ser, provocou a reação dos sofistas, seus ferrenhos opositores (SILVA, 2017). Protágoras redigiu uma crítica aos Eleatas, que “sustentavam a unidade do Ser”, e Górgias afrontou o argumento eleático, o voltando contra os seus inventores (GUTHRIE, 2007).

As proposições dos primeiros sofistas evidenciam uma compreensão do mundo pela via heraclitiana, em oposição a Parmênides, apresentando a realidade como desvinculada do determinismo que define a vida como mero reflexo de um espaço metafisico e incentivando uma plasticidade que convida o homem a criar. Os sofistas viam a fluidez do mundo do possível, a maleabilidade da experiência humana; reconheciam os limites desse mundo, é certo, mas, ao mesmo tempo, estimulavam os indivíduos a irem além dele para poderem agir (POULAKOS, 1995).

Para Górgias, se não há uma realidade metafisica em que a Verdade Absoluta se ancora, como defendia Parmênides, tanto o verdadeiro quanto o não verdadeiro dependem dos acordos que os homens estabelecem mutuamente; tudo depende do nómos, da opinião comum alcançada por intermédio do debate entre opiniões divergentes, até que se chegue a uma unidade de pensamento, a homonoia. A célebre frase de Protágoras firma essa posição: “O homem é a medida de todas as coisas; das que são enquanto são, das que não são enquanto não são” (DK, 80 A14). A verdade é plural e provisória, resultante de um consenso estabelecido e mantido enquanto determinada comunidade consentir.

É sobre esses princípios da Sofística que Emerson, de modo mais complexo e elaborado, constrói a sua visão de mundo e de verdade. Para Emerson, como para os sofistas, a busca pela verdade é uma constante, e a verdade deve ser “reinscrita no interior do círculo do trabalho humano” (KOOPMAN, 2006, p. 109). Emerson “não refuta quem se opõe à verdade em que ele acredita – a verdade é plural, há espaço suficiente para todos”, e devemos nos apegar aos acordos firmados em nossa comunidade, sem desprezar as verdades afirmadas por outros grupos (KOOPMAN, 2006, p. 110). Cada sociedade tem a sua teoria sobre a vida, a religião, a filosofia, assim como existe “o evento de cada momento, o banho, o desastre do barco a vapor, a passagem de um rosto bonito, a apoplexia do vizinho”, e todos esses fatos, uma vez testados, formam “o resultado aproximado que chamamos de verdade” (EMERSON, 1972, n.p.).

Se em certo momento de nossas vidas renunciamos à busca da verdade e entramos no “porto de algum dogmatismo fingido, de alguma igreja nova ou igreja antiga”, diz Emerson (1972, n.p.), morremos para “todos os usos desses novos eventos que nascem fora do tempo prolífico na multidão da vida a cada hora”. Podemos, então, ser comparados a “um falido a quem oportunidades brilhantes se oferecem em vão”, pois abrimos mão de nossa liberdade, amarramos nossas próprias mãos, as trancamos e entregamos a chave para outra pessoa guardar.

As noções emersonianas de mutabilidade do mundo e provisoriedade da verdade enfatizam a ação do homem na realidade concreta. Por si só, a verdade “não faz provisões para nós”; essa “provisão é nossa ação, nossa arte”, pois a verdade é a “eficácia do esforço humano, não um poder que o informa do além” (KOOPMAN, 2006, p. 110). Emerson (2004) acredita que é da ação que emergem as abstrações e produções artísticas, porque é por meio da experiência que conhecemos o mundo e o transformamos: tanto da vida que conheço por experiência, tanto do deserto, eu venci e plantei. Assim como as proposições da Sofística, as ideias de Emerson dissolvem as “dicotomias debilitantes” entre o abstrato e o concreto, entre o pensamento e o trabalho prático, as concebendo como formadas por opostos complementares que se ondulam tão ritmicamente quanto a inspiração e a expiração do ar em nossos pulmões (BICKMAN, 1994).

A concepção emersoniana de democracia é pautada no protagonismo do homem, em cujo centro reside a noção de poder, intrinsecamente associada à ideia de dynamis, potencialidade que é atualizada nas ações do homem sobre a Natureza. Para Emerson (2004, p. 397), “todo poder é único, um compartilhamento da natureza do mundo”, e o “poder pessoal, a liberdade e os recursos da natureza” repousam em todos os indivíduos. Trata-se do poder de criação, a capacidade de atuação do homem no mundo, em busca de transformar tanto a realidade como a si mesmo. Alguns indivíduos desenvolvem esse poder excessivamente, o que lhes impõe a necessidade de agir, desafiar, ultrapassar limites a todo tempo. Se “a energia para originar e executar o trabalho se deforma em excesso, o machado corta nossos próprios dedos”, mas não há mal sem remédio. A medicação para o extremismo é a compreensão, a aprendizagem e a canalização para variadas ações no mundo.

Para Emerson (2004, p. 400), há homens que não possuem essa sobrecarga de energia, e por isso devem ser desafiados dia após dia. Para que todos tenham a oportunidade de desenvolver suas potencialidades, todos devem ser postos em situações investigativas e problemáticas que os incitem a produzir o que há de mais valioso no mundo, as criações humanas. A “força física não tem valor onde não há nada em que se aplicar”, tal qual a neve nos bancos de neve e o fogo nos vulcões. A “ostentação do gelo acontece nos países tropicais e nos dias de verão”, assim como a “ostentação da eletricidade não se dá na descarga das nuvens, mas no fluxo gerenciável dos fios da bateria”. Quando o indivíduo é desafiado, esse “poder nativo” dá um “prazer surpreendente”, emergindo “em condições de supremo refinamento, como os resultados provenientes da arte” (EMERSON, 2004, p. 399).

Para quem não possui grande “vivacidade”, Emerson (2004, p. 400) sugere duas condutas para desenvolver o poder criador: a concentração e a prática. Concentração é a “interrupção decisiva de nossa atividade diversificada e a concentração de nossa força em um ou em alguns pontos”; a “única prudência na vida é a concentração e o único mal é a dissipação”. Prática é o exercício diário, o poder do uso e da rotina, que vai além de mera repetição. Um fenômeno químico ilustra este argumento: a corrente galvânica gerada pelas baterias é lenta, mas é contínua, possuindo potência igual à faísca elétrica; por isso é o melhor instrumento a ser utilizado nas artes de criação. O mesmo ocorre com a ação humana contra o espasmo de energia; nós a compensamos com a continuidade do exercício diário da ação, dispersando a “mesma quantidade de energia no decorrer do tempo, ao invés de condensá-la em um único momento” (EMERSON, 2004, p. 402).

Essa discussão sobre o poder revela o valor da ação humana no mundo. Emerson (2004, p. 401) diz que “[...] muitos homens têm conhecimento, são apreensivos e tenazes, mas não se apressam em tomar uma decisão”. No entanto, considerando a fluidez do mundo e a constante modificação das coisas, uma decisão deve ser tomada a cada momento, “a melhor, se você puder; mas qualquer uma é melhor que nenhuma”. O homem que tem essa presença de espírito no instante em que precisa agir é mais valioso do que uma dúzia de homens que demoram em estabelecer e executar uma ação.

Na concepção política emersoniana, a maior expressão do poder humano reside na atuação em prol de um governo democrático. Emerson (2004, p. 257) considera que todas as pessoas “têm direitos iguais devido ao fato de serem idênticas por natureza”. Embora nuançada pelas “qualidades que nos diferenciam”, essa identidade não se apresenta apenas em indivíduos excepcionais, mas em todos os que conseguem realizar as suas potencialidades como seres humanos. Por isso, Emerson concorda com Madison, que acredita ser a tirania da maioria a maior ameaça à liberdade republicana; e também com Tocqueville, para quem é perigosa a pressão da opinião pública sobre o desenvolvimento e a expressão da liberdade individual.

Essa reflexão aproxima Emerson do sofista Hípias, para quem somos todos semelhantes por natureza, mas a “lei tiraniza a humanidade” (PROTÁGORAS, 337d-e). Ambos compartilham certa estranheza ante a imutabilidade das leis e das instituições democráticas, e Emerson (2004, p. 255-256) destaca que, ao lidarmos com a ideia de Estado, devemos sempre lembrar que suas instituições não são naturais, não são “superiores aos cidadãos”. Cada uma delas foi certa vez “o ato de um único homem: cada lei e costume foi o expediente de um homem para solucionar um caso particular”, e por isso devemos considerar que todas elas são passíveis de alteração.

Emerson (2004, p. 256) acredita que determinamos a melhor forma de governo para um povo com base no que é apropriado aos hábitos de pensamento dos indivíduos que forma aquela coletividade. A democracia será a melhor forma de governo se corresponder ao sentimento comum de que se trata da melhor forma de responder aos anseios coletivos. Muitos acreditam que “as leis produzem a cidade”, e que profundas “modificações nas políticas, nos modos de vida, nos empregos da população, no comércio, na educação e na religião” podem ser decididas pelo voto, sem a adesão da totalidade dos cidadãos; acreditam que qualquer medida, mesmo absurda, pode ser “imposta a um povo, se houver vozes suficientes para torná-la legal”. Os sábios, no entanto, reconhecem que a “legislação tola é uma corda de areia que perece na torção”, e que o “Estado deve seguir e não liderar o caráter e o progresso do cidadão”, porque a única forma de governo que prevalece é a que representa a “expressão do que é cultivado no povo”.

A argumentação de Emerson permite entender a democracia como forma de vida compartilhada por todos os indivíduos que compõem uma sociedade. Se quisermos levar nossos filhos a agir por meio da coerção, nada conseguiremos. O mesmo acontece na democracia: se o modo de vida democrático não vincular cada um dos cidadãos, não poderá ser exercido em sua plenitude, cuja definição é o compartilhamento. Por isso, instituir e desenvolver a democracia são problemas que só se resolvem pela formação do caráter, pelo crescimento do indivíduo em todas as suas potencialidades. Emerson (2004, p. 263) concebe o caráter como “aquilo que todas as coisas tendem a produzir, o que a liberdade, o cultivo, a relação sexual, as revoluções vão formar e libertar”. Para “educar o homem sábio, existe o Estado; e com a aparência do sábio, o Estado expira”, do que se conclui que o surgimento do caráter torna o Estado desnecessário, uma vez que o “homem sábio é o Estado”.

Emerson advoga um ethos democrático, uma força moral a unir todos os homens, assumindo a forma de um sentimento de pertencimento e de respeito ao próximo. No entanto, “sempre haverá um governo de força, em que os homens são egoístas”, pois, mesmo entre os “homens mais religiosos e instruídos das nações mais religiosas e civis”, sempre falta a “confiança no sentimento moral” que os leve a crer em uma sociedade sem restrições artificiais, ou que o “cidadão privado seja razoável e um bom vizinho, sem a sugestão de uma prisão ou confisco” (EMERSON, 2004, p. 265).

Mas Emerson também acredita que “[...] todos somos melhores do que pensamos ser e muito melhores do que geralmente nos dizem que somos” (SHKLAR, 1990, p. 614). As pessoas estão sempre procurando fazer o melhor para sua cidade; “quando votam, tentam escolher o melhor candidato e todos preferem a companhia de pessoas que consideram seus superiores”; o “desejo de melhorar é universal”. É “impensado e também cínico ver pura malignidade naqueles de quem discordamos ou que podem realmente estar totalmente errados”. A sociedade “é melhor do que parece, e está pronta para mudar quando abordada com paciência e apreço – democraticamente, de fato” (EMERSON, 2004, p. 265).

Emerson (1972, n.p.) vê a educação como o principal meio para a formação do ethos democrático. O mundo está sempre convidando o homem a “brilhar nos domínios de seu conhecimento”, a agir sobre ele e interpretar a “infinidade de sua própria consciência”, para ir sempre além do que imagina. É tarefa da educação despertar o homem para esse potencial. Se for um homem hábil, a educação deve realçar essa qualidade; se for um homem capaz de “dividir os homens pela espada ardente de seu pensamento, a educação deve embainhar e afiar essa espada”; se for um homem que “une a sociedade por suas afinidades integralmente reconciliadoras, que se apresse a ação sobre ele!”. Seja o que for o indivíduo, cabe à educação desenvolver nele todas as suas potencialidades, pois a sociedade necessita de todas elas (EMERSON, 1972, n.p.).

Emerson ecoa os objetivos educacionais dos primeiros sofistas, para quem a educação deve ser tão ampla quanto o homem, promovendo e revelando todas as potencialidades humanas. A formação no lógos, defendida pela Sofística, pretendia desenvolver uma disposição política democrática, um posicionamento crítico e criativo para a solução dos problemas enfrentados pelos indivíduos como sujeitos particulares e como membros de uma sociedade (SILVA, 2017). Em consonância com essa crença no poder transformador da educação defendida pelos sofistas, Emerson (1972, n.p.) acredita que a educação deve fazer soar a esperança, deve perder o “som frio” que vem dos tratados educacionais, das palestras dos especialistas e dos sistemas de ensino formalizados. A educação deve mergulhar no espaço mais profundo do indivíduo e cultivar tudo o que pode florescer de seu potencial, não apenas pela ciência, que toca somente a superfície de nosso ser, mas pela poesia.

Dewey, leitor de Emerson

West (1989) caracteriza o Pragmatismo como uma busca pelos fundamentos necessários a uma crítica da cultura em favor da construção de uma sociedade democrática e emancipada, sendo Emerson o seu profeta e poeta, a raiz da árvore genealógica desse movimento filosófico, a fonte de referência para todas as suas dimensões. Eis o que motiva Dewey a atualizar as noções emersonianas de percepção, poder e democracia, as expressando em suas próprias obras como experiência imediata, experiência estética e experiência democrática.

Entende-se o valor da experiência imediata nas considerações acerca da lógica mencionadas na primeira seção deste artigo: a lógica não possui um método separado da intuição, que é a capacidade de conhecer, entender ou perceber de forma clara e imediata, sem a intervenção da razão. Dewey (2003g) afirma que assumir a experiência como ponto de partida é começar não por uma teoria, mas pelo que é dado previamente em nossas vidas. As coisas são experimentadas tais como são; ao descrevê-las, devemos dizer como as experimentamos. Se for um cavalo, devemos nos referir ao cavalo do comerciante, ou do zoólogo, ou do paleontólogo, pois quem lida com esse animal sabe o que ele é, tal qual o experimentam. Como em cada caso há um tipo de experiência, variando em especificidades, obteremos um contraste não entre a realidade e suas aproximações ou representações fenomenais, mas entre os vários personagens reais da experiência. O empirismo imediato propõe que as coisas são o que são vivenciadas.

Dewey não nega a necessidade de mediação ou reflexão no conhecimento, mas afirma que na experiência não há dualismo entre o eu e os objetos do mundo, e sim uma relação ativa que constrói o eu. Na verdade, o eu não é nada; só a experiência é algo “dado”, “eficaz” e “imediato”, que não se apresenta antecipadamente por meio de teorias (DEWEY, 2003g, p. 167). A noção de experiência imediata deve ser utilizada na filosofia a exemplo do método descritivo direto das ciências naturais. A realidade que serve de apoio às construções teóricas também serve de base para buscar evidências, e o retorno das teorias e investigações ao cotidiano é a única maneira de evitar os vícios da filosofia, em especial o da infertilidade.

Ao privilegiar a experiência, Dewey atualiza a concepção emersoniana de percepção, pois pleiteia ser possível descrever uma experiência com fidelidade à experiência vivida, livre de toda teorização. O postulado do imediatismo não viola o princípio da continuidade e unidade da experiência, pelo qual Dewey qualifica a experiência como processo. Tanto o eu quanto a realidade são processos, não substâncias. A experiência é sempre ancorada no presente, e o que chamamos de passado e futuro são derivações da experiência imaginativa, a porta pela qual os significados advindos da percepção encontram o caminho para produzir o ajuste consciente entre o novo e o velho.

A experiência imaginativa é um dos componentes da experiência estética, noção desenvolvida por Dewey (2003a) em Art as experience, na qual se consubstanciam os qualificativos emersonianos relativos à ideia de poder, vista na segunda seção deste artigo – o poder criador do pensamento, dynamis. Uma experiência estética é a experiência em sua integralidade, e a visão imaginativa é o poder que unifica todos os materiais constituintes de uma obra de arte, compondo um todo em plena variedade. Essa forma de experiência agrega todas as nossas demais experiências, as quais se apresentam à consciência como um elemento distinto.

Dewey (2003h) oferece uma ilustração da experiência estética no fazer científico. Sua recusa à divisão platônica do mundo entre a razão e as impressões sensoriais, entre a teoria e a prática, entre um ser ideal e superior, de um lado, e um ser material inferior, de outro, recusa também a natureza contemplativa do conhecimento. Sua rejeição a todas as formas de dualismo contém a valorização da mudança, o que se abstrai do princípio comum às ciências experimentais de que conhecer é uma atividade regida pela inteligência: quando opera com determinado material, o cientista almeja o controle ativo da natureza e da própria experiência, tal qual procede o carpinteiro que olha as coisas não como objetos em si mesmos, mas tendo em mente um propósito, as transformações que deseja realizar, e é nesse fazer que descobre as propriedades dos objetos. Tanto a ciência quanto a arte recorrem ao poder imaginativo, o qual, como vimos em Emerson, reside em descobrir e discernir, mais do que em analisar e classificar.

Na experiência estética, as emoções cumprem uma função regulatória, unificando o novo e o velho, o que se apresenta à experiência imediata e o que advém de experiências anteriores. Encontra-se essa ideia na crítica de Emerson, mencionada por Dewey, à tendência generalizadora pela qual os filósofos desprezam os significados derivados do particular e privilegiam os que se apresentam como universais. A concepção deweyana de arte como experiência conjuga poder imaginativo e poder reflexivo, posto que a imaginação é “a única porta pela qual esses significados podem encontrar seu caminho para a interação atual”; a imaginação é “o ajuste consciente do novo e do velho” (DEWEY, 2003a, p. 277).

Tanto na ciência quanto na arte, a lacuna entre o que se apresenta no imediato e o que se pode vislumbrar para o futuro é superada pelo poder imaginativo. “Por causa dessa lacuna, toda percepção consciente envolve um risco; é uma aventura do desconhecido, pois, ao assimilar o presente ao passado, também realiza certa reconstrução do passado” (DEWEY, 2003a, p. 277). Sem a adaptação dos significados do presente aos significados das experiências, “não há consciência, que é a fase imaginativa da experiência” (DEWEY, 2003a, p. 278). Na experiência estética, a vida se torna mais inteligível, não conceitualmente, mas de modo coerente e intenso, possibilitando que “os significados extraídos, reunidos e imaginativamente integrados” sejam “incorporados à existência material que aqui e agora interage com o eu” (DEWEY, 2003a, pp. 278-279).

Westbrook (1991) e Ryan (1995) consideram que a teoria estética deweyana destaca a dimensão consumatória da obra de arte, conceituando toda experiência como artística ou estética. Há, no entanto, um componente estratégico a ser considerado, precisamente o que retoma as noções emersonianas de poder e democracia para consolidar o encontro da experiência estética com a experiência democrática. A afirmação de Dewey, mencionada na primeira seção deste artigo, de que Emerson é o filósofo da democracia não é mero elogio, pois é em sua produção ensaística e poética que a filosofia deweyana busca inspiração para qualificar a democracia como “um modo de vida associado, de experiência conjunta comunicada” (DEWEY, 2003c, p. 94).

O poder imaginativo e comunicativo da arte confere ao indivíduo a capacidade de atuar no espaço público em prol da construção da democracia como experiência estética, nos termos deweyanos. Tal qual a educação, a arte pode contribuir para dissolver os obstáculos que impedem o compartilhamento de experiências, sem o que os cidadãos não participam efetivamente nas práticas e deliberações políticas. Esse impedimento atinge com especial força indivíduos e grupos historicamente marginalizados, aos quais se sonega o direito à cidadania. Dewey (2003f) analisa a diferença entre uma sociedade, caracterizada como simples associação de indivíduos, e uma comunidade, palavra que remete às ideias de comunicação e comunhão, as quais possuem o significado de interação emocional e intelectual consciente. Sem que esses atributos se apliquem a todos, não há democracia.

As qualidades do modo de vida democrático não são naturais, nem são assimiladas pelos indivíduos sob a influência de um ambiente social qualquer. Seu desenvolvimento depende de ações planejadas e orientadas, função que pode ser assumida tanto pela educação como pela arte – ambas associadas, preferencialmente. Trata-se de ação política deliberada, a que também podemos denominar pragmática, na qual uma comunidade se empenha para solucionar colaborativamente os problemas comuns, estabelecendo compromissos e, até mesmo, condutas militantes de resistência e oposição. Na visão deweyana, a arte tem potencial para incentivar a atuação política, a crítica social, o debate de crenças e comportamentos estabelecidos, o que é essencial à democracia.

Dewey (2003b, p. 228) responde indiretamente a um dos mais graves problemas da democracia, que é o confronto, o dissenso, ao valorizar “a consulta, a persuasão e a discussão na formação da opinião pública”. Essa é uma das questões práticas que toda democracia viva enfrenta e na qual os artistas podem cooperar. É preciso fazer mais do que proteger os direitos das minorias; é necessário trabalhar arduamente para desenvolver uma cultura em que a pluralidade e a diferença de opinião sejam promovidas. Com Dewey, podemos dizer que, sem a existência de conflitos criativos, as democracias correm o risco de se tornar complacentes e estagnadas.

Os artistas podem se associar aos professores na tarefa de tornar os debates mais informados e inteligentes, abrindo novas perspectivas para o exercício do poder na comunidade. Esse tipo de associação foi enfatizado por Dewey (2003b, p. 226) como imprescindível na época da ascensão e domínio do nazi-fascismo, quando ele escreveu: “[...] a crise atual deve-se, em parte considerável, ao fato de que por longo tempo agimos como se nossa democracia fosse algo a se perpetuar automaticamente [...]”, como se nossos antepassados nos tivessem legado “uma máquina que resolveria o problema do movimento perpétuo na política”.

Naqueles anos tenebrosos, muitas obras artísticas produziram a experiência estética da contestação, como a Guernica de Pablo Picasso e os murais de Diego Rivera. Crick (2019, n.p.) analisa que o mais importante na filosofia deweyana não é “a substância da obra de arte, mas o seu efeito – expandir nossos horizontes de experiência de modo a podermos ver o mundo sob perspectivas que não são as nossas”. Por seu efeito simbólico e mobilizador, podemos incluir na categoria ampliada de experiência estética certos movimentos que, embora externos ao circuito profissional das artes, impulsionam as pessoas a horizontes imaginados.

Em 1930, ao concluir sua longa marcha em direção ao litoral, Gandhi apanhou um punhado de sal, gesto simples que foi repetido por muitas pessoas dali por diante, mesmo sob a brutal repressão da polícia britânica. Recentemente, marchas semelhantes, também reprimidas, atravessaram várias cidades dos Estados Unidos e de outros países, tornando igualmente poderoso um gesto simples: flexionar um joelho e estender o braço com o punho cerrado. A frase “I have a dream”, pronunciada por Martin Luther King em 1963, renasceu nas vozes de cidadãos que gritaram “Black lives matter” e “I can’t breathe”.

Esses movimentos e gestos, assim como certas obras de arte, embora marcados pelo rompimento brusco com padrões de dominação, representam momentos consumatórios que traduzem propostas de superação do estado atual do mundo. Ao retratar os horrores da guerra, Picasso nos provoca a pensar em mundo de paz; as histórias desenhadas por Rivera contam a luta de um povo por uma vida melhor; ao colher o sal com as próprias mãos, afrontando determinações legais, Gandhi traduz o anseio de uma nação por liberdade; o brado de Luther King e de todos os que marcham contra o racismo contém a aspiração pela convivência solidária entre os seres humanos. Todas essas manifestações podem ser consideradas experiências estéticas, diferentemente de condutas de pura agressão, como as Black Blocs, cujo resultado é apenas mais agressão.

Como não existe máquina produtora de democracia, a tarefa de construir esse modo de vida enfrenta inúmeras dificuldades, situação que se agrava por estarmos presenciando o que Crick (2019) denomina uma nova era de fascismo, fato que, por sua vez, exige a articulação de uma nova forma de educação – uma pedagogia do humanismo democrático. Articulação ou rearticulação, aliás, pois falamos de ações políticas e educacionais que foram praticadas há séculos pelos sofistas e mais recentemente teorizadas por Dewey, inspirado em Emerson, e por outros pensadores ao longo da história.

O caminho que leva à democracia e à retomada dessa pedagogia envolverá choques e conflitos antes de alcançar sua consumação, mas os legados da Sofística e de Dewey nos ensinam que “nossas experiências mais valiosas e significativas são experiências compartilhadas” e que o professor deve compartilhar seus métodos, sua esperança e sua imaginação com todos os que buscam recomeçar (CRICK, 2019, n.p.).

Considerações finais

Os gregos antigos utilizavam a retórica em três situações, basicamente: nas assembleias, quando decidiam os rumos a serem tomados pela cidade; nos tribunais, ocasião em que deliberavam sobre o cometimento de delitos; e em situações comemorativas ou fúnebres, em que discorriam sobre eventos e personagens relevantes para a comunidade. Aristóteles (RETÓRICA I, 3) caracteriza os discursos proferidos na terceira situação, chamados epidíticos, como concernentes à louvação ou à censura de valores. Nesse caso, as singularidades de um fato ou de uma pessoa são utilizadas pelo orador como fontes de inspiração para o exercício da cidadania.

Como ocorre nos discursos epidíticos, o ensaio de Dewey aqui analisado não só apresenta a singularidade atribuída pelo orador a Emerson, como revela as inclinações do próprio orador. Dewey revela sua opção pela Sofística, tanto no campo da política quanto no da educação, em oposição às figuras do filósofo e do educador originárias de Parmênides e do platonismo. A sintonia de Dewey com a herança sofística e emersoniana, assim revelada, concerne fundamentalmente aos valores que definem a relação entre a prática educativa, a arte e a democracia.

Tais valores traduzem a crença no poder transformador da imaginação que se expressa em palavras, ações e pequenos gestos que compartilham projetos intelectuais e sentimentos alimentados pela experiência estética, a única capaz de mobilizar o indivíduo e a coletividade para a construção de um modo de vida democrático. Esses mesmos valores inspiram a resistência, quando não o confronto com as tendências desumanizadoras – representadas pelo renascimento de ideias e práticas fascistas – que invadem todas as esferas da vida e, em particular, a educação. Na democracia, o confronto não é apenas inevitável, mas essencial para que a reforma da sociedade e a justiça social sejam alcançadas. Dewey nos oferece uma via para acolher o conflito com imaginação e inteligência, assumindo compromissos concretos com a resolução de problemas.

Notas

1The collected works of John Dewey: 1882-1953, editada pela Southern Illinois University at Carbondale, EUA, reúne 37 volumes com textos de variada natureza – livros, ensaios, palestras, programas de disciplinas, comentários sobre autores etc.

2Publicações brasileiras trazem informações biográficas sobre Emerson – ver, por exemplo A conduta para a vida (EMERSON, 2003a), Ensaios (EMERSON, 2003b) e Natureza (EMERSON, 2011).

3Todos os trechos transcritos de obras estrangeiras foram traduzidos pelos autores deste artigo.

4Dewey não indica a fonte das transcrições de Emerson.

5Em Experience and nature, Dewey (2003e, p. 17) dá o nome de “empírico denotativo” a esse método.

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Recebido: 01 de Maio de 2021; Aceito: 28 de Maio de 2021

Profa. Dra. Tatiane da Silva

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