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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.60 Natal abr./jun 2021  Epub 19-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n60id25105 

Artigo

A “invasão” feminina na Casa do Estudante Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1980

The “feminine invasion” in the House of the University Student of the Federal University of Rio Grande do Sul in the decade of 1980

La “invasión femenina” en la Casa del Estudiante Universitario de la Universidad Federal de Rio Grande do Sul en la década de 1980

Dóris Bittencourt Almeida1 
http://orcid.org/0000-0002-4817-0717

Fabiana Pinheiro da Costa1 
http://orcid.org/0000-0002-3581-8625

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)


Resumo

Inserido no campo da História da Educação, o artigo tem por objetivo analisar os processos que envolveram a “invasão” feminina à Casa do Estudante Universitário (CEU/UFRGS), na década de 1980. O estudo foi desenvolvido a partir de um conjunto documental, em que preponderam memórias orais de cinco mulheres que participaram desse episódio. Operou-se com os pressupostos da História Oral, considerando as subjetividades da memória como uma produção do tempo presente que evoca experiências do passado. As narrativas examinadas permitiram que se buscasse compreender esse fenômeno a partir da perspectiva de quem, um dia, foi proibida de frequentar a moradia universitária. Observa-se que a Universidade criou inúmeras barreiras para o acesso das mulheres à CEU, mas, com a “invasão”, houve uma abertura que promoveu novos modos de se conviver nesse lugar, possibilitando que, aos poucos, elas tivessem direito à assistência estudantil e pudessem dar continuidade à formação em nível superior, tendo a garantia de um lugar para morar.

Palavras-chave: História das Mulheres; História das Instituições Educativas; Moradia estudantil; Casa do Estudante Universitário (CEU/UFRGS)

Abstract

Within the field of History of Education, the article aims to analyze the processes that involved the feminine "invasion” of the House of the University Student (CEU/UFRGS), in the decade of 1980. The study was developed from a documentary set containing verbal memories of five women who participated in this episode. The study operated with Oral History assumptions, considering the subjectivities of memory as a production of the present time that evokes experiences of the past. The examined narratives allowed to understand this phenomenon from the perspective of who once was forbidden to live in the university housing. It is observed that the University created innumerable barriers for the access of women to CEU, but, with the “invasion”, there was an opening that promoted new ways of if coexisting in this place, making it possible that, gradually, they could have guaranteed the right to student assistance and could give continuity to their superior education, having access to a place to live within this period.

Keywords: History of Women; History of Educational Institutions; Student housing; House of the University Student (CEU/UFRGS)

Resumen

Insertado en el campo de la historia de la educación, el artículo tiene el objetivo de analizar los procesos que implicaron la “invasión femenina” a la casa del Estudiante Universitario (CEU/ UFRGS), en la década de 1980. El estudio fue desarrollado a partir de un sistema documental, donde preponderanmemorias verbales de cinco mujeres que participaron de este episodio. Operó con premisas de la Historia Oral, considerando las subjetividades de la memoria como producción del tiempo presente que evoca las experiencias del pasado. Las narrativas examinadas permitieron entender este fenómeno desde la perspectiva de quién, un día, fue prohibida a frecuentar la residencia estudiantil de la universidad. Se observa que la universidad creó barreras innumerables para el acceso de las mujeres a la CEU, pero, con la “invasión”, hubo una abertura que promovió nuevas maneras de coexistir en este lugar, haciendo posible que, a los pocos, tuviesen derecho a la ayuda estudiantil y pudiesen dar continuidad a la formación en nivel superior, teniendo la garantía de un lugar para vivir.

Palabras clave: Historia de las Mujeres; Historia de las Instituciones Educativas; Casa Estudiantil; Casa del Estudiante Universitario (CEU/UFRGS)

A Casa do Estudante Universitário/UFRGS como uma instituição educativa

A temática da moradia estudantil ainda é pouco explorada pela historiografia brasileira. Entretanto, estudos publicados na última década têm aberto novas possibilidades de investigação, demonstrando a importância desse tipo de abordagem para a História da Educação.

Como forma de contribuir para o avanço dessas pesquisas, o presente artigo trata da presença feminina na Casa do Estudante Universitário (CEU) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre/RS. Propõe-se aqui a narrativa de uma história concebível, que tenta se aproximar do passado dessa moradia. Toma-se como eixo de investigação a “invasão” [1], ocorrida em 29 em abril de 1980, que faz parte da luta pelo ingresso das mulheres na CEU. Postula-se esse acontecimento a partir do que Arlette Farge (2015) diz, como algo que desordena uma lógica, algo heterogêneo sobre o qual o pesquisador se debruça e constrói uma análise historiográfica.

O objetivo do estudo é analisar os processos que envolveram essa “invasão” que culminou, mais tarde, na abertura da Casa para as mulheres. Para isso, foram feitas leituras de diferentes documentos da Universidade, assim como consultas a periódicos de grande circulação em Porto Alegre na época, porém as fontes preponderantes foram as memórias orais de mulheres que participaram desse episódio, sobretudo examinaram-se os modos como se engajaram na luta, e a relação que estabeleceram com os homens que lá residiam. Considera-se, portanto, a potencialidade da História Oral em capturar os sentimentos, dificilmente traduzidos em documentos institucionais, o que coloca essa forma de narrativa no espectro das sensibilidades. Sandra Pesavento (2008) entende que as sensibilidades estão expressas nas palavras, nos ritos, nas imagens e objetos da vida, nos espaços habitados e suas materialidades. Para ela, o sensível não necessariamente se refere a algo que tenha uma existência real, mas ao sentido que se confere à determinada experiência vivida. No entanto, estes indícios, expressos por meio da fala, não são a história, eles nutrem a investigação e, através da operação historiográfica, são capazes de promover a produção de versões inteligíveis acerca de acontecimentos pretéritos.

A construção da pesquisa se deu a partir do pressuposto de Paul Ricoeur (2007, p. 41), para quem a memória é a matriz da História e, segundo o qual, “[...] não temos nada melhor do que ela para significar o que aconteceu no passado”. De forma que, “[...] o testemunho constitui a estrutura fundamental de transição entre a memória e a história”. Percebemos que a disputa pelo ingresso e também pela permanência em um ambiente que não fora concebido para receber mulheres produziu marcas em seus itinerários pessoais, caracterizando-se como um processo educativo para além das vivências acadêmicas, na medida em que promoveu uma reflexão sobre as maneiras de ser e estar em coletividade.

Ao refletir sobre o sentido educativo de um lugar de moradia, precisa-se ter em pauta que a educação não é somente um acúmulo de aprendizagens gradativas e complexas. Educar-se pressupõe uma construção, um desenvolvimento pessoal, “[...] uma mudança duradoura com vistas a uma partilha de humanitude” (MAGALHÃES, 2004, p. 27). Logo, pode-se dizer que a luta pelo direito à moradia estudantil envolve não apenas a experiência imediata de “invadir”, mas configura-se como um percurso na vida dessas mulheres. E é justamente por ser entendido como um ambiente que impulsiona o sujeito a novas visões de mundo, e no qual o exercício da alteridade e da relação com o outro é uma constante, que a CEU pode ser compreendida como uma instituição educativa.

Ao vislumbrar a CEU como um lugar de formação e propor sua historicização, por meio da perspectiva do público feminino, situamos esse trabalho no campo investigativo da História das Instituições Educativas ou, de forma mais abrangente, da História da Educação. E é ancorada nesse campo temático de investigação que o presente estudo busca contribuir com a análise desse lugar que se configura como um importante instrumento de assistência estudantil e acesso ao ensino superior.

A História da Educação interessa-se por temas que perpassam tanto a educação formal como não formal. Sua ampliação como campo de pesquisa se dá a partir de uma virada epistemológica no âmbito da historiografia, ocorrida na segunda metade do século XX, que adveio do declínio das grandes explicações e sínteses globalizantes. Essa reviravolta epistêmica permitiu a insurgência de novos atores sociais, o que veio a redefinir o entendimento sobre fontes e também a amplificar as temáticas e os objetos de investigação. Cunha (1999, p.40) pontua que essas transformações promoveram uma dimensão mais humana à pesquisa científica. Os sentimentos, as sensibilidades e as emoções passaram a figurar como “importantes forças mobilizadoras do social”.

Com base neste entendimento, demonstramos, a seguir, algumas peculiaridades que envolvem o uso da memória oral como documento histórico. Primeiro, chamamos atenção para o fato de que narrar a própria história tem um peso muito grande na afirmação do sujeito. Aquele que relata seu passado comumente procura construir uma versão bonita de si tanto para os outros, como para consigo mesmo. Ou seja, “[...] compomos nossas memórias de forma que se ajustem ao que é publicamente aceitável” (THOMSON, 2001, p. 87). Segundo, a memória constitui-se em uma zona flutuante e sem cronologia. Não se possui controle preciso sobre aquilo que é lembrado ou esquecido.

Se, por um lado, rememorar pode ser difícil, por outro, pode colocar o sujeito diante de um sentido de valoração da vida, considerando que a memória é também uma parte importante da trajetória de cada um. Recapitular o próprio percurso pode ser um bom momento para se perceber que a existência valeu à pena. Sendo a memória um pedaço valioso da vida de cada um, é também importante na construção da memória coletiva [2], fator que nos impeliu a optar pelas narrativas de mulheres que viveram a experiência de “invadir” a Casa.

Portanto, a pesquisa evidencia a importância dos documentos orais e suas relações com a memória, a narrativa e subjetividades. Segundo Portelli, a História Oral é uma espécie de “arte da escuta”em que se tem acesso “[...] ao significado histórico da experiência pessoal, por um lado,e ao impacto pessoal das questões históricas, por outro” (2015, p. 16). Aquele que é instado a lembrar “não recorda passivamente os fatos, mas elabora, a partir deles e cria significado através do trabalho de memória e do filtro da linguagem” (p.18). Durante a entrevista, acontecimento que comporta ritualidades e intenções, o sujeito que é convidado a rememorar produz elaborações acerca do vivido e o faz movido pelos lugares que ocupa no tempo presente.

Ainda é preciso dizer que a presença feminina na CEU poderia ser historicizada sob outros vieses, a partir de outros personagens, e destas análises derivariam outras formas de compreensão desse fenômeno. A produção da história implica em uma seleção, o que leva ao entendimento de que as narrativas das entrevistadas não podem ser tomadas como uma verdade comum a todas que participaram do movimento. Ao trazer aqui as memórias de um grupo de mulheres, o que se pretende é tomá-las como personagens que contribuem para expandir as fronteiras da história dessa moradia.

Explicitadas essas ponderações, apresentamos as narradoras da pesquisa. Foram entrevistadas cinco mulheres que tiveram participação direta na “invasão” à CEU: Denise Dourado Dora (advogada; bacharel em Direito pela UFRGS), Dinah Lemos (técnica judiciária; licenciada em História pela UFRGS), Laura Souto (autônoma; ensino superior incompleto), Maria da Glória Koop (professora; licenciada em História pela Pontifícia Universidade Católica do RS) e Roselaine Aquino da Silva (professora; licenciada em Ciências Sociais pela UFRGS). Todas têm em torno de 60 anos de idade. Podemos afirmar que foi desse emaranhado de vestígios de memórias entrelaçadas, produzidos durante as entrevistas, que se vislumbrou um caminho para historicizar a presença feminina na CEU. Mesmo sabendo da impossibilidade de reconstruir o passado na sua totalidade, encontramos nessa “poeira de fragmentos” (CERTEAU, 1982, p. 31) uma via para construir uma história verossímil com o devido rigor científico.

Um lugar para homem morar: as origens da CEU

As origens da Casa do Estudante Universitário remontam à década de 1950, quando a Universidade, sob a gestão do Reitor Elyseu Paglioli, tomou a iniciativa de construir um prédio destinado a servir de moradia para cerca de quinhentos estudantes. O imponente edifício projetado abrigaria também um Restaurante Universitário (RU), com possibilidade de oferecer aproximadamente duas mil refeições por dia.

Segundo Silva (2004), a Administração Universitária adquiriu um terreno na Avenida João Pessoa, em frente à Faculdade de Ciências Econômicas, na região central da cidade. Em 1958, um ano antes do início da construção efetiva da CEU, o Reitor Paglioli anunciou à comunidade acadêmica a construção de uma grande Casa para os estudantes que, ao que tudo indicava, seria composta por dois grandes blocos, um destinado aos estudantes do sexo masculino e outro destinado às estudantes do sexo feminino. O que não se cumpriu.

Em meados da década de 1960, a Universidade enfrentou inúmeros problemas financeiros e as obras destinadas à moradia estudantil atrasaram. A comunidade acadêmica, especialmente os estudantes, percebeu os entraves da construção e passou a cobrar respostas da Administração. Entretanto, mesmo com pressão para que houvesse uma aceleração na obra, esta só seria concluída três anos mais tarde.

Quando finalizado, o projeto da Casa do Estudante Universitário foi anunciado pela recém-criada Assessoria de Imprensa da Universidade. Em 1971, essa Imprensa noticiou em seu Boletim Informativo que a moradia já estava em funcionamento e 400 alunos já se encontravam devidamente instalados, sendo 60 oriundos da pós-graduação e os outros 340 da graduação. Também se informou à comunidade uma mostra do regimento cuja intenção era manter o “[...] funcionamento sadio para o compartilhamento da Casa do Estudante Universitário” (UFRGS, 1971, p. 11). O teor do regimento é organizacional, estando expressas as ordens de manutenção do local, como manter silêncio após às 22h, não depredar os móveis e objetos, zelar pela conservação do ambiente e pelo bom convívio entre os moradores. Em meio a esses itens que figuravam no regulamento para uma convivência salutar entre os jovens, destaca-se o de nº 18, cuja redação informava que era vedada a entrada de pessoas do sexo feminino nos andares residenciais da CEU. Então, em 27 de julho de 1971, a Casa do Estudante Universitário foi oficialmente inaugurada sem que a presença feminina fosse aceita na condição de visitantes, muito menos de moradoras.

A partir do exposto, observa-se que esse espaço foi pensado e estruturado para os homens. O público feminino foi vetado, por mais de uma década, de habitá-lo e assim demarcá-lo como seu. Essa situação só veio a se modificar quando, em 1980, houve a “invasão” que alterou os rumos dessa moradia estudantil.

Ressalta-se que esse movimento ocorrido na CEU esteve colocado dentro de uma conjuntura. No início década de 1980, o Brasil ainda estava sob o regime da ditadura civil-militar, mas já mostrava sinais de uma transição política. Segundo Schwarcz e Starling (2015), houve um engajamento de diversas oposições contra a ditadura unidas no slogan “pelas liberdades democráticas”. O ativismo político dos universitários, a partir de 1977, estava com fôlego renovado e carregou com afinco essas palavras de ordem nas manifestações. Essa nova movimentação deslocava-se da luta armada para a ocupação de caminhos legais de atuação política. As autoras afirmam que, a partir daquele momento, os brasileiros passaram a definir as rotas para reimplantar a democracia. Nesse sentido, estender o acesso à Casa para as mulheres constitui-se em uma ação entrelaçada ao contexto político, no qual a bandeira pela abertura democrática estava em vigor. Transformar a habitação estudantil em um espaço onde pudesse haver uma livre circulação era uma maneira de redemocratizá-la. Representava um modo de desarticular e enfrentar as regras autoritárias, não só da Universidade, como do país.

Os primeiros anos da CEU: tensões, interdições e brechas à presença de mulheres

A Casa do Estudante Universitário sempre foi gerenciada por instâncias indicadas pela própria Reitoria, havendo pouca ou nenhuma participação dos estudantes. Para organizar o cotidiano, um Conselho Administrativo foi montado, composto por sete titulares: três designados pelo Reitor, dentre membros do corpo docente, técnico-administrativo e três moradores, dos quais um seria responsável pelo pavimento dos cursos de pós-graduação e dois dos pavimentos de graduação, além de um administrador que estaria permanentemente na moradia. De acordo com o regimento interno, cabia a esse Conselho traçar as diretrizes, assim como “admitir e demitir moradores” (UFRGS, 1971, p. 6).

Nos seus primeiros anos existência, não foram poucos os conflitos envolvendo esse modelo de gestão, principalmente no tocante à eleição dos que representariam todos os demais. Um dos motivos de embates pelas vagas no Conselho é que este era responsável também pelos casos de indisciplina, cabendo-lhe julgar e aplicar as devidas penalidades. Dentre as infrações que vinham sendo contestadas, estava o fato de que a presença feminina era proibida na Casa, salvo com expressa autorização do administrador, concedência que, ao que tudo indica, nunca acontecia.

Diante disso, cabe, mais uma vez, a reflexão feita por Justino Magalhães (2004) para quem as instituições educativas são uma mescla de comunicação, poder e relações com as comunidades que a envolvem. Historicizar um espaço de educação, seja ele formal ou informal, requer um olhar para essas dinâmicas de regulação e manutenção normativa, analisando comportamentos, representações e projetos de sujeitos que pretendem formar dentro do seu contexto sociocultural. A situação da CEU permite entrever dois modelos distintos de concepção educativa: de um lado, um grupo de moradores disputando a sua autonomia. De outro, a Universidade, às vezes apoiada por alguns estudantes, com um modelo vertical de administração que resultou em um espaço segregado e de extrema vigilância. Assim, analisar como ocorreu o processo de entrada das mulheres na Casa requer um olhar para essas formas de gerir o espaço e os conflitos resultantes de tal modelo.

Exemplificando esse sistema de vigilância, o ex-morador José Fortunati, declarou que sua mãe foi uma das primeiras mulheres a quebrar esse ciclo de proibição. Em um campeonato de futebol, ele rompeu os ligamentos do joelho e ficou acamado por dias. Sua mãe veio da cidade de Flores da Cunha, interior do RS, para auxiliá-lo. Foi impedida de subir as escadas pelo esquema de segurança. Diante isso, um grupo de moradores se articulou para cobrar a autorização do administrador para que ela pudesse visitar o filho, porém somente após dias de pressão foi concedida essa entrada (SILVA, 2004).

Embora a UFRGS negasse o acesso ao sexo feminino, havia um grupo que era permitido adentrar as dependências: as responsáveis pela limpeza. Tal fato nos leva a pensar sob que condições a Reitoria enxergava essas mulheres. Não foram encontrados indícios que permitissem explorar melhor esse fenômeno, mas algumas inferências são possíveis de se fazer, haja vista que, na década de 1970 —e ainda hoje— a maioria esmagadora das trabalhadoras de serviços gerais era/é negra e pobre. É possível cogitar que fossem descoladas da sua condição de mulheres aceitáveis aos olhos dos estudantes (homens brancos em sua maioria) e também vistas como incapazes de concorrer a vagas dentro daquele espaço. Em sua dissertação, Hinterholz (2017) analisou o regimento interno da Casa do Estudante Aparício Cora de Almeida (CEUACA), em Porto Alegre, e observou que constava a proibição aos moradores de conversar com as empregadas da moradia. No entanto, tal proibição não os inibia de manter relações sexuais sempre de caráter eventual, já que eram consideradas “não adequadas” para casar com homens universitários.

Com o passar dos anos, os moradores aumentaram a pressão para que houvesse uma modificação nas normas e as estudantes fossem autorizadas a frequentar a Casa, quer como visitantes ou moradoras. A Universidade manteve seu posicionamento rígido frente a essas demandas, recusando-se a admiti-las. Porém, é possível perceber que, mesmo diante de uma estrutura severa, houve brechas que possibilitaram esse acesso. A utilização da metodologia de História Oral permitiu identificar as dissonâncias que se apresentavam no cotidiano da moradia e que demonstram a complexidade que existe ao se analisar esse ambiente.

Um exemplo que chama atenção é Laura ter se mudado para a CEU com sua filha de meses de idade, no final de 1979, e lá ter permanecido por quase meio ano, mesmo sem vínculo formal com a UFRGS. Seu ingresso foi facilitado por um morador, na época seu namorado, que, segundo ela, também discordava da maneira como as regras eram impostas. A presença de Laura não estava relacionada às demandas dos moradores por maior autonomia, pelo contrário, ligava-se diretamente a uma questão pessoal. Mas, no fim das contas, o fato dela habitar esse local evidencia as fragilidades do sistema de controle. Ela explicou que os porteiros, aos poucos, começavam a afrouxar na diligência, pois como ela poderia transitar pelo edifício sem que fosse notada?

Porém, de modo oficial, a presença feminina continuava sendo considerada um problema para Universidade que rechaçava toda e qualquer negociação com os moradores. Denise pontuou que os estudantes não necessariamente viam esse fato como um problema de discriminação de gênero, mas como uma questão atravessada pelo autoritarismo. Roselaine compartilhou da mesma opinião e nomeou a Casa como uma prisão. Ela citou um evento no qual entrevemos que, além do controle, havia um discurso discriminatório contra as mulheres. Segundo a entrevistada, o Reitor Homero Só Jobim teria dito “se vocês querem transar, que transem na Redenção[3]" (ROSELAINE AQUINO DA SILVA, 2019). Dinah também mencionou tal episódio, fazendo referência ao fato do Reitor nomear as estudantes que entravam clandestinamente na CEU de “prostitutas” (DINAH LEMOS, 2019). Comentou que, no fim dos anos 1970, os moradores estavam mobilizados pelo livre acesso feminino e, assim como Denise, afirmou que eles entendiam a proibição mais pelo viés da ditadura e não propriamente do machismo. Para ela, o campo político da esquerda não estava preocupado em debater os dois fenômenos, discriminação contra mulheres e autoritarismo. A discussão sobre o regime político tornava-se prioritária e deslocada do feminismo e suas pautas.

Nesta perspectiva, Celi Pinto (2003, p. 60) aponta o quanto o feminismo no Brasil das décadas de 1970 e 1980 tinha uma relação difícil com a política. A autora considera que o discurso feminista era mal visto, tanto pelos militares (e seus seguidores), quanto pelos militantes da esquerda, que, muitas vezes, associavam a liberalização dos costumes a uma vulgarização na forma de tratar a mulher. Afirma que as questões de gênero encontravam resistência nos segmentos tradicionais de esquerda porque tais lutas não eram compreendidas como “passíveis de perseguições pelo aparato repressivo do Estado”. Outra pesquisadora que investiga o movimento feminista em Porto Alegre é Natalia Pietra Méndez (2004). Ela analisa as dificuldades que as mulheres engajadas em coletivos encontravam para afirmar a importância da luta feminista frente à conjuntura vivida no país e como se considerava a pauta da emancipação feminina uma questão secundária, diante da necessidade de enfrentar o regime ditatorial e redemocratizar o estado brasileiro. Ambos os estudos possibilitam dimensionar a fala apresentada por Dinah e o quanto a questão do machismo era complexa dentro da estrutura política do início da década de 1980.

Entretanto, mesmo sem colocar a questão da opressão como eixo principal, a discussão sobre a entrada das mulheres seguia acontecendo em diferentes esferas. Laura, que continuava morando na CEU de forma clandestina, foi denunciada em março de 1980. Essa ocorrência mobilizou os moradores a convocarem reuniões para decidirem quais as estratégias de resistência seriam tomadas. Por isso, as entrevistadas concluem que a organização para a “invasão” ocorreu por iniciativa dos homens “[...] tinham reuniões com quase 200 moradores querendo que as mulheres pudessem entrar [...] orquestramos uma invasão que foi, sim, liderada pelos homens” (DINAH LEMOS, 2019). Embora declarem que foi um movimento articulado por eles, em diversos momentos, elas indicam que, se não houvesse uma adesão das estudantes para o ato, este dificilmente teria dado certo.

Laura também rememorou a assembleia em que sugeriu uma vigília, marcada para o dia de sua expulsão, com vistas a impedir que os porteiros a despejassem. Ainda que a sugestão fosse para se proteger, todos aceitaram a proposta, o que demonstra a participação feminina nas reuniões e decisões da Casa. Ela considerou que havia um clima geral favorável à entrada das mulheres. Dinah seguiu na mesma perspectiva dessa ambiência amigável e de que uma grande parcela dos estudantes estava inebriada pelo fato delas passarem a frequentar o local. Denise, no entanto, ao rememorar esses momentos, explicou que, dentro da CEU, também existiam pessoas contrárias, por isso houve uma iniciativa de montar grupos para dialogar com os moradores na perspectiva de construir uma proposta coletiva para esse ingresso.

É provável que o consenso em uma Casa com mais de trezentos moradores fosse difícil, mas percebe-se, por meio das narrativas, que os estudantes conseguiram construir articulações que facilitassem o processo de entrada das mulheres, inclusive conseguindo o apoio da imprensa regional. As inúmeras discussões, bem como as negociações infrutíferas com a Reitoria, acabaram mobilizando os estudantes a se envolverem no assunto. Inferimos que muitos podem ter aceitado se engajar, não necessariamente pela luta da moradia mista, mas como uma forma de desobediência às regras institucionais. Alberto Melucci, ao tratar de mobilizações coletivas, afirma que um movimento concreto é sempre complexo, heterogêneo e, no seu interior, há uma gama de problemas, atores e objetivos envolvidos, mas, ainda assim, esses fenômenos implicam solidariedade, ou seja, “capacidade dos atores se reconhecerem e serem reconhecidos como parte da mesma unidade social” (2001, p.35). Por isso, é possível dizer que mesmo os moradores contrários à entrada das mulheres acabaram não gerando ações de bloqueio, porque houve uma atmosfera que os seduziu a combater a institucionalização imposta pela Universidade.

“Abram as grades dessa prisão”: a “invasão” da Casa do Estudante Universitário da UFRGS

Foi no dia 17 de abril de 1980, após uma grande assembleia estudantil, que se tomou a decisão pela livre entrada feminina na CEU, independente das ordens da Reitoria. Alguns dias depois, o jornal Correio do Povo divulgou uma nota com o título “Pedido livre acesso de mulheres na UFRGS”, informando que os estudantes anunciavam um grande ato para o dia 29 de abril de 1980.

Sobre esse intenso processo de negociação com a Universidade, Denise recordou que os estudantes estiveram abertos a conversar e afirmou que, inicialmente, toda a arquitetura política foi feita pelos canais legais e institucionais, em um sentido de mudar o regimento por meio do Conselho Administrativo. Como não houve diálogo possível, decidiu-se na assembleia pela entrada coletiva na Casa. A entrevistada aponta que a resposta da Reitoria foi de extrema repressão, não só na atitude de cortar as bolsas como nas ameaças proferidas: “[...] na véspera, alguém da UFRGS falou que iria chamar a polícia, que era pra que todo mundo tentasse desistir, teve uma repercussão forte” (DENISE DOURADO DORA, 2019). Porém, mesmo com medo e sem saber como iria se desenrolar essa mobilização, os estudantes demonstraram disposição em dissolver as barreiras impostas e mantiveram uma atitude de festejo. A chegada das mulheres era algo iminente.

Diante das desobediências, no dia 27 de abril, a Reitoria, em resposta ao texto publicado no Correio do Povo, emitiu uma “Nota Oficial da Casa do Estudante” também veiculada pela imprensa. Neste comunicado, o Reitor Homero Sá Jobim tentou esclarecer à comunidade acadêmica e ao público os assuntos envolvendo a moradia, subdividindo sua argumentação em sete breves itens. No primeiro, expôs a função social da CEU e a letra regimental que excluía das suas dependências o público feminino. Em seguida, afirmou a convocação de uma reunião, para o dia 25 de abril, a fim de dialogar com os moradores, explicando-lhes a importância de obedecer às regras regimentais e solicitando-lhes que apresentassem formalmente uma “proposta consubstancial de alteração do regimento” para ser avaliada pelo Conselho no dia 28 de abril. Por fim, a nota esclarece que a Universidade não havia recebido nenhum retorno e desaconselhava o ato previsto para o dia 29, uma vez que seria encargo da Universidade zelar pelo cumprimento dos dispositivos legais.

Essas atitudes demonstram o jogo de forças que estava sendo travado entre estudantes e Universidade, já que ambos se acusavam pela falta de diálogo e tentavam, por meio da imprensa, ganhar a simpatia do público. As entrevistadas comentaram sobre o uso dos meios de comunicação como estratégia de mobilização, principalmente por parte dos moradores. Estes procuravam levar ao conhecimento geral os casos mais graves da CEU para demonstrar o quão infundadas eram as normas. Esse recurso, aparentemente, surtiu efeito na imagem divulgada da gestão administrativa da UFRGS, o que levou o Reitor, em 28 de abril de 1980, a fazer um novo pronunciamento, noticiado no jornal Correio do Povo como “CONVITE”, chamando as mulheres a visitarem a Casa entre os dias 29 e 30 de abril afirmando que a presença delas estava autorizada pela Reitoria.

A atitude do Reitor em fazer um “convite” e “autorizar” a entrada por dois dias, como forma de demonstrar a sua disponibilidade ao diálogo, foi interpretada pelos envolvidos na mobilização como mais um esforço de esvaziar o ato, uma vez que no dia anterior havia sido divulgada uma nota na imprensa em que ele dissuadia a manifestação e declarava que, enquanto estivesse no cargo, não seria permitida a entrada de mulheres na Casa. Nesse sentido, parece visível que a UFRGS começou a dar-se conta do desgaste que vinha enfrentando com relação à opinião pública e resolveu mudar seu discurso com vistas a reverter essa situação.

Os estudantes, ao perceberem essa tentativa de desmobilização, confeccionaram panfletos que foram distribuídos por diferentes campi da Universidade, explicando os motivos da “invasão” e salientando que a entrada não deveria ser “autorizada” por dois dias, mas que as mulheres deveriam ter livre acesso permanente. Então, no dia 29 de abril de 1980, no dia e hora marcados, os manifestantes compareceram em massa nas imediações do prédio da antiga Escola de Engenharia, quase em frente à Casa do Estudante Universitário, onde a postos com megafones, convocavam a população a participar do ato.

Na Avenida João Pessoa, um grande conglomerado de pessoas se acumulava esperando o comando para entrar. O vídeo amador[4], produzido por estudantes e disponibilizado anos mais tarde no Youtube, permite algumas interpretações desse momento. Parecia um dia agradável de sol, no qual homens e mulheres vestiam calças e blusas de manga curta. Com os olhos voltados para os onzes andares da Casa, o público assistia o desenrolar de uma enorme faixa pelo frontispício do prédio. “Abram as grades dessa prisão”, estava escrito. Apesar do som mudo, é possível observar o toque das mãos em ritmo de palmas, enquanto outra faixa começava a cair: “Sejam bem-vindas mulheres”. A câmera muda de ângulo e surge no canto esquerdo do vídeo uma jovem com um megafone. Em seguida, um grupo segurando um grande cartaz: “Entrada Feminina na CEU”. O clima de euforia parece ter tomado conta de todos os presentes.

As cenas capturadas pela câmera amadora se somam à fala das entrevistadas que participaram desse dia e rememoraram o ato. Para algumas delas, foi um momento marcante não só pela resistência frente à oposição da Universidade, mas também pela sintonia que construíram coletivamente.

Ao relembrar esse momento, Denise não escondeu a animação e suas lembranças fluíram de forma ininterrupta. Ao descrever tal episódio, pareceu-nos que este foi um momento importante em sua trajetória.

A gente decidiu atravessar a rua. Tinha uma comissão de segurança que fechou o trânsito para dar espaço. Teve um apito. Quando a gente começou a atravessar a rua, os meninos começaram também. Começaram a falar palavras de ordem, aplaudir e jogar papelzinho, então ficou um negócio alegre, bonito e suave. A polícia ficou atônita vendo aquilo, um monte de criança com dezessete, dezoito anos com papeizinhos e cantoria. Não baixaram o cacete. Não foi uma coisa agressiva (DENISE DOURADO DORA, 2019).

Dinah partilhou de sentimentos semelhantes aos de Denise. Para ela, uma das coisas mais importantes foi a sensação de que, naquele momento, cada um podia marcar a sua presença. Todos contavam. Todos estavam juntos. O fato das pessoas se unirem para produzir seu cartaz de forma artesanal, com pincéis atômicos e tinta têmpera marcou a estética do evento e o seu imaginário. Ela rememorou diversas frases que estavam escritas e outras que eram cantadas: “é proibido proibir”, “abram as grades dessa prisão”, “mulher não é boneca, mulher não é feijão, mulher luta contra repressão”. Tais lembranças levam a cogitar que esse foi um momento de relevância em sua trajetória pessoal, justamente por ela ser uma das lideranças do grupo feminista Liberta que começava a ganhar fôlego naquele cenário e por reter em sua memória detalhes minuciosos que as demais entrevistadas não expuseram.

Cabe dizer que Maria da Glória, assim como Denise, constrói sobre esse episódio, lembranças felizes, destacando sempre a sua relevância. Mas como entender a construção dessas lembranças? Quando narramos uma experiência vivida, falamos aquilo que elaboramos, no presente, acerca do que aconteceu. As lembranças são reformuladas de acordo com as situações do cotidiano e com as emoções evocadas, pois “[...] as histórias que relembramos não são espelhos do nosso passado, mas traduzem traços desse passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais em um processo de composição de memórias” (THOMSON, 1997, p. 60).

Voltando à narrativa de Maria da Glória, ela contou que não estava presente na hora em que os manifestantes atravessaram a rua para ingressar na Casa. Chegou quando os papeis picados já caiam pelas janelas e as mulheres haviam subido as escadas. Sua grande vontade era ver os detalhes de como viviam os homens naquele lugar. Ao entrar na CEU, deteve-se nos banheiros, nos quartos, na infraestrutura de uma moradia que fora concebida para não ser tocado pelo sexo feminino. Em suas palavras, “[...] a gente tinha muita vontade de ver como era” (MARIA DA GLORIA KOOP, 2018).

Porém, ainda que o clima fosse de comemoração e a organização tivesse funcionado de forma coletiva, há que se lançar sobre esse evento um olhar crítico, sem esquecer que o ponto de vista das entrevistadas não representa o todo, mas perspectivas carregadas de subjetividades. Vale ressaltar que os diferentes grupos que participaram da mobilização não necessariamente aderiam à causa da moradia mista. Uma ação desse porte envolve múltiplos atores, objetivos e disputas, o que se torna claro quando analisamos o que dizem as entrevistas.

Outro aspecto referente a esse acontecimento diz respeito às mudanças que as narradoras acreditam ter ocorrido a partir de abril de 1980. Denise constatou que houve uma nova forma de pensar a política não só da Casa, mas da própria Universidade. Para ela, esse movimento organizado obrigou professores e servidores técnicos a repensarem a gestão administrativa daqueles anos. Nessa lógica, entende que foi um momento de alianças se formarem, visto que pessoas ligadas à UFRGS compraram o discurso dos manifestantes e passaram a debater o tema. Assim, ela complementou:

No próprio dia da ocupação, a ideia era só entrar. Eu acho que ali, o dia da entrada, quebrou a política tal como era. Exigiu que a política fosse refeita. Como é que fazia para as mulheres se inscreverem na Casa? Não teve como eles manterem o mesmo padrão. A invasão muda a política radicalmente, a casa passa a ser uma casa para homens e mulheres, aí tudo tem que ser revisto (DENISE DOURADO DORA, 2019).

Para além das mudanças institucionais, ela afirmou que esse episódio produziu um incremento no movimento estudantil, pois os estudantes se engajaram com mais afinco em outras disputas políticas quando perceberam a repercussão positiva da luta pelo ingresso das mulheres na Casa. Mas se para Maria da Glória e Denise esse foi um efeito positivo da manifestação, para Laura ele não teve muita importância, pois sua vida pessoal estava completamente imbricada na história dessa moradia.

Laura não conseguiu lembrar-se da “invasão” com o mesmo entusiasmo que as demais. Embora destaque, em seu depoimento, que tenha ouvido quando as mulheres começaram a subir as escadas e abrir as portas dos quartos, ela sabia que a polícia estava de plantão na rua e que, a qualquer momento, a Reitoria poderia mandar alguém expulsá-la com a filha pequena. O peso dessa situação a impediu, inclusive, de circular pelos andares e interagir com as pessoas que entravam e saíam. Ao rememorar aquele dia, suas lembranças nos pareceram esparsas, pouco nítidas. Seus problemas particulares a envolviam demais para que ela fosse totalmente absorvida pelo clima que se instaurou na CEU.

Em se tratando da repercussão do ato, é importante observar como os meios de comunicação se posicionaram, tendo em vista que os antecedentes da “invasão” foram fortemente veiculados para o público e tiveram ressonâncias nas ações das entrevistadas. A imprensa gaúcha noticiou o evento como um grande festejo e uma quebra de paradigmas para a sociedade porto-alegrense. O tema saiu em destaque na parte superior da capa do jornal Zero Hora, o que demonstra as grandes proporções que o assunto ganhou. Com o título “Festa na invasão feminina da CEU: observados por policiais os estudantes receberam a visita de mulheres”, o texto apresenta uma estimativa de participantes e aponta a heterogeneidade do público que esteve presente. Faz também uma retrospectiva da entrada dos manifestantes na Casa até o momento da chegada ao terraço do prédio, onde foram feitos discursos sobre a importância da moradia mista. Além disso, a matéria descreve quais foram os temas debatidos nos andares, pontuando os principais: o papel da mulher, homossexualidade, prostituição e família. Por fim, há a fala de um morador em que este afirma que o ato não era apenas para satisfazer a curiosidade feminina, mas para garantir que eles tivessem um lugar permanente para receberem quem quisessem.

O fato de a mobilização ter contado com a participação de muitas mães de moradores tinha o forte propósito de desmentir as falas do Reitor de que a CEU se transformaria em lugar de libertinagem caso as mulheres pudessem frequentar. O ato buscou na ideia de família uma âncora para atrair simpatizantes. Tal fato é corroborado quando a Comissão de Imprensa da Casa foi ao jornal Correio do Povo para emitir o comunicado “Desmentindo pernoite de mulheres: CEU” afirmando não ser verdade que mulheres haviam dormido no local e informando que o objetivo era permitir o livre acesso feminino, mas que a proposta de moradia mista havia sido apresentada por grupos externos à CEU.

No entanto, mesmo com toda a ressonância daquela ação, as normas institucionais não foram modificadas de imediato e a presença delas ainda permanecia um tabu. As mulheres foram liberadas para transitar, mas não houve negociação para que pudessem residir. Dois anos depois do ato a Reitoria ainda não havia chegado a uma deliberação sobre o assunto e continuava impedindo a habitação conjunta. Ainda assim, as regras eram cada vez mais descumpridas e forçavam a uma mudança de atitude. A partir das entrevistas, é possível constatar que muitas jovens ingressaram furtivamente, mesmo havendo resistência por parte de alguns grupos de moradores e de funcionários da UFRGS. A “invasão” passou a ser considerada como a causa de todas as irregularidades promovidas na Casa e a presença feminina continuava sendo fortemente vinculada a conotações sexuais por parte da Administração Universitária.

Então, em 1982, após um longo período de negociações, a Pró-Reitoria da Comunidade Universitária fez uma proposição solicitando que todas as mulheres residentes na CEU fossem identificadas e as sem vínculo institucional fossem devidamente afastadas. Pela primeira vez, dialogava-se sobre a redação de uma alteração no regimento que confirmou, por fim, a manutenção na Casa das estudantes da UFRGS, até a aprovação oficial das novas regras internas pelo Conselho Administrativo.

Ainda que as mulheres tenham sido autorizadas a permanecer, o trâmite para a aprovação do regimento levou meses, tendo sido aprovado tão somente em abril de 1983. Três anos após a “invasão”, as mulheres, enfim, passaram a ter o direito legal de morar na Casa do Estudante Universitário.

Considerações Finais

A construção dessa pesquisa possibilitou reconhecer que a Casa do Estudante Universitário da UFRGS é um lugar que, desde o seu princípio, enfrentou problemas de gestão. Ao longo dos anos, os moradores empreenderam diversas disputas com o Conselho Administrativo e a Reitoria na tentativa de obter maior autonomia e liberdade. Um dos principais embates de sua história foi no tocante à proibição da circulação de mulheres nas dependências da Casa, fato este que culminou na “invasão”.

O objetivo deste artigo, portanto, foi analisar os processos que envolveram esse acontecimento e como ele impulsionou a abertura para a moradia mista. Nesse sentido, o entrecruzamento de fontes escritas e orais permitiu fazer aquilo que Cunha (1999) sugere, ou seja, iluminar o objeto de pesquisa a partir de vários ângulos. Embora tenhamos clareza que a memória oral é fabricada a partir do presente e que o sujeito constrói a sua versão sobre os fatos (AMADO, 1995), não sendo, portanto, “a verdade”, as narrativas dessas mulheres trouxeram ao estudo uma dimensão diferente daquelas que advém do documento escrito, uma vez que se buscou compreender esse fenômeno a partir da perspectiva de quem, um dia, foi proibida de frequentar a moradia universitária.

Observamos que, mesmo diante da rigidez da Universidade, os estudantes encontravam alternativas e as mulheres conseguiam adentrar nesse local, mesmo antes da sua abertura oficial. Por outro lado, também se buscou analisar de que forma esse episódio foi reconfigurado nas memórias das participantes. Percebeu-se que foi um momento recordado como significativo pelo teor político e social que representava e muito atravessado pela irreverência da juventude sendo, por vezes, relembrado como um marco naquele tempo de abertura democrática no Brasil.

Constatou-se também que a CEU foi criada com o intuito de suprir unicamente as necessidades masculinas. Foram as lutas empreendidas na década de 1980 que oportunizaram uma nova forma de se conviver nesse espaço, fazendo com que o público feminino pudesse concorrer a vagas e assim dar seguimento aos estudos no ensino superior.

Hoje em dia, as estudantes da UFRGS ocupam os assentos universitários e têm acesso à assistência de forma paritária nos regimentos institucionais. Entretanto, mesmo com essas as garantias dadas pela legislação, outras barreiras se ergueram, fazendo com que a permanência delas seja dificultada. Os casos de assédio sexual, a maternidade na moradia estudantil, permanecem como tabus em muitas instituições públicas de ensino superior. Esses temas precisam ser enfrentados e debatidos para que, de fato, encontremos possíveis caminhos para uma Universidade mais democrática.

Notas

1O termo invasão era a nomenclatura utilizada nos anos de 1980 aos movimentos organizados por estudantes e militantes sociais. Atualmente, foi substituída pelo termo “ocupação”.

2Para Maurice Halbwach (1990), um sujeito só evoca o passado a partir das memórias de outras pessoas, ou seja, ele busca constantemente por pontos de referência que são fixados pela sociedade. O autor compreende que o funcionamento da memória individual não é possível sem as palavras e as ideias que cada um toma emprestado de seu meio.

3Parque localizado próximo à Universidade, na região central da cidade de Porto Alegre.

4Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TDn7blxpnu0> Acesso em: 8 out. 2019.

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Recebido: 01 de Maio de 2021; Aceito: 27 de Julho de 2021

Profa. Dra. Dóris Bittencourt Almeida

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Grupo de Pesquisa Arquivos Pessoais, Patrimônio e Educação

Orcid id: http://orcid.org/0000-0002-4817-0717

E-mail: almeida.doris@gmail.com

Ms. Fabiana Pinheiro da Costa

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

Doutoranda em Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação

Grupo de Pesquisa Arquivos Pessoais, Patrimônio e Educação

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-3581-8625

E-mail: fabiana.pinheirodc@gmail.com

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