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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.60 Natal abr./jun 2021  Epub 19-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n60id25114 

Artigo

Educação em escritas de si: o diário de Helena Morley (1893-1895)

Education in writings of the self: Helena Morley’s diary (1893-1895)

La educación en los escritos del yo: el diario de Helena Morley (1893-1895)

Márcia Cabral da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-8748-5893

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)


Resumo

Neste estudo, busca-se compreender aspectos da educação formal e informal em escritas de si. Com esse propósito, utiliza-se o diário de Helena Morley como fonte e objeto privilegiado de análise. Do ponto de vista metodológico, o estudo ancora-se, por um lado, nos pressupostos dos estudos sobre escritas de si, notadamente, na perspectiva indicada por Gusdorf (1991) e Lejeune (1996); por outro, estrutura-se segundo as chaves analíticas derivadas dos conceitos de forma escolar (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001) e de culturas escolares (Vinão Frago, 2001). O contexto em que a narrativa se desenvolve é a cidade de Diamantina, primeiramente denominada Arraial do Tejuco, que ganhara proeminência ao longo do processo de extração de diamantes em fins do século XIX. A par de dispositivos escolares e ordenamento moral, o texto autorreferencial de Helena Morley revela nuances do país na transição do Império à República, assim como os paradoxos da escravidão.

Palavras-chave: Escritas de si; Educação; Helena Morley; Século XIX

Abstract

In this study, we seek to understand aspects of formal and informal education in writings of the self. For this purpose, Helena Morley's diary is considered as a privileged source and object of analysis. From the methodological point of view, the study is anchored, on the one hand, in the assumptions of the studies on writings of the self, notably, in the perspective indicated by Gusdorf (1991) and Lejeune (1996); on the other hand, it is structured according to the analytical keys derived from the concepts of school form (VINCENT, LAHIRE and THIN, 2001) and school cultures (Vinão Frago, 2001). The context in which the narrative is developed is the city of Diamantina, first called Arraial do Tejuco (Camp of Tejuco), which had gained prominence during the diamond mining process in the late 19th century. Aware of school devices and moral order, Helena Morley’s self-referential text reveals nuances of the country in the transition from Empire to Republic, as well as the paradoxes of slavery.

Keywords: Writings of the self; Education; Helena Morley; 19th century

Resumen

En este estudio, buscamos comprender aspectos de la educación formal e informal en los escritos del yo. Para ello, se utiliza el diario de Helena Morley como fuente y objeto privilegiado de análisis. Desde el punto de vista metodológico, el estudio se ancla, por un lado, en los supuestos de los estudios sobre los escritos del yo, en particular, en la perspectiva señalada por Gusdorf (1991) y Lejeune (1996); por otro lado, se estructura según las claves analíticas derivadas de los conceptos de forma escolar (VINCENT, LAHIRE y THIN, 2001) y cultura escolar (Vinão Frago, 2001). El contexto en el que se desarrolla la narrativa es la ciudad de Diamantina, primero llamada Arraial do Tejuco, que había ganado protagonismo a lo largo del proceso de extracción de diamantes a fines del siglo XIX. Consciente de los dispositivos escolares y el orden moral, el texto autorreferencial de Helena Morley revela matices del país en la transición del Imperio a la República, así como las paradojas de la esclavitud.

Palabras clave: Escritos del yo; Educación; Helena Morley; Siglo XIX

Introdução

Considerado pela crítica literária diário de uma menina da província no final do século XIX, Minha Vida de Menina, de Helena Morley, pseudônimo de Alice Caldeira Brandt (1880-1970), traça um amplo painel social de Diamantina entre 1893 e 1895, período em que a narradora, contando entre 13 e 15 anos de idade cursava a Escola Normal do local. A primeira edição é de 1942 e foi lançada quando Alice Brandt contava 62 anos de idade. Na apresentação da obra, a autora informa que os relatos seriam os mesmos escritos por ela ainda menina à época, o que pareceu à crítica pouco provável, dada a distância temporal entre os fatos vividos e a publicação: “Nesses escritos nenhuma alteração foi feita, além de pequenas correções e substituições de alguns nomes, poucos, por motivos fáceis de entender (MORLEY, 1998, apresentação, s/p)”.

Minha Vida de Menina se configura em texto autorreferencial singular: escrita datada, em registro sequencial com intervalos, segundo recorte temporal bem delimitado: 1893-1895. Neste estudo, busca-se examinar nuances desse período histórico no Brasil, trazendo-se para o primeiro plano elementos da educação de Helena Morley registrados no seu diário.

Escritas de si

De início, interessa acentuar o que representa o trabalho com a memória em relação aos limites do tempo vivido e o tempo da escritura propriamente. Segundo Gusdorf (1991), o homem não se encontra enclausurado nas fronteiras do presente e o jogo com a memória define-se por lançar mão de distintas temporalidades, permitindo, de tal modo historicizar a consciência de si próprio. Assim, em vista da escrita de natureza autobiográfica, o indivíduo tem a possibilidade de se aproximar do que viveu, de quem se julga ser, e, talvez, de quem poderá chegar a ser. Infere-se, portanto, que a escrita autobiográfica, o diário de que tratamos, independente do tempo de sua produção, consiste em duplo desafio: por um lado, reler os fatos vividos e escrevê-los; por outro, compreender-se como sujeito por meio de tal exercício (SILVA, 2009).

Sobre o gênero denominado “escritas de si” (GUSDORF, 1991) já se conhece literatura expressiva. Cartas, romances autobiográficos, autobiografias, literatura de testemunho, diários são expressões do gênero. Para além de narrar as vicissitudes de um sujeito que se move na história, permite ao historiador no presente documentar vestígios desse passado, como adverte Bloch (2001). Os registros, segundo uma abordagem que valora as escritas de si, são tratados como estratégia de aproximação das experiências de vida de um tempo e lugar. Ademais, não se trata apenas de se ler uma experiência individual, mas da possibilidade de reconstituição de experiências de vida de grupos sociais com as quais a subjetividade de uma dada pessoa dialoga e se insere.

Não se pode esquecer, todavia, o alargamento dos estudos em diferentes áreas das Ciências Humanas e Sociais, possibilitando a emergência das pesquisas que tomam as escritas de si como fonte e objeto de investigação.

No que diz respeito à historiografia literária, a produção é vasta. Se consideradas as narrativas do século XVIII, período em que a definição entre romance, novela, escrita epistolar conhecera grande oscilação, o volume pode ser ainda maior. Observe-se, a título de ilustração, La Nouvelle Héloïse, best seller epistolar escrito por Jean-Jacques Rousseau nessa época, em cujo prefácio advertia os leitores que sua narrativa constituía matéria verídica, sem qualquer viés de ficção. Tratava-se, notadamente, de estratégia de persuasão por parte do autor que, conforme estudo desenvolvido por Robert Darnton (1986), possibilitara identificação entre leitores empíricos e personagens; leitores empíricos e escritor. Assinado pelo mesmo autor, verifica-se ainda a produção do material autobiográfico Confissões, texto que, segundo a crítica (LEJEUNE, 1996), assinalaria a emergência do gênero autobiográfico no período.

Em relação ao campo da história social e cultural, convém acentuar os estudos que passaram a privilegiar a história produzida pelos grupos populares, por grupos de menor prestígio social, com ênfase em seu imaginário, rituais, lutas e celebrações; uma história, por assim dizer, vista “de baixo”. Investigações nessa perspectiva favoreceram sobremaneira a emergência da pesquisa ancorada em escritas autorreferenciais desses grupos, configurando novas fontes e novos objetos de investigação.

No que tange à área da história da educação e à pesquisa biográfica no Brasil, a produção não tem sido menos relevante. Os congressos da área, dissertações e teses, artigos em periódicos trazem uma amostra considerável nas últimas décadas. Observam-se cadernos, relatos e diários de professores, romances autobiográficos, agendas, diários das pessoas comuns como fontes e objetos privilegiados de aproximação de outros tempos e outros espaços da vida social, permitindo observar com lentes microscópicas os espaços educativos familiares, assim como as culturas escolares. Em diálogo com Vinão Frago (2001), consideram-se, aqui, as culturas escolares em consonância com a diversidade e a riqueza de experiências que caracterizam as múltiplas faces das instituições de ensino a partir de uma perspectiva histórica:

Puede ser que exista uma única cultura escolar, referible a todas las instituiciones educativas de um determinado lugar y período, y que, incluso, lográramos aislar sus características y elementos básicos. Sin embargo, desde una perspectiva histórica parece más fructífero e interessante hablar, en plural, de culturas escolares (VIÑAO FRAGO, 2001, p. 33).

Dentre os planos evidenciados em Minha Vida de Menina, destaca-se a passagem da infância à mocidade de Helena, cujo pai, descendente de família inglesa, exerce a função de pequeno minerador na provinciana Diamantina, em Minas Gerais, como se pode ler no excerto destacado:

Segunda-feira, 8 de maio (1893)

Eu podia gostar muito mais da vinda de meu pai a Diamantina do que gosto. Ele vem todo sábado e volta segunda-feira. Os dias que ele passa em casa são tristes para nós e alegres para mamãe. A segunda-feira é alegre para nós e triste para mamãe. Haverá na vida suplício maior do que este que temos de aguentar todos os sábados e domingos? Temos de ficar sentados à mesa uma hora inteira, ouvindo os casos de meu pai. Já ouvimos todos mais de vinte vezes [...]. A vida de meu pai de pequeno, da família dele e dos ingleses que vinham visitar vovô, eu já estou enjoadíssima de ouvir. Se não fosse isso eu gostaria mais da vinda dele no fim de semana (MORLEY, 1998, p. 52-53)

O contexto de Diamantina no século XIX

O cenário é a pequena Diamantina, primeiramente denominada Arraial do Tejuco, que ganhara proeminência ao longo do processo de extração de diamantes. Em um dos capítulos do livro em que trata da formação do Brasil contemporâneo, Caio Prado Júnior (2011) dedica atenção especial à análise da atividade de mineração no Brasil colonial, assinalando importante inflexão: atividade que conhecera apogeu nos séculos precedentes, de meados do século XVIII em diante sofre declínio considerável. De uma parte, devem-se levar em conta elementos naturais, características específicas das jazidas auríferas do território brasileiro, tipo das rochas matrizes, por exemplo. De outro, de ordem mais profunda, comparecem fatores econômicos e sociais: os instrumentos inadequados usados pelos trabalhadores nas minas, a rotina dos processos, a falta de conhecimento técnico por parte dos mineradores. Segundo o autor, esses fatores associados concorreram para o declínio da indústria mineradora, que, no início do século XIX, sofre uma espécie de colapso, tendo-se em conta as quatro principais capitanias mineradoras: Minas Gerais (em posição principal), Goiás, Mato Grosso e um pouco da Bahia.

Em acréscimo, o ensaio esclarece as formas de organizar e explorar as jazidas. Havia as lavras: “[...] estabelecimentos fixos que dispõem de algum aparelhamento, e onde sob direção única e trabalhando em conjunto reúnem-se vários trabalhadores cujo número pode ir desde uns poucos até várias dezenas” (PRADO JÚNIOR, 2011, p. 187). De tal modo descrito, esse sistema relaciona-se em larga medida ao período de apogeu da indústria mineradora. A esse modelo, se opõe um processo de pequena extração realizada por trabalhadores isolados, cujos instrumentos se reduziam à bateia, ao carumbê e outras poucas ferramentas. Nos limites deste estudo, acentuam-se as condições de vida desse último grupo: nômade, em permanente deslocamento, conforme as chances de descoberta de ouro e, no caso específico do pai de Helena Morley, de diamante.

O relato de Helena Morley permite observar esse contexto com lentes microscópicas, com foco aproximado no cotidiano, na intimidade da vida em família, segundo a perspectiva da menina em formação :

Sábado, 10 de março (1894)

Hoje foi dia de festa em casa.

Meu pai foi segunda-feira para Bom Sucesso onde ele está fazendo um serviço (mineração). Era semana de lavra e ele estava com muita esperança na apuração. Meu pai anda tão caipora que ninguém mais espera sorte aqui em casa. Só ele é que diz sempre: ‘Esperem. Nem sempre o infeliz chora. O dia há de chegar’. Mas não chega nunca. Hoje ele foi apeando da besta e mamãe lhe dizendo: ‘Estou achando você com cara boa. A apuração deu alguma coisa?’ Ele não respondeu. Abriu uma folha de papel na mesa e alisou. Depois meteu a mão no bolso do colete com uma pachorra que me fazia aflição, tirou o picuá e derramou os diamantes no papel. Eram uns grandes e outros pequenos. Eu corri e o abracei. Todos fizeram uma algazarra e começaram os pedidos. Renato e Nhonhô pediram roupas novas e botinas; eu e Luisinha vestidos. Ele calculava os diamantes em dezesseis contos, mas Seu Antônio Eulálio só deu treze porque a fazenda (qualidade) não era boa. Meu pai diz que o serviço dá muita esperança e que a formação é muito boa, mas a água é que é pouca. Assim mesmo ele espera salvar o prejuízo do ano passado e ficar com bom lucro este ano. Mas mamãe diz que está muito acostumada com vida de mineiro; tira da terra num ano e torna a enterrar no ano seguinte. Que é melhor gastar mais com a família (MORLEY, 1998, p. 136).

De fato, as condições socioeconômicas da família de Helena mostravam-se hostis. O leitor poderia acompanhar, inclusive, momentos de grande oscilação em ocasiões as mais diversas, como na aquisição de víveres, na compra de vestuário para a família, nos afazeres domésticos partilhados entre adultos – parentes próximos dos mineradores, escravizados – e as crianças; entre os adultos e a mocidade. Nessa esfera, convém observar as tarefas exercidas pelos mais novos em meio às brincadeiras como um mecanismo de controle partilhado, derivado do grande envolvimento entre as pessoas em sociedades menores. Em outras palavras, verifica-se um modo de organização social baseado na proteção e no controle de grupos menos dependentes do Estado, possível de ser identificado nas formações dos grupos sociais aparentados (ELIAS, 1994a), o que define em grande medida a estrutura social de Diamantina em fins do século XIX.

Quinta-feira, 5 de janeiro (1893)

Hoje foi nosso bom dia da semana. Nas quintas-feiras mamãe nos acorda de madrugada, para arrumarmos a casa e irmos cedo para o Beco do Molhado. A gente desce pelo beco, que é muito estreito, e sai logo na ponte. É o melhor recanto de Diamantina e está sempre deserto. Nunca encontramos lá uma pessoa, e por isso mamãe escolheu o lugar. Mamãe chama Emídio, da Chácara, e põe na cabeça dele a bacia de roupa e um pão de sabão. Renato leva no carrinho as panelas e as coisas de comer. E vamos cedo. Mamãe e nós duas, eu e Luisinha, entramos debaixo da ponte para lavar a roupa. Emílio, o crioulo, vai procurar lenha. Renato vai pescar lambaris; nunca vi tanto como ali. [...] Nós ficamos lavando a roupa e botando para corar, enquanto mamãe faz o almoço de tutu de feijão com torresmos e arroz. Depois de lavarmos a roupa e passar algum tempo do almoço, mamãe fica vigiando o caminho pra ver se vem alguém e nós entramos no rio para tomar banho e lavar os cabelos. Depois disso batemos as roupas na pedra, enxaguamos e pomos nos galhos para secar. Agora é só procurar frutas no campo, ninhos de passarinho, casulos de borboletas e pedrinhas redondas para o jogo (MORLEY,1998, p. 19).

A estrutura social de Diamantina em fins do século XIX trazia tanto as marcas do regime monárquico quanto os vestígios da escravidão. Não se pode deixar de notar que a abolição da escravidão em lei ocorrera em 1888 e a República fora proclamada um ano depois. Todavia, as relações na vida em sociedade guardam permanências para além do que reza nas leis. Não fosse assim, como explicar o grande número de escravizados em solo brasileiro após a lei de extinção do tráfico em 1831 e, mais tarde, em 1851, conforme adverte o pesquisador Sidney Chaloub (2012), baseado em análise de vasta documentação? E de que viviam e como viviam os libertos após a decretação da Lei Áurea em 1888? Conforme a pesquisa mencionada, muitos foram levados à Casa de Detenção da Corte e acusados de vadiagem, muitos outros optaram por retornarem à condição de cativos, visto que os libertos, conforme o ideário da elite governante, seguiam em condição de ameaça constante à sociedade. Em realidade, tornava-se praticamente impossível usufruir da propagada liberdade em sociedade estruturada de modo excludente. Marginalizados nas diversas instâncias da vida social, os libertos poderiam ser reescravizados a qualquer momento.

As condições adversas acima descritas contribuem para a compreensão da situação singular descrita por Helena em suas memórias: “Emílio, o crioulo, vai procurar lenha”. Além da presença de Emílio, outros vestígios da sociedade escravocrata conformavam a pequena Diamantina e podiam contribuir sobremaneira para a leitura que Helena desenvolvia a respeito da convivência social em seu entorno:

Domingo, 9 de dezembro (1894)

Ontem foi a festa de Joaquim Angola. Este negro fugiu de um senhor muito mau do Serro e foi esconder-se num quilombo perto de Lomba. Os negros lhe levaram comida de noite. Quando andaram por lá uns soldados caçando negros do mato, ele correu e caiu de joelhos nos pés de vovó, pedindo que o comprasse. Ela fez meu avô comprá-lo e ele ficou na Lomba, casou e teve muitas filhas. Isto foi há muitos anos no dia de Senhora da Conceição e as filhas de Joaquim Angola costumam festejar este dia. Uma delas, Júlia, casou com Roldão e elas aproveitaram para fazer uma festa maior. Elas convidaram muitos conhecidos e a festa foi na senzala antiga. [...] Vovó deu o vinho, eles compraram a cachaça. Houve mesa para nós cá dentro e para os negros lá fora. Eu engoli o jantar depressa e fui para a senzala. Palavra que nunca vi uma festa tão divertida. Da África ainda há na Chácara mais três que são Benfica, Quintiliano e Mainarte. Eles cantavam umas cantigas da terra deles, viravam e reviravam batendo palmas e iam dar uma embigada numa negra. Os negros de cá invejaram os velhos que sabiam cantigas da África e que dançavam com mais entusiasmo. Depois se assentaram na mesa como nós e fizeram saúdes. Angola estava de rebentar de contente. Eu gosto de ver como os negros da chácara são felizes. [...] Eu ainda me lembro de quando chegou a notícia da Lei de Treze de Maio. Os negros todos largaram o serviço e se ajuntaram no terreiro, dançando e cantando que estavam livres e não queriam mais trabalhar. Vovó, com raiva da gritaria, chegou à porta ameaçando com a bengala dizendo: ‘Pisem já de minha casa pra fora, seus tratantes! A liberdade veio não foi pra vocês não, foi pra mim! Saiam já!’. Os negros calaram o bico e foram para a senzala. Daí a pouco veio Joaquim Angola em nome dos outros pedir perdão e dizer que todos queriam ficar. Vovó deixou, e os que não morreram ou casaram estão até hoje na Chácara. Também com a vida que levam... (MORLEY,1998, p. 210-211).

Nota-se, de início, o movimento de resistência dos escravizados nas fugas, assim como a ofensiva dos senhores nas perseguições. Em meio às lutas, emergem as festas promovidas pelos negros e manifestações de suas culturas de extração africana: bebidas, cantigas, danças no espaço da antiga senzala. “Eu engoli o jantar depressa e fui para a senzala. Palavra que nunca vi uma festa tão divertida. [...] Eles cantavam umas cantigas da terra deles, viravam e reviravam batendo palmas e iam dar uma embigada numa negra” (MORLEY, 1998, p. 210-211). Necessário, contudo, assinalar a ambivalência no seio daquela sociedade, inclusive a sublinhada pela narradora, entre a liberdade conquistada em lei pelos escravos e a negação de acesso à cidadania de fato: “Os negros calaram o bico e foram para a senzala. Daí a pouco veio Joaquim Angola em nome dos outros pedir perdão e dizer que todos queriam ficar. Vovó deixou, e os que não morreram ou casaram estão até hoje na chácara. Também com a vida que levam...”. Observa-se, ademais, que as experiências culturais em meio às atividades nos grupos sociais em Diamantina de fins do século XIX promovem modos relevantes de compreensão da realidade por parte da narradora em formação.

Educação formal

No que diz respeito à educação formal, identifica-se nas páginas do diário a forma escolar (VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001) associada à escola normal da época: programas de ensino adaptado às cores locais, método de ensino individualizado ao lado dos processos de memorização, exames escritos e orais, as fórmulas de castigo e de premiação.

A preocupação com a formação de professores na província de Minas Gerais pode ser identificada na Lei n. 13, de 28 de março de 1835. Além de estruturar o ensino primário, cria a escola normal. As exigências para esse tipo de formação estão descritas como:

Art.14. Podem ser professores os cidadãos brasileiros ou estrangeiros que mostrem ter 1º Mais de dezoito anos de idade; 2º Bom comportamento; 3º Os conhecimentos exigidos nesta lei (MINAS GERAIS, 1835).

Na província de Minas Gerais, a primeira escola normal aberta foi a de Ouro Preto em 1840, que, em meio à instabilidade, teve suas atividades interrompidas em 1852 e, novamente, retomadas em 1871 (FERREIRA, 2010). No entanto, esse investimento inicial deve ser lido como uma tendência para a abertura de escolas normais em toda a província no período, como atestam a abertura de escolas normais em Campanha, Diamantina, Montes Claros, Paracatu, Uberaba, Sabará, Juiz de fora e São João Del Rey (GOUVEA; ROSA, 2000).

Merece nota o ritual de passagem descrito por Helena para sua entrada na Escola Normal de Diamantina em 1893.

Sábado, 18 de fevereiro (1893)

Faz hoje três dias que eu entrei para a Escola Normal. Comprei meus livros e vou começar vida nova. O professor de português aconselhou todas as meninas a irem se acostumando a escrever, todo dia, uma carta ou qualquer coisa que lhes acontecer. [...] Não sei se sou inteligente. Vovó, meu pai e tia Madge acham; mas só sei que não gosto de estudar, nem de ficar parada prestando atenção. Em todo caso eu gosto que digam que sou inteligente. É melhor do que dizerem que sou burra, como vai acontecer na Escola Normal, quando virem que não vou ser, na Escola Normal o que eles esperam. Hoje já vi o jeito. Achei tudo difícil e complicado. O que me vale é que tenho facilidade de decorar. Quando eu não puder compreender, decoro tudo. Mas no Português como é que vou decorar? (MORLEY,1998, p. 26).

As aulas de português estavam previstas para os dois primeiros anos de formação, ao lado de outras disciplinas que compunham o currículo das escolas normais daquele presente. O Almanack de Ouro Preto (1890), além de registrar o currículo e a designação dos professores para ministrarem as disciplinas dos estabelecimentos de ensino em geral, focaliza aquele da Escola Normal de Ouro Preto. Assim, oferece indícios das disciplinas que a memorialista Helena estudava. No 1º ano: português, aritmética, música; no 2º ano: português, aritmética e escrituração mercantil; no 3º ano: geometria e desenho linear, pedagogia, geografia e história do Brasil, música, além das aulas práticas do sexo masculino e do sexo feminino.

A análise sócio-histórica da constituição da escola na França desenvolvida por Vincent, Lahire e Thin (2001), como já mencionado, coloca em cena a teoria da forma escolar como categoria de análise bastante útil para a compreensão de modos de conhecimento e exercício de poder relacionados aos processos de escolarização nas sociedades modernas. Segundo os autores, uma teoria da forma escolar de extração histórica possibilita pensar mudanças e, antes de tudo, invariantes. No caso francês, nota-se a recorrência de um modelo, em que pesem as transformações: a escola do século XVI, a escola centrada no ensino mútuo, a escola republicana. Em todos esses modelos, é possível reconhecer permanências que, por assim dizer, dão a conhecer o que os autores denominam forma escolar.

Em realidade, consistiu em uma invenção necessária às sociedades europeias relacionada a condicionamentos sociais e históricos. Importa compreender, em primeiro lugar, como um modo de socialização escolar se impôs a outros modos de socialização, acentuando-se os aspectos que fazem parte de uma configuração histórica singular. Pode-se inferir da reflexão inicial apontada no ensaio ao menos uma contribuição importante, ao se operar com o conceito: as formas escolares são históricas e derivadas das relações sociais, tendo-se em conta relações de poder. Logo, consistem em formações bastante distantes de estruturas pensadas como desencarnadas ou universais. Enfim, caberia, segundo essa lógica, indagar a configuração histórica do campo da pedagogia, das disciplinas, dos métodos, dentre os demais elementos que colocam em movimento saberes e dispositivos de ensino e de aprendizagem.

A possibilidade de se operar com o conceito traz para o primeiro plano a forma escolar da Escola Normal frequentada por Helena Morley. A Escola Normal de Diamantina narrada no diário relativa ao último quartel do século XIX permitiria encontrar vestígios de uma forma escolar singular? De que maneira contribuiu para a instrução e a educação de Helena Morley?

Segunda-feira, 23 de outubro (1893)

Fiquei admirada de Seu Sebastião hoje não ler alto o que escrevi ontem e sei que as colegas iam rir tanto como no dia que ele perguntou o sexo da boneca e eu gritei: ‘Bonecra fêmea, bonecro macho’. Palavra que eu custei a saber por que elas riam tanto. Ontem escrevi na minha redação: ‘Hoje foi um dia em águas para mim’. Hoje ele devolveu a carta com um grande letreiro em tinta vermelha: ‘aziago’. Talvez tenha tido pena ou já tenha percebido que eu não tenho dicionário ou que só escrevo o que ouço dos outros ou coisas da minha cabeça. Eu sei bem que todos estes erros eu faço por falta de atenção (MORLEY,1998, p. 97).

O modo de correção em voz alta, associado às perguntas dirigidas aos alunos individualmente, concorre para um tipo de ordenamento na relação entre professor e aluno, cuja ênfase recai na autoridade do professor. Constituem dispositivos disciplinares que organizam o espaço e os modos de transmissão de conhecimento, disseminados nas escolas primárias do período. Estudo relativo à formação de professores na Escola Normal da Província do Rio de Janeiro realizada por Villela (2012) relacionada ao último quartel do século XIX aborda interessante inflexão relacionada à disciplina dos alunos que, de punição física no início do século XIX por meio da palmatória, dentre outros dispositivos disciplinares, tende à punição simbólica e à premiação como códigos de conduta da forma escolar própria daquele período.

Segundo os dados coletados no diário de Helena, as punições simbólicas parecem ter sido extensivas à Escola Normal de Diamantina. Ademais, “o letreiro em tinta vermelha” em tom jocoso reforçaria a disciplina em relação ao processo escritural. Como se sabe, “aziago” remete à noção de agourento, nefasto. Se consideradas as posições assimétricas do professor e da aluna no espaço escolar em destaque, a escritura pode ter servido primeiro aos propósitos de reforçar a ordem.

Sábado, 9 de dezembro (1893)

Não passei do primeiro ano só e só por falta de sorte e mais nada. No exame de Geografia quase ninguém deixa de colar. Todas nós preferimos fazer sanfona; é tão mais fácil. Fiz todas com o maior cuidado e fui para o exame com o bolso cheio delas. Saiu para aprova escrita “Rios do Brasil”. Ótimo! Tirei minha sanfoninha, ia copiando e dizendo alto para as outras também escreverem. Penso que foi isto que deu na vista. Seu Artur Queiroga desce do estrado, fica perto de minha mesa e eu sem poder continuar a escrever. Meti a sanfona na carteira e pus as mãos na mesa. Ele disse: ‘vamos, continue!’ Eu estava nessa hora descrevendo o Rio Amazonas. Nem sei por que me veio a ideia de falar o que falei, foi o que atrapalhou tudo. Ele repetia: ‘vamos! Escreva!’ Eu respondi: ‘não posso, seu Artur. Estou afogada no Rio Amazonas’ Ele dobrou uma gargalhada que chamou a atenção dos outros examinadores e eles vieram também para a minha mesa. Seu Artur disse: ‘Pois vou salvá-la. Vamos ver se tirando você do Amazonas você segue, e foi dizendo: ‘corre para aqui, recebe estes afluentes, desemboca acolá’. Mas foi impossível seguir. A coisa só serviu para distrair os professores, as outras colarem sossegadas e eu e minha turma não fazermos exame (MORLEY, 1998, p. 112).

Em que pese na descrição acima o constrangimento devido à penalidade, cuja consequência maior resultou na reprovação de Helena, os comentários da narradora permitem algumas observações adicionais. Como se notou, as formas escolares são modelos identificáveis, mas não são configurações permanentes. Um dos modos de se acompanhar as rupturas dizem respeito às formas de apropriação dos modelos de escolarização pelos agentes do campo, para usar uma categoria de análise formulada por Bourdieu (1996). No excerto acima, constata-se diálogo em tom de ironia ensejado tanto pelo professor quanto pela aluna. Pode-se pensar, portanto, em modos de resistência discursivos na relação de autoridade ali configurada. Com efeito, há indícios no diário que nos fazem considerar os agentes na condição de recriadores dos dispositivos de normatização, deslocando-se as prescrições dos modelos pedagógicos para os usos efetivos que se fazem desses mecanismos.

Educação informal

Necessário notar que, ao lado da instrução formal na escola, comparecem marcas emblemáticas da educação pela família como uma segunda esfera da formação de Helena, haja vista que a escrita configurada em diário ganha forma, segundo a narradora, pela mediação paterna.

Sábado, 18 de fevereiro (1893)

Só daqui a dias poderei saber como as coisas vão sair. Escrever não me vai ser difícil, pelo costume em que meu pai me pôs de escrever quase todo dia. Duas coisas eu gosto de fazer, escrever e ler histórias, quando encontro. Meu pai já consumiu tudo quanto é livro de histórias e romance. Diz que agora só nas férias. Ainda não comecei a estudar e já estou pensando nas férias. Que bom vai ser quando estiver na Boa Vista, livre da Escola, sem ter que estudar. Mas um ano custa tanto a passar! (MORLEY,1998, p. 26).

Para além da escrita do diário, havia no âmbito da casa o incentivo ao aprendizado da língua inglesa por parte do pai. Necessário lembrar de sua descendência inglesa, o que justificava o apreço pelo idioma a ser ensinado aos descendentes. De tal modo, as aulas aconteciam na própria casa e Helena narra as principais dificuldades ali enfrentadas:

Segunda-feira, 17 de abril (1893)

Desde pequenina eu ouvia meu pai dizer: ‘Eu preciso ensinar Inglês a esta menina. Ela é uma inglesinha perfeita e, sem saber a língua, não pode ser’. Falava só e ia embora para a lavra e não se lembrava mais. Agora que está como professor de Inglês no Ginásio, ele me disse: ‘Vamos começar as aulas na segunda-feira’. Chegou hoje a segunda-feira e eu me apresentei à lição. [...] Hoje ele começou dizendo que Inglês é mais fácil do que Português, porque os verbos não são complicados como em Português, tem poucas regras e só depende da pronúncia e que esta eu hei de ter herdado. Principiamos pela leitura de um livro. Ele leu a primeira vez, eu não entendi nada, ele disse que era assim mesmo e me mandou repetir. Não consegui. Ele leu a segunda vez e me mandou dizer o tal the como ele queria. Eu disse umas dez vezes ele sempre falando que não estava certo. Vi que era impossível acertar e disse a ele que não quero mais aprender Inglês, que ele diz que é mais fácil que Português e pode ser para outras cabeças, mas na minha, que é muito dura, não entra. Meu pai me olhou espantado e disse que vamos experimentar outra vez. Terei mais esta maçada todo dia? (MORLEY, 1998, p. 47).

A educação pela família a que se submetia Helena desenvolvia-se ainda com a colaboração da avó e de Tia Madge. Segundo a apreciação de Helena, a mãe pouco valorizava a escrita, a leitura e a instrução. Talvez, isso ocorresse em razão de sua condição iletrada. A representação da mãe aos olhos de Helena restringia-se, pois, aos rituais religiosos e às orações. Todavia, merecem nota os modos como a avó e Tia Madge intervinham na formação de Helena. Por parte da avó, a narradora relembra surra e interdições; por parte da Tia Madge, os conselhos e os bons exemplos, que sugerem regras de civilidade a regular o seu processo de formação. Nas páginas do diário, com frequência, chama a atenção o governo da avó e de Tia Madge em relação aos modos de comportamento da menina moça, como se pode ler nos excertos destacados:

Quarta-feira, 15 de fevereiro (1893)

Graças a Deus o carnaval passou. Não posso dizer que passou bem porque apanhei de vovó, coisa que ela nunca fez. É sina minha todo mundo que gosta de mim me infernar a vida. Todas as minhas primas são governadas só pelos pais. Ah, se eu também fosse assim! Meus pais é que menos me amolam. Não tivesse eu o governo de vovó e Tia Madge, teria ido ao baile de máscaras do Teatro. Desde os sete anos eu sonhava fazer doze para ir ao baile. Agora estou com treze e apanhando para não ir! (MORLEY, 1998, p.25)

Sábado, 4 de março (1893)

Chego na Chácara, procuro vovó e vou encontrá-la sentada no jardim, assistindo às negras fazerem velas de sebo.- A benção, vovó!- Deus te abençoe, minha filha. Estava aqui olhando aquele galho de araçás tão maduros e pensando como você os deixou ali até ficarem assim. – É porque anteontem eu só vim de noite e ontem eu não pude vir. – É mesmo. Então ontem você jantou com sua tia Madge? Gosto disso. Você só pode lucrar na companhia dela. Que é que ela te ensinou ontem? -Tanta coisa! – Conte-me algumas. Ela me deu lições de Educação e de noite de Economia. – Como foi? Conte. – Ela sempre aproveita para falar na falta de educação dos outros e eu vejo que é só para me ensinar. Falou da gente que cospe no chão, coça a cabeça na sala e interrompe os outros quando falam. No jantar ela disse que a gente não deve empurrar o prato do lugar; a gente bebe a sopa e fica aguentando o prato na frente até a criada tirar. Também não se deve palitar os dentes na mesa. – Quanta coisa você aprende na companhia dela! Agora é praticar (MORLEY, 1998, p. 33).

O contexto sociocultural examinado põe em cena um tipo de sociedade de viés civilizatório (ELIAS, 1994b), pelos modos de comportamento idealizados e pelos exemplos considerados bons, como enfatizados nos fragmentos acima: “Ela me deu lições de Educação e de noite de Economia” (MORLEY, 1998, p. 33). Ainda em: “Ela sempre aproveita para falar na falta de educação dos outros e eu vejo que é só para me ensinar. Falou da gente que cospe no chão, coça a cabeça na sala e interrompe os outros quando falam” (MORLEY, 1998, p. 33).

Considerações finais

O diário, na condição de fonte privilegiada de análise para o historiador, permite distintas possibilidades de análise: os modos de se narrar de uma dada época, os registros de vida de um indivíduo e as experiências coletivas de uma dada sociedade, além dos sistemas simbólicos, econômicos, políticos e os códigos culturais de um período histórico. No caso do Diário de Helena Morley, observou-se que, para além da subjetividade da memorialista, que demandou cuidados analíticos do ponto de vista da operação historiográfica, tal como a problematização da memória histórica de natureza individual, verificaram-se elementos sociais referidos a um expressivo período histórico no Brasil: final da monarquia e transição para o período republicano.

Os paradoxos sociais de uma ordem recém-saída da escravidão, na qual os libertos detinham rarefeita condição de cidadania, mostraram-se recorrentes. No entanto, no diário, há passagens que revelam também a não-passividade dos escravizados, capazes de utilizar estratégias que possibilitavam espaços de criação da liberdade e a expressão de suas culturas.

O horizonte da república anunciada envolveria ainda grandes esforços para ser construída, no sentido de garantir para todos os cidadãos a igualdade na democracia. De uma parte, o governo dos sujeitos no âmbito da escola e da vida familiar emerge, com frequência, regulado por aquela visão de mundo. De outra, as contradições sociais e os atritos interpessoais, por vezes, ganharam tom jocoso ou mesmo irônicos, como revelam muitos dos comentários da narradora floreados por sua peculiar compreensão da realidade. Com Certeau (1994), pode-se pensar, por um lado, nas estratégias de governo dos sujeitos que ocupam o poder pelas manobras relacionadas aos dispositivos sociais. De outro, nas táticas inventadas por sujeitos situados na outra ponta da escala social, que criam e resistem segundo suas práticas e visões de mundo.

Os resultados alcançados ao longo deste estudo indicaram, pois, algumas descontinuidades em relação aos padrões de educação formal e informal da época, ao se considerar, em particular, as lentes da menina e normalista Helena, assim como continuidades, ao se confrontar essas lentes com estudos teóricos sobre escritas de si, sobre a educação e o regime político do período, notadamente no que respeita ao ideário escravocrata e monárquico, a regular comportamentos e sociabilidades entre os sujeitos naquele cenário de província no Brasil do final do século XIX.

Notas

1Conforme assinala Gusdorf (1991), a genealogia do gênero autobiográfico deveria ser considerada a partir das Confissões de Santo Agostinho, no século V. Contudo esta posição não é consensual, pois suas argumentações polemizam com a posição do estudioso Philippe Lejeune (1996), para quem a origem do gênero deve ser considerada a partir das Confissões de Rousseau, no século XVIII.

2Ver a esse respeito introdução desenvolvida por Angela Castro Gomes para o livro por ela organizado: Escritas de si; escritas da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004. A autora revisita os marcos historiográficos conceituais sobre o tema, elencando vasta bibliografia a esse respeito.

3Refiro-me, em particular, à produção relativa aos Congressos Brasileiros de História da Educação (CBHE) em sua X Edição em 2019 e ao Congresso Internacional da Pesquisa (Auto)biográfica (CIPA), em sua VIII edição em 2018.

4Em que pesem as diferenças na acepção do termo cultura escolar, tomo neste estudo a noção indicada por Vinão Frago (2001), cuja ênfase recai sobre as diversas dimensões do cotidiano escolar com implicações para a sociedade. Conferir, em acréscimo, o estudo de Faria Filho, Gonçalves; Vidal e Paulilo (2004)

5Segundo pesquisa desenvolvida por Vieira e Oliveira (2012) relativa à instrução no Município de Diamantina, observa-se primeiramente a denominação Arraial do Tejuco, sendo elevada a município em 13 de outubro de 1831, desmembrada da Vila do Serro. Em 06 de março de 1838 foi elevada à categoria de cidade pela lei provincial nº 93.

6Conforme Giovanni Levi (2009, p. 14), não se trata apenas de se escrever a história dos excluídos. Mas, sobretudo, da tentativa de reconstrução de momentos, em escala reduzida, de situações, de pessoas que, investigadas segundo olhar analítico, em âmbito circunscrito, “[...] recuperam um peso e uma cor como referências dos fatos à complexidade dos contextos nos quais os homens se movem”.

7Norbert Elias, ao discutir a sociedade dos indivíduos, acentua em capítulo singular a individualização no processo social. É nesses termos, portanto, que o diálogo com o pensamento do autor mostra-se pertinente. Observa-se, no entanto, que as sociedades menores referidas pelo autor em contraste com as sociedades complexas observadas por ele guardam apenas aproximações com o caso em exame.

8Considero, para fins deste estudo, os processos educativos formais e informais, intencionais ou não, conforme estudo de Schueler e Gondra (2008) sobre a educação no Império brasileiro.

9A respeito da distinção entre educação doméstica e educação pela família, há pesquisas relevantes na área. Conferir, por exemplo, estudos de Vasconcelos (2005) e Anjos (2017). Neste estudo, refiro-me à educação pela família, visto que as análises englobam práticas de leitura, comportamentos, para além de conteúdos escolares de modo estrito.

10Segundo Alessandra El Far ( 2004), no RJ no período entre 1870 e 1924, o percentual de pessoas alfabetizadas na capital federal subiu de 35,2%, em 1872, para 50,8%, em 1890, e 61% , em 1920. Segundo a autora, esses índices diferenciavam-se do restante do país, onde 80% das pessoas não sabiam ler, enquanto no Rio mais da metade da população seria considerada leitora em potencial.

Referências

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Recebido: 02 de Maio de 2021; Aceito: 26 de Julho de 2021

Profa. Dra. Márcia Cabral da Silva

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)

Programa de Pós-graduação em Educação (PropEd/UERJ)

Grupo de Pesquisa Infância, Juventude, Leitura, Escrita e Educação/CNPQ

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-8748-5893

E-mail: marciacs.uerj@gmail.com

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