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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.60 Natal abr./jun 2021  Epub 19-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n60id25121 

Artigo

O filósofo analfabeto contra a “alma vestida” da alienação acadêmica

The illiterate philosopher against the “clothed soul” of academic alienation

El filósofo analfabeto contra el “alma vestida” de la alienación académica

Marcos Britto Corrêa1 
http://orcid.org/0000-0002-9808-2715

Liliana Soares Ferreira2 
http://orcid.org/0000-0002-9717-1476

1Instituto Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

2Universidade Federal de Santa Maria (Brasil)


Resumo

Na articulação alegórica entre o “filósofo analfabeto” de Álvaro Vieira Pinto e a “alma vestida” de Fernando Pessoa, como expressão da alienação, sis-tematiza-se o estudo sobre a matriz curricular de 8 cursos de Filosofia das Uni-versidades Federais da Região Sul do Brasil. O estudo orientou-se pela análise dialética materialista, implicando na aproximação com o fenômeno, produ-ção da análise dos dados e síntese. Os documentos representam o condicio-nante que expressa a Filosofia como produto hegemônico do continente eu-ropeu, sendo uma espécie de demonstração da “alma vestida” que forma os estudantes brasileiros avessos a conhecer sua realidade. Ao longo do texto é apresentada argumentação em favor da crítica, tendo por base a totalidade em que o país está inserido. Neste sentido, se potencializa a Filosofia contra a alienação acadêmica, fundamentada, portanto, na intenção de conhecer e produzir a resolução de problemas concretos do povo do qual o estudante de Filosofia é parte.

Palavras-chave: Curso de filosofia; Alienação; Universidade; Crítica; Trabalho pedagógico

Abstract

In the allegorical articulation between Álvaro Vieira Pinto's “illiterate philoso-pher” and Fernando Pessoa's “clothed soul”, as an expression of alienation, the study on the curricular matrix of eight Philosophy courses at Federal Univer-sities in the Southern Region of Brazil is systematized. The study was oriented by materialistic dialectical analysis, implying the approximation with the phenom-enon, production of data analysis and synthesis. The documents represent the conditioning factor that expresses Philosophy as a hegemonic product of the European continent, being a kind of demonstration of the “clothed soul” that makes Brazilian students averse to knowing their reality. Throughout the text, arguments in favor of criticism are presented, based on the totality in which the country is inserted. In this sense, Philosophy is strengthened against academic alienation, based, therefore, on the intention of knowing and producing the resolution of concrete problems of the people of which the Philosophy student is a part.

Keywords: Philosophy course; Alienation; University; Criticism; Pedagogical word

Resumen

En la articulación alegórica entre el “filósofo analfabeto” de Álvaro Vieira Pin-to y el “alma vestida” de Fernando Pessoa, como expresión de alienación, se sistematiza el estudio de la matriz curricular de 8 cursos de Filosofía en Universi-dades Federales de la Región Sur de Brasil. Este estudio estuvo guiado por un análisis dialéctico materialista, que implica la aproximación con el fenómeno, la producción de análisis y la síntesis de datos. Los documentos representan el condicionante que expresa la Filosofía como producto hegemónico del con-tinente europeo, siendo una especie de demostración del “alma vestida” que hace que los estudiantes brasileños sean reacios a conocer su realidad. Se presentan argumentos a favor de la crítica, basados en la totalidad en la que se inserta el país. Así, la Filosofía se fortalece en contra la alienación académi-ca, basada, en la intención de conocer y producir resoluciones de problemas concretos de la población.

Palabras clave: Curso de filosofia; Alienación; Universidad; Crítica; Trabalho pedagogico

Introdução

O essencial é saber ver [...]

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),

Isso exige um estudo profundo,

Uma aprendizagem

De desaprender

(Fernando Pessoa, 1998, p. 223).

Alberto Caeiro deixou uma marca profundamente questionadora em uma das obras mais bonitas do poeta português Fernando Pessoa. Nos versos do poema, “O Guardador de Rebanhos”, Caeiro conseguiu mostrar, de ma-neira contundente e rica, sua capacidade crítica. Não há como passar incó-lume à leitura do poema e, certamente, é difícil não se perguntar o que seria trazer “a alma vestida”, e mais, o que seria essa “aprendizagem de desapren-der”? Pela contundência dos questionamentos do poeta português, a “alma vestida”, nesse texto, constitui-se no mote para a crítica do caráter alienante da universidade brasileira, em especial, nos currículos dos cursos de Filosofia aqui abordados.

Partindo deste mote, com base nos currículos de oito cursos de Filosofia, ofertados em Universidades Federais na Região Sul do Brasil, disponíveis na Internet e analisados durante o ano de 2020, será destacado o caráter eu-rocêntrico que determina o processo de formação pelo qual passam os estu-dantes destes cursos.

Quanto ao currículo, entende-se que ele não é apenas aquilo que aparece no documento, na matriz curricular, como disciplinas organizadas em períodos e semestres. Este documento é a expressão de um processo cor-respondente a uma parte do todo na formação pela qual passam os estu-dantes. Em suma, entende-se que a “grade” de disciplinas é apenas uma par-te do currículo, essa totalidade reproduzida no cotidiano concreto de cada curso, e, como tal, é parte da instituição em que o curso é realizado. Ou seja, por este aspecto, argumenta-se que a estrutura curricular dos cursos de Filoso-fia analisados denota que, por seu caráter eurocêntrico, “veste” os estudan-tes com uma alienada compreensão da realidade concreta de um país sub-desenvolvido e dependente como o Brasil. Via de regra, tal realidade do país, na verdade, passa distante da maior parte dos currículos. Importante frisar também que o currículo é parte constitutiva do trabalho pedagógico, por-tanto, integra-se e representa este trabalho. O trabalho pedagógico implica em “[...] selecionar, organizar, planejar, realizar, avaliar continuamente, acompanhar, produzir conhecimento e estabelecer interações” (FERREIRA, 2018, p. 605). Para tanto, exige que “[...] a força de trabalho dos professores seja organizada pelas relações de emprego e no qual os sujeitos agem em condições sociais, políticas” (FERREIRA, 2018, p. 605).

É importante, antes de seguir, atualizar a concepção de subdesenvol-vido e dependência aqui abordada. A elaboração sobre a função particular da América Latina na economia mundial rendeu grandes teorizações, desde as relativas à Comissão Econômica para América Latina (CEPAL), até teorias críticas, como a Teoria Marxista da Dependência (TMD), sendo esta que sus-tenta a argumentação aqui produzida. Assim, a dependência é entendida, segundo as palavras de Ruy Mauro Marini (2011) como uma “[...] relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recria-das para assegurar a reprodução ampliada da dependência” (MARINI, 2011, p. 134). Em linhas gerais, Theotonio dos Santos explica ser o subdesenvolvido parte estrutural do desenvolvimento do modo de produção capitalista, de maneira que a dependência evidencia a “[...] tendência à exclusão social crescente, como resultado do aumento da concentração econômica e da desigualdade social [...]” (SANTOS, 2018, p. 37), como característica básica do subdesenvolvimento dependente.

Quanto aos aspectos teóricos e metodológicos para composição, sis-tematização e síntese do estudo, optou-se pelo Materialismo Histórico Dialéti-co (MHD). Assim, o estudo foi divido em três momentos:

Momento 1: aproximação com a matriz curricular dos cursos, tendo-a como expressão concreta da realidade particular de cada Universidade. Nes-te primeiro momento os documentos foram lidos e sistematizados a partir do processo de identificação das disciplinas obrigatórias e optativas em cada curso. Foram sistematizadas as principais similitudes e diferenças encontradas, sendo o processo mediado pela seguinte questão: como é evidenciado, na matriz curricular dos cursos de Filosofia Licenciatura escolhidos, o tema “filoso-fia” no Brasil?

Momento 2: produção dos dados a partir da bibliografia utilizada com centralidade na categoria totalidade (totalidade em que os cursos es-tão inseridos, o modo de produção capitalista).

Momento 3: síntese do trabalho ora apresentado neste texto.

É importante destacar que este processo objetiva produzir o movimen-to dialético que, ao partir da expressão fenomênica da realidade (no caso, a matriz curricular dos cursos selecionados), após analisar os dados produzidos com a mediação das categorias do MHD, tendo por base a bibliografia de estudos, possibilitou abstrair os fenômenos por meio das mediações da pes-quisa. Assim, o momento 3 é a exposição não do processo em seu trabalho de pesquisa, mas da síntese produzida pelos pesquisadores que apresentam sua compreensão das múltiplas determinações que fizeram o objeto estuda-do ser aquilo que é.

Em linhas gerais é o movimento do concreto dado ao concreto pen-sado, ou seja, “[...] o concreto [objeto de estudo] é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso” (MARX. 2008, p. 258). Na argumentação aqui apresentada, está expressa de forma crítica a síntese que evidencia as múltiplas determinações que condicionam o caráter alie-nante encontrado na matriz curricular dos cursos.

Pela crítica, com a “exigência de um estudo profundo” para uma “aprendizagem de desaprender”, traça-se uma análise da matriz curricular dos cursos, apontando, mais que seu caráter alienante, a importância de uma mudança estrutural da Universidade brasileira para superar este estado de alienação. Nesse sentido, Álvaro Vieira Pinto (PINTO, 2005) e seu “filósofo analfabeto” são centrais para apontar, se não a possibilidade objetiva de su-peração da alienação, ao menos a crítica necessária a ser produzida contra ela. Antes deste ponto, propõe-se uma pequena digressão para melhor escla-recer o que se entende por “alma vestida” como expressão da alienação.

A alienação como processo de formação: “triste de nós que trazemos a alma vestida!”

Produzindo a dúvida em relação à realidade, Fernando Pessoa entra em uma senda bastante frutífera no âmbito dos temas ligados à epistemolo-gia – a dúvida que gerou muita elaboração filosófica a partir a filosofia he-gemônica europeia na chamada “modernidade’. Para a Filosofia Moderna, inaugurada a partir de grandes transformações socioeconômicas, em espe-cial a partir do século XVII, a dúvida metódica é o processo central para o desenvolvimento daquilo que se entende hoje como ciência (e método cien-tífico).

São as questões da modernidade, em especial o cogito elucidado por Descartes, em seu “Discurso do Método” (DESCARTES, 1999b), que en-gendram o método científico como processo “seguro” para o conhecimen-to. Quanto ao trato com a dúvida, com o questionamento sobre a realida-de, parece haver uma grande proximidade entre o poeta português e filóso-fo francês. O primeiro questiona como se significa o mundo e o segundo su-gere uma resposta segura para se poder desenvolver a dúvida como méto-do. Ambos, apesar da distância histórica que separou a existência de um e de outro, criam uma realidade para além do fenômeno como ele se apresen-ta. Assim, tanto para Descartes, quanto para Fernando Pessoa, há uma abordagem idealista sobre o que seria a realidade, pois, para ambos, há uma verdade idealizada a ser descoberta.

Pelo caminho idealista que seguiu, Fernando Pessoa também estaria destinado a chegar ao famoso “penso, logo existo” (DESCARTES, 1999a, p. 62), pois o cogito, neste sentido, é a razão capaz de idealmente conceber o mundo e, por isso, ordená-lo racionalmente, determinando que, para além das formas e do espaço, a verdade é o conhecimento humano. Em suma, sendo a dúvida um processo metódico de análise, os significados sobre o mundo passam, antes de tudo, pela razão do sujeito pensante que, por sua vez, determina o modo como o mundo se apresenta.

O objetivo desta digressão é apontar que o poeta português produz sua crítica desde o cerne do pensamento moderno no que diz respeito à epis-temologia. Contudo, o importante é que seus questionamentos levam a per-guntar sobre que é o ser humano? Nesta pergunta está contida outra: “o que é conhecimento?”. Por via da reflexão possível dos dois autores, a caracteri-zação de humano, tanto no idealismo de Descartes, quanto do processo de dúvida indicado por Fernando Pessoa, apresentam um sujeito ainda metafísi-co, vislumbrando uma ideia de humano pura, a-histórica e, portanto, antidia-lética.

Com efeito, superar a compreensão idealista, em que há uma reali-dade não histórica da qual o ser humano faz parte, significando também uma compreensão de humano idealizada, exige superar a metafísica idealis-ta. Nessa perspectiva, para ir além dessa compreensão, parte-se do entendi-mento que o “essencial é saber ver” e que isso pressupõe “um exercício pro-fundo/Uma aprendizagem de desaprender”. Por isto, parte-se de uma posição práxica1, que questione as bases do conhecimento idealista – em seu caráter a-histórico e antidialético.

É o MHD que, ao produzir a crítica ativa sobre a sociedade e o sujeito, sobre o conhecimento e seu caráter ideológico, e, especialmente, sobre o caráter de classe que determina a realidade humana, expõe aquilo que indi-ca a possibilidade práxica de compreensão do humano como ser historica-mente determinando, em devir e, portanto, capaz de produzir-se coletiva-mente como ser social.

Portanto, para o MHD, parte-se do entendimento que o ser humano é um sujeito ativo, que trabalha, adaptando o mundo em vista de responder às suas necessidades naturais; produz, assim, sua realidade de modo a significá-la neste processo metabólico entre si (sujeito) e o mundo (objeto, aquilo que lhe é externo). Realidade que é social e histórica, dado o desenvolvimento da sociedade e dos meios de produção de sua existência a partir do trabalho. Assim:

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a na-tureza. Ele confronta com a matéria natural como com uma potência natural. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (MARX, 2013, p. 255).

Este pressuposto coloca em questão, primeiramente, as bases do ca-pitalismo correspondentes à propriedade privada dos meios de produção e à exploração da força de trabalho. Logo, há também a contundente crítica à concepção idealista de ser humano ainda fundamentada no cogito cartesi-ano (DESCARTES, 1999a). Critica, do mesmo modo, o transcendentalismo kan-tiano (KANT, 2015), pois apresenta a realidade humana como produção ma-terial, determinada historicamente pela sociedade, o que pressupõe a lin-guagem como fruto deste processo dialético. É neste sentido, crítico, que a “alma vestida”, no contexto da atual sociedade capitalista, pode ser definida como alienação nos termos marxianos. A alienação aqui é definida da se-guinte maneira: uma atividade “[...] totalmente estranha a si, ao homem e a natureza e, por conseguinte, a consciência e a manifestação da vida tam-bém [como] atividade estranha” (MARX, 2010, p. 93).

E é justamente essa compreensão (ou atividade totalmente estranha a si, “alienada”) que parece grassar nos currículos dos cursos de Filosofia das Universidade Federais da Região Sul. A formação produzida, com base no conteúdo desenvolvido a partir das matrizes curriculares, implica em uma re-produção da compreensão do humano, tendo por suposto uma consciência inata e idealista. Desta forma, é reproduzida a negação do ser humano en-tendido como produto de sua ação direta no mundo e mais, que este, ao reificar sua força de trabalho como mercadoria no modo de produção capi-talista, colocando como propriedade privada o que essencialmente lhe pro-duz como humano, acaba por torná-lo, em si, negação de sua humanidade criadora e histórica.

Essa perspectiva nos cursos distancia ainda mais os estudantes da pos-sibilidade de compreenderem sua própria realidade histórico-social, mistifi-cando – a partir do conteúdo eurocêntrico, apresentado de forma alienada nos cursos – a realidade concreta de país subdesenvolvido de dependente do Brasil. Portanto, como aspecto central para a crítica, é importante enten-der a Filosofia como produto da ação humana, realizada em meio a deter-minações históricas concretas sendo, desta forma, representativa de ideolo-gias de classe na sociedade capitalista. É este aspecto que evidencia a ne-cessidade de a Filosofia ser posta à crítica para além do idealismo.

Com base nesta compreensão, que destaca a reprodução ideológica naturalizada nos currículos dos cursos de Filosofia das Universidades Federais da Região Sul, faz-se referência à importância da crítica por meio do MHD. Afirma-se que a base idealista reproduzida nos currículos, perspectiva que separa o ser humano de sua realidade concreta, se apresenta como pu-ra especulação de um sujeito “neutro”, alienado das reais condições em que se encontra como parte de uma sociedade. Logo, ao contrário da pura especulação, o MHD se propõe a uma práxis capaz de transformar a realidade concreta e, por esta razão, é a partir desta teoria que a Filosofia, como perspectiva ideológica, sua superação, pois:

A realidade não é (autêntica) realidade sem o homem, assim como não é (somente) realidade do homem. É realidade da natureza como totalidade absoluta, que é independente não só da consciência do homem, mas também da sua existên-cia, e é realidade do homem que na natureza e como parte da natureza cria a realidade humano-social, que ultrapassa a natureza e na história define o próprio lugar no universo. O homem não vive em duas esferas diferentes, não habita, por uma parte do seu ser, na história, e pela outra, na natureza. Como homem ele está junto e concomitantemente na natu-reza e na histórica. Como ser histórico e, portanto, social, ele humaniza a natureza, mas também a conhece e reconhece como totalidade absoluta, como causa sui suficiente a si mesma, como condição e pressuposto da humanização (KO-SIK, 1976, p. 228).

Como ser histórico, a “alma vestida” é condição indispensável da exis-tência humana, expressa pela relação humanizante do trabalho, entendido como ação direta deste sobre a natureza – algo que, no âmbito da socieda-de capitalista, produz sujeitos que vendem sua força de trabalho, reificando-se nesta relação, sendo parte de uma sociedade voltada à produção de mercadorias apenas –. Nesse contexto, a “aprendizagem de desaprender” se apresenta como condição da crítica frente à reprodução de uma mistificada realidade ideológica. A dialética, por sua vez, permite compreender que a “coisa em si”, o humano “[...] e o seu lugar no universo, ou (o que em outras palavras exprime o mesmo) a totalidade do mundo revelada pelo homem na história e o homem que existe na totalidade do mundo” (KOSIK, 1976, p. 230).

Até aqui foi assinalado o caráter alienante encontrado na maior parte dos currículos dos cursos analisados, considerados parte fundamental da re-produção ideológica da sociedade, expressa na alienante e idealista sociali-zação da Filosofia no país. Essa reprodução torna a Filosofia e o trabalho do filósofo um agir estéril e, durante o curso, são apresentados de modo palatá-vel ao estudante de Filosofia, o qual pode ou não apenas a “mastigar e cus-pir, sem digerir” o conteúdo que recebe, fazendo com que não aconteça a necessária síntese, a partir de crítica a realidade subdesenvolvida e depen-dente brasileira. Tal processo pode ser verificado no trabalho do professor Agemir Bavaresco (BAVARESCO, 2001) que, ao analisar a história dos cursos de Filosofia no Rio Grande do Sul, evidenciou a recorrente apropriação de correntes filosóficas mediadas por instituições religiosas, as quais se sobressa-em como as principais a disponibilizarem cursos de Filosofia no Estado. Como apontou o autor, para além do aspecto confessional da maior parte das insti-tuições, contando 16 cursos naquele ano, o que se destacava era a apropri-ação da tradição filosófica europeia com base fundamental nas seguintes correntes: (a) escolástica tomista; (b) transição pluralista; (c) Fenomenologia e Hermenêutica; (d) Filosofia Analítica e (e) Leitura dos Clássicos (BAVARESCO, 2001).

No mesmo sentido do trabalho do professor Bavaresco, com uma vi-sada sobre a historicidade do campo da Filosofia e suas particularidades no país, mas com atenção ao Ensino de Filosofia, Rodrigo Pelloso Gelamo (2010) apresentou um estudo sobre as principais tendências do campo entre os anos de 1934 e 2008. O autor descreveu o processo de debate sobre a importân-cia de se tratar o Ensino de Filosofia por si, desvinculando-o da Filosofia da Educação. Em meio a essa questão, destacou o amadurecimento do debate sobre o Ensino de Filosofia, culminado em 2008 com a volta da obrigatorie-dade da disciplina ao Ensino Médio do país. Tal processo fortaleceu o debate sobre o tema das especificidades do produzir e ensinar Filosofia no Brasil e, segundo o autor, a discussão aconteceu principalmente em torno dos seguin-tes pontos:

(1) O entendimento da importância do Ensino de Filosofia pa-ra a sociedade, para cultura e para a formação crítica do homem; (2) a reflexão sobre os temas e conteúdos a serem ensinados e sobre os currículos e (3) a busca do entendimen-to metodológico do Ensino de Filosofia (GELAMO, 2010, p. 344).

Apesar do debate em torno das especificidades da disciplina de Filo-sofia, a matriz curricular dos cursos estudados mostrou ainda estarem limitados aos aspectos puramente históricos da Filosofia. É a tradição, com base na his-toriografia hegemônica de matriz europeia. Mantém-se os cursos em um pro-cesso em que a crítica e os avanços citados por Gelamo (2010), por exemplo, parecem ter pouco afetado os documentos dos Cursos de Filosofia pesquisa-dos. Assim, estão distantes de refletir sobre as determinações que afetam o trabalho do filósofo em um país como o Brasil. Percebe-se que a formação apresentada nos cursos não lhes possibilita a intenção de evidenciar as con-tradições que produzem e reproduzem a realidade do país. Ou seja, nas pa-lavras de Álvaro Viera Pinto, não possibilita desmistificar aquilo que esconde as reais condições de reprodução do “vale de lágrimas” (PINTO, 2008) do subdensenvolvimento dependente. São assim, ainda nas palavras do autor brasileiro, parte comum de uma “prática metodicamente desenvolvida da ocultação dos fundamentos sociais” que reproduzem os problemas sociais brasileiros.

Somente o “filósofo como analfabeto” é capaz de criticar os limites da “alma vestida” ou, o que é o mesmo, os limites no interior do processo de for-mação evidenciado nos currículos, em que se tenta alienar a Filosofia, com roupagens de neutralidade, dando a entender, ardilosamente, que seria pos-sível um filosofar puro, livre de ideologias ou posicionamentos políticos. Contra essa posição o importante é uma “aprendizagem de desaprender”, guiada pela crítica dialética ao idealismo como será apresentado a seguir.

O filósofo analfabeto: uma aprendizagem de desaprender

Na Região Sul do Brasil, composta pelos estados do Paraná, Santa Ca-tarina e Rio Grande do Sul, há sete Universidades Federais que ofertam cursos de graduação em Filosofia. A matriz curricular de cada curso corresponde ao conteúdo formal a que o estudante que ingressa nele terá acesso em sua formação. Em razão de expressar os conteúdos básicos que fundamentam o curso, a matriz curricular, entendida como um excerto do currículo, é um pon-to de partida para a reflexão desenvolvida neste texto. No quadro abaixo são apresentadas as instituições pesquisadas neste estudo:

Quadro 1 Universidades Federais que ofertam cursos de Filosofia na Região Sul do Brasil 

Estados Universidade e modalidade ofertada
Rio Grande do Sul Universidade Federal de Pelotas (UFPel) – Licenciatura e Bacharelado.
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) – Licenciatura e Bacharelado
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – Licenciatura e Bacharelado
Universidade Federal da Fronteira Sul Campus Erechim (UFFS) – Licenciatura
Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – Licenciatura e Bacharelado
Universidade Federal da Fronteira Sul Campus Chapecó (UFFS) – Licenciatura
Paraná Universidade da Integração Latino-Americana (UNILA) – Licenciatura
Universidade Federal do Paraná (UFPR) – Licenciatura e Bacharelado

Fonte: Os autores (2020).

Ao acessar os documentos disponibilizados nas páginas dos cursos na Internet é possível perceber uma homogeneidade reforçada na divisão histo-riográfica de cunho europeu. Nesta divisão, a História da Filosofia é apresen-tada com base na seguinte estrutura temporal: Filosofia Antiga, Filosofia Me-dieval, Filosofia Moderna e Filosofia Contemporânea. Ou seja, toda a carac-terização apresenta parte da história da Europa, sem, com isso, apresentar, ao menos nos documentos estudados, as mediações entre os conteúdos e a caracterização dos períodos com outras fontes históricas para além daquele continente.

Não é possível detalhar, neste breve texto, as razões que justificam esta divisão – já aceita e reproduzida como “natural” –, mas destacar aquilo que os documentos evidenciam no âmbito da inculcação de modos de agir e produzir Filosofia, elegidos, especialmente a partir de Europa, como modelo. Assim, partindo desta divisão, os acadêmicos são apresentados a diferentes autores que, dentro dos períodos históricos pré-definidos, tratam sobre temas distintos, o que cria outra subdivisão comum nos cursos, agora com base em questões internas à Filosofia.

Do mesmo modo, após a divisão histórica da matriz curricular, apre-sentam um padrão de estudos que mescla temas como: Teoria do Conhecimento, Lógica, Filosofia Política, Ética, Estética e Filosofia da Linguagem, que são desenvolvidos de forma transversal no trabalho pedagógico do Curso. Com base nesta divisão, se pode observar a seguinte estrutura que, em linhas gerais, se repete nos documentos analisados:

Quadro 2 Estrutura curricular dos cursos analisados 

Períodos Históricos Temas transversais
Filosofia Antiga

Estética

Ética

Filosofia Política

Lógica

Teoria do Conhecimento

Filosofia da Linguagem

Filosofia Medieval
Filosofia Moderna
Filosofia Contemporânea

Fonte: Os autores (2021).

Há de se destacar um curso que “destoa” dos demais, não no âmbito da divisão histórica, mas por abordar temas transversais distintos dos demais. É o caso do Curso de Filosofia Licenciatura da UNILA que, em razão da identi-dade da Universidade em relação ao continente Latino-Americano, deman-da estudos específicos e oferta disciplinas como: Problemas da Filosofia Lati-no-Americana; Filosofia Colonial; Antropologia Filosófica e Colonialismo; Filo-sofia Latino-Americana; Descolonização Epistêmica e Pensamento dos Povos Indígenas. Dentre todas as sete universidades da Região Sul acessadas, a UNI-LA é a única a apresentar, em sua estrutura curricular, disciplinas com temas voltados diretamente à realidade Latino-Americana da qual o Brasil faz parte.

Os demais cursos apresentam, de forma residual, como disciplina op-tativa, “filosofia brasileira”, por exemplo. O tema de uma disciplina como esta, por mais vago que possa se apresentar, é um indício mínimo de atenção a questões filosóficas referentes ao país. Contudo, ela não aparece na maior parte dos cursos. Mais que essa ausência, é importante destacar a falta de componentes curriculares que abordem temas relativos à realidade brasileira – exemplo disso é não haver, com exceção da UNILA, cursos que abordem os 322 anos em que o país foi Colônia de Portugal, fato que denota a atenção da Filosofia voltada apenas aos “grandes filósofos clássicos” –. Assim, o estu-dante de Filosofia é formado em uma espécie de “não lugar”, formado em meio uma apresentação idealizada da história da filosofia, distante do que vive concretamente no Brasil, fazendo com que não consiga destinar aten-ção a temas centrais que determinam sua realidade, como é o caso do co-lonialismo no país.

Para melhor destacar a pouca atenção ou possibilidade de o estu-dante de Filosofia conhecer temas centrais que afetam seu país, o quadro abaixo indica a alienação acadêmica a que este estudante está submetido. A “cisão” entre sujeito e objeto, tão comum a partir da Filosofia Moderna co-mo germe da ideologia capitalista, é recebida quase sem crítica, poucas ve-zes questionada a partir da realidade brasileira, conforme o que foi encon-trado nos documentos. É isso que se pode perceber a partir da organização das disciplinas que abordam o país nos documentos disponibilizados pelos cursos:

Quadro 3 Disciplinas que fazem referências a temas ligados a realidade brasileira 

Universidade Disciplina Obrigatória/Optativa
UFFS – Campus Erechim Filosofia Latino Americana Optativa
UFFS – Campus Cha-pecó Filosofia Latino Americana Optativa
História da Fronteira Sul Obrigatória
UFRGS Filosofia Brasileira I, II Optativa
UNILA Fundamentos de América Latina I, II, III. Obrigatória
Problemas da Filosofia Latino-Americana
Filosofia Colonial
Antropologia Filosófica e Colonialismo
Filosofia Latino-Americana
Pensamento dos Povos Indígenas
Descolonização Epistêmica

Fonte: Os autores (2021).

São apenas três cursos, entre oito, que ofertam, mesmo que de forma optativa, alguma disciplina com tema ligado diretamente ao Brasil. Portanto, é com base em uma estrutura distante da realidade efetiva do país que os estudantes acabam sendo levados a priorizar, por exemplo, o estudo da Filosofia Clássica Alemã (disciplina ofertada na UFPR) ou então, a praticar Leitura Filosófica de Textos em Grego (disciplina ofertada na UFSC), sem antes, dar atenção ao estudo da realidade concreta brasileira. Formados assim estão submetidos ao conhecimento produzido no centro hegemônico, tendo a matriz curricular de onde estudam como peça de propaganda do “verda-deiro conhecimento”, em um sentido em que o “filosofar sério” (GOMES, 1994, p. 9) passa pela necessidade de reproduzir padrões ideológicos hegemoni-camente impostos.

Faz-se mister frisar que, em hipótese alguma, se descarta a importância do estudo de outras línguas, como o grego ou a necessidade do estudo sério e dedicado à Filosofia Clássica Alemã. Contudo, feito o questionamento so-bre o resultado da formação dos estudantes que passam por cursos sem a necessária “redução sociológica”, como apresentou Alberto Guerreiro Ra-mos (RAMOS, 1965), se chegaria ao diálogo da “teoria do medalhão” de Machado de Assis (ASSIS, 2008, p. 275). Segundo o autor, para ser um “meda-lhão” na sociedade não se pode ser original em Filosofia, ou melhor, “filosofia nenhuma?”, apenas “Filosofia da história”, pois não há a possibilidade de se chegar a conclusões “que não tenham sido já achadas por outros”. Até Ma-chado de Assis já havia escrito sobre o que tem caracterizado a Filosofia no Brasil como um papagaiar sem fim de releituras e interpretação de autores europeus, sempre sem a devida análise a partir de realidade concreta do pa-ís.

Tal distanciamento entre realidade e conteúdos apresentados nos cur-sos não é fruto do acaso, mas sintoma de um modelo de universidade que, incapaz de fazer a crítica à realidade em que está inserida, aliena não ape-nas os estudantes, mas toda a comunidade universitária de suas reais condi-ções históricas, políticas e sociais. O conhecimento nestas condições é apre-sentado em separado das formas sociais que produzem a realidade brasileira, e esta é apresentada, portanto, distante, como elemento alienado e alienan-te, vagando entre o academicismo e o eurocentrismo que definem “verda-deiro conhecimento”.

Levando em conta a realidade da maior parte dos estudantes de li-cenciatura do país, observa-se que correspondem ao grupo “[...] dos seg-mentos com renda até 3 salários-mínimos perfazendo 61,2%” (GATTI; BARRE-TO; AFONSO; ALMEIDA, 2019, p. 167), ou seja, são oriundos das camadas po-pulares do Brasil. Este detalhe reforça ainda mais o distanciamento entre o conteúdo encontrado nos currículos e a realidade concreta vivenciada pelos estudantes desde a Educação Básica. Ou seja, estudantes procedentes de escolas públicas, sabidamente precarizadas pelo histórico descaso que ca-racteriza o tratamento do Estado brasileiro para com esta etapa da Educa-ção, são colocados em contato com um academicismo incapaz de com-preender os limites da formação anterior destes estudantes. No caso dos cur-sos de Filosofia, isso é ainda mais relevante, pois reforça estereótipos da Filoso-fia como fruição do pensar, como atividade despreocupada com a realida-de, fazendo com que sua função pareça ser a de produzir uma abstração vazia da história distante da realidade brasileira.

Com base no processo de formação (alienação) produzido por meio destes currículos em relação à realidade do país, percebe-se ser necessário criar uma “aprendizagem de desaprender” contra aquilo que “veste” os for-mandos com um “figurino que não corresponde” (OURIQUES, 2017) às carac-terísticas de um país como o Brasil. A “aprendizagem de desaprender” passa pela crítica ao idealismo apresentado nos currículos dos cursos e tem como pressuposto inicial o fato de ser produzida com base nas condições concretas de um país da periferia do capitalismo. Assim, contra o idealismo inculcado nos cursos é necessária uma “aprendizagem de desaprender”, em que a cen-tralidade da investigação filosófica esteja no plano da dialética e da totali-dade, possibilitando evidenciar de forma crítica às contradições que produ-zem a realidade concreta de uma sociedade dividida em classes.

O pressuposto para o movimento da “aprendizagem e desaprender”, ou seja, o movimento da crítica ao idealismo, exige certas ações que, segun-do Álvaro Vieira Pinto (2005), demandam ao filósofo ser “analfabeto”, em um país que, mesmo em 2018, ainda tinha, entre pessoas a partir dos 15 anos de idade, mais de 11 milhões de analfabetos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 2. Com o autor, entende-se que fazer Filosofia exige um conhecimento profundo da realidade em que se vive, para fazer com que o estudo dos livros seja um meio para compreender essa realidade e não um fim que acaba por esterilizar o pensamento crítico. Assim, segundo Álvaro Vieira Pinto:

A primeira exigência consiste em admitir que não pode signi-ficar a mesma coisa ser filósofo no país desenvolvido, domi-nador e autônomo e no que ainda vegeta no subdesenvol-vimento, na ignorância do saber letrado e na carência de soberania e capacidade de definição e direção de processo de existência enquanto ser histórico particular. No mundo subdesenvolvido e na maior extensão analfabeto, o filósofo, para pensar autenticamente a realidade, precisa ser analfa-beto. Não que, evidentemente, ignore a habilidade de ler e escrever – mas, sabemos bem não ser exclusivamente esta falta que constitui o analfabetismo –, e sim porque coloca em primeiro lugar, na tentativa de conceber e interpretar o mundo as condições reais dele, entre as quais se incluem a de ser um mundo de analfabetos. Considerará a acumula-ção da cultura estranha e as diversas cogitações, passadas e presentes, conhecidas pelo estudo dos livros, uma fonte sub-sidiária, embora indispensável, para a formação da consci-ência de si. Mas terá de aprender muito mais com o que vê do que com o que lê. A consciência filosófica só será legíti-ma se explicar o estado do seu meio, não por um reflexo pas-sivo exterior, mesmo verídico, mas pela apreensão da essên-cia do ser social do qual o pensador é parte (PINTO, 2005, p. 45).

Com base na totalidade dos currículos analisados – com exceção pontual do curso de Filosofia da UNILA, que proporciona ao estudante voltar atenção a temas centrais da formação do Brasil – é possível afirmar que a maior parte dos professores e estudantes de Filosofia desconhece por com-pleto a passagem acima, escrita pelo filósofo brasileiro. Tal desconhecimento se dá, possivelmente, em razão daquilo que estrutura a vida destes cursos, sempre voltados à Europa ou ao centro imperialista norte-americano, tendo, como centralidade, a alienação relativa à realidade concreta brasileira. Para esta estrutura alienante, “aprender muito mais com o que vê do que com o que lê” é algo impensável, pois o “ver”, neste caso, descobre uma realidade distante daquela dos livros ou dos países metropolitanos. “O importante é sa-ber ver”, expressão indicativa do peso da crítica de Álvaro Vieira Pinto ao chamar o filósofo brasileiro a filosofar e não mais a vegetar na prática vazia de reproduzir ideias prontas.

O filosofar, portanto, muito mais que apenas conhecer, de forma eru-dita, conceitos, sistemas e elaboração dos filósofos metropolitanos, exige a compreensão da realidade de país subdesenvolvido e dependente do Brasil, não como uma anomalia do modo de produção capitalista, mas como par-te necessária de seu desenvolvimento geral. A práxis do filósofo, se for embe-bida nas condições reais do mundo em que vive, altera a prática do pedante intelectual acadêmico em direção ao intelectual público – aquele que pro-duz seu trabalho com a finalidade de modificar a realidade do povo do qual faz parte, ou seja, seus problemas filosóficos são os problemas candentes do povo do qual ele também é um sujeito. Tal afirmação, entretanto, não se limi-ta apenas à Filosofia, mas se estende para todos os campos de produção de conhecimento que constituem a universidade brasileira. Isto é, a alienação observada nos cursos de Filosofia não é exceção, mas a regra na universida-de brasileira que grassa na reprodução do acadêmico estéril de sua realida-de.

Como espaço de reprodução ideológica, a universidade cumpre uma função, a de inculcar modos de ser afeitos à manutenção da sociedade de classes. Isso, contudo, precisa ser posto à crítica no âmbito da totalidade entendida como “[...] um processo histórico, expresso em categorias dialéti-cas. É uma totalidade feita de contrários e conflitos [...]” (PINTO, 2005, p. 47) que, não sendo criticado em meio às contradições da sociedade, implicam na reprodução alienante encontrada nos currículos dos cursos da Filosofia da Universidades Federais da Região Sul do Brasil

Encaminhamentos conclusivos

Ser um “filósofo analfabeto” no Brasil não é um devaneio retórico, mas uma posição política fundamentada na crítica dialética com base na totali-dade em que o país está inserido no capitalismo mundial. Ainda na década de 1970 ou mesmo no tempo que esteve à frente do Departamento de Filosofia do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), Álvaro Vieira Pinto já apon-tava a necessidade de o filósofo conhecer a realidade brasileira como pre-missa inicial dos estudos da História da Filosofia.

Longe do “filósofo analfabeto”, o que se percebeu, com a análise da matriz curricular dos cursos de Filosofia das Universidades Federais da Região Sul do país, foi a inculcação do idealismo por meio do eurocentrismo. A “ver-dadeira” Filosofia está nos livros dos filósofos clássicos, de modo que estes são estudados por si, sem levar aquele que estuda a pensar com maior complexi-dade sobre as mazelas materiais da realidade brasileira.

Os cursos de Filosofia apresentam currículos alienados da real condi-ção social de seus estudantes e do país em que estão inseridos. Este dado faz dos currículos dos cursos uma arma de alienação de professores e estudantes que, voltados a produzir em meio uma universidade alienada, têm como fru-to de seus trabalhos estéreis elaborações teóricas para a sociedade brasileira – no máximo, geram produções acadêmicas destinadas a cumprir exigências para inserir no Currículo na Plataforma Lattes/CNPq –. Não frutificam, pois filo-sofam no vazio, reproduzem, por exemplo, filosofias não apropriadas à reali-dade de estudantes de baixa renda com alfabetização precária – dado se-rem oriundos de um Educação Básica debilitada pelo Estado brasileiro, ape-sar da dedicação dos professores que nela realizam um trabalho pedagógico (FERREIRA, 2018).

Por fim, ser filósofo no Brasil é produzir Filosofia crítica à realidade de país dependente e subdesenvolvido que determina sua história. O filósofo brasileiro que não vai à raiz de problemas como o analfabetismo, violência pública, imperialismo, propriedade privada e latifúndio ou até mesmo, que não reflete sobre a dependência técnico cientifica do país, acaba por repro-duzir e reforçar “o vale de lágrimas” (PINTO, 2008) do capitalismo dependen-te. A arma contra a alienação acadêmica é a crítica, em especial, aquela feita com base na resolução de problemas concretos do povo do qual o es-tudante de Filosofia é parte.

Notas

1A práxis se configura por ser gênese consciente do ser humano, ou seja, seu agir consciente em vista de um fim. No MHD, o “[...] termo práxis para designar a ativi-dade consciente e objetiva, sem que, no entanto, seja concebida com o caráter estritamente utilitário” (VÁZQUEZ, 2011, p. 30).

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Recebido: 03 de Maio de 2021; Aceito: 22 de Junho de 2021

Ms. Marcos Britto Corrêa

Instituto Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação

KAIRÓS – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Educação e Políticas

Públicas – Universidade Federal de Santa Maria

Orcid id: http://orcid.org/0000-0002-9808-2715

E-mail: marcoscorrea.filosofia@gmail.com

Profa. Dra. Liliana Soares Ferreira

Universidade Federal de Santa Maria (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

KAIRÓS – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Educação e Políticas

Públicas – Universidade Federal de Santa Maria

Orcid id: http://orcid.org/0000-0002-9717-1476

E-mail: anaililferreira@yahoo.com.br

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