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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.61 Natal jul./set 2021  Epub 19-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n61id26722 

Artigo

Eleição para diretor no município de Natal: trajetória e repercussão na gestão democrática

Election for school principal in the city of Natal: trajectory and effects on democratic management

Elección para director de escuela en la ciudad de Natal: trayectoria y efectos en la gestión democrática

Fabíola Fontenele Girardi1 
http://orcid.org/0000-0002-6854-1888

Antônio Cabral Neto1 
http://orcid.org/0000-0001-7506-0807

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)


Resumo

Este artigo desenvolve reflexões circunstanciadas sobre o processo de eleição direta para dirigente escolar nas unidades de ensino da rede municipal de Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte, destacando como esse mecanismo contribui para o aprimoramento da gestão democrática. Como corpus empírico, foram utilizadas informações sistematizadas a partir de 7 (sete) entrevistas realizadas com os sujeitos históricos envolvidos nessa empreitada, cujo fulcro foram as conquistas obtidas e os limites desse processo. Conclui-se que, embora eivado por limites e contradições, o processo de escolha de dirigentes escolares contribuiu para a edificação, no cotidiano escolar, de uma certa prática democrática que foi sendo reforçada com a criação dos conselhos escolares e com a elaboração do projeto político-pedagógico.

Palavras-chave: Gestão democrática; Eleição para diretor de escola; Patrimonialismo; Cultura democrática

Abstract

This paper develops reflections on circumstances of the process of direct election for school principal in the municipal schools of Natal, capital of the State of Rio Grande do Norte, Brazil, highlighting how this mechanism contributes to the improvement of democratic management. As empirical corpus, we used information systematized from 7 (seven) interviews with historical individuals involved in this endeavor, whose principle were the achievements and the limits of this process. We conclude that, although contaminated by limits and contradictions, the process of choosing school principals contributed to the construction, in the school daily routine, of a certain democratic practice that was being reinforced with the creation of school councils and with the elaboration of the political-pedagogical project.

Keywords: Democratic management; Election of school principal; Patrimonialism; Democratic culture

Resumen

Este artículo desarrolla reflexiones sobre las circunstancias del proceso de elección directa de director de escuela en las unidades de enseñanza de la red municipal de Natal, capital del Estado de Rio Grande do Norte, Brasil, destacando cómo este mecanismo contribuye a el perfeccionamiento de la gestión democrática. Como corpus empírico, se utilizó la información sistematizada de 7 (siete) entrevistas realizadas a los sujetos históricos involucrados en este emprendimiento, cuyo principio fueron los logros y los límites de este proceso. Se concluye que, aunque contaminado por límites y contradicciones, el proceso de elección de dirigentes escolares contribuyó a la construcción, en la vida cotidiana de la escuela, de una cierta práctica democrática que se fue reforzando con la creación de los consejos escolares y con la elaboración del proyecto político-pedagógico.

Palabras clave: Gestión democrática; Elección del director de la escuela; Patrimonialismo; La cultura democrática

Notas introdutórias

Este artigo objetiva refletir sobre o processo de eleição direta para provimento do cargo de dirigente escolar nas unidades de ensino da rede municipal de Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte. Desenvolve reflexões circunstanciadas sobre as implicações da eleição direta como mecanismo de aprimoramento da gestão democrática na escola, destacando – a partir do diálogo com os sujeitos históricos envolvidos nessa empreitada – as conquistas obtidas e os limites desse processo.

Como corpus empírico foram utilizadas informações sistematizadas a partir de entrevistas realizadas com 03 sindicalistas (E2, E4 e E7), 01 ex-presidente da União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas - UMES (E6), 02 profissionais que estavam, em 2019, em cargo de chefia na Secretaria Municipal de Educação (E1 e E3) e o Secretário Municipal de Educação de Natal/RN (E5) à época em que foi implantada a eleição direta para gestor escolar no município.

Os resultados das discussões desenvolvidas sobre esse tema estão organizados neste artigo em duas sessões. A primeira discute as lutas e reivindicações dos educadores sobre a necessidade de edificar, no âmbito da escola, a eleição de diretor como mecanismo importante para a gestão democrática. A segunda sessão propõe uma reflexão sobre o movimento que expressa um certo esvaziamento da eleição de diretor escolar pela ênfase na gestão gerencial e desvalorização da gestão democrática.

A eleição para diretor de escola e os demais mecanismos da gestão democrática na Rede Municipal de Ensino de Natal/RN

A década de 1980 pode ser considerada como um marco importante da construção histórica do movimento dos educadores para a edificação de uma gestão democrática no âmbito da escola pública. Esse movimento se situa, portanto, no contexto de luta mais geral da sociedade brasileira que constrói um forte movimento contra o autoritarismo próprio do regime civil-militar que vigorava no país desde 1964. O cenário nacional, nesse momento, colocava no horizonte a perspectiva de edificação de caminhos em direção à democracia e isso vai se expressar em todas as instâncias da sociedade inclusive no espaço da escola.

Nessa conjuntura política da década de 1980, era central em todos os movimentos sociais a luta contra o regime ditatorial do governo civil-militar e pela edificação da democracia. Construía-se o liame do sentimento de unicidade nas forças que se agregavam tendo como fulcro a redemocratização do país.

É, portanto, nesse momento que ascende fortemente a organização do movimento dos educadores, rogando por democracia na escola, e o primeiro mecanismo colocado na agenda do movimento foi a eleição para diretor das escolas.

É nesse contexto que deve ser inscrita a demanda por gestão democrática nas escolas. Esse movimento, iniciado na década de 1980, vai ter repercussões medulares na consolidação das lutas reivindicatórias dos educadores, conforme foi registrado por todos os sujeitos entrevistados nesta pesquisa.

As falas de sujeitos históricos, embora encerrem reflexões distintas em alguns aspectos, demonstram as nuances da realidade de como se concretizam, no cotidiano escolar, a eleição direta e, consequentemente, a gestão democrática no interior das unidades de ensino.

Como foi narrado pelo entrevistado E3, inicialmente, as campanhas para diretor no interior da escola reproduziam, às vezes, práticas eleitoreiras incrustadas na sociedade brasileira. Era um processo

[...] de negociatas, de troca de favores, isso infelizmente ainda acontece, mesmo que de forma não muito explícita, mas ainda há as negociações, os acordos. A gente sentia isso fortemente [no passado], mas era em algumas comunidades pontuais, não era assim no geral, não. Tinha comunidades em que realmente havia um enfrentamento muito grande e tinha comunidades que, mesmo sendo eleição direta, a comunidade não ousava ter uma chapa de oposição, para não ir para o enfrentamento (E3, 2018).

Nessa primeira fase das eleições, principalmente, evidenciam-se práticas semelhantes àquelas do sistema patrimonialista, considerando que a eleição nas escolas se caracterizou por haver envolvimento dos políticos locais que faziam uso das práticas de campanha “eleitoreiras” (compra de voto, coerção, troca de favores, entre outras práticas) para eleger os seus candidatos.

Nesse sentido, ao pensar o presente, o entrevistado E3 rememora o passado para constatar que ainda sobrevivem algumas práticas eleitoreiras na eleição de algumas unidades de ensino, embora elas sejam observadas em pouquíssimas escolas; a pressão de políticos e presidentes de Conselhos Comunitários é bastante reduzida. Segundo o entrevistado E5, a ausência de oposição em alguns casos é devido ao temor de enfrentar esse aparato, às vezes, barulhento, mas, em geral, silencioso. Com esse raciocínio, as práticas da política tradicional influenciaram e ainda influenciam as campanhas eleitorais para diretores nas unidades de ensino atualmente.

[...] hoje, realmente eu não tenho segurança nas informações, mas o que me disseram foi [...] que muitos diretores voltaram a ser pessoas de ligação política mesmo com a eleição. [...] E realmente faziam festa de campanha e assim por diante e até havia influência de poder econômico em alguns casos (E5, 2019).

Conforme assinalou o Entrevistado 7:

Tem manifestação ainda hoje na experiência que a gente tem vivido ao longo desses anos de diretores comprometidos com determinados políticos, fazendo política dentro da escola, tratando dos votos de cabresto (E7, 2019).

Nessas referências, evidencia-se que permaneceu no processo eleitoral, em menor medida, a interferência política externa que influencia na maneira de conduzir a campanha para diretores nas unidades de ensino de práticas consideradas como eleitoreiras. No entanto, creditou-se o fim da interferência direta e declarada, como ocorria com a indicação política no século passado, conforme menciona o entrevistado E6:

Seguramente essas escolas deixaram de ser espaços de domínio de candidatos X ou Y. Elas colocavam os seus candidatos para promover reuniões dos pais quando estava próximo à eleição, especialmente eleição municipal; existia um certo controle sobre os professores da escola. Tudo isso foi sendo quebrado (E6, 2019).

Essa fala sintetiza a ideia enunciada por grande parte dos profissionais entrevistados nesta pesquisa, os quais consideram que o patrimonialismo na rede municipal de ensino foi quebrado em Natal com o fim da indicação política para o provimento do cargo de diretor e com a implementação da eleição. Pode haver ocorrências, como exceção, em eleição interna nas unidades de ensino, todavia, não são regra na rede de ensino municipal. A própria SME tem procurado não permitir interferências políticas na escolha dos nomes de diretores para as unidades de ensino, definindo critérios próprios para nomeá-los. Até o ano de 2015, a SME se limitava a indicar diretores em situações específicas: em unidades de ensino recém-inauguradas; quando havia intervenção, ocasionada por denúncia, com base e de acordo com os preceitos legais ou devido à prevaricação do diretor eleito, mas, após processo de sindicância interno; exoneração por pedido; e quando não havia proponentes interessados no cargo no estabelecimento de ensino.

Em relação à reflexão construída pelo entrevistado E5 acerca das práticas “eleitoreiras” no período de campanha para a eleição de diretores nas unidades de ensino, segundo o Setor de Planejamento e Avaliação da Gestão Escolar (SPAGE), alocado no Departamento de Gestão Escolar (DGE), na SME, são apresentadas cada vez menos denúncias relacionadas à negociação de voto por parte dos diretores, alunos, pais ou funcionários.

Entretanto, mesmo acreditando em mudanças nas relações entre a escola e a política local com a conquista da eleição direta, alguns sujeitos da pesquisa chamaram a atenção para as relações internas nas unidades de ensino. Para eles, as práticas arcaicas no interior destas, relacionadas ao patrimonialismo, reconfiguraram-se,

Eu acho que o que reproduz o uso da política tradicional são os elementos da fisiologia, do patrimonialismo, das concessões. A gente diz só elementos porque o jogo da política, da grande política, não tem como estabelecer paralelo com a política escolar (E4, 2018).

O E4 relaciona a grande política (que acontece nas relações políticas eleitorais na sociedade brasileira) com a pequena (a que ocorre no interior da unidade de ensino) para esclarecer que elas possuem extensão diferente, apesar de terem características comuns, pois se constituíram a partir das práticas vivenciadas na sociedade. Nesse sentido, as práticas patrimonialistas, mencionadas por E4, materializam-se nas unidades de ensino com ações peculiares envolvendo as relações pessoais, culturais, políticas e sociais entre os sujeitos que compõem a comunidade escolar.

A permanência, nas unidades de ensino, de algumas atitudes que podem ser compreendidas como clientelistas e/ou fisiológicas: os tais arrumadinhos foram mencionados por alguns entrevistados. Vivendo à margem do processo democrático de definição da vida coletiva escolar, nessa prática, os interesses privados se sobrepõem aos interesses coletivos.

Os entrevistados E4 e E7, ao refletirem acerca do fenômeno de permanência de práticas fisiológicas, observaram que elas não aconteceriam isoladas da conjuntura histórica brasileira, mas são construídas paulatinamente no interior da escola, denotando o perfil do caráter cultural da prática brasileira de exercer liderança e poder. Denunciam que a eleição no interior da escola não rompeu totalmente com algumas das práticas consideradas retrógradas que vigoram na política brasileira, as quais, por séculos, se mantêm insidiosamente, em maior ou menor grau, no universo de poder do Estado brasileiro em todas as suas instituições, instâncias e segmentos.

Nesse sentido, para impedir que se propaguem os vícios e/ou corrupções no sistema democrático, foram criadas regras claras e mecanismos de controle e fiscalização que asseguram a democracia no interior da escola. Essa ideia de mecanismos de controle deliberativo para a convivência democrática perpassou os documentos oficiais desde os Pioneiros da Educação, mas foi na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – que o Projeto Político-Pedagógico e o Conselho Escolar se tornaram formalmente vinculados à gestão democrática. Isso posto, haveria a compreensão de que os mecanismos de gestão se aliariam ao voto para garantir espaço democrático na escola. Todavia, como é historiado por E1,

Hoje na Rede Municipal de Ensino de Natal todas as escolas têm o PPP; e, mais do que isso, a criação dos conselhos escolares é a formação que é contínua dos conselheiros porque, como eles se renovam, a gente faz encontros, em geral, dois encontros por ano com todos eles, e momentos de formação de outras formas. Ah, o PPP, também, é importantíssimo porque é um Projeto Político-Pedagógico que tem que ser feito ouvindo a comunidade, se ouvem o suficiente? Eu não sei. Mas, esse ano, todos os PPPs estão sendo orientados (E1, 2018).

Em 2015, constituíram-se ações para a implantação de conselhos escolares em toda a rede municipal e, atualmente, existe um trabalho sistemático de acompanhamento do Setor de Planejamento e Assessoria de Gestão Escolar (SPAGE), do Departamento de Gestão Escolar (DGE) e da Secretaria Municipal de Educação (SME). Em relação ao PPP foi iniciado um trabalho pormenorizado por parte do Departamento de Ensino Fundamental (DEF) para que todas as unidades de ensino da rede municipal elaborassem os seus projetos.

Porém, mesmo a SME tendo conseguido implementar todos os mecanismos – a eleição, o PPP e os Conselhos Escolares – na rede municipal de ensino para a constituição da gestão democrática, alguns entrevistados demonstram que, tendo sido aprovados para garantir espaços democráticos e relações horizontais na escola, estes não uniformizaram essas práticas democráticas. Um exemplo de transgressão aos princípios da gestão democrática é relatado a seguir:

Hoje o que eu mais vejo são reuniões do Conselho para devolver professor. Eu vejo isso com muita tristeza porque não era esse o nosso objetivo do conselho. O objetivo era discutir qualidade do ensino, era discutir a universalização na educação básica, era discutir a democracia participativa, a democracia representativa [...]. São essas coisas que no interior da escola estão fazendo muita falta; quando eles dizem nós reunimos o conselho, eu já sei que reuniram os eleitos, mas discussão entre os pares não houve e isso ‘afoga’ o processo (E7, 2019).

Nessa referência, pode-se perceber que, mesmo depois de implementados os mecanismos de gestão democrática, seus princípios são feridos, uma vez que as decisões tomadas acerca dos problemas inerentes à escola tendem, em muitas unidades de ensino, a ocorrer sem discussão. São reduzidas à direção e ao conselho escolar, demonstrando que os mecanismos autogestores e autocríticos não teriam superado a estrutura de poder autoritário instalado historicamente na escola,

[...] você tem também aí uma tensão por coletivos que dirijam a escola – que seriam os conselhos escolares –, mas, mesmo assim, também não são nutridos por esses diretores eleitos porque a velha estrutura hierárquica está mantida (E6, 2019).

Nessa perspectiva, os mecanismos, quando instaurados, não desenvolveram completamente as transformações esperadas no interior da escola, como a horizontalidade nas decisões em todos os espaços intraescolares; não geraram o fim dos conchavos políticos e a não interferência das forças externas à escola. Não apenas exteriormente, mas esses traços também se encontram na interioridade da unidade de ensino, contrariando a expectativa do fim da hierarquia com o voto que representava o direito à participação e à liberdade.

Para o entrevistado E1, “[...] os gestores se acham soberanos. Acham que pelo fato de terem sido eleitos pelas comunidades escolares podem se comportar como soberanos”. E a soberania do poder autocrático parece não ter sido vencida com a escolha por voto dos diretores escolares. O entrevistado E6 reforça essa tendência ao afirmar que:

[...] essa lógica não ajuda muito e, por outro lado, você não tem uma dinâmica de gestão no interior da escola que desperte o desejo e a vontade de querer das pessoas de se implicarem na gestão. Então, geralmente os diretores ficam muito absolutos, né? (E6, 2019).

A lógica hierárquica da estrutura escolar, conforme observado por E6, contribuiu para que os sujeitos nas unidades de ensino “[...] não se contaminassem [...]” pela escola no sentido de não haver responsabilização coletiva (corresponsabilização) dos feitos ou malfeitos. A responsabilidade continuaria a repousar sobre os ombros do(s) diretor(es), os quais seriam vistos como absolutos. Nessa configuração, trata-se de algo contrário à lógica que deveria imperar sob a democracia nas relações de poder no interior da escola. Essas reflexões trouxeram à memória dos entrevistados os embates para a conquista do espaço democrático na escola, ou a crença na mudança das relações de poder no interior do ambiente escolar com a implementação da escolha de diretor com o voto direto nos idos de 1980.

Nesse sentido importa registrar que a experiência histórica revela concretamente, que a eleição no Brasil não significou, necessariamente, sinônimo de espaço democrático, uma vez que houve eleição no país em períodos não democráticos, como no colonial, no monárquico e no Regime Militar.

Nessa perspectiva, a cultura brasileira historicamente construída a partir de uma escravocracia, tal como define Teixeira (2010), mantém, portanto, um poder recalcitrante, como argumentam Frigotto e Ciavatta (2003). Nesse sentido, Chauí (2021, p. 4) evidencia que “[...] conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece”.

Em sua argumentação a autora destaca que as relações, entre os que julgam iguais, são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão.

Essa lógica tem se mantido historicamente nas mais diferentes épocas e reproduz-se nas instituições no país. Parece ter sido incrustada culturalmente, de forma quase absoluta, a ideia de poder hierárquico.

A democracia interna da instituição escolar, como assinala Cabral Neto (1997, p. 307), apresenta-se limitada e pode-se pensar/afirmar que certamente traz as marcas e as características da democracia na sociedade brasileira. As especificidades brasileiras traduzem-se na edificação de uma sociedade com pouca ou quase nenhuma tradição democrática. Nela, “[...] o conservadorismo está imbricado não apenas no aparelho de estado, mas atravessa, de ponta a ponta, toda a sociedade civil”.

Nessas circunstâncias, apesar de toda a luta engendrada para a horizontalização das relações no interior das unidades de ensino, não se venceu a forma histórica cultural de encarar o poder, havendo relações hierarquizadas nos moldes similares aos tempos do coronelismo e permanecendo vivos nas unidades de ensino as relações de troca e os conchavos.

Ao se ponderar sobre o poder, denominado por Frigotto e Ciavatta (2003) de recalcitrante, faz-se necessário relembrar dos estudos de Vygotski (1991). Este autor define que o desenvolvimento mental humano é um processo sociohistórico que se processa na mediação com o meio social em que se está inserido historicamente, com a transformação dos instrumentos de comportamento social em processos psicológicos particulares.

Ao se considerar o aprendizado como um processo mental que se constitui na interação com o outro, com o meio social, não se pode ignorar o componente cultural de uma sociedade, como argumenta Bourdieu (1998). Nesse entendimento cognoscente, sociohistórico, pode-se considerar que o poder no Brasil é histórico e cultural, o qual pode ser denominado como simbólico, como define Bourdieu (1988, p. 8) “[...] é um poder de construção de realidade que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do mundo e, em particular, do mundo social”.

Para Bourdieu (1998), o poder simbólico é aquele que se constitui cultural e historicamente. Constrói-se em processo interno, mas se constitui ideologicamente, é um modo de aprender ou do olhar sobre o mundo; ou de como se conhece o mundo no qual se está inserido, bem como define uma certa consciência, própria de uma dada sociedade e de suas relações entre humanos. Constitui-se de movimentos sutis entranhados em práticas invisíveis que vão formando as bases de permanência de um poder que não se mantém pela violência, mas pelas ideologias que coordena insidiosamente à sociedade.

De acordo com essa perspectiva, pode-se considerar que a eleição e a gestão democrática, ao se inserirem na escola, que se encontra em uma dada realidade, tempo e lugar, defrontam-se com esse tipo de poder simbólico que se produz socialmente no país. Pode-se asseverar que este se revela um dos entraves que contribuem para a dificuldade em construir práticas democráticas.

Contudo, os entrevistados, apesar de refletirem acerca dos problemas da eleição e da gestão democrática com algum pessimismo, também foram otimistas. Afinal, a própria conquista da eleição é significativa de uma força latente para se contrapor a esse poder histórico, como resistência. Não se pode deixar de reconhecer o sentido de liberdade e de poder que veio com o direito ao voto, de poder escolher o diretor de escola.

Na realidade eu acho que a eleição [...] foi importante, inclusive naquele momento de buscar liberdade, de buscar a participação, fortalecer o espaço da escola e do sindicato. Para mim o avanço positivo da gestão, da eleição de diretor, foi garantir a participação, a organização da escola, da categoria (E2, 2018).

[...]

Apesar de toda a complexidade a eleição é positiva porque instaura transformações em vários sentidos, nas relações [...]. Ela abre a possibilidade do exercício prático da participação (E6, 2019).

[...]

Eu não tenho dúvida que a eleição trouxe um ganho indiscutível. Eu me lembro que havia escolas em Natal que a diretora nomeada por um político ia pouco na escola, e era marido dela que ia trabalhar na escola com um tom ameaçador, e eu cheguei a estar lá e o cara estava dentro da escola, era quem mandava na escola, de bermuda, um cão na mão, puxando o cão, isso existia numa escola, na Zona Norte, [na década de 1980], havia coisas distorcidas (E4, 2018).

Os entrevistados reconhecem, também, avanços com a constituição dos mecanismos democráticos nas unidades de ensino da Rede Municipal de Ensino de Natal. Ainda, consideram os avanços e os classificam como importantes, ademais argumentam que há variações e conjunturas peculiares que se refletem nas unidades de ensino. Estas não denotariam uma só forma de constituição e prática do voto, de conselho escolar e de PPP, todavia, reflexionam que os avanços poderiam ter sido mais significativos.

O que significa avançar para mim? Significa a participação efetiva, você ter uma escola com conselho que funcione onde os pais estejam presentes, os estudantes estejam presentes, os professores estejam presentes; que se discuta não mais apenas a liberdade, mas aí tenha a liberdade. Não discuta a liberdade, mas tenha a liberdade de discutir currículo, de discutir as suas condições de trabalho, para além do salário (E2, 2018).

Repete-se aqui a crítica observada que é feita por outros entrevistados e já registrada ao longo deste artigo, acerca de o conteúdo das discussões na unidade de ensino ser aquém do desejado. O apelo frequente é o de que nas unidades de ensino municipais as práticas sejam comunitárias e democráticas.

De acordo com as reflexões realizadas pelos entrevistados, pode-se inferir que o voto livre, a constituição de representação em conselhos e a construção de propostas que envolvem a comunidade acerca do aprender e ensinar, ancorados nas diretrizes nacionais e locais, não geraram o espaço democrático na intensidade conforme era pensado no início desse processo.

O exposto, frequentemente, pelos entrevistados ressalta a importância da eleição para a constituição de um novo olhar sobre a gestão da unidade de ensino. Por essa razão, a permanência de algumas práticas retrógradas não invalidaria as conquistas alcançadas em toda a rede de ensino com o direito de se posicionar livremente.

A contribuiu foi no sentido de maior envolvimento da comunidade escolar, nós tivemos eleições diferenciadas, rompendo até o próprio regulamento do processo, o próprio decreto. [...] Nós tivemos processos bastante significativos, como os estudantes que se envolveram na política, se envolveram na academia [...]. Acho que foi uma conquista muito importante o PPP porque é o referencial teórico para o desenvolvimento de uma prática coletiva, mas lamento que nesse projeto [...] a gente tenha tido vários prejuízos, principalmente, quando se trata do coletivo. O enfraquecimento da visão coletiva é prejuízo porque qualquer que fosse a conjuntura nos remetia ao fortalecimento da prática em si, seja ela pedagógica, seja ela política. [...] No entanto, nós deixamos de estimular, de dar continuidade a essas discussões (E7, 2019).

Desse modo, apesar dos limites, a eleição trouxe aos integrantes da comunidade escolar a liberdade de se posicionarem, de defenderem suas posições e de poder ser criado um espaço de resistência a práticas retrogradas que, apesar de se manterem em alguns aspectos, são combatidas cotidianamente e vão colocando em xeque o “jeito brasileiro” de estruturar o poder.

É necessário demarcar que os mecanismos democráticos auxiliam no processo de se contrapor a essa organização de poder histórica, e que, mesmo não ocorrendo na intensidade idealizada, vai se materializando de maneira peculiar de modo a se curvar e ao mesmo tempo se contrapor ao poder recalcitrante.

Eleição para diretor escolar: sinais de esgotamento como mecanismo de gestão democrática?

A escolha do diretor escolar, na rede municipal de Natal, vem sendo implementada há bastante tempo, entretanto, nos últimos anos, vem se constatando, por parte dos profissionais envolvidos nessa dinâmica, alguns desencantamentos ou até mesmo o abalo da crença de que esse mecanismo viria, necessariamente, a reforçar a gestão democrática no âmbito da escola pública municipal.

Na eleição para diretores na Rede Municipal de Ensino de Natal/RN, realizada no ano de 2018, essa assertiva pode ser evidenciada nas informações fornecidas pelos entrevistados durante a pesquisa. Como afirma E3 (2018) os dados finais do processo eleitoral não foram tão animadores, “[...] parece que como já acontece há 31 anos, as pessoas se acomodaram, acham que já têm, que não precisam mais lutar. [Foi] algo que me saltou aos olhos nessa última eleição que ocorreu em 26 de novembro de 2018”.

Os pleitos realizados, nos últimos anos, para o preenchimento do cargo de diretores na rede apresentaram baixa incidência em relação à quantidade de chapas concorrentes. Na última eleição (2018) esse fenômeno foi evidenciado e pode ser exemplificado com o que nos informa o entrevistado E1. Ele assim se expressa:

[...] hoje, na rede municipal inclusive para nós foi uma surpresa porque metade das escolas teve, apenas, uma chapa inscrita e teve escola sem candidatos. Essa disputa já não mais se dá de forma tão intensa como naquele período inicial (E1, 2018).

Em Natal, há um total de 146 unidades de ensino, sendo 72 escolas e 74 CMEIs. Conforme os dados fornecidos pela Setor de Planejamento e Assessoria de Gestão Escolar (SPAGE), do Departamento de Gestão Escolar (DGE), da Secretaria Municipal de Educação de Natal/RN (SME) (2018), no universo de 146 unidades de ensino da Rede Municipal de Ensino de Natal, realizou-se pleito eleitoral em 136 unidades educacionais, das quais 70 eram Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) e 66 eram escolas. Segundo registros do Setor de Planejamento e Assessoria de Gestão Escolar-SPAGE, do Departamento de Gestão Escolar (DGE) e da Secretaria Municipal de Educação (SME), em 86% dessas unidades de ensino o processo eleitoral ocorreu com chapa única e em 6,5% não houve candidato. Ao se somar chapa única com ausência de candidatos, observa-se que, em 91,6% das unidades de ensino não teve disputa eleitoral.

Esses dados configuram a crescente fragilidade da disputa para o cargo de diretor. Se considerarmos os números que demarcaram a taxa de renovação da equipe gestora – em que o cargo está sendo disputado pela primeira vez por candidatos que não participaram da gestão anterior –, o percentual de renovação dos diretores, em 2018, foi somente de 21,16%, o que torna mais demarcada a não competição pelo cargo.

O entrevistado E3, expressa uma preocupação com esse movimento de esvaziamento da eleição direta para gestor escolar ao indagar: “Então, assim o que é que ocorre? As pessoas não querem mais se manifestar? Ou as pessoas já estão acomodadas, acham que estão com o direito garantido e/ou não querem mais lutar?” (E3, 2018).

Em suas reflexões os entrevistados deixam antever a existência, no âmbito da escola, de algumas práticas que vivem e outras que sobreviveram ao tempo e à força das transformações históricas. Nessa direção foram relembradas as práticas fisiológicas e políticas no interior da unidade de ensino: “[...] hoje, ainda existem algumas práticas dessa natureza, mas eu vejo que as comunidades não estão mais com tanto entusiasmo na história da gestão democrática, não” (E3, 2018). Para ele, o desagrado ou a resistência podem vir a ser uma das razões da possível desmotivação com a própria eleição para diretores.

Outro sujeito da pesquisa, ao refletir sobre a baixa disputa eleitoral nas unidades de ensino, também considerou a desmotivação. Contudo, pondera as razões e relativiza a motivação.

Eu não diria que não existe nenhuma motivação. Existe, tanto que nas escolas onde há disputas as pessoas estão motivadas. Mas eu acho, pelo menos a partir das queixas que ouvimos, a situação, dos alunos hoje, as relações intraescolares estão cada dia mais difíceis. Então, você tem vários fatores extraescolares que refletem no relacionamento intraescolar (E1, 2018).

Nesse sentido, de acordo com essa referência, pode-se supor que as razões são relacionais e referem-se a motivações que dificultam a convivência no interior da escola, a qual refletiria, em parte, conflitos sociais e culturais da sociedade que repercutem diretamente no espaço educativo. Dentre eles, podem-se citar: a difícil relação família e escola, a desvalorização do magistério, a perda da figura do professor como referência, as diferenças culturais advindas de sujeitos oriundos de contextos distintos, a exigência de uma escola pensada para uma classe social que não é a que frequenta a escola pública; a violência no entorno da escola que penetra os muros escolares, seja dos alunos, seja externa a ela.

O Entrevistado 6 desenvolveu um olhar sobre os acontecimentos e considerou que a queda nas disputas eleitorais para o cargo de diretor de unidade de ensino no munícipio de Natal seria porque

[...] existe uma tendência ao esgotamento do modelo. Você elege o gestor e ele por não se sentir muito apoiado ele sofre um esgotamento em vários sentidos: pelos colegas de escola que em potencial seriam os novos candidatos que não se candidatam; a gratificação não compensa o esforço e, por outro lado, é uma exigência emocional muito grande para ser diretor de escola. Então, você põe em risco muitas coisas. Alguns diretores depois de eleitos põem em risco a própria relação com seu marido, com a família, com os filhos. Eu acho que há muitas coisas aí, inclusive a vida, esse bem-estar pessoal, geralmente não é considerado (E6, 2019).

Essa reflexão de E6 inclui indicadores que podem ter motivado a baixa disputa na campanha eleitoral de 2018: a possibilidade de ser resultado da satisfação da escola com o trabalho do diretor; o esgotamento do modelo; a visível luta diária do gestor, que considera que a gratificação não abona as dificuldades; a lembrança do desgaste emocional de quem exerce a função e de como a pessoa se vê só, muitas vezes pondo em risco a sua vida pessoal.

Entre as demandas materiais, simbólicas, culturais e emocionais oriundas da função do ser diretor, o entrevistado E6 salientou a complexidade do contexto pessoal, do entorno, problemas internos que envolvem o ser diretor e a influência sobre a provável perda na qualidade de vida para quem assume o cargo. Considerando essa reflexão, ser diretor atualmente requer muito de quem assume a função, por isso “[...] esse indicador de chapa única ou concorrência não é, necessariamente, um indicador de qualidade do processo. Eu acho que há muitas variáveis que levam às pessoas a se candidatarem ou a não se candidatarem” (E6, 2019).

A reflexão elaborada por E6 traz à lume elementos que elucidam como a realidade escolar é permeada por muitos aspectos que têm sido ignorados ou pouco debatidos nos embates acerca da função do diretor. Tem se tornado desgastante ser diretor, seja na ordem física, seja na emocional, pois essa função requer muito de quem a assume, tanto no aspecto humano quanto no gerencial. Desse modo, ressalta-se que o tarefismo ou ativismo tem se sobrepujado na lida cotidiana a todos os outros, sendo o que mais se evidencia nas falas dos entrevistados.

Inspirados nas reflexões de Bourdieu (1997), pode-se conjecturar que as relações no espaço escolar estariam permeadas por conflitos entre as culturas de cada sujeito que integra a instituição de ensino que vem de variados universos econômicos e culturais, apesar de ser na sua quase totalidade oriundo de trabalhadores ou das classes mais pobres, com baixo poder econômico.

Nesse cenário, constata-se que, no âmbito da unidade escolar, não se desenvolveu a horizontalidade nas relações, tampouco a consciência social, na compreensão de que os interesses do grupo ou a coletividade seriam o caminho “natural” da democracia na escola.

Ao contrário, sob o olhar de alguns dos entrevistados, a concretização da eleição no espaço escolar parece ter caminhado de forma diversa à esperada na constituição das relações internas. Conforme destaca E7,

[...] vem ocorrendo uma grande perda da noção de coletividade. No interior da escola acaba a discussão, se desconstrói o princípio da coletividade. Você passa a individualizar as coisas. E a coletividade expressa o inverso, o sentimento de responsabilidade conjunta (E7, 2019).

Nessa formulação, o entrevistado demonstra desencanto e uma certa decepção com os rumos e as relações que considera que tenham sido construídas no cotidiano com a gestão democrática. Desconstrói a perspectiva de eleição como processo democrático para aprimorar o olhar sob a coletividade e vislumbra algumas das concepções pertinentes ao período das lutas pela conquista da eleição direta para diretor de escola: a participação, a implicação e o comprometimento com a causa da educação popular. Sader alerta para o fato de que:

Quando uso a noção de sujeito coletivo é no sentido de uma coletividade onde se elabora uma identidade e se organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus interesses e expressar suas vontades constituindo-se nessas lutas (SADER, 2001, p. 55).

No caso da escola, a coletividade ou o senso de coletividade deveria conduzir ao comprometimento político dos profissionais e a comunidade escolar, e despertar “[...] o desejo e a vontade de querer das pessoas de se implicarem na gestão” (E6, 2019).

O sentimento de perda do sentido de coletividade foi também expresso por E7 nos seguintes termos:

Os professores estão muito afastados da discussão, os alunos e os pais muito distantes, isso gera, de alguma maneira, essa fissura porque se você não está em constante movimento é possível que isso acabe na rotina, no esvaziamento. E esse movimento dialético, quando ele não existe, ele tende logo a criar outros elementos que vão naturalmente se deteriorando. A gente vê a falta de dialogicidade na escola, do debate que deveria ter com todos os segmentos (E7, 2019).

Como argumenta esse entrevistado, para vencer o sentimento de falta de coletividade, é imperativo rediscutir a eleição e a gestão democrática. Há quase total ausência de debates acerca das suas práticas; é como se, ao se ter conquistado tais mecanismos, foram sendo esquecidas as razões que as importavam. Isso foi uma construção (ou desconstrução) histórica, devido à ausência de ações, do próprio sindicato, para que a referenciassem como importante para o diálogo, a liberdade, o direito, imprescindível para a coletividade.

Essa dinâmica de desconstrução das conquistas no âmbito da gestão coletiva está expressa nas reflexões de E7 quando menciona a ausência do debate político, que se constituiria na mola propulsora para as lutas dos sujeitos sociais. Demonstra-se o esvaziamento do diálogo nas unidades de ensino e da ausência de conteúdo político no debate escolar. Isso é o que mais tem contribuído para a gradual perda do significado do que representaria o voto e a gestão democrática. A tendência se encaminha para o esgotamento, pois “[...] sem o senso de coletividade, não há envolvimento, não há motivação para fazer um trabalho” (E7, 2019).

Os argumentos formulados pelo entrevistado E7 se contrapõem às expectativas geradas no início das eleições, quando se acreditava que as condições objetivas advindas com a conquista do voto impulsionariam, necessariamente, a melhoria das relações no interior da escola. Haveria comprometimento com a coisa pública e aumentaria o nível do debate acerca da qualidade da educação no interior da escola e na sociedade com a implicação política do sujeito.

No entanto, a realidade que remonta às primeiras décadas do século XXI não parece condizer com os anseios anteriores, quando foram implantadas a eleição e a gestão democrática, conforme se evidenciou nas análises de alguns entrevistados. Nelas, percebe-se a ênfase na falta de conteúdo nos embates escolares e no olhar sobre a escola.

Assim, a ideia da gestão pensada como espaço coletivo, horizontal, participativo e de conflitos para a construção de consensos, ou como democracia ativa (gestão democrática), não tem se materializado plenamente, pois está, progressivamente, se cristalizado na escola uma gestão de cariz gerencial.

O entrevistado E7 relatou como se deu o processo de propagação desse ideário educacional forjado no neoliberalismo e que se disseminou no interior das unidades de ensino.

Como eu costumo dizer, a gente tem o princípio da gestão democrática. E no município de Natal tem até uma norma, uma lei desde 2008 (Lei Complementar da Gestão Democrática n. 087/2008). Mas, o que está posto é um modelo gerencial em cima da gestão democrática. O diretor é escolhido através do voto, mas a forma de conduzir a escola é norteada por um modelo gerencial (E6, 2019).

De acordo com o E6, atualmente, o que se evidencia na escola é, predominantemente, o modelo gerencial sobrepondo-se à gestão democrática e, ainda, que não teriam sido construídos, ao longo do tempo, espaços para a gestão colegiada com características democráticas.

O modelo atual, voltado para aspectos práticos e técnicos financeiros dos recursos e o seu gerenciamento, torna a gestão escolar cada vez mais burocrática e menos voltada para os seus processos de ensino-aprendizagem e para a constituição de espaços democráticos, para discussões internas, tendo o PPP como referência.

Para o Entrevistado 1 “[...] as regras da burocracia são cada vez maiores e das exigências dos órgãos de controle porque todos mandam” (E 1, 2018. As limitações e o controle não se restringem somente ao uso dos recursos financeiros, mas se apresentam também na condução do trabalho pedagógico.

Nessa referência, fica explícito o modo como a escola hoje se sente constrangida ao obedecer a determinações dos entes externos ao contexto escolar. São obrigadas a participar de projetos que lhe tiram a autonomia de seguir com o que acredita ser importante do ponto de vista pedagógico.

Mandam os tribunais, manda o Ministério Público, manda a justiça, manda a Câmara de Vereadores. Você não tem mais autonomia da sua gestão. Você executa o que os outros decidem o tempo todo (E1, 2018).

Com esses apelos, a escola pode afastar-se de suas finalidades históricas, entre as quais se destacam o ensino, a aprendizagem e a socialização. Para atender determinadas demandas, às vezes não pertinentes ao momento da realidade escolar, os órgãos do Estado impedem avanços dos projetos pensados internamente pela comunidade escolar. Restringe-se a liberdade de escolha na condução do trabalho pedagógico de quem está em seu interior e prejudica-se o processo de ensino e aprendizado escolar com a alteração do tempo e da prática escolar.

Essa perda de autonomia seria mais um dos fatores que desmotivam a participação como candidato na eleição para diretor – “[...] tanto que nós vamos ter escolas em que a SME vai ter que designar a equipe gestora porque segundo a Lei n. 147, de 4 de fevereiro de 2015, quando não há candidatos, a escolha fica sob os cuidados ou responsabilidade do poder Executivo” (E1, 2018). Quando se observa a relutância do professor em se candidatar para o cargo de diretor, os conflitos escolares se destacam. Estes, como foi observado nesta pesquisa, são de diferentes ordens, pois é comum ver-se atualmente nas unidades de ensino “[...] muitos conflitos, também porque o gestor tem que ser uma liderança, ele é um administrador de conflitos e os conflitos se aguçam cada vez mais” (E1, 2018).

As situações de conflitos não são ocasionadas somente por forças externas à educação formal. Buscam estas cooptar a escola com suas demandas ou por causa de toda a burocracia a que ela está obrigada a observar: “[...] ela não está dada. Tanto que você vai ter escolas pontuadas que se rebelam contra a secretaria e essas escolas que se rebelam contra a secretaria pagam um preço muito alto” (E6, 2019). Essa reflexão traz à lume um aspecto a ser considerado: a não autonomia escolar ante a SME.

Esse posicionamento do entrevistado E6 expressa o entendimento das restrições que a unidade de ensino municipal enfrenta para exercer a liberdade e autonomia em relação ao órgão central municipal. Para ele, a unidade de ensino não é autônoma devido à obediência que deve ser seguida ao órgão central e às suas normas. Reforça que a unidade de ensino ainda é bastante tutelada nas decisões pela SME, o que subtrai as possibilidades de uma atuação mais autônoma da escola.

Nessa perspectiva, a escola não reivindica soberania, mas espaços para exercer níveis desejáveis de autonomia. Nessa demanda, permanece na agenda a defesa inconteste da eleição do gestor escolar entendida como mecanismo importante para a consolidação da gestão democrática.

Considerações Finais

Nessa conclusão importa reforçar que a eleição na unidade de ensino na rede municipal de Natal (RN), como componente da gestão democrática, se instaura no interior de uma conjuntura histórica de redemocratização do país, portanto, traz as marcas e as contradições próprias desse movimento. O poder recalcitrante, denominado por Frigotto e Ciavatta (2003), tem dado as cartas em uma nação que parece sempre lutar para não ser colônia.

Nesse contexto histórico de país, a eleição na unidade de ensino, condizente com o poder simbólico, conforme definido por Bourdieu (1998), é uma contradição por ser caminho e resistência em um processo histórico de mediação entre o real e a luta cotidiana para transformar o que tem sido produzido nas relações entre sujeitos históricos no país. Como construção histórica, a eleição e a gestão democrática estão embebidas pelos anseios e alheamentos que as caracterizam em cada época, em que o seu desenvolvimento obedece aos ditames da sua realidade.

Em face desse cenário, a eleição nas unidades de ensino da rede do município de Natal está sujeita à materialidade de cada época e localidade, retratando as mesmas condições históricas que a cercam econômica, social, política e culturalmente.

No movimento de edificação do espaço democrático observa-se uma permanente contradição na mediação entre o contexto local e a conjuntura. Nesse processo, os espaços de disputas nas unidades de ensino – onde se materializa, cotidianamente, a resistência ao poder historicamente constituído – deve ter como fulcro a defesa da eleição direta e da gestão democrática.

O tempo da vigência da eleição para diretor na Rede Municipal de Ensino de Natal, que parece ser longo, não é suficiente para construir uma outra cultura – há uma firmemente alicerçada em quinhentos anos de história –, que vai se desenvolvendo no processo, na história e no tempo, o qual não é linear nem sequencial, mas composto por idas, vindas, retornos e voltas, de permanências e mudanças.

As análises efetivadas neste artigo evidenciam um duplo movimento. De um lado, se observa um posicionamento, expresso nas falas dos entrevistados, que denota um certo pessimismo, ou até mesmo um desencanto, quanto a contribuição do processo eleitoral para o aperfeiçoamento da gestão democrática na unidade de ensino. Por outro lado, também se constata que a eleição é considerada, por grande parte dos entrevistados, como uma conquista histórica e deve se constituir em movimento de resistência ao poder simbólico; outra contradição, apesar de se constituir nele.

Com fulcro nessa assertiva pode-se conjecturar que a eleição para a escolha dos diretores na rede de ensino municipal de Natal, apesar dos limites, tem se revelado um mecanismo importante à experiência democrática no espaço educativo formal. As falhas ou as limitações notadas devem ser compreendidas como a elucidação de pontos a serem observados para a sua reconstrução.

Firma-se o entendimento de que a democratização do espaço escolar e das suas relações, como se configurava nos anseios das lutas dos educadores não aconteceu na amplitude almejada. A experiência histórica com a eleição como mecanismo da gestão democrática demonstrou a influência ideológica e cultural do jeito brasileiro de se relacionar com o poder político. Experiencia-se nas unidades de ensino uma democracia, em maior ou menor medida, com espaços de diálogos, de embates e de participações, mas também de manipulações, arrumadinhos e fisiologismos. Embora eivado por essas contradições, o processo de escolha de dirigentes escolares contribuiu para desenvolver, no cotidiano escolar, uma cultura democrática que foi sendo reforçada com a criação dos conselhos escolares e com a elaboração do Projeto Político-Pedagógico.

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Recebido: 22 de Setembro de 2021; Aceito: 13 de Outubro de 2021

Dra. Fabíola Fontenele Girardi

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

Técnica da Secretaria Municipal de Educação do município de Natal

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-6854-1888

E-mail: fabiola_fontenele@yahoo.com.br

Prof. Dr. Antônio Cabral Neto

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

Grupo de Pesquisa CNPq: Política e Gestão da Educação

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-7506-0807

E-mail: acabraln@yahoo.com.br

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