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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.62 Natal oct./dic 2021  Epub 18-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n62id26508 

Artigo

O idoso como sujeito social na educação: pelo direito de ter voz, vez e lugar

The elderly as a social individual in education: for the right to have a voice, a turn and a place

Lo anciano como sujeto social en la educación: por el derecho a tener voz, vez y lugar

Alessandro Augusto de Azevêdo1 
http://orcid.org/0000-0001-7828-7839

José Danilo da Silva Viana2 
http://orcid.org/0000-0002-5606-0198

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

2Centro Educacional Teresa de Lisieux (Brasil)


Resumo

O artigo discute o conjunto de significações do espaço escolar de sujeitos idosos que retomaram seus estudos, matriculando-se na EJA em uma escola pública em Natal, Rio Grande do Norte. Reconhece, com base em Scoralick-Lempke e Barbosa (2012), o fenômeno do prolongamento da etapa vital, resultante de processos de ampliação de direitos e avanço na qualidade de vida de parte significativa de pessoas no planeta, apresentando desafios no tocante às demandas educacionais. Entende, assim como Gonçalves (2015), que o envelhecimento é um processo multidimensional, multidirecional, gradual e irreversível. Do ponto de vista metodológico, o trabalho se estruturou no diálogo com histórias de vida, a partir de Glat (1989) e Josso (2007), analisando as significações dos sujeitos, nas quais o retorno à escola surge como um momento de reparação da negação ao direito à educação, quando infantes, e de acolhimento de suas necessidades de socialização e de partilha de experiências e aprendizados, de acordo com os seus próprios projetos de vida.

Palavras-chave: Idosos; Educação de Jovens e Adultos; Direito à Educação; Aprendizagem ao longo da vida

Abstract

The article discusses the set of meanings of the school space of elderly individuals who resumed their studies, enrolling in EJA (youth and adult education) in a public school in Natal, Rio Grande do Norte. It recognizes, based on Scoralick-Lempke and Barbosa (2012), the phenomenon of prolongation of the vital stage, resulting from processes of expansion of rights and improvements in the quality of life of a significant part of people on the planet, presenting challenges regarding educational demands. It understands, as does Gonçalves (2015), that aging is a multidimensional, multidirectional, gradual and irreversible process. From a methodological point of view, the work was structured in the dialogue with life stories, based on Glat (1989) and Josso (2007), analyzing the meanings from the individuals, in which the return to school emerges as a moment to repair the denial of the right to education, when they were infants, and to welcome their needs for socialization and sharing of experiences and learning, according to their own life projects.

Keywords: Elderly; Youth and Adult Education; Right to education; Lifelong learning

Resumen

El artículo discute el conjunto de significados del espacio escolar de los sujetos ancianos que retomaron sus estudios, inscribiéndose en la EJA (educación de jóvenes y adultos) en una escuela pública de Natal, Rio Grande do Norte. Reconoce, con base en Scoralick-Lempke y Barbosa (2012), el fenómeno de la prolongación de la etapa vital, resultante de procesos de expansión de derechos y avance en la calidad de vida de parte significativa de personas en el planeta, presentando desafíos en cuanto a las demandas educativas. Entiende, al igual que Gonçalves (2015), que el envejecimiento es un proceso multidimensional, multidireccional, gradual e irreversible. Desde el punto de vista metodológico, el trabajo se estructuró en el diálogo con historias de vida, a partir de Glat (1989) y Josso (2007), analizando los significados de los sujetos, en los que el retorno a la escuela emerge como un momento de reparación de la negación del derecho a la educación, cuando eran infantes, y de acogida de sus necesidades de socialización y de compartir experiencias y aprendizajes, según sus propios proyectos de vida.

Palabras clave: Anciano; Educación de jóvenes y adultos; Derecho a la educación; El aprendizaje permanente

Introdução

Uma das características da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) é a diversidade dos seus sujeitos. Refletir sobre esse fenômeno faz emergir o desafio de considerar as experiências prévias de vida, os interesses, fatores motivacionais e mobilizadores ao processo cognitivo, os estilos propriamente individuais, o ritmo e a velocidade de aprendizagem de cada um, as referências culturais, as condições de gênero e outros aspectos da identidade de cada pessoa.

Nessa perspectiva, ao universo das singularidades do público da EJA, são acrescidas aquelas relacionadas à faixa etária, dado que as vivências próprias em um determinado período ou ciclo de vida, incidem na constituição de cada um como ser, na conformação de seus interesses, identidades, motivações e mobilizações para as aprendizagens.

A referência, aqui, à faixa etária, período ou ciclo de vida, não se apega a uma perspectiva biologicista, mas, considera na constituição do desenvolvimento tipicamente humano sua condição de unidade biosociopsicológica em interação constante e complexa com circunstâncias histórico-culturais, produzindo peculiaridades históricas e experiências apropriadas e “trabalhadas” por cada sujeito, conformando sua identidade, sua forma própria de aprender e relacionar-se com os saberes.

Dialogamos com Oliveira (2004) que a maturação biológica, sendo essencial para o processo de desenvolvimento, não representa sua totalidade dado que não é na biologia dos indivíduos que encontramos o campo das transformações mais relevantes à constituição do desenvolvimento tipicamente humano, mas no tecido psicológico do sujeito, mais imbricado com as circunstâncias histórico-culturais e peculiaridades da história e das experiências de cada sujeito.

Contemporaneamente, o prolongamento da etapa vital dos indivíduos, em uma parte significativa do planeta, resultante de políticas de ampliação de direitos com implicações na melhoria dos padrões de qualidade de vida, tem colocado como desafio ao sistema educacional o atendimento da população idosa. De modo que sua presença na EJA traz mais elementos à discussão sobre a diversidade da modalidade e também sobre o atendimento das necessidades desses sujeitos no contexto de um “[...] comprometimento com as questões sociais e com a dignidade humana” (MARQUES; PACHANE, 2010, p. 477).

Assumir esse comprometimento torna-se premente face a presença de representações acerca das pessoas idosas como incapazes de produzirem bens e serviços – fator de marginalização desse público dada a valorização social da capacidade produtiva individual – operando um duplo movimento – de desvalorização e invisibilidade dos sujeitos idosos. Daí, revela-se quão importante é a luta no sentido da superação das concepções que associam o envelhecimento às imagens-noções de declínio, doença e incapacidade, alvos da crítica de Beauvoir (1990, p. 315), para quem “[...] a sociedade formula a velhice com uma série de clichês e, quando descreve o idoso, o faz de uma forma exterior, de modo que o idoso é descrito pelo outro e não por si mesmo. Há, assim, uma espécie de etnocentrismo liderado pelos jovens em desfavor dos mais velhos”.

O movimento social de ressignificação da condição do envelhecimento se reflete no surgimento de demandas específicas relativas à população idosa, impondo, ante sua invisibilidade moderna, a visibilidade contemporânea do direito de viver e usufruir da saúde, do lazer, da educação, até o fim de suas vidas.

O Direito dos Idosos surge como uma alternativa para compensar ou, pelo menos, minimizar os danos causados por uma organização socioeconômica que não valoriza o que nós somos, mas aquilo que nós produzimos. E se não produzimos, não somos nada, praticamente não participamos da vida social (ALONSO, 2005).

Entre os sujeitos idosos das classes populares as vivências de invisibilidade e não valorização são mais um componente de trajetórias atravessadas por negações de direitos, dentre os quais o direito à educação escolar ainda quando infantes. Contudo, ao se matricularem na EJA, põem em movimento a reposição desse direito, tanto como afirmação pública do “tornar-se visível”, como deslocando a visão socialmente construída e consolidada da escola como espaço exclusivo de aprendizagens para crianças/adolescentes e voltada à formação de competências e qualificações úteis ao trabalho ou ao percurso linear de uma trajetória escolar.

Este artigo, recorte de uma dissertação de mestrado, objetiva trazer o diálogo com as histórias de vida de sujeitos idosos matriculados na EJA de uma escola pública de Natal-RN, a partir dos significados que imprimem à retomada dos estudos, enquanto momento de importância capital para o sentimento de recuperação de uma dignidade perdida em algum lugar do passado (quando excluídos do direito à escola) e de afirmação do seu lugar como cidadão pela (re)apropriação da escola como espaço de socialização, aprendizado e compartilhamento de experiências.

Envelhecimento, velhice e pessoas idosas

O fenômeno do envelhecimento nas sociedades modernas apresenta-se como combinação do aumento da longevidade com a queda nas taxas de mortalidade e fecundidade, gerando o que se designa de “duplo envelhecimento”, pondo à discussão pública inúmeros desafios sociais, dada a ampliação da presença de idosos nos diversos espaços e processos sociais (como o mercado de trabalho, a utilização das novas tecnologias, no acesso a direitos, bens simbólicos e materiais).

Scoralick-Lempke e Barbosa (2012) indicam que há um aumento mundial e acelerado de indivíduos com idade igual ou superior a 60 anos, principalmente nos países em desenvolvimento, superando o aumento da população total. No Brasil, o aumento da expectativa de vida – chegando a 76,3 anos, segundo dados de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS, 2019) – acompanha essa tendência com a ampliação social da presença de idosos, protagonizando a garantia de direitos já existentes e demandando novos direitos.

Esse crescente dos idosos em nossa sociedade gera novas demandas em muitas áreas. No registro de matrículas no âmbito do ensino superior, por exemplo, houve aumento de 46,3% de idosos entre 2013 e 2017, segundo o Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), conforme informa Avancini (2019).

A ampliação da presença do idoso em espaços econômicos e educativos traz o enfrentamento de novas questões: estamos criando espaços para a inserção e inclusão deste público? As políticas públicas acompanham o aumento da expectativa de vida? O setor econômico está apto a lidar com cidadãos e cidadãs ativos por mais tempo? As instituições educativas estão preparadas para atender as especificidades desse público? A partir de que lentes seria possível compreendermos as especificidades desses sujeitos articulando-as às questões de suas respectivas inserções no âmbito dos processos formativos escolares?

O diálogo com essas questões, segundo Gonçalves (2015), implica entender o envelhecimento como um processo multidimensional, multidirecional, gradual e irreversível, que está para além da soma do tempo que passa e define a idade de alguém:

É um fenômeno complexo, que engloba simultaneamente aspectos fisiológicos, psicológicos e sociais. É geralmente considerado que o envelhecimento ocorre ao longo do ciclo de vida e que a velhice corresponde ao estágio final da vida. Encarar o envelhecimento como um continuum significa que envelhecemos a cada dia, a cada hora, sem que tal signifique que somos velhos! (GONÇALVES, 2015, p. 647-648).

A velhice, pois, é um estado do ser, produto ou resultado do envelhecer, do fim do ciclo da vida, cujas condições de saúde e bem-estar determinam uma vivência mais prolongada e mais saudável. Contudo, a visão conformada socialmente sobre a população idosa e o tipo de relação que se estabelece com ela definem se essas condições se tornam mais ou menos favoráveis a uma velhice digna, ciosa das suas necessidades e seus direitos.

Ainda com Gonçalves (2015), consideramos que qualquer visão homogeneizadora sobre esse público é traiçoeira, já que o envelhecimento é um processo dependente de fatores (de natureza endógena e exógena) que estabelecem relações dinâmicas com as várias dimensões (física, psíquica e social) que compõem a travessia dos sujeitos no mundo. Dimensões que se articulam aos estilos de vida, ao gênero, à profissão, ao rendimento econômico e à acessibilidade a serviços de saúde, delimitadores das formas específicas como cada indivíduo (corpo e mente) sente e experiencia a passagem temporal.

Essa heterogeneidade e complexidade são enfatizadas por autores (SIMÕES, 1990; OSÓRIO, 2007) para quem é possível a superposição de características distintas de estereótipos associados a ciclos distintos da vida (fisicamente “velho”, psicologicamente de “meia-idade” e socialmente “jovem”), evidenciando a possível diacronia entre os fatores biológicos e aspectos relacionados a atitudes e comportamentos.

A (in)visibilidade das pessoas idosas nos contextos da educação escolar

A compreensão de que o envelhecimento não começa em uma determinada idade, mas que é um processo permanente, atravessando intrinsecamente as biografias individuais das pessoas, coloca a importância dos processos educativos, dado que costumes, habilidades, atitudes e saberes adquiridos durante a infância e juventude reverberam na conformação do processo de envelhecimento. Assim, segundo Doll (2014), esse cenário aponta à necessidade de integração do tema do envelhecimento com os processos formativos no âmbito escolar e profissional.

Do ponto de vista da garantia do direito à educação, os idosos contam, no Brasil, com os termos da Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994, que dispõe sobre a Política Nacional do Idoso (PNI), voltada à garantia dos princípios basilares do direito do cidadão, assegurando à pessoa idosa as condições básicas de integração e cuidado social, colocando estes eixos como dever do Estado e das famílias.

Em seu escopo, a PNI abrange suas finalidades, princípios e diretrizes; a organização e gestão da política; e as ações governamentais que a materializem, entre elas, a implementação de políticas na área da educação, saúde e lazer.

Dentre as ações referentes à garantia de educação aos idosos, a PNI aponta três que merecem destaque: (a) a adequação de currículos, metodologias e material didático aos programas educacionais destinados ao idoso; (b) a inserção, nos currículos mínimos, nos diversos níveis do ensino formal, de conteúdos voltados ao processo de envelhecimento, de forma a eliminar preconceitos e produzir conhecimentos sobre o assunto; e (c) a inclusão da Gerontologia e a Geriatria como disciplinas curriculares nos cursos superiores. Questões que remetem às características específicas que a pessoa idosa possui e à importância de se assegurar o seu reconhecimento quando se trata das políticas educacionais e dos projetos pedagógicos das instituições que lidam com esse público.

Outro instrumento legal central é o Estatuto do Idoso, formalizado como Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, que categoriza como “pessoa idosa” homens e mulheres com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em cujo capítulo V encontram-se dispositivos de reconhecimento do idoso como sujeito do direito à educação, cultura, esporte, lazer, produtos e serviços, colocando essas dimensões em acordo com o respeito à peculiar condição dessa população.

Para efeito dos objetivos de nossa discussão, destacamos os artigos 21 e 22 que buscam avançar na especificação das responsabilidades do Poder Público:

Art. 21. O Poder Público criará oportunidades de acesso do idoso à educação, adequando currículos, metodologias e material didático aos programas educacionais a ele destinados.

§ 1º Os cursos especiais para idosos incluirão conteúdo relativo às técnicas de comunicação, computação e demais avanços tecnológicos, para sua integração à vida moderna.

§ 2º Os idosos participarão das comemorações de caráter cívico ou cultural, para transmissão de conhecimentos e vivências às demais gerações, no sentido da preservação da memória e da identidade culturais.

Art. 22. Nos currículos mínimos dos diversos níveis de ensino formal serão inseridos conteúdos voltados ao processo de envelhecimento, ao respeito e à valorização do idoso, de forma a eliminar o preconceito e a produzir conhecimentos sobre a matéria (BRASIL, 2003).

A despeito da atenção recebida pelo público idoso nesses instrumentos legais, há um silêncio na legislação educacional. Nela não encontramos quaisquer orientações, diretrizes ou menções às especificidades desse público, reproduzindo, nesse campo, sua invisibilidade como sujeitos.

Isso é constatável numa leitura da Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996), que absorveu parte das questões trazidas pelos segmentos sociais em torno da reconfiguração e inserção da educação de pessoas jovens e adultas no corpo das políticas públicas voltadas à educação básica.

Como desdobramento, a EJA foi reconhecida como modalidade da educação básica, superando, pelo menos no plano formal da lei, concepções que percebiam esse campo como espaço de programas pontuais, ações de caráter compensatório e/ou restrito ao âmbito da alfabetização. Com efeito, a ideia de modalidade como um campo dotado de característica própria, implica concebê-la como espaço educativo substanciado em um modelo pedagógico próprio, dado que se relaciona com sujeitos cujas necessidades de aprendizagem se colocam em razão de suas especificidades socioculturais, inclusive o ciclo de vida que estão vivenciando.

Porém, no que tange às especificidades do sujeito idoso, é perceptível sua invisibilidade nos dispositivos legais atinentes à educação. Não sendo explicitados, esses sujeitos e suas especificidades ficam subsumidos numa categoria completamente ampla e diversa que é a de “adulto”, tal como se constata numa nota de rodapé do Parecer CEB/CNE/MEC nº 11, de 20 de maio de 2000 (que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos), onde se lê que o adulto é o ente humano já inteiramente crescido e que o estado de adultícia inclui o idoso (BRASIL, 2000, p. 8).

Essa invisibilidade reflete o fenômeno social tratado por Júlia (2012), para quem se o “outro” não me vê deve-se a que “eu” não existo para ele, ainda que minha existência física seja um dado, portanto eu seja “visível”. Assim, a não-percepção do outro quanto à minha existência é o resultado da sua vida da qual eu não faço parte, não a integro como existência, de modo que, a compreensão do significado do comportamento social do “não ver outrem” passa pela necessidade fundamental de se perceber as sedimentações da história individual e da história comum dos atores sociais.

Tomando de empréstimo as reflexões de Assy (2015), em torno da epistemologia do reconhecimento, proposta por Honneth (2003), temos que o processo de visibilidade ultrapassa o ato cognitivo de identificação individual, mas pressupõe conferir existência no sentido social, isto é, reconhecimento dos sujeitos como dotados de validade social pelo valor positivo que sua existência e visibilidade pública têm, dando-lhe confirmação social. Nesse sentido, a não presença nominal da população idosa, no contexto dos documentos oficiais em educação, acaba por evidenciar o seu não reconhecimento social, como sujeitos pedagógicos.

Porém, se consideramos os idosos como sujeitos de potencialidades, dotados de experiências pedagogicamente válidas, adquiridas ao longo de suas histórias de vida, impõe-se que a ambiência educativa os enxergue menos a partir de uma lógica (supostamente fundada na ciência biológica) que diminui suas capacidades pelo avançar etário e mais como seres plenamente aprendentes que demandam estímulos, atenção e práticas educativas específicas.

É sabido que o ser humano passa por estágios de desenvolvimento nos quais, com o passar dos anos, novas habilidades e conhecimentos se maturam e fazem com que o ser humano se constitua enquanto sujeito racional, com várias competências físicas, emocionais e afetivas (PIAGET, 1973). Porém, em se tratando do idoso, embora tais estágios de desenvolvimento cognitivo já estejam concretizados, ainda assim, o processo de desenvolvimento e de aprendizado se mantém ativo e incorpora, ao longo da vida, (novas) estratégias diversas, de acordo com as (novas) necessidades que os próprios sujeitos acolhem.

Barros-Oliveira (2006) aponta que, ao contrário do que se dissemina como pensamento comum, diversas investigações demonstram que a maior parte dos idosos mantém a sua capacidade cognitiva (atenção, inteligência, memória, aprendizagem) razoavelmente funcional e apta para desempenhar as tarefas diárias, enfrentando uma deterioração significativa, apenas após os 70 anos. De modo que, embora se assista a uma progressiva redução de rendimento intelectual com o avançar da idade, particularmente nos muito velhos, é possível afirmar-se que não há um declínio generalizado, mas antes certa estabilidade entre os idosos, podendo haver até mesmo crescimento, com a idade, de aspectos específicos como a sabedoria.

O encontro com a modalidade EJA revela-se, nesse sentido, para aqueles que a procuram, oportunidade de exploração das possibilidades desencadeadas pelo aceite em retomar as vivências de aprendizagem no formato escolar, mesmo num momento da vida em que suas capacidades cognitivas são consideradas “menores”.

Assim, é preciso pensar o idoso como um sujeito que continua aprendendo e que pode estabelecer uma relação com a educação ao longo de sua vida em função de suas necessidades e caminhos escolhidos para trilhar. E nesse pensar, o recurso às histórias de vida dos próprios sujeitos se apresenta como fundamental na medida em que recupera o protagonismo destes como ponto de partida do processo pedagógico, trazendo suas particularidades, mas, também, suas práticas sociais, ou seja, as formas de inserção e atuação no mundo e nos grupos sociais dos quais eles participam.

A história de vida como estratégia de emersão da voz das pessoas idosas

O presente trabalho é o diálogo com um conjunto de dados contidos em dissertação de mestrado, cuja pesquisa se vincula a uma abordagem qualitativa, tendo como base metodológica as técnicas associadas à perspectiva das narrativas autobiográficas e histórias de vida que procuram apreender os elementos gerais contidos nas entrevistas das pessoas, não objetivando a análise de suas particularidades históricas ou psicodinâmicas, e sim destacando a interseção dessas particularidades como práticas sociais, isto é, formas de inserção e atuação desses sujeitos no mundo e nos grupos sociais dos quais eles participam (SPINDOLA; SANTOS, 2003).

As histórias de vida apresentam os sujeitos em sua integralidade, considerando os momentos vividos por eles, sendo assim, “[...] necessariamente histórico (a temporalidade contida no relato individual remete ao tempo histórico), dinâmico (apreende as estruturas de relações sociais e os processos de mudança) e dialético (teoria e prática são constantemente colocadas em confronto durante a investigação)” (BRIOSCHI; TRIGO, 1987, p. 46).

A imersão nas histórias de vida dos sujeitos possibilita um estudo de suas experiências no contexto de suas trajetórias históricas e da dinâmica das relações que estabelecem, reconhecendo, a relevância que têm como fator determinante na construção social de cada pessoa. Ou seja, a pesquisa:

[...] a partir da narração das histórias de vida, possibilita[-se] a efetiva reflexão a partir desta narrativa (pensando, sensibilizando-se, imaginando, emocionando-se, apreciando, amando) e permite[-se] estabelecer a medida das mutações sociais e culturais nas vidas singulares e relacioná-las com a evolução dos contextos de vida profissional e social (JOSSO, 2007, p. 414).

Isso porque as memórias pessoais, quando organizadas em depoimentos autobiográficos, se constituem em valiosas fontes de compreensão da constituição histórica de cada pessoa, na medida em que, ao apresentar uma narrativa autobiográfica, os sujeitos organizam a apresentação dos seus respectivos passados enquanto operam a narração. Recriam experiências passadas com o olhar do presente (BRUNER, 1997; SOARES, 1990; BOSI, 1994), em um processo que é de construção, simultaneamente individual, social e coletiva (HALBWACHS, 1990) de suas próprias referências e significações acerca do mundo e de si mesmos.

Dessa forma, segundo Glat (1989, p. 53), no relato de vida, o que interessa ao pesquisador “é o ponto de vista do sujeito. O objetivo desse tipo de estudo é justamente apreender e compreender a vida conforme ela é relatada e interpretada pelo próprio ator”.

Com efeito, nessa investigação, foram realizados diálogos com as únicas 4 pessoas com mais de 60 anos, matriculadas na modalidade EJA, quando da nossa aproximação com a Escola Municipal Professor Zuza, em Natal, Rio Grande do Norte, ao longo do ano de 2019. A fim de proteger suas identidades reais, seus nomes foram substituídos por nomes fictícios.

Nossos encontros com as pessoas foram mediados, inicialmente, pela coordenação pedagógica da escola, após o que se acordou um cronograma de entrevistas, respeitando, sobretudo, a disponibilidade de tempo delas.

As narrativas foram expostas pelos sujeitos dentro dos princípios da entrevista biográfica (GLAT, 1989), como um processo de interação pela livre adesão dos sujeitos, cujos semblantes, inicialmente tímidos e desconfiados, logo foram substituídos pela leveza, pela sensibilidade e confiança, proporcionando relatos longos, mas cheios de sentidos e, principalmente, de emoções.

Na estrutura das entrevistas, buscamos dialogar em torno de suas trajetórias humanas e sociais, anteriormente aos dias atuais e, dentro delas, suas trajetórias de relacionamento com a instituição escolar. Outro eixo se relacionava com o significado do retorno à instituição escolar após a velhice, especialmente os sentidos e as expectativas que as mobilizavam.

O processo de análise das histórias de vida comportou a identificação de suas distintas imersões nos espaços e experiências sociais, ao longo de suas trajetórias humanas, e como processaram essas vivências enquanto dimensões formativas, isto é, como campo de aprendizagens acerca do mundo e de si mesmos e o papel dessas vivências na significação atribuída ao retorno à escola.

Por meio das narrativas das histórias de vida dessas pessoas, procuramos compreender as muitas histórias não contadas de sujeitos que experienciaram uma situação de negação a um direito básico – a educação escolar –, impulsionada pela imersão em contextos de marginalizações sociais e econômicas, compreendendo os vários elementos que marcaram as trajetórias de vida desses sujeitos.

Com isso, a pesquisa optou por tomar posição no embate entre a memória e o esquecimento, colocando-se na defesa de fazer ecoar o passado não escrito, mas vivido como negação de direitos, fazendo-o emergir do silêncio onde estava confinado, agora como mobilizador das ações que implicam no matricular-se na escola como assunção de “sua vez”.

(Des)encontros com a escola: o teimoso desejo de “ser gente”

Trabalhar com as histórias de vidas nos fez compreender as identidades, crenças, dificuldades, sonhos e objetivos que constituem os sujeitos idosos que frequentam a EJA. E ao fazermos isso, nos foi possível partilhar os fatores que trouxeram e/ou levaram essas pessoas a retomarem os estudos e como esses processos atuaram na ressignificação de si mesmas e da própria escola, no contexto de suas trajetórias.

Antes, porém, nos cabe apresentar, mesmo que de uma forma ainda muito superficial, aquelas pessoas com quem partilhamos os diálogos.

Maria, 61 anos, casada, 2 filhos, 3 netos, vivia numa casa de taipa e trabalhava na roça. Sofria por ter que pegar água longe de onde morava. A família era grande (sua mãe teve 23 filhos e cuidou de 12), se sustentava financeiramente da venda da mandioca que plantavam e dos animais que criavam. Seu sonho era ser professora de índios. Com 11 anos foi enviada para trabalhar em Natal e com 15 anos já estava casada e morando na casa dos familiares do esposo, com quem teve dois filhos. Mas, deixa claro, teve que cuidar deles sozinha. Hoje, trabalha como assistente de serviços gerais em um escritório.

Fátima, 60 anos, casada, tem 1 filho e 2 netas. Quando criança estudou menos de um ano. Não dispunha de caderno para suas tarefas escolares e quando informava ao pai ele respondia que cabia à professora fornecer o material, ao mesmo tempo em que dizia que ela era “desocupada”. Por isso, ele a proibia de ir à escola. Segundo ela, na família, apenas uma de suas irmãs “terminou de estudar” e as demais “sabem ler alguma coisa”. Trabalha com lavagem de roupas, em sua casa, com a ajuda do filho, e ainda tem que cuidar do marido que é alcóolatra.

José, 73 anos, viúvo, 3 filhos, 6 netos e 1 bisneto, conta que na comunidade onde nasceu havia uma escola, mas o pai o proibia de frequentá-la porque além de “ser coisa pra desocupado”, era preciso capinar o mato e plantar para a família ter o que comer. O trabalho, desde criança, não rendia dinheiro algum. Trabalhava para não morrer de fome, “puxando e laçando boi” ou “capinando mato”. Até entrar na EJA, calcula que, quando muito, esteve em uma escola durante 5 meses. Até se firmar em Natal, viajou e morou por vários lugares (Recife, Rio de Janeiro, São Paulo), trabalhando em serviços de limpeza e segurança.

Pedro, 62 anos, casado, 4 filhos e 6 netos, nasceu em Monte Alegre e, muito pobre, foi impedido pelo pai de ir à escola, para que o acompanhasse na lida no roçado, enquanto suas irmãs ajudavam sua mãe no trabalho doméstico. O tempo dedicado à própria sobrevivência sempre foi um impedimento para estudar. Hoje, vive “fazendo uns bico”, trabalhando com frete na feira da cidade ou, sazonalmente, cortando cana no município de Goianinha.

As duras condições sociais de vida atravessam as narrativas dos sujeitos, impondo a cada um deles, desde muito cedo, o enfrentamento da responsabilidade com o trabalho e o cuidado da própria família. Foram crianças com afazeres próprios de adultos e em suas trajetórias as condições e relações embrutecidas com o mundo conformam o primeiro (des)encontro com a instituição escolar e as esperanças socialmente criadas em torno dela.

Daí que, na análise dos relatos dos sujeitos, a expressão “encontro” abriga o seu contrário, à medida que evidencia a contradição de, enquanto viventes, terem sido apresentados à materialidade dessa instância formadora de gente que é a escola, enquanto existência formalmente à sua disposição. Porém, enredados em condições e relações embrutecidas pelas desigualdades sociais, o encontro com a escola e suas vantagens intrínsecas não compôs o horizonte de possibilidades, nem na infância, nem quando jovens ou adultos. Por isso, o seu “desencontro” com essa realidade chamada escola.

Assim, retornando aos estudos, esses sujeitos não trazem consigo apenas lacunas ou trajetórias escolares picotadas e episódicas, mas as diversas ausências, estigmas e vulnerabilidades a que a sociedade os condenou ao lhes oferecer apenas desemprego e falta de horizontes, o convívio com a violência e relações embrutecidas e embrutecedoras.

Nesse regresso, essas pessoas trazem visível, também, o desejo de superar a condição gerada pelo entrelaçamento perverso das exclusões sociais e carências escolares, demandando a escola como espaço a ser apropriado em acordo aos seus projetos, desejos e expectativas, colocando-a diante da obrigação de realizar a função reparadora da EJA, prevista nas Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2000).

Estar na EJA não se associa à estrita continuidade de um percurso escolar, mas a abrir portas para redescobrir, em si, as possibilidades de resolver necessidades prementes ou sonhos esquecidos, que se apresentam no cotidiano, como nos fala Fátima (2019): “Eu fui pra igreja e não sei ler a Bíblia direito. Enquanto o povo tava lá na frente eu ainda estava tentando ler a primeira palavra. E também, eu ia para os canto e não sabia ler as coisa. Agora na EJA eu começo a aprender”.

A decisão dos sujeitos em retornar à escola não necessariamente para cumprir uma trajetória de escolarização, mas de ampliação das suas possibilidades de imersão no mundo, apenas confirma perspectivas como as de Freire (1987), de que a educação se sustenta na premissa e no fato do inacabamento dos humanos e que, portanto, os processos educativos adquirem, para eles, um caráter contínuo, tendo seu fim apenas com a morte, porque têm consciência do próprio inacabamento.

Isto significa ser o ser humano, enquanto histórico, um ser finito, limitado, inconcluso, mas consciente da sua inconclusão. Por isso, um ser ininterruptamente em busca, naturalmente em processo. Um ser que, tendo por vocação a humanização, se confronta, no entanto, com o incessante desafio da desumanização, como distorção daquela vocação (FREIRE, 1997, p. 18).

Falas como a de Fátima (2019) apontam para que se pense experiências formativas a esse público desde uma visão de que “[...] a velhice não é uma cisão em relação à vida precedente, mas é, na verdade, uma continuação da adolescência, da juventude, da maturidade que podem ter sido vividas de diversas maneiras” (SANTOS, 2010, p. 1036).

Sintomático dessa perspectiva que enlaça o tempo presente e o tempo passado como um continuum, nas narrativas dos sujeitos o momento de retornar à escola não representa exclusivamente uma ruptura ou uma “novidade”, mas uma escolha, um “acerto de contas” com o passado, propiciado pela nova condição posta pelo envelhecimento e pela oportunidade de se ter a oferta da modalidade numa escola próxima.

Isso aparece na fala de Maria (2019): “Eu venho porque eu gosto muito de ler. Escrever eu não sei, mas ler é comigo mesmo. Eu vim pra ver se eu melhoro na leitura. E, além disso, é como se eu tivesse uma dívida comigo, sabe? Fazer o que eu não fiz antes, pelas coisas que a gente passou”.

E, também, em Pedro (2019), quando explica o porquê de ter retomado os estudos: “Porque deu vontade de estudar. Não fazia nada em casa, aí vim pra cá. Meus filhos estão tudo criados, aí vim agora aprender a pelo menos escrever meu nome. Já que eu fiz o que eu pude por eles antes, agora chegou minha vez de saber mais”.

O passado vivido atravessa as narrativas de todos as pessoas entrevistadas preenchido por exclusões e dificuldades próprias de quem, desde o nascer, foi vítima das desigualdades sociais. E embora as exclusões e dificuldades não tenham se alterado substancialmente – continuam vivendo em ocupações mal remuneradas ou precarizadas – suas relações com a escola e com necessidades básicas de aprendizagem, como leitura e escrita, se colocam em um plano tão ou mais importante, nos dias atuais, como à época da infância, quando são recorrentes as referências às situações de trabalho precário, inexistência da escola e, quando de sua existência, os impedimentos oriundos do próprio seio familiar, pela imposição, pelos pais, das necessidades de sobrevivência imediata da família em prejuízo de uma trajetória escolar.

Enquanto retornam, múltiplos são os significados que atribuem a esse momento. Para Maria, se justifica pelo desejo de superar uma condição anterior em que não ser escolarizada e sua cor de pele se fundiam em um mesmo estigma vivido cotidianamente e que a desgentificava.

A vontade de aprender... de ler corretamente... De ser gente... Sabe o que é você ser desprezada pela sogra por ter a cor que eu tenho e sem saber nem escrever o nome? Eu sofri muito e tando aqui eu me sinto feliz, vejo que posso conseguir aprender mais (MARIA, 2019).

A percepção de que as experiências escolares propiciam um “sentir-se gente” também aparece na fala de Pedro(2019) que, além das referências à “distração” e o “bate papo” com seus colegas de escola, aponta entre as razões do retorno aos estudos, a atitude “cuidadosa” dos professores – “É como se a gente tivesse importância, todo mundo cuida da gente, pergunta se está bem, como foi o dia” – que revela muito das relações de invisibilidade, exclusão e descuido vivenciadas em outros espaços sociais.

Considerações finais

Pensar a aprendizagem do idoso implica relacionar seu aprender às suas experiências formativas, de acordo com suas vontades, vivências e perspectivas. Isto é, visualizar a educação como um processo ligado à vida, ao bem viver das pessoas, à cidadania como imersão crítica e ativa no mundo; dimensões, portanto, da existência e que demandam que a ação educativa ultrapasse a aquisição de qualificações e habilidades para o trabalho ou competências para se obter uma certificação escolar.

As falas dos nossos dialogantes apontam para dimensões do existir que não se aprisionam ao formato escolar, às suas expectativas de fluxo, tempos e modelos de expectativas que os currículos oficiais estabelecem para aqueles que buscam a modalidade EJA.

O acolhimento pedagógico dessas múltiplas dimensões (considerando, inclusive, as especificidades das faixas etárias e ciclos de vida) e de como cada sujeito as trata ou as experiencia em sua realidade concreta, precisa ser objeto da ação educativa, por serem essas vivências que os formam como sujeitos sociais. Assim procedendo, é possível se enveredar por caminhos de superação de uma perspectiva pedagógica que une uma visão abstrata dos sujeitos, uma visão imediata e superficial de suas performances no contexto escolar e, por fim, uma visão individualizada da sua presença na escola como direito e como realidade.

A primeira dessas visões – herança do primado do reconhecimento do educando como detentor de direitos – desdobra-se e se manifesta, porém, no cotidiano escolar, numa visão do educando como um sujeito abstrato de um direito abstrato, portanto, uma “não-visão” de sua vida real, suas trajetórias humanas, sociais, de gênero, raça e etnia, de suas memórias e cultura. Ou seja, se traduz em um sujeito sem história ou que sua história não importa (ou importa muito pouco) ao processo pedagógico.

Por conseguinte, nas palavras de Arroyo (2009, p. 104), “[...] um olhar sobre os educandos como sujeitos plenos, concretos em percursos sociais complexos poderá ser um pólo dinamizador da docência. Quando reconhecemos que suas trajetórias sociais, de classe ou de raça dão outras dimensões às promessas da escola, poderemos estar abertos a reinventar nessa docência para garantir seu direito ao estudo, à cultura e ao conhecimento escolar”.

A visão imediata e superficial das performances escolares dos educandos põe em cena uma aura “negativista” que permeia a relação do meio pedagógico escolar com os sujeitos idosos e tem seu ponto de partida no fato de que eles não se adequam aos padrões de êxito do modelo escolar “regular”, cristalizados, equivocadamente, como parâmetros para a categorização e classificação dos educandos. Por isso, pertencem à categoria dos que “não acompanharam”, “não conseguiram”, “não têm condições”, os “lentos”, ainda que “esforçados” e “com vontade de aprender” – como é comum se escutar entre profissionais de EJA.

A reprodução dessa lógica torna-se mais estigmatizante, no contexto dos idosos, dado que a escola foi, no passado, e ainda é muitas vezes, um não lugar, ainda que nela depositem suas esperanças de resgate da imagem de estudante que lhes foi negada e fortaleçam uma imagem de velhice ativa, capaz, presente e de visibilidade social, como nos mostra Pereira (2012).

Temos, ainda, as visões que individualizam o reconhecimento dos sujeitos jovens, adultos e idosos como demandantes de direitos, esvaziando a pertença coletiva que os articulam como sujeitos cujas trajetórias de negação à educação não se deu por opções individuais, mas pelo lugar social em que se encontravam (e ainda se encontram) em determinado momento de suas vidas. E esse lugar social os define como coletividades e identidades. Por isso, o culto, na escola, desse tipo de visão individualizada, conforme ensina Arroyo (2017), bloqueia as possibilidades de se ver, entender e tratar os sujeitos que demandam o acesso à escola, de origem popular, com as marcas históricas segregantes de sua condição coletiva de classe social, raça, etnia, gênero, orientação sexual ou lugar, sejam crianças ou idosos.

A assunção do experienciar dos sujeitos, não como indivíduos abstratos, mas coletivos sociais, traz enormes desafios e abre diversas veredas ao processo pedagógico, especialmente no contexto das turmas de Educação de Jovens e Adultos, onde é visível a dificuldade de se lidar com as especificidades próprias dos sujeitos diversos que compõem a modalidade, entre eles, os idosos.

Isso ocorre, primeiro, em razão de que no contexto cotidiano da sala de aula se reproduzem as perspectivas inscritas em sua formação inicial (e por vezes durante as formações continuadas) que invisibilizam as especificidades do público da modalidade (especialmente da população idosa) enquanto concebem abstratamente os sujeitos como destinatários indistintos dos saberes a serem transmitidos igualitariamente a todos, pelos professores, abrindo espaço para a reprodução de métodos e linguagens infantilizantes, porque alicerçadas em premissas pedagógicas voltadas ao público infantil que frequenta o ensino regular.

Em segundo lugar, quando ocorre o reconhecimento das diferenças que atravessam o público que acorre à modalidade, aquelas que perpassam as faixas etárias aparecem como problemática pelos professores. Se, por um lado, percebem diferenças de imersão no mundo entre jovens, adultos e idosos, e os efeitos comportamentais disso nas diversas situações que integram o contexto do cotidiano escolar; por outro, as tomam como impeditivo para uma construção pedagógica que socialize essas diferenças como potência de aprendizados mútuos.

Assim, o radical compromisso com o acolhimento da diversidade dos sujeitos, no contexto da EJA, não implica o distanciamento e o não convívio pedagógico das diferenças (inclusive etárias) que existem entre eles, mas a assunção de que suas trajetórias humanas e sociais definem, simultaneamente, um mesmo lugar social – que explica, em última análise, a própria presença deles na modalidade – e possibilita o encontro, por vezes contraditório, de visões de mundo perpassadas pela suas respectivas inserções em uma determinada faixa etária ou ciclo de vida.

Nessa perspectiva, as diferenças que “separam” idosos, de adultos e de jovens (e até mesmo adolescentes, em algumas realidades escolares Brasil afora), longe de constituírem um impeditivo ao processo pedagógico, se coloca como desafio integrativo, no sentido de democratizar e socializar experiências distintas que explicam e conformam o próprio existir humano naquela comunidade, naquele município, naquele contexto social.

Trata-se de recuperar o objetivo da educação como possibilitadora dos educandos desenvolverem e ampliarem suas capacidades de se entenderem e se colocarem ativamente como protagonistas de suas próprias histórias no mundo que os cerca e os desafia cotidianamente, dando ao currículo escolar e aos saberes circulantes em suas vidas, especialmente aos idosos, para quem o desafio de falar, ser visto e ouvido encerra uma permanente desconstrução de preconceitos arraigados em nossa sociedade, com repercussões evidentes no meio escolar.

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Recebido: 02 de Setembro de 2021; Aceito: 17 de Novembro de 2021

Prof. Dr. Alessandro Augusto de Azevêdo

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Linha de Pesquisa Educação, Currículo e Práticas Pedagógicas

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-7828-7839

E-mail: alessandroazevedo.ufrn@gmail.com

Ms. José Danilo da Silva Viana

Prof. do Centro Educacional Teresa de Lisieux (Brasil)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-5606-0198

E-mail: niloviana06@gmail.com

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