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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.62 Natal out./dez 2021  Epub 18-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n62id26701 

Artigo

Entre um “currículo-obsceno” e um “currículo-louco”: composições de um “currículo-menor”

Between an “obscene curriculum” and a “crazy curriculum”: compositions of a “minor curriculum”

Entre un “currículo obsceno” y um “currículo loco”: composiciones de un “currículo-menor”

1Universidade Federal da Bahia (Brasil)

2Universidade Federal da Paraíba (Brasil)

3Universidade Federal do Pará (Brasil)


Resumo

O artigo focaliza o currículo das narrativas seriadas em suas duas expressões: a de um “currículo-maior”, constituído por linhas molares, que apresenta um sistema de referência pelo qual as formas binárias nos organizam e nos produzem enquanto sujeitos serializados; e a de um “currículo-menor”, que, ao acionar o riso e as paixões alegres, compõe um traçado de linhas de fuga capazes de desterritorializar o “currículo-maior” e a modelização da subjetividade. O argumento é o de que, no currículo das narrativas seriadas, pode-se ultrapassar convenções normativas e estabelecer a abertura para a constituição de outros modos de vida, apesar das linhas de força de conformidade a certos estratos. Ao cartografar duas narrativas seriadas, evidenciamos a composição de um “currículo-obsceno”, referente à série “Fleabag”, e um “currículo-louco”, relativo à série “Crazy Ex-Girlfriend”. Concluímos que, no “currículo-menor”, o amor e o riso são vetores para a desagregação do “currículo-maior” das narrativas seriadas, capazes de rachar os estratos e inaugurar existências menores e criativas.

Palavras-chave: Currículo; Narrativas seriadas; Gênero; Sexualidade

Abstract

The article focuses on the curriculum of serial narratives in their two expressions: a "major curriculum", constituted by molar lines which presents a system of reference by which binary forms organize and produce us as serialized individuals; and a "minor curriculum", which, by triggering laughter and joyful passions, composes a tracing of escape lines capable of deterritorializing the "major curriculum" and the modeling of subjectivity. The argument is that, in the curriculum of serial narratives, one can go beyond normative conventions and establish the opening for the constitution of other ways of life, despite the lines of force of conformity to certain strata. By mapping two serial narratives, we evidenced the composition of an “obscene curriculum”, referring to “Fleabag” TV show, and a “crazy curriculum”, regarding to “Crazy Ex-Girlfriend” TV show. We concluded that, in the “minor curriculum”, love and laughter are vectors for the disaggregation of the "major curriculum" of serial narratives, capable of cracking the strata and inaugurating minors and creative existences.

Keywords: Curriculum; Serial narratives; Gender; Sexuality

Resumen

El artículo se centra en el currículo de las narrativas seriales en sus dos expresiones: la de un “currículo mayor”, constituido por líneas molares, que presenta un sistema de referencia por el que las formas binarias nos organizan y nos producen como sujetos seriados; y el de un “currículo menor”, que, al provocar risas y pasiones alegres, compone una trazado de líneas de fuga capaces de desterritorializar el “currículo mayor” y la modelización de la subjetividad. El argumento es que, en el currículo de las narrativas seriales, es posible superar las convenciones normativas y establecer una apertura para la constitución de otras formas de vida, a pesar de las líneas de fuerza de la conformidad con ciertos estratos. Al mapear dos narrativas seriales, evidenciamos la composición de un “currículo obsceno”, relativo a la serie “Fleabag”, y un “currículo loco”, em relación con a la serie “Crazy Ex-Girlfriend”. Concluimos que, en el “currículo menor”, el amor y la risa son vectores de desagregación del “currículo mayor” de las narrativas seriales, capaces de agrietar los estratos e inaugurar existencias menores y creativas.

Palabras clave: Currículo; Narrativas seriales; Género; Sexualidad

Introdução: A vida é que anima a resistência

Em uma entrevista concedida ao jornalista Pepe Escobar, Félix Guattari foi questionado se a vida poderia ser inventada ainda que todas as imagens sejam produzidas de antemão. A resposta do psicanalista francês, envolvida em uma aura de afirmação e de possibilidades, tornou-se um provocador de novas perspectivas para as nossas inquietações sobre quais seriam os possíveis a serem produzidos, inventados e recriados no currículo das narrativas seriadas. No entanto, frente aos avanços cada vez mais palpáveis dos serviços de streaming que subsidiam não só a transmissão desses conteúdos, como também a efetiva produção desse currículo, outros elementos foram tomando forma em nossas investigações. Afinal, haveria como focalizar alguma forma de resistência na produção de modos de vida desse currículo? É possível fugir daquele fenômeno que Negri (2006) conceituou como “formatação da vida”, isto é, o apagamento das singularidades que esse artefato parece demandar na contemporaneidade?

Suspeitamos que alguns encaminhamentos possíveis estão sugeridos a partir da resposta de Guattari frente ao questionado por Escobar, mais precisamente quando ele argumenta que é a vida que anima a resistência. Para Guattari, é possível trabalhar com o que temos em mãos mesmo que este objeto esteja fadado a uma “modelização da subjetividade”. No entanto, é preciso nos livrarmos dessa “[...] espécie de redundância, da serialidade, de produção em série de subjetividade, de solicitação permanente a voltar ao mesmo ponto. É como a situação de um pintor, que compra suas tintas na mesma loja. O que interessa é o que vai fazer com elas” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 53).

As tintas que dispomos em nossas investigações curriculares com o artefato cultural das narrativas seriadas são de cores e matizes diversas. No entanto, parece-nos, a essa altura, que as suas combinações têm se tornado cada vez mais homogêneas e reiterativas na contemporaneidade frente ao conjunto de narrativas catalogadas nessa tecnologia de transmissão de conteúdo nomeada por “streaming”. No entanto, se o que interessa a partir da sugestão de Guattari não são exatamente as tintas, mas sim o que podemos fazer a partir delas, nosso propósito neste texto é o de agenciar algumas linhas desses currículos e investigar como formas de resistência são criadas naquelas narrativas seriadas que a uma primeira vista não se prestariam a subverter as normas de gênero e de sexualidade – e que, ainda assim, são capazes de produzir deslocamentos em relação ao que seria hegemônico.

O nosso esforço analítico no presente artigo está comprometido com duas personagens femininas de narrativas seriadas distintas, valendo dos próprios títulos de suas respectivas séries. São elas “A Obscena”, protagonista da narrativa seriada “Fleabag” e “A Ex-Namorada Louca”, protagonista da narrativa seriada “Crazy Ex-Girlfriend”. Embora cada uma dessas personagens carregue alguns dos “tropos” televisivos mais recorrentes e suas denominações comumente estejam ligadas aos estereótipos femininos, seguimos as pistas de Haraway (2009, p. 47), para quem o “ser mulher” é, na verdade, uma “[...] categoria altamente complexa, constituída por meio de discursos científicos sexuais e de outras práticas sociais questionáveis”.

Logo, analisamos essas personagens não como sujeitos estabilizados ou identidades cristalizadas; mas sim como “[...] coleções de sensações intensivas”, isto é, “[...] um pacote, um bloco de sensações variáveis” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 54). Nosso interesse não é pautado por uma ordem identitária e nem pela estagnação de posições fixas. Nos interessamos, portanto, pelas variações possíveis, pelos devires, pelos signos que afetam e que funcionam como vetores de intensidades. Em suma, trata-se aqui de uma experimentação com um currículo que, mesmo inserido em uma lógica da formatação dos modos de vida e da “produção em série” de subjetividades promovida pelos atuais serviços de streaming, consegue rachar os estratos, passar algo novo, inaugurar existências menores e criativas.

Nosso objetivo com este artigo é o de demonstrar como o currículo das narrativas seriadas pode ser capaz de conduzir a algumas “desaprendizagens” de gênero e de sexualidade ao seguir a linha da ironia e da paródia como rupturas significantes dos fenômenos de estratificação. O argumento defendido é o de que no currículo das narrativas seriadas pode-se ultrapassar convenções normativas e estabelecer a abertura para a constituição de outros modos de vida por meio de um “currículo-menor”, apesar das linhas de força de conformidade quanto a certos estratos (de gênero, de classe, de raça e de orientação sexual). O “currículo-menor” das narrativas seriadas está figurado nas expressões do “currículo-obsceno” de “Fleabag”, analisado no primeiro tópico deste artigo e do “currículo-louco” de “Crazy Ex-Girlfriend”, foco do segundo tópico. Concluímos nosso artigo mostrando que em ambas as expressões desse “currículo-menor”, o amor e o riso são vetores imprescindíveis para a sua constituição enquanto um veículo de desagregação do “currículo-maior” das narrativas seriadas.

Currículo-obsceno

Enquanto observa o seu reflexo no espelho do banheiro de um restaurante, uma mulher limpa o seu rosto ensanguentado com uma toalha. O fluxo carmesim escorre abaixo do seu nariz, cobrindo quase que o seu rosto inteiro em um vermelho escarlate. As toalhas de papel que lhe servem como gaze para estancar o fluxo sanguíneo tornam-se purpúreas. O reconhecível som dos nós dos dedos esbarrando em uma superfície de madeira ecoa pela toalete. Alguém bate à porta. Uma voz masculina questiona se ela precisa de algo, alertando-a que “eles já foram embora”. A mulher agradece. O seu rosto já não configura como rúbeo, embora uma crosta de sangue contorne o seu nariz. Ela toma mais alguns pedaços de papel nas mãos e entrega para outra mulher, sentada ao chão, próxima da pia, também com o nariz sangrando. Após essa sequência de eventos, a protagonista olha diretamente para a câmera, como se pudesse se comunicar conosco e nos alerta: “Essa é uma história de amor”.

A cena descrita acima é a abertura da segunda temporada de “Fleabag”, uma comédia que narra as desventuras emocionais e sexuais de uma personagem feminina por volta dos seus trinta anos. Em nenhum dos episódios das duas temporadas produzidas é revelado o verdadeiro nome da protagonista, tampouco as demais personagens ao seu redor (seu pai, sua irmã, sua madrasta ou seus parceiros sexuais) se referem a ela sob alguma denominação. O “Fleabag” que o título faz referência é uma expressão idiomática britânica que não possui um termo semelhante que corresponda em português. De modo literal seria algo como “saco de pulgas”, mas o seu significado está associado a uma adjetivação de um sujeito indecente, desregrado, pervertido. A inominável protagonista da série recolhe algumas dessas características e faz coro a expressão que o título da sua narrativa sugere: costuma fazer sexo descompromissado, age de modo inconsequente, é egoísta, bebe mais do que supostamente seria socialmente aceitável e fala mais do que as pessoas ao seu redor costumam suportar.

Ao não revelar o nome de sua protagonista, esse currículo-obsceno parece se orientar de modo inspirado pelas filosofias da diferença, isto é, “[...] em direção oposta ao da identidade – a qual para reunir a multiplicidade sob um conceito deve, necessariamente, igualar o não-igual” (CORAZZA, 2012, p. 4). Nesse sentido, o currículo-obsceno pulveriza as identidades, atravessando os limiares de um sujeito dado a priori e não objetiva trabalhar com a fabricação de modelos a serem reproduzidos – já nos mostraram Deleuze e Guattari (2012, p. 85) que “os modelos são molares”, cristalizam a potência criadora da vida. Nesse currículo o imperativo não é o de definir pessoas ou objetos, o que limitaria o fluxo de linhas de fuga. O que é de maior importância aqui é acompanhar processos, compreendendo que há sempre singularidades possíveis aquém de qualquer tentativa de paralisar esses movimentos e capturar-nos em formas previsíveis e consolidadas – dar-nos um “nome próprio”, uma identidade segura e estável, uma forma enraizada.

Trata-se, em contrapartida, de um currículo que aposta na insistência de escoar em uma linha de fuga, em uma bifurcação, tracejar outros caminhos ainda não pensados. Emitir partículas que coloquem em jogo aqueles devires incontroláveis capazes de impregnar todo um campo social (DELEUZE; GUATTARI, 2012). Rebater esse sujeito forma(ta)do a partir de coletividades moleculares. Produzir nós mesmos/as a partir de hecceidades, isto é, “[...] um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma substância”, em que tudo pode ser compreendido a partir de “movimento e de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 49). Proceder por movimentos de desterritorialização, deixar-se atravessar por singularidades, variação contínua para extrair potências criadoras. Diferenciar.

No entanto, não é o caso aqui de “livrar-se” por completo da molaridade, desses estratos que nos moldam e dessas segmentaridades que nos dão forma e função. O importante é experimentar a partir de um conjunto de práticas que cave saídas possíveis, encontrar uma região entre que seja um agente que retire os componentes idealistas e tome o desejo como uma matéria intensiva. Um bom exemplo está na cena em que a protagonista e a sua irmã participam de um evento feminista. Quando a palestrante questiona se alguma das mulheres ali presentes trocariam alguns anos de vida por um corpo bonito, ambas prontamente – e unicamente – levantam as mãos. “Nós somos péssimas feministas”, conclui A Obscena, fazendo-nos perceber o quão tortuosos, incertos e parciais podem ser a constituição de um “Eu” sob os escombros de um modelo fidedigno. Nesse currículo, a subjetividade parece se configurar como aquela “dupla face” que Corazza (2009, p. 106) certa vez se referiu: por um lado, a “[...] sedimentação estrutural” que corresponde às identidades pretensamente estáveis, totalizadas e universais, por outro a [...] agitação propulsora de devires [...], através dos quais [...] estranhos Eus se perfilam com outros contornos, linguagens e territórios”.

A Obscena se considera uma “péssima feminista” porque certamente há um padrão ao qual ela deveria, ao ocupar essa posição de “mulher feminista”, objetivamente se assentar. No entanto, esse currículo evidencia que o único “ser” existente – seja o “ser mulher” ou o “ser feminista”, seja qualquer outro “ser” – é o do devir, isto é, “[...] daquele que não para nunca de se deter no jogo de sua própria proliferação” (CORAZZA, 2012, p. 6). Mesmo sendo subjetivada enquanto uma “mulher feminista” e convocada a ocupar essa identidade, A Obscena permanece aberta às intensidades que não tendem a uniformidade ou aos fluxos unitários. É preciso sempre criar algo novo, mesmo que seja, a princípio, aberrante. Feminista que gostaria de ter seios maiores? Mulher independente que se submete às situações sexuais mais incômodas? Uma ateia que chega aos limites de se envolver romanticamente com um padre? Como nômade, A Obscena apenas atravessa os diversos territórios pelos quais perscruta sem jamais permitir cristalizar-se em um estado perpétuo. Dinamismo esse que não está encerrado em pautas feministas ou questões de relacionamentos amorosos: é também um modo irreverente desse currículo-obsceno mostrar que, se por um lado estamos constituídos linguisticamente, isso não deveria significar que, por outro, “[...] estamos também linguisticamente determinados” (JAGGER, 2008, p. 115, tradução nossa). Tal evidência surge já na primeira cena de abertura da narrativa seriada, quando A Obscena conversa com a sua audiência em um monólogo:

Você conhece aquele sentimento quando um cara que você gosta envia um texto às duas da manhã perguntando se ele pode ‘vir e encontrá-la’? E você faz isso como se acidentalmente tivesse acabado de acordar. Assim você tem que sair da cama, beber meia garrafa de vinho, entrar no chuveiro, escolher alguma roupa íntima provocante... E esperar na porta até a campainha tocar. E então você abre a porta para ele, quase como se tivesse se esquecido que ele estava vindo. [Corta para uma cena da protagonista na soleira da entrada, na porta, fingindo surpresa ao encontrar um homem] Oh! Olá! (CENA DO “PILOTO” DA NARRATIVA SERIADA “FLEABAG”, 2016).

A Obscena faz sexo livremente, mas não pode demonstrar muito interesse. A Obscena está sempre pronta para transar, mas não pode parecer tão disponível assim. A Obscena aceita receber um rapaz em sua casa no meio da noite, desde que haja tempo suficiente para passar por um aparato transformador, que vai desde a extirpação dos pelos pubianos até a escolha de uma atraente lingerie. O currículo-obsceno joga luzes sobre cada uma dessas situações para evidenciar como nós somos ensinados/as a demonstrar determinadas atitudes e a nos comportarmos de determinadas maneiras – não só a liberdade em fazer sexo, como também a disponibilidade e a vontade, além de como devemos nos apresentar em nossos corpos perfeitos, depilados e bem adornados. Até aquilo que parecia mais “inato” em nós – a vontade de transar – é apresentado por esse currículo como uma “liberdade regulada”, uma forma de concessão entre aquilo que supostamente desejaríamos “naturalmente” com aquilo que somos inclinados/as, direcionados/as a desejar.

Tal significação do condicionamento sexual feminino e a sua forma “correta” de apresentação não é nenhuma surpresa se pensarmos que “[...] jamais uma sociedade exigiu tantas provas de submissão a uma ditadura estética, tantas modificações corporais para feminizar um corpo” (DESPENTES, 2016, p. 17). Contudo, o objetivo do currículo-obsceno não é o de reiterar as imposições dessas estratégias e significações, mas de ridicularizá-las de modo que seja possível perceber o seu caráter eminentemente ficcional. Através do humor e da ironia, esse artefato nos mostra a encruzilhada humano-animal/natureza-cultura/identidade-devir pela qual somos atravessados/as: enquanto hormônios escoam no interior dos nossos corpos e condicionam os nossos ímpetos mais “naturais”, nossos desejos mais organizáveis e nossas ações mais estruturadas, poderíamos contrapor com um outro afluente que permite-nos a abertura para as multiplicidades, a passagem de devires, as rupturas com os simulacros e a desestabilização não apenas das identidades, mas também dos processos de identificação. Aqui vale retomar (e atualizar) a clássica questão espinoziana para seguirmos em outros propósitos: Afinal, o que pode um corpo obsceno?

O currículo-obsceno experimenta uma prática de desfazer o “corpo-organismo” que está no nível dos estratos, essas camadas duras e enrijecidas que capturam o corpo em fenômenos de totalização, unificação, integração. O currículo-obsceno pode, então, ser lido como um corpo sem órgãos (DELEUZE; GUATTARI, 2012), uma zona de intensidades cujo plano de consistência permite desestratificar as formas e os sujeitos, extraindo deles potências capazes de movimentar os lugares-comuns, de “[...] embaralhar as formas a golpes de velocidade ou lentidão, de quebrar as funções à força de agenciamentos, de microagenciamentos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 63). O currículo-obsceno enquanto corpo sem órgãos é capaz de experimentar, deslocar, desterritorializar e, assim, constituir outros modos de vida não-hegemônicos.

Mas é preciso ter prudência: embora o corpo sem órgãos permaneça aberto às intensidades e interrompa as máquinas binárias que nos dão contorno, isso não quer dizer que não haja estratos não desterritorializados nesse processo – a própria protagonista de “Fleabag”, notadamente uma mulher heterossexual que ocupa um corpo branco e cisnormativo dá conta de mostrar que esses segmentos mais duros podem seguir sem efetivamente fugir dos seus estratos. Ou, nas palavras de Deleuze e Guattari (2015, p. 156), “[...] quanto mais os segmentos são duros ou lentos, menos o agenciamento é capaz de fugir efetivamente seguindo sua própria linha contínua ou suas pontas de desterritorialização”. O que importa mesmo é que esses segmentos, essas formas ou essas funções possam ser utilizadas para que a partir delas possamos extrair “materiais, afectos, agenciamentos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 63), para criar algo novo e para que essas experimentações possam produzir deformações nas linhas duras. É preciso resguardar um pouco do “organismo” como substrato para as maquinações do desejo, para “[...] fazer um corpo sem órgãos suficientemente rico ou pleno para que as intensidades passem” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 84).

Esse desassossego causado pelo currículo-obsceno, vertiginoso em sua demolição do ideário de um “corpo educado” e de uma autenticidade ontológica das premissas de gênero está presente em muitas das decisões da protagonista ao longo da narrativa. Não é que, por exemplo, A Obscena não sinta vontade de transar casualmente ou que ela não poderia demonstrar ao seu parceiro sexual a sua dedicação em se preparar para o encontro. Ela só “precisa” fazer parecer que não se importa, ou que aquela depilação pela qual se submete é, na verdade, o modo “natural” do seu corpo agir ou que aquela roupa íntima provocante que usa é algo trivial ou escolhida casualmente. É preciso ocultar os processos, esconder suas táticas, torná-los como efeito de um suposto “evento fundador” do qual não poderíamos escapar.

Quando A Obscena age desse modo e nos adverte que essa prática é algo esperado e comumente reiterado pelas mulheres, o currículo-obsceno está nos mostrando como esse comportamento já cristalizado é o efeito de uma norma que rege o comportamento sexual feminino considerado como “ideal” – ao qual A Obscena, mesmo escarnecendo-o, não consegue se desvencilhar tão facilmente. Ao denunciar a necessidade de repetição desses atos estilizados para que o gênero ganhe um status ontológico, o currículo-obsceno tanto evidencia a falibilidade daquilo que supostamente seria natural e inato, como também nos oferece novos agenciamentos para desterritorializar o corpo. Corpo este que, nas palavras de Deleuze e Guattari (2012, p. 72), “nos roubam para fabricar organismos oponíveis”.

Talvez o principal objetivo do currículo-obsceno seja o de nos mostrar como a sexualidade não deveria ser encarada como uma chave binária, como uma organização molar por excelência. Poderíamos compreendê-la como aquele campo intensivo que “[...] coloca em jogo devires conjugados demasiadamente diversos que são como n sexos, toda uma máquina de guerra pela qual o amor passa” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 75). Trata-se de uma política dos afetos que movimenta esse plano de consistência e que é capaz de abalar os padrões edificantes, a lógica normativa e as hierarquias. A Obscena nos avisa na cena de abertura que “essa é uma história de amor”. E “amor”, nesse currículo, é o signo do inapreensível, é um vetor que nos move para além das estruturas coesas da normalidade. Por vezes essa desterritorialização por via do amor parece absoluta ou mesmo imprudente: A Obscena chega aos limites de se envolver romanticamente com um charmoso padre que conhece em um jantar de família. Contudo, o que o currículo-obsceno nos ensina é que o amor não deve ser interpretado por uma lógica binária e que as “histórias de amor” podem desterritorializar esse primado e inscrever outros raciocínios ao seguir a linha das paixões alegres.

Parece-nos que esse currículo está constantemente nos alertando: O amor é o que há de “menor” em nós! Só podemos amar em minoridade: a partir de passagens de afectos não determinados, extrapolando a sexualidade sobrecodificada, estruturada, aprisionada pelas máquinas binárias. Mas para isso aconteça é preciso seguir a linha do desejo, linha que parece a todo tempo nos escapar, mas que é essencial para fabricarmos novas armas. É nessa pura multiplicidade que algumas expectativas podem ser subvertidas, tal como faz Claire, irmã da Obscena, ao final do último episódio de “Fleabag”. Percebendo que a sua grande paixão está de partida e que a única alternativa que lhe resta seria encenar o velho clichê de persegui-lo no aeroporto antes de sua decolagem, Claire encara a sua irmã – alguém com quem mantém um relacionamento cheio de altos e baixos – e declara: “você é a única pessoa por quem eu correria em um aeroporto!”.

Essa é a beleza do currículo-obsceno. Inserido na lógica de um artefato comumente associado ao amor romântico – quase sempre heterossexual, quase sempre cisgênero, quase sempre branco –, tal currículo nos mostra que o amor é o vetor que faz movimentar algo novo e torcer os ordenamentos, é a linha que nos arrasta para além dos segmentos coesos ou pré-determinados. O amor não cabe em nenhuma hierarquia ou estrutura. É por meio dele que podemos insistir na condição criadora da vida e que podemos acessar outros mundos possíveis, mundos porvir. Retomando Negri (2006, p. 171), “[...] quando vivemos uma paixão, construímos para nós mesmos e para os outros cenas, horizontes, estruturas, desejos e alegrias”. No currículo-obsceno, aprendemos que o amor é capaz de provocar rupturas quando é retirado do ideário de uma sexualidade imanente e correspondente às normas. Esse currículo nos mostra que uma bela “história de amor” deve estar presente na singularidade do acontecimento de uma vida e que pode se expressar em sua linha de fraternidade. Eis, portanto, a “história de amor” que o currículo-obsceno nos ensina: aquela em que o amor implode as formas e faz proliferar outros devires.

Currículo-louco

Esse é um termo sexista! A situação tem muito mais nuance que isso!” . Essa é a resposta dada por Rebecca Bunch na abertura musical da primeira temporada da narrativa seriada “Crazy Ex-Girlfriend”. Referida pelos seus novos colegas como uma “ex-namorada louca”, Rebecca pertence a um tropo comumente abordado em mídias audiovisuais e que está diretamente associado a um estereótipo que, conforme argumentam Castellano e Costa (2021), aponta para uma certa inclinação obsessiva relativamente a uma mulher que não haveria superado o fim de um relacionamento. Embora a referida narrativa seja contemporânea (foram quatro temporadas produzidas entre os anos de 2015 e 2019), essa não é uma representação recente. Em 1987, por exemplo, a personagem de Glenn Close no thriller erótico “Atração Fatal” aterrorizou o público na pele de uma diabólica amante furiosa com o abrupto término de um affair com um homem casado. Desde então, a imagem da periculosidade feminina motivada pelo descontentamento com o fim de relacionamentos se dispersou em inúmeros exemplares desse tropo audiovisual . Curioso é, no entanto, os dados estatísticos apontarem justamente o oposto desse enquadramento discursivo dos artefatos culturais: as mulheres têm se apresentado de modo muito mais expressivo como vítimas de seus parceiros após o fim de seus relacionamentos do que como os algozes dessa forma de violação .

O tropo da “ex-namorada louca” é um código que condiciona o olhar do público em relação a construção da representação do gênero – nesse caso, o feminino – e também está associado a como esse discurso é “[...] subjetivamente absorvido pelas pessoas a que se dirige” (DE LAURETIS, 2019, p. 140). Um cruzamento possível das noções de “público” de Ellsworth (2001) e de “plateia” de De Lauretis (2019) tem nos sugerido que aquilo que um determinado artefato pensa sobre “quem é” ou “quem deveria ser” o seu público está diretamente associado ao gênero daquele ou daquela que consome esse artefato. As formas pelas quais somos convocados/as a nos identificarmos com um filme, uma peça publicitária, uma música ou uma série televisiva e a nos posicionarmos no interior de seus discursos estão “[...] íntima e intencionalmente relacionadas ao gênero do espectador” (DE LAURETIS, 2019, p. 140). É preciso analisar esses artefatos no nível dos detalhes, de sua gramática, de sua textualidade: perscrutar as maneiras pelas quais nós olhamos para esses artefatos e que, a partir deles, nos constituímos. E, em contrapartida, entender que esses artefatos também nos “olham” de volta, com seus olhos de poder.

“Crazy Ex-Girlfriend” nos apresenta a protagonista Rebecca Bunch, uma bem sucedida advogada com um currículo invejável (formada em Yale e Harvard, como ela costumeiramente relembra em vários momentos ao longo da série) e que trabalha em um renomado escritório na cidade de Nova York. O início da narrativa dá-se no exato ponto em que Rebecca está prestes a receber uma proposta irrecusável dos seus chefes. No entanto, Rebecca não se sente completamente realizada, o que a leva a uma espécie de catarse após uma estranha sequência de eventos – que conta desde o conteúdo de um enigmático comercial de margarina que parece dialogar diretamente com as suas inquietações (“Quando foi a última vez que você foi feliz de verdade?”, interroga-lhe a mensagem junto a imagem de um pão besuntado pelo produto em questão), até o aleatório encontro com Josh Chan, um ex-namorado da juventude que ela já não via há muitos anos. Seduzida pelas promessas de uma cidade longe dali na qual, segundo o próprio Josh, “todos são felizes”, Rebecca declina do convite de ser sócia do escritório em que trabalha e resolve se mudar repentinamente para West Covina, na Califórnia – tentando a todo custo esconder que o real motivo de sua ida não é motivada pelo fato de ali viver o seu ex-namorado (e agora objeto de sua obstinada obsessão). Afinal de contas, como ela tenta provar a si mesma e para os outros ao seu redor, “só por coincidência o Josh também mora aqui!” .

“Crazy Ex-Girlfriend” é uma comédia musical na qual os estereótipos e clichês de várias temáticas contemporâneas são problematizadas a partir de letras e encenações musicais que criticam justamente aquilo que inicialmente a narrativa parecia instituir, a exemplo do próprio tropo da ex-namorada louca. No entanto, somam-se outras questões relacionadas ao que se presume como pertencentes de um suposto “universo feminino”, passando por elementos como a rivalidade entre mulheres e o sexo casual . Relativamente ao corpo, canções como “The Sexy Getting Ready Song” , ironiza as torturantes e dispendiosas sessões de embelezamento pelas quais as mulheres geralmente são submetidas, enquanto “Heavy Boobs”, desconstrói a sexualização dos seios femininos sob o argumento de que “eles são apenas sacos de gordura amarela/tecnicamente destinados a alimentar um bebê” .

As cenas musicais desse currículo desmantelam, em forma de paródia, algumas noções caras aos processos de subjetivação pelos quais as mulheres são conduzidas na contemporaneidade, de modo a rasurar e embaralhar essa gramática androcêntrica pela qual as expressões de gênero e sexualidade têm sido (re)produzidas no currículo das narrativas seriadas. Trata-se, portanto, de um currículo que ri; ri das normas, ri dos estratos, atrelando esse riso à subversão de gêneros – tanto os gêneros audiovisuais como o gênero enquanto expressão das distinções sociais baseadas no sexo (SCOTT, 1995) – e transformando o ridículo, o pastiche e a paródia em um modo irreverente de aprender outras formas de viver os nossos gêneros e as nossas sexualidades.

Embora as questões relativas ao feminino tenham destaque nesse currículo, ao levarmos em conta a proposição de Scott (1995) de que o gênero é uma categoria relacional, também podemos observar no currículo-louco algumas linhas importantes em relação a constituição das masculinidades – plurais, múltiplas, heterogêneas, e por isso mesmo conflituosas. “Não é uma fase/Não estou confuso/Não sou indeciso/Eu não tenho que escolher/Não me importo se você usa saltos altos ou gravata/Você pode simplesmente chamar a minha atenção”: é o que revela Darryl, um amigo de Rebecca e personagem recorrente da série, em sua “saída do armário” como um homem bissexual na canção “Gettin’ Bi” . Além disso, diferentemente de outras narrativas que utilizam o tropo da mulher fora dos padrões com baixa autoestima e que em algum ponto muda drasticamente de aparência , esse currículo opta por satirizar o modelo hegemônico de masculinidade pautado por padrões inacessíveis de beleza e forma física e pela anulação da demonstração de sentimentos e frustrações. Em meio a lágrimas enquanto dançam em uma boate, Nathaniel e “White Josh” alertam ao público: “Nossos peitorais são perfeitos, mas temos dias ruins/Portanto, não nos objetive com seu olhar masculino e feminino/Temos traumas de infância como você/Porque caras gostosos também têm problemas” .

Valendo-se da sátira, da paródia, da ironia e da potência do riso, o currículo-louco cria uma estratégia bélica que objetiva desarmar, desestabilizar os raciocínios generificados, estranhar as metanarrativas consolidadas e reiteradas em tantas outras produções televisivas. Nessa guerrilha, o riso torna-se o disparador desses cortes. Nesse sentido, somos inspirados/as pelo trabalho de Gilles Deleuze – que em grande parte inspirado pela ética de Espinosa, objetivou demolir as paixões tristes, aquelas que diminuem a nossa potência de agir. Para Deleuze (1985), é preciso formular um “riso-esquizo”, uma “alegria revolucionária” que possa contrapor o riso ao significante e embaralhar os códigos dominantes. É preciso rir de tudo aquilo que quer nos oprimir, pois o riso é um instrumento de afirmação de outros possíveis (CARNEIRO; PARAÍSO, 2018).

Quando sorrimos nós somos afetados/as, aumentamos a nossa potência de agir e a nossa força de existir. Isso porque o riso é capaz de implodir as formas e de acionar as forças (CARNEIRO; PARAÍSO, 2018), assumindo um papel desterritorializador “[...] ao ridicularizar a seriedade, o dogmatismo das normas e dos binarismos de gênero e de sexualidade” (CARNEIRO, 2020, p. 54). Rir possibilita a abertura dos corpos para a passagem de outras intensidades, de outros afectos, de outros devires. O riso é coletivo; afinal, conforme aponta Negri (2006, p. 35), “[...] não existe alegria solitária [...]”, ela sempre pressupõe uma relação que experimenta com o mundo e o vincula a nós mesmos/as. Talvez o riso seja mesmo o que há de mais “humano” em nós, como nos mostra Bergson (2001) e como também nos lembra Woolf (2014, p. 34) quando afirma que este é “[...] o único som, por inarticulado que seja, que nenhum animal pode produzir”. Em outras palavras, somos humanos porque rimos. Ou melhor: somos humanos quando rimos.

Currículo-menor

Um currículo que aciona as linhas do amor e do riso é um artefato capaz de agenciar aberturas para outros territórios possíveis. Ao trabalhar com a potência das paixões alegres e do humor, tanto o currículo-obsceno quanto o currículo-louco são capazes de produzir fissuras nas normas de gênero e de sexualidade, produzindo modos de resistência relativamente aos regimes de poder. Nesse sentido, acreditamos que há sempre saídas possíveis – escapes que podem ser alegres, movimentados pela paixão de criar algo novo, pelas possibilidades em diferir das normas, que fazem vibrar em intensidade e que estalam os estados fixos das coisas. Há sempre um escape daqueles/as que querem fazer de nós prisioneiros/as, que desejam disseminar seus afetos tristes (DELEUZE; PARNET, 1998). São através dessas linhas de fuga que descobrimos o mundo, são a partir delas que “[...] as coisas se passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam” (DELEUZE, 2013, p. 63).

No entanto, para que isso se efetue, é preciso que o currículo das narrativas seriadas opere em uma minoridade, isto é, que seja possível estabelecer um “currículo-menor”. Aqui trata-se de um deslocamento conceitual da noção de “literatura menor” que Deleuze e Guattari (2015) associaram ao texto kafkiano. Deslocamento esse, inclusive, permitido pelo próprio Deleuze ao afirmar que nós podemos nos servir de “[...] termos desterritorializados, ou seja, arrancados de seu domínio para reterritorializá-los em outra noção” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 26). O conceito de “currículo-menor”, portanto, é um desses filhos monstruosos que o filósofo certa vez se referiu como o resultado de fazer um filho pelas costas de um autor, isto é, o resultado de quando tomamos de empréstimo um conceito e a partir dele produzimos coisas novas, respondemos a outros questionamentos, a partir de outras perspectivas (DELEUZE, 2013).

Quando afirmamos que há um “currículo-menor” das narrativas seriadas, estamos argumentando que esse currículo é uma expressão de subversão ao que está instituído no “currículo-maior” desse artefato cultural. O “currículo-maior” é aquele composto por um conjunto de regras, valores, expectativas, prescrições, preceitos, códigos dominantes; a sua linguagem deriva de uma gramática binária e normativa, de um uso “maior” da língua, a partir de um fluxo de linhas duras, segmentos ressecados, maquinações sobrecodificantes. É um currículo que preza por uma certa “modelização da subjetividade”, isto é, uma subjetividade “[...] serializada, normalizada, centralizada, em torno de uma imagem, de um consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei transcendental” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 40). Tal modelização interdita e estanca qualquer possibilidade de desarranjo às normas generificadas que possam provocar abalos em seu sistema de homogeneização.

O “currículo-maior” é um currículo identitário. Tal como a noção de “educação maior” de Gallo (2017, p. 65), ele também pode ser compreendido como um “produtor de indivíduos em série”. Isso porque tal currículo opera em uma lógica do aparelho de Estado, um agenciamento concreto que organiza os saberes dominantes e as educabilidades possíveis, de modo a assegurar a serialização do masculino e do feminino em linhas já bem delimitadas, pacotes previsíveis, passagens homogêneas de um ponto a outro (DELEUZE; GUATTARI, 2012). O “currículo-maior” das narrativas seriadas é aquele difundido pelas plataformas de streaming, que ganha destaque na divulgação do catálogo desses serviços, que costuma aparecer em propagandas distribuídas pelas ruas das nossas cidades e que chamam a nossa atenção ao ser afixado em cartazes em ônibus e metrôs. Também é aquele costumeiramente transmitido no horário nobre dos canais televisivos e que melhor serve a essa linguagem: uma gramática estratificada, que retém tudo o que passa ao seu alcance e que captura os nossos corpos e as nossas subjetividades. Em suma, o “currículo-maior” é um artefato constituído de linhas molares que correspondem a uma ideia de macro, maioria, um modelo que apresenta um sistema de referência pelo qual as formas binárias organizam as coisas, os fenômenos e os indivíduos, tornando-o sujeitos.

O “currículo-menor”, no entanto, é aquele que faz o “currículo-maior” gaguejar. O humor é uma traição capaz de quebrar uma linha molar, de conduzir pontas de desterritorialização para arrancar uma segmentaridade dura dos seus estratos. O humor é a “arte dos acontecimentos” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 82) e o riso sempre consegue fazer algo fluir, um sistema vazar, uma máquina de guerra irromper. Logo, o “currículo-menor” que aciona o humor e que nos permite rir é uma multiplicidade que afeta todo um sistema de raciocínio homogêneo, compondo-se em um traçado de linhas de fuga que desterritorializa aquele “currículo-maior” estabelecido e que quer cada vez mais se estabelecer. Se esse “currículo-maior” interpela-nos e exige de nós a assimilação a um certo modelo de ser homem ou de ser mulher, instituindo uma poderosa e eficiente máquina de controle das subjetividades contemporâneas, o “currículo-menor”, por sua vez, é afetado por “um forte coeficiente de desterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 35). Afinal, tudo escapa ao controle; é sempre possível resistir, “[...] produzir algo real, criar vida, encontrar uma arma” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 62).

Em se tratando de formas de resistência, é possível, inclusive, conjugar uma linha de fuga de dentro do próprio sistema de sedimentação: “hackear” suas fendas, invadi-lo como em uma linha de fuga cavalo-de-tróia e implodir as suas ordenações. É isso que o currículo-obsceno e o currículo-louco fazem. Eles não são alheios ao “currículo-maior”, uma vez que estão presentes em seu catálogo (“Fleabag” está no acervo do serviço de streaming Prime Video e “Crazy Ex-Girlfriend” está disponível no catálogo da Netflix). No entanto, no interior da grande máquina sobrecodificadora, essas expressões do “currículo-menor” estabelecem os seus fluxos de resistência. São como variações, pequenas máquinas de guerra atravessadas por estranhos devires: devir-obscena de “Fleabag”, devir-louca de “Crazy Ex-Girlfriend”, cada qual constituindo suas geografias, trajetórias e orientações possíveis, tocas de entrada e vetores múltiplos de saída.

Não se trata de chegar a uma imitação fidedigna da obscena ou de ajustar-se às características da ex-namorada louca quando somos atravessados por esse “currículo-menor”. O devir está mais para a paródia: trata-se de uma dupla captura, uma “núpcia”, um bloco de sensações que nos atravessa, uma desterritorialização em comum, um fenômeno que só é possível entre dois ou mais elementos heterogêneos (DELEUZE; GUATTARI, 2012). Devir-obscena e devir-louca são devires minoritários: escapam aos modelos hegemônicos, são processos que se opõem à maioria – não por um sentido de quantidade, mas por estarem alheios a um certo padrão pelo qual deveríamos nos conformar. São, portanto, fissuras, quebras, saltos de cortes significantes. Só podemos devir-obscena ou devir-louca quando somos povoados/as por essas intensidades, quando escapamos das raízes e criamos rizomas, quando usamos dessa força minoritária para estabelecer novas armas para desestabilizar a “serialização” dos nossos modos de vida. É por isso que os devires também são uma questão de ética (DELEUZE; GUATTARI, 2012). Eles podem mobilizar a criação de outros territórios que nos permitam experimentar com os nossos afectos, compondo um corpo mais potente, aumentando a nossa potência de agir, criando uma vida mais vivível e um mundo mais habitável.

É nesse ponto que podemos afirmar que o “currículo-menor” das narrativas seriadas é um vetor político pela diferença. Ou, seguindo a linha do vôo da bruxa traçada por Deleuze e Guattari (2012), podemos ver neste currículo toda uma “política da feitiçaria” que se institui para além dos agenciamentos molares – a Família, a Igreja, o Estado, a Escola, a Mídia – e que se exprime em “grupos minoritários, ou oprimidos, ou proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições reconhecidas (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 31). Devir-obscena e Devir-louca são precisamente a ruptura com essas instituições centrais, uma coexistência de elementos indecomponíveis, partículas individuadas que fazem desse currículo uma expressão de desaprendizagem pela diferença. Trata-se aqui de “desaprender” as identidades hegemônicas que têm continuamente nos formatado, “desaprender” as regulações normativas dos corpos, dos gêneros e das sexualidades e “desaprender” as montagens binárias que nos instituíram como homens e mulheres de tipos determinados. Essas ramificações do “currículo-menor” operam a partir das “condições revolucionárias” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 39) da minoridade, isto é, um “[...] uso intensivo que faz escoar seguindo linhas de fuga criadoras e que, ainda lento, cauteloso, forma uma desterritorialização absoluta” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 52).

Esse currículo em devir adquire um valor coletivo. Isso porque os afectos, que também são devires, não são da ordem do sentimento pessoal, mas sim da “[...] efetuação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 22). Com efeito, não remetemos mais a indivíduos formatados ou em função das identidades a serem assimiladas. Trabalhamos, em contrapartida, com “agenciamentos coletivos de enunciação”, isto é, “[...] potências diabólicas porvir ou forças revolucionárias a construir” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 38). É um processo, um instante, uma estação; elementos que fazem rachar os segmentos duros, “[...] que liberam o desejo de todas as suas concreções e abstrações, ou, ao menos, luta ativamente contra elas e para dissolvê-las” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 154).

Tal agenciamento coletivo do “currículo-menor” nos evidencia que para sobrevivermos no mundo precisamos rasurar a noção de autonomia e dar-nos conta de que é urgente exercitar um certo senso de coexistência. O “eu” como “um” parece não ser capaz de sobreviver sozinho. Nesse sentido, a noção de “multidão” de Hardt e Negri (2001), o deslocamento de Preciado (2011) em torno de uma “multidão queer” e as contribuições de Butler (2018) relativamente aos “corpos em aliança” fazem-se necessárias para pensar nesse corpo coletivo, esse conglomerado de singularidades que constituem o “público seriador” que consome narrativas seriadas. É a multidão, essa “multiplicidade irredutível” (NEGRI, 2006, p. 129) e o seu potencial desterritorializante que tanto sustenta o “currículo-maior” em sua interface parasita como também possui as armas necessárias para miná-lo a partir da expressão de um “currículo-menor”. Se por um lado o currículo das narrativas seriadas pode, via “currículo-maior”, ser um espaço de controle, ele também pode, a partir da resistência da multidão frente a formatação da vida e por meio da proliferação do devir-obscena e o devir-louca, ser um espaço incontrolável do desejo.

Notas

1Segundo Duarte (2018, p. 84), um tropo descreve “[...] os temas e clichês recorrentes que sempre são usados para certos tipos de narrativas ou de personagens reproduzindo e ajudando a produzir interpretações carregadas de [...] significados culturais”. Trata-se de uma espécie de “atalho” para que o público consiga facilmente reconhecer a condução de determinados personagens, enredos e narrativas.

2Trecho da abertura da primeira temporada da série, “Crazy Ex-Girlfriend Theme Song”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qzY3EaJTuJk. Acesso em: 28 jul. 2021.

3Exemplos como os thrillers “Fixação” (2002), “Obsessiva” (2009), “Paixão Obsessiva” (2017) e “Garota Exemplar” (2014), mas também em filmes com temáticas mais “leves”, como na comédia romântica “O casamento do meu melhor amigo” (1997). É interessante observar que todos eles partem de um pressuposto heteronormativo no qual a mulher se comporta de modo obsessivo sempre em relação a um homem.

4Em 2020, por exemplo, o Brasil registrou 1.338 casos de feminicídio, isto é, a morte de mulheres motivadas pela condição de seu gênero e praticado em sua expressiva maioria por companheiros e ex-companheiros. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/06/brasil-registra-1338-feminicidios-na-pandemia-com-forte-alta-no-norte-e-no-centro-oeste.shtml. Acesso em: 30 jul. 2021.

5Trecho de “West Covina”, cena musical em que Rebecca narra a sua súbita mudança para a referida cidade. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=92538NJ0lbE. Acesso em: 28 jul. 2021.

6Em “I’m So Good at Yoga”, Rebecca participa de uma aula dada por Valencia, namorada de Josh. A canção, embora demonstre o modo como a protagonista se vê em relação a sua “arqui-inimiga”, é executada sob o ponto de vista de Valencia, cuja letra exorta as suas qualidades físicas em detrimento as de Rebecca. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wFUk79fBOiQ. Acesso em: 30 jul. 2021.

7Com o intuito de esquecer Josh, Rebecca resolve fazer sexo casual. Em “Sex with a Stranger”, ela demonstra sua ansiedade em receber um estranho em casa, pedindo educadamente “que ele não seja um assassino” e questionando “se isso é uma arma”, tranquilizando-se ao perceber que “oh, é apenas o seu pênis!”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iH3FPrI_Cuw. Acesso em: 30 jul. 2021.

8Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ky-BYK-f154&pp=sAQA. Acesso em: 30 jul. 2021.

9Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aZx5zfkG6oU&pp=sAQA. Acesso em: 30 jul. 2021.

10Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5e7844P77Is. Acesso em: 30 jul. 2021.

11Esse tropo é uma atualização do conto do “patinho feio”, no qual personagens costumeiramente femininas, desajustadas, tímidas e consideradas fora do padrão de beleza passam por um processo drástico de “embelezamento”. Exemplos desse tropo: “As Patricinhas de Beverly Hills” (1995), “O Diário da Princesa” (2001), “Nunca Fui Beijada” (1997), novelas como “Betty, A Feia” e séries como “Ugly Betty”.

12Letra da canção “Fit Guys Have Problems Too”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Dep0Fq6XnWQ. Acesso em: 30 jul. 2021.

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Recebido: 20 de Setembro de 2021; Aceito: 26 de Novembro de 2021

Doutorando Evanilson Gurgel

Universidade Federal da Bahia (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Grupo ESCRE(VI)VER: Grupo de Estudos e Pesquisas com Narrativas em Educação/CNPq

Orcid id: https://orcid.org/0000-0003-2018-767X

E-mail: evanilson.gurgel@ufba.br

Prof. Dr. Marlécio Maknamara

Universidade Federal da Paraíba (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Grupo ESCRE(VI)VER: Grupo de Estudos e Pesquisas com Narrativas em Educação/CNPq

Orcid id: https://orcid.org/0000-0003-0424-5657

E-mail: marlecio@ce.ufpb.br

Profa. Dra. Sílvia Chaves

Universidade Federal do Pará (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação de Ciências e Matemáticas

Grupo de Pesquisa Cultura e Subjetividade na Educação em Ciências/CNPq

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-9771-4610

E-mail: schaves@ufpa.br

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