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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.59 no.62 Natal out./dez 2021  Epub 18-Abr-2022

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2021v59n62id26882 

Artigo

Monstros que assustam, atraem e fascinam: um mapa das linhas de constituição das infâncias queer

Scary, attractive and fascinating monsters: a map of queer children’s constitution lines

Monstruos que asustan, atraen y fascinan: un mapa de las líneas constitutivas de las infancias queer

João Paulo de Lorena Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-4855-0197

Marlucy Alves Paraíso1 
http://orcid.org/0000-0002-3542-4650

1Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil)


Resumo

Como vivem as crianças queer? Que infâncias são essas que, habitando o “entre”, buscam escapar de toda e qualquer definição? O que marca essas infâncias? Que modos de vida estão produzindo? Este artigo, instalando-se nas teorizações pós-críticas, faz um mapa dos rastros de infâncias que chamamos aqui de monstruosas e desenvolve o argumento de que há, na contemporaneidade, a insurgência de infâncias queer, desidentificadas dos atributos universais de gênero historicamente instituídos. Mostramos que essas infâncias são atravessadas e constituídas pelas linhas da precariedade, da estética e da política, que se movimentam para produzir, por um lado, a normalização, o controle, a disciplina, a diferenciação e, por outro lado, o escape, as resistências e a produção de outros modos de vida. Mostramos, por fim, que essas infâncias, investigadas na pesquisa que subsidia este artigo, são obrigadas a conviver com a dor, a tristeza e a exclusão desde muito cedo, mas também povoam a vida de possibilidades múltiplas, cambiantes e alegres.

Palavras-chave: Infâncias queer; Gênero; Sexualidade; Educação

Abstract

How do queer children live? Which childhood is this that, inhabiting in the “in-between”, seek to escape from any definition? What marks these childhoods? What ways of life are they producing? This article, settling in post-critical theorizations, maps out the traces of childhoods that we call here monstrous and develops the argument that there is, in contemporaneity, the insurgence of queer childhoods, de-identified from the universal attributes of gender historically instituted. We show that these childhoods are crossed and constituted by the lines of precariousness, aesthetics and politics, which move to produce, on one hand, normalization, control, discipline, differentiation and, on another hand, escape, resistance and the production of other ways of life. We show, finally, that these childhoods, investigated in the research that subsidizes this article, are obligated to live with pain, sadness and exclusion from an early age, but also populate life of multiple, changing and joyful possibilities.

Keywords: Queer childhoods; Gender; Sexuality; Education

Resumen

¿Cómo viven los niños queer? ¿Cuáles son esas infancias que, habitando en el "entre", buscan escapar de cualquier definición? ¿Qué marca estas infancias? ¿Qué formas de vida están produciendo? Este artículo, asentándose en las teorizaciones post-críticas, traza el mapa de las líneas constitutivas de las infancias que aquí llamamos monstruosas y desarrolla el argumento de que existe, en la contemporaneidad, la insurgencia de infancias queer, non identificadas con los atributos universales de género históricamente instituidos. Mostramos que estas infancias están atravesadas y constituidas por las líneas de la precariedad, la estética y la política, que se mueven para producir, por un lado, la normalización, el control, la disciplina, la diferenciación y, por otro, la huida, la resistencia y la producción de otros modos de vida. Mostramos, por último, que estas infancias, investigadas en la investigación que subvenciona este artículo, están obligadas a convivir con el dolor, la tristeza y la exclusión desde muy temprano, pero también pueblan la vida de múltiples, cambiantes y alegres posibilidades.

Palabras clave: Infancia queer; Género; Sexualidad; Educación

Introdução

Abriu-se, novamente, a caixa de Pandora. Os monstros estão em toda a parte. Salve-se quem puder! Pequenos e barulhentos seres rodopiam sem cessar. Incansáveis em provocar, colocam em xeque as nossas certezas e “contaminam” a infância – outrora o jardim das delícias angelicais – com irreverência, transgressão, alegria e curiosidade. A escola, o currículo, a religião, a família, o direito e a medicina tremem assustados por não conseguirem reconhecer o que são e o que podem essas criaturas esquisitas e disformes. “Precisamos salvar a infância o mais rápido possível!”, gritam alguns. “Se não fizermos alguma coisa, vão corromper as nossas crianças!”, exclamam outros, enquanto sustentam cartazes, reuniões e discussões em defesa da família e dos bons costumes. “O mundo não é mais o mesmo”, desabafa saudosamente outra pessoa, recordando os seus tempos passados de infância. Enquanto muitos deliberam o que deve ser feito para salvar a infância dos perigos incomensuráveis de nosso tempo, vê-se Dionísio-criança, com suas flautas e tamborins, dançando e se divertindo, zombando de nós. Junto a ele, constelações infinitas de infâncias: infâncias-sem-rosto, infâncias-sem-gênero, infâncias-multicores, monstruosas, inventivas e criadoras, infâncias queer.

Dionísio, deus afeminado e andrógino, deus da festa, das flores, do delírio dos sentidos, da desmedida, da música e da dança; “[...] deus, também, das crianças, cujo carnaval é presidido por ele, autorizando-as a embriagar-se de vinho, durante um dia inteiro – o de sua epifania” (SCHÉRER, 2009, p. 179). Diz-se que Dionísio, certa vez, na infância, disfarçou-se de uma menina. Também costuma ser representado, embora barbudo, com um vestido transparente, um traje nupcial de noiva (SCHÉRER, 2009). Sim, Dionísio é a imagem do infantil de hoje, que é: múltipla, pura diferença, queer. Desde o seu corpo fronteiriço, ele nos aponta para a monstruosidade criadora do descomedimento, do demasiado, do prazer e do excesso. Dionísio faz a infância “monstruar”, ao som alegre dos seus tamborins e flautas. Sua música libera a infância de uma imagem de pensamento apolínea, metamorfoseando-a numa outra coisa, “[...] repete a diferença, pela vontade de poder reunida às forças postas em relação pelo acaso. Contraria a adiaforia. Nega o estado terminal e o de equilíbrio. E, acima de tudo isso, opõe-se a nosso caro, e tão custoso, Princípio de Identidade” (CORAZZA, 2001, p. 76).

Para Michel Foucault (2002, p. 69), o contexto de referência do monstro é sempre a lei, pois “[...] ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza”. Seguindo essa mesma linha de argumentação, Pinto da Silva (2007) considera que o monstro, além de nos aterrorizar e assombrar com suas deformidades e violações em relação à ordem natural, está aí para indicar não só os nossos limites, mas as possibilidades dos nossos corpos, a sua potência. O corpo monstruoso “[...] sempre escapa porque ele não se presta à categorização fácil” (COHEN, 2000, p. 30). As infâncias queer, nesse sentido, podem ser entendidas como infâncias-monstruosas, pois, ao mesmo tempo em que elas se constituem no “[...] limite, o ponto de inflexão da lei e [...] a exceção que só se encontra em casos extremos [...], que combina o impossível com o proibido [...]” (FOUCAULT, 2002, p. 70), atraem pelo fascínio que são capazes de provocar, pelos escapes e linhas de fuga que instauram, pelas outras possibilidades de vida que inauguram.

Este artigo, aspirando perseguir os rastros das infâncias monstruosas, desenvolve o argumento de que há, na contemporaneidade, a insurgência de infâncias queer, desidentificadas dos atributos universais de gênero historicamente instituídos. Essas infâncias, constituídas pelas linhas da precariedade, da estética e da política, estão presentes em muitos lugares: em nossas casas, famílias, igrejas, terreiros, praças, parques e também no ambiente escolar. Tal como Dionísio, povoam a vida de possiblidades e alegrias, mas também são obrigadas a conviver com a dor, a tristeza e a exclusão desde muito cedo. Elas fazem a vida dançar, escapando das obviedades e de tudo aquilo que subordina a diferença à identidade. Resistem ao apolíneo, às forças que as querem governar, subordinando-as a um ideal regulatório de (hetero)normatividade que produz tristeza e subtrai a vida.

Durante muito tempo, ao menos desde a sua invenção na modernidade, a infância foi pensada sob a égide do universal e do uno. De acordo com Philippe Ariès (1981), até o século XVI, as crianças eram tidas como adultos em miniatura, diferenciando-se das outras pessoas apenas por serem menores. Não possuíam, portanto, um estatuto específico. A emergência da infância como uma categoria histórica no período moderno, contudo, não aconteceu de repente, como em um passe de mágica, mas foi precedida por algumas imagens do infantil que se articularam e se constituíram no que ficou conhecido como infância (CORAZZA, 2004). Ainda por volta do século XIII, explica Ariès (1981, p. 52), “[...] surgiram alguns tipos de crianças um pouco mais próximos do sentimento moderno”. Surge nas artes a imagem do anjo como representação de um rapaz muito jovem e delicado, a figura do menino Jesus e de Nossa Senhora menina conferindo às crianças uma áurea de santidade, inocência e pureza. Surge, também nas artes, a imagem da criança nua, numa “[...] alegoria da morte e da alma que introduziria no mundo das formas a imagem da nudez infantil [...]” (ARIÈS, 1981, p. 53), vista como assexuada, cândida e sagrada.

Essas imagens do infantil, entretanto, ainda não demarcavam um status da infância ou uma forma específica de ser criança. Antes do século XVII, não havia a infância como um espaço separado do mundo adulto. “Crianças e adultos trabalhavam, viviam e testemunhavam nascimentos, doenças e mortes conjuntamente da mesma maneira que participavam da vida pública (política), das festas, guerras, [...] execuções” (DORNELLES, 2005, p. 24). Para Ariès (1981), é somente neste século, que o “[...] sentimento de infância” ganha uma maior hegemonia, consolidando-se no século XVIII com o Iluminismo e a publicação de Émile ou de l’education, de Jean Jacques Rousseau. Naradowski (2001, p. 29), por sua vez, em consonância com Ariès (1981), defende que “a infância surge delineada em seus aspectos mais puros e claros” na obra de Rousseau, com características próprias e radicalmente opostas à idade adulta. A criança passa a ser vista “[...] como um não-adulto e sua principal carência é a de razão [...]”. A infância é o longo caminho que os seres humanos empreendem da falta de razão (adulta) à razão adulta” (NARADOWSKI, 2001, p. 34).

A ideia rousseauniana de uma infância desprovida de razão, entretanto, é acompanhada “[...] por uma qualidade altamente significativa e de profundas consequências: a capacidade de aprendizagem” (NARADOWSKI, 2001, p. 34). Essa qualidade passa a ser vista como algo inerente e natural à infância, uma potencialidade que todas as crianças carregam e que deve ser conduzida e estimulada pela pedagogia. Do mesmo modo, a falta de razão adulta como elemento central e constituinte da infância, “[...] desemboca na necessidade de uma proteção específica já que a criança é incapaz de se comportar de forma autônoma: sua lei é a lei do adulto” (NARADOWSKI, 2001, p. 34). Nesse contexto, a infância aparece como o “limite da heteronomia”, pura necessidade [...] incompletude gregária que necessita da condução dos já completos” e a criança passa a ser vista como “[...] um ser inacabado que possui a capacidade inata de alcançar conquistas superiores, de ‘acabar-se’ como adulto” (NARADOWSKI, 2001, p. 35).

Temos assistido ao aparecimento de inúmeras disputas e tensões em torno da infância. Em suas contestações e problematizações das subjetividades forjadas pela modernidade, as teorias pós-críticas, território epistemológico no qual se instala este artigo, não têm medido esforços para pensar os diferentes modos pelos quais o sujeito infantil foi produzido. Na contramão das metanarrativas, teleologias e dos discursos totalizantes, essas teorias empreendem o esforço de uma genealogia do aparecimento e do fim da infância moderna.

Teria a infância moderna chegado ao fim, ao ponto de não ser nada mais que “[...] uma figura de areia entre uma maré vazante e outra montante” (CORAZZA, 2001, p. 73)? Estariam as imagens do bom infante, das infâncias angelicais e cândidas, das infâncias do menino Jesus e de Nossa Senhora, das infâncias dependentes e desprovidas de razão, condenadas ao desaparecimento e à morte? O que mostra este texto é que essas imagens ainda não desapareceram. O que ocorre é que se multiplicaram os modos de ser infantil, as infâncias não são mais as mesmas de outrora, abriu-se a caixa de Pandora e forças dionisíacas de afirmação da vida têm convidado a infância para dançar com monstros, aterrorizando as instituições sociais, os grupos religiosos, a mídia, as forças conservadoras e o currículo escolar. Essas infâncias têm recebido diferentes nomes por diversos autores(as): “infâncias que nos escapam”, “infância ninjas” (DORNELLES, 2005, p. 71-102), “el niño e la niña” (CORAZZA, 2001; 2004), “infâncias queer” (PRECIADO, 2013; SILVA, PARAÍSO, 2019), entre outras. É em relação a essa última que se desenvolverá o tópico a seguir, no qual traçaremos um desenho monstruoso da emergência da infância queer no presente, mostrando suas linhas de constituição.

“Monstruário”: a emergência de infâncias queer na contemporaneidade

“Quem defende a criança queer?” (PRECIADO, 2013). É com essa pergunta-manifesto que o filósofo Paul B. Preciado abre um de seus mais sensíveis textos sobre as infâncias que escapam às normas de gênero e sexualidade. O artigo nasce em resposta às volumosas manifestações que grupos reacionários da direita católica francesa realizaram em reação à tramitação da lei pelo matrimônio igualitário, utilizando uma suposta defesa da infância como uma estratégia biopolítica para manobrar a opinião pública em Paris e nas demais cidades francesas. Preciado (2013) argumenta que “[...] os defensores da infância e da família apelam para a figura política de uma criança que eles constroem, uma criança pressupostamente heterossexual e com o gênero normatizado” (PRECIADO, 2013, p. 1). Essa infância, de acordo com o filósofo, não passa de um artefato biopolítico, “[...] o efeito de um dispositivo pedagógico terrível, o lugar de projeção de todas os fantasmas, o álibi que permite ao adulto naturalizar a norma” (PRECIADO, 2013, p. 3). Um dia, rememora Preciado em tom autobiográfico, ele também foi essa criança que a direita francesa se vangloria em proteger. E, hoje, rebela-se “[...] em nome de todas as crianças que esses discursos falaciosos insinuam preservar” (PRECIADO, 2013, p. 2). Movido por esse espírito de rebelião e coragem para enfrentar os “intoleráveis”, Preciado faz um doloroso relato sobre a sua infância queer, que pensamos ser importante apresentá-lo na íntegra.

Lembro-me do dia em que, em meu colégio de freiras das Irmãs Servas de Maria Reparadoras do Sagrado Coração de Jesus, a madre Pilar nos pediu para desenhar nossa futura família. Tinha 7 anos. Desenhei a mim mesma casada com minha melhor amiga, Marta, com três filhos e muitos cachorros e gatos. Eu já tinha imaginado uma utopia sexual, na qual existia o casamento para todos, a adoção. [...] Alguns dias mais tarde, o colégio enviou uma carta para minha casa, aconselhando meus pais a me levar a um psiquiatra, a fim de resolver o mais rápido possível um problema de identificação sexual. Diversas represálias seguiram-se a essa visita. O desprezo e a rejeição de meu pai, a vergonha e a culpa de minha mãe. Na escola, o rumor de que eu era lésbica se espalhava. Uma manifestação [...] se organizava todos os dias na frente de minha classe. “Sapatão”, eles diziam, ‘vamos te estuprar para te ensinar a trepar como Deus quer’. Tinha um pai e uma mãe, mas eles foram incapazes de me proteger da repressão, da exclusão, da violência. O que meu pai e minha mãe protegiam não era os meus direitos de criança, mas as normas sexuais e de gênero que haviam sido inculcadas dolorosamente neles mesmos, por um sistema educativo e social que punia toda forma de dissidência com a ameaça, a intimidação, o castigo e a morte (PRECIADO, 2013, p. 3-4).

Por não se conformar às normas sexuais e de gênero, Preciado teve que conviver, em sua infância escolar, com a violência dos seus colegas e com o desprezo e a incompreensão de sua família, ocupando uma posição abjeta e monstruosa, desprovida de inteligibilidade e não passível de reconhecimento. Sua história foi atravessada desde muito cedo pelo signo da monstruosidade e da abjeção. Por que motivo o seu corpo infantil disforme apavorava tanto as outras crianças, ao ponto de fazê-las reunirem-se e agredi-lo com palavras de ofensa e ódio?

Para Cohen (2000, p. 26-27), “[...] o corpo do monstro incorpora – de modo bastante literal – medo, desejo, ansiedade e fantasia [...]”, dando-lhes uma vida marcada pela estranheza, independência e deslocamento. O corpo do monstro assusta, provoca, fascina, desvela as nossas certezas e faz titubear os nossos princípios. Desse modo, a infância de Preciado, como a de tantas outras crianças no mundo, pode ser lida como uma infância monstruosa, capaz de nos apontar para muitas outras possibilidades de vida. Uma infância que, ao nos provocar e assustar, faz com que tenhamos medo de ouvi-la.

As linhas de constituição da infância queer

De acordo com Deleuze e Parnet (1998, p. 18), “[...] as coisas, as pessoas, são compostas de linhas bastante diversas, e que elas não sabem, necessariamente, sobre qual linha delas mesmas elas estão, nem onde fazer passar a linha que estão traçando”. Há, nesse sentido, “[...] toda uma geografia nas pessoas, com linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fuga etc.”. Inspirando-nos nesse pensamento, afirmamos que as infâncias queer também são atravessadas e constituídas por linhas variadas. Algumas delas movimentam-se para produzir normalização, controle, disciplina, diferenciação; outras para fazer escapar, “fugir”, “evadir”, “partir” (DELEUZE; PARNET, 1998), produzindo resistências e criando modos de vida outros. Apresentamos, agora, algumas dessas linhas.

Infância precária

O relato de Preciado e o seu encontro com a história de outras crianças que povoam este texto com seus desejos, medos, dores, lutas e resistências nos possibilitam desenhar uma primeira linha dessa infância que chamamos de queer, assim como a produção de Judith Butler (2006, 2015a) sobre os modos como as vidas, em diferentes graus, são constituídas e atravessadas pela precariedade. Chamamos essa linha de infância-precária. Essa infância, alvo de discursos e movimentos políticos que pregam defendê-la da “ameaça” homossexual, como nas manifestações francesas descritas por Preciado (2013), precisa conviver todos os dias com a violência, a dor, o medo e a humilhação por não se adequar à imagem moderna do bom infante. Contrapõe-se, portanto, a uma imagem ufanista, cheia de otimismos, de que a infância seria a melhor fase da vida para todas as crianças, um lugar paradisíaco, cheio de brincadeiras e divertimentos.

Butler (2015b, 14) explica que “[...] o ‘ser’ da vida é ele mesmo constituído por meios seletivos”. Como resultado, [...] não podemos fazer referência a esse ‘ser’ fora das operações de poder”. Desse modo, o ser do corpo [...] está sempre entregue aos outros, a normas, a organizações sociais e políticas que se desenvolvem historicamente a fim de maximizar a precariedade para alguns e minimizar a precariedade para outros” (BUTLER, 2015b, p. 15). As infâncias queer, por escaparem dos enquadramentos de poder postos em funcionamento pelas normas de gênero e de sexualidade, são posicionadas culturalmente de modo precário, isto é, não são reconhecíveis como infâncias legítimas e autorizadas. Em Vida Precaria: el poder del duelo y la violencia (2006), Butler defende a ideia de que algumas vidas se constituem “politicamente em virtude da vulnerabilidade social dos [seus] corpos – como lugar de desejo e de vulnerabilidade física, como lugar público de afirmação e de exposição” (BUTLER, 2006, p. 46). Isso faz com que, em parte, dependam das instituições para sobreviverem e é desastroso para essas vidas se as instituições falham.

No ensaio A guerra declarada contra o menino afeminado (2013), Giancarlo Cornejo faz uma análise de sua própria experiência na escola. Cornejo relata que sua vida escolar era marcada pela maneira como educadores(as) o viam como estranho, delicado, em suma, um menino afeminado.

Na escola havia uma psicóloga que me torturava. Ela nos aplicava exames que eu não entendia (e ainda não entendo o sentido): desenhávamos pessoas; a nossa família; fazíamos listas de nossos defeitos e virtudes. Ela sempre se queixava com meus pais. Lembro-me que uma vez quando ela chamou a mim e aos meus pais, vi claramente meu nome em seu caderno de anotações, e no verso dele um X em uma opção que dizia: ‘problemas de identidade sexual’. Eu não estava presente quando ela conversou com meus pais, mas o que ela disse a eles, e o que eu mais ou menos já intuía, os chateou muito (CORNEJO, 2013, p. 73).

Giancarlo experimentava a “precariedade” de vivenciar uma infância queer, pois era um menino que não se encaixava nos padrões de gênero de masculinidade. Era um ótimo aluno, cumpria todas as suas tarefas de estudante, mas mesmo que a escola não o visse como um “garoto-problema”, acabou rotulado como um “problema de gênero” (BUTLER, 2015b), ou seja, alguém cuja performatividade de gênero era considerada problemática e, por isso, precisava ser normalizada. Para Preciado (2013, p. 3), “[...] a polícia de gênero exige qualidades diferentes do menino e da menina [...]”. Dos meninos, demanda-se força, coragem, valentia, que goste de luta e não goste de rosa, que não chore, que seja bom nos esportes, que vença, corra e não brinque de casinha, que faça bagunça e seja indisciplinado. Das meninas, demanda-se disciplina e organização, que goste de rosa e brinque de casinha, que seja doce, quieta, obediente e que não brinque de futebol, mas de bonecas. Quando as crianças borram essas fronteiras de gênero, escapam às normas que as querem controlar e normalizar, acabam por experimentar a infância de um outro modo. Giancarlo (2013) lembra que as aulas de Educação Física eram um momento de dor e hostilidade.

Quase todos os meus professores me adoravam, mas me lembro que os que lecionavam Educação Física eram particularmente hostis a mim. Um desses professores falou com meu pai, porque estava preocupado comigo, e disse a ele que eu era muito afeminado, e que todos meus colegas zombavam de mim. Meu pai, ao chegar em casa, me repreendeu, e não duvidou em me culpar pela hostilização sistemática pela qual eu passava no colégio. Quando este professor chamou meu pai para falar sobre o meu afeminamento, tornou-se inevitável e óbvia a patologização do meu corpo, como das minhas performances de gênero. O que não era tão óbvio é que, naquele momento, este jovem e atlético professor estava reconhecendo a sua própria impotência para modificar meu afeminamento, sua impotência para me fazer o homem que se supunha eu deveria ser, e sua impotência para marcar claramente os limites entre ele e eu (CORNEJO, 2013, p. 75).

Uma série de enquadramentos de poder (BUTLER, 2015a) atuam no currículo escolar demandando meninos fortes, ágeis e competitivos, características consideradas importantes em uma aula de Educação Física, por exemplo. Atuam também para produzir a abjeção aos corpos que não materializam esses atributos, que os subvertem, que destes escapam. Ademais, a abjeção a esses corpos atua, no território curricular, não apenas como uma prática de poder que convoca meninos a se portar de acordo com o que é considerado culturalmente um jeito masculino, mas, também, como uma estratégia de produção de corpos masculinos considerados inteligíveis. Pois, no corpo do “menino-afeminado” ou da “menina-masculina”, contorna-se o limite do que é permitido, o limite da normalidade.

Inúmeros relatos, divulgados em jornais e revistas, evidenciam como a linha da precariedade atravessa e constitui a infância queer. Um deles é a história de Alex, menino brasileiro de 8 anos de idade, pobre, negro e morador de periferia, que foi espancado pelo próprio pai em “sessões corretivas”, provocando o dilaceramento do seu fígado e, posteriormente, a sua morte. O motivo para isso foi que ele gostava de “dança do ventre” e de “lavar a louça”, posturas consideradas femininas pelo pai que, questionado sobre o crime, afirmou que o pequeno Alex “tinha que ser homem” . Longe do Brasil, no Reino Unido, Romeu, garoto branco de 5 anos, foi expulso de sua creche porque gostava de usar vestidos de princesas, saltos, alisar o cabelo, pintar as unhas, brincar de bonecas e sua cor favorita era o rosa. Para os responsáveis pela creche, administrada por uma igreja cristã, “o menino só pode voltar a participar do grupo se usar roupas adequadas a meninos” .

A marca do preconceito e da discriminação, que fere a infância dessas crianças, também está presente na história de Denílson, 12 anos, que faz balé desde os seus 8 anos e sonha em ser bailarino profissional. Apesar do apoio da família, confessa: “Já sofri muito bullying na escola. Acho idiotice, cada um faz o que quer”. Sua mãe, Ionar Afonso, lamenta as situações vivenciadas pelo filho no ambiente escolar: “Eles são excluídos. Nem podem ir ao banheiro porque tem alguém esperando no corredor para brigar. E são chamados de ‘bailarina’”. Companheiro de Denílson na escola de dança, Jônatas, 11 anos, estuda balé desde os 5 anos. Também convive com provocações dos colegas e já chegou a ser agredido fisicamente .

Infância que assusta e fascina

Transgressoras da ordem e arautas da crise de categorias, as crianças queer podem ser pensadas como monstros (COHEN, 2000, p. 30 e 42), pois, na medida em que se recusam a fazer parte da ordem classificatória das coisas, se tornam “híbridos que perturbam, híbridos cujos corpos externamente incoerentes resistem a tentativas para incluí-los em qualquer estruturação sistemática” (COHEN, 2000, p. 30 e 42). Além disso, “[...] todo monstro constitui [...] uma narrativa dupla [...], pois, [...] o monstro também atrai” (COHEN, 2000, p. 47). As mesmas criaturas que assombram, aterrorizam e perturbam a ordem das coisas, podem evocar fortes fantasias escapistas. Afinal, “[...] a ligação da monstruosidade com o proibido torna o monstro ainda mais atraente como uma fuga temporária da imposição” (COHEN, 2000, p. 47). A partir dessa ideia, desenhamos uma segunda linha do que constitui a infância queer. Ela é uma infância que assusta e fascina, possuindo em si mesma uma dimensão estética dionisíaca. Isso pode ser percebido no relato da professora.

Quando comecei a dar aulas, vivi uma experiência ímpar: os meninos e as meninas da turma brigavam e se agrediam por tudo e por nada. ‘Menina não pode!’, ‘sai pra lá’, ‘ai meu cabelo!’, ‘mulherzinha’ eram as exclamações mais frequentes. Um dia, durante o recreio, entrei na roda (só de meninas, naturalmente) e puxei um dos meninos para brincar. Segurei firme a sua mão e rodamos por alguns minutos até que peguei a mão de outro que estava mais perto. Surpreso, o grupo restante veio chegando, rindo e gozando os colegas. Mas, o desejo de brincar era visível. Fomos abrindo a roda, convidando, estimulando, trazendo. E eles vieram, gostando, mas ainda sem querer demonstrar o gosto. E a roda se ampliou, se abriu [...]. Os rostos, todos, expressavam, confusos, desejo e rejeição. Sentimentos fortes e conflitantes (PORTES, 2001, p. 6).

Por que motivo um menino que, conduzido pela sua professora e levado a brincar na roda das meninas, é capaz de provocar sentimentos tão intensos e conflitantes como desejo e rejeição? Ao entrar na roda de brincadeiras consideradas femininas em um recreio escolar e, consequentemente, assumindo uma posição de monstruosidade, o menino do relato institui um escape, uma brecha naquilo que é imposto pelas normas de gênero. Gil (2000, p. 168 e 176) afirma que os monstros “[...] existem não para nos mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser. Entre esses dois polos, entre uma possibilidade negativa e um acaso possível, tentamos situar a nossa humanidade”. Nesse sentido, os monstros atraem porque representam “uma espécie de ponto de fuga do seu devir-inumano [...]” para o sujeito, ou seja, a possibilidade de se tornar outra coisa que não ele mesmo, uma outridade.

Esse pavor e, ao mesmo tempo, fascínio pela monstruosidade das infâncias queer está em toda a parte. Em 2017, assistimos aturdidos e consternados na cidade de Porto Alegre/RS ao encerramento precoce de uma exposição artística intitulada Queermuseu – Cartografias da diferença na Arte Brasileira, no Santander Cultural . O motivo era que as obras retratavam “infâncias viadas” e problematizavam os fundamentalismos religiosos. Como reação à mostra, o Movimento Brasil Livre (MBL), grupo ultraconservador e neoliberal, divulgou uma série de vídeos e textos nas redes sociais, convidando os “cidadãos de bem” e a “família tradicional brasileira” a se manifestarem contra o Banco Santander, que, de acordo com o MBL, estaria promovendo a pedofilia, zoofilia e atacando frontalmente os bons costumes da família cristã. Algumas das obras que mais circularam nas redes sociais e foram alvo de inúmeras críticas e ataques conservadores do MBL eram de autoria da cearense Bia Leite. A artista plástica tentava dar visibilidade às estéticas de si e aos modos de vida produzidos pelas infâncias que não estão em conformidade com os padrões normativos de gênero. Em suas pinturas, a artista retratou crianças com trajes coloridos e modos de se expressar não heteronormativos.

De um modo muito parecido com o que aconteceu em Paris, nas manifestações reacionárias em defesa da infância, analisadas por Preciado (2013), milhares de brasileiros(as), atendendo ao pedido do MBL, de movimentos religiosos conservadores e da bancada de políticos evangélicos e católicos, se mobilizaram contra a exposição, muitos(as) em redes sociais e outros(as) realizando protestos, vigílias de oração e exorcismos em frente ao Santander Cultural. A acusação, amplamente assumida pela sociedade civil, de que as obras incentivam a pedofilia, revela um equívoco latente sobre performatividade de gênero, sexualidade e sexo. Isto porque lançam sobre as performatividades de gênero infantis a insinuação e a suspeita de que estariam erotizando a infância, por não corresponderem à norma heterossexual, cisgênera e masculina. Por outro lado, focos de resistência artística e acadêmica em defesa da mostra chamaram a atenção para as estratégias de poder acionadas pelos grupos políticos reacionários que não pararam de aparecer.

Em outubro de 2017, alguns dias após o fechamento da mostra, a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) promoveu uma mesa redonda intitulada “Criança viada travesti na Escola”, discutindo a possibilidade de crianças viverem “fora da cis-heteronorma” . Logo em seguida, no mês de novembro, a Periódicus: Revista de Estudos Indisciplinares em Gêneros e Sexualidades, como resposta à onda conservadora de ataques a artistas, intelectuais e ativistas que trabalham na seara das discussões de gênero e sexualidade, lançou uma chamada de textos para um dossiê intitulado: “crianças desviadas, sexualidades monstruosas, educação pervertida: paisagens alteritárias das infâncias” , com o objetivo de discutir como as crianças escapam aos processos de normalização e controle dos seus corpos, forjando para si mesmas estéticas de existência dissidentes. A essas resistências, soma-se este artigo. Afinal, o que este estudo faz é analisar os modos pelos quais essas infâncias monstruosas e transviadas resistem às tentativas de normalização e controle, criando modos de vida transviados que muito têm a nos ensinar.

Infância que luta e resiste

Reações em defesa dos modos de ser e habitar as infâncias, e pelo direito à vida das crianças desviadas, transviadas e queer, podem ser entendidas como resistências criativas ao poder. Afinal, o poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, “enquanto livres”, “[...] entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidades em que diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer” (FOUCAULT, 2010, p. 289). Essas resistências se conectam à terceira linha de constituição da infância queer, uma linha política, que chamamos de infância que luta e resiste. Luta para sobreviver às investidas do poder sobre ela, para escapar da violência e da morte. Luta para existir de um outro modo e, por isso, instaura fissuras nos regimes normativos de gênero e sexualidade. Luta porque há nela uma espécie de “espontaneidade rebelde” (DELEUZE, 2013), de insubmissão, de “[...] multiplicidades que não param de transbordar as máquinas binárias e não se deixam dicotomizar” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 22). Sim! Trata-se de uma infância múltipla, que assume a diferença como modo de vida e, por conseguinte, é capaz de forjar resistências das mais variadas.

No ensaio intitulado Por uma pedagogia da amizade queer, Cornejo (2015, p. 130) “[...] busca dar conta da sobrevivência de um sujeito ‘queer’, especificamente, uma criança trans que viveu em Lima, no Peru, nas décadas de 1950 e 1960” e mostrar como a amizade exerceu um papel vital nas lutas que essa criança precisou travar para re-existir. O nome dela é Italo e hoje ela tem cerca de setenta anos. Toda a narrativa de Cornejo foi produzida a partir das memórias de Italo acerca de sua infância, contadas em duas entrevistas conduzidas pelo autor, ambas em 2007. Na vida da pequena Italo, que atualmente prefere ser tratada no feminino, pois “[...] orgulhosamente proclama ser gay com gays e travesti com travestis” (CORNEJO, 2015, p. 130), percebe-se, não sem tristeza, como a linha da precariedade se conecta às linhas de uma estética monstruosa e de uma política de luta e resistência.

A história de Italo desloca-se de um lugar de alegria e aconchego, nos seus primeiros anos de vida, junto à sua família, para um lugar de sofrimento, tristeza, dor e violência que se inicia quando ela completa 5 anos de idade e passa a ser vista como um menino afeminado. Desde a desconfiança em torno da “efeminação” do seu corpo até a barbárie absoluta do estupro que sofreu aos 8 anos, sua existência é marcada como precária, abjeta e monstruosa. Em um triste e revoltante relato, Italo recorda o dia em que caminhava até a casa de um amigo e foi abordada por um grupo de rapazes que “[...] cortaram seu peito com uma faca, rasgaram suas roupas e a estupraram, um após o outro [...]” (CORNEJO, 2015, p. 134), ameaçando matar os seus pais e irmãos caso contasse a alguém. Cohen (2000, p. 53) explica que o “[...] monstro é o fragmento abjeto que permite a formação de todos os tipos de identidade – pessoal, nacional, cultural, econômica, sexual, psicológica [...]; como tal, ele revela sua parcialidade, sua contiguidade”. Nesse sentido, “[...] o medo do monstro” confunde-se com uma [...] espécie de desejo” que [...] dá lugar ao horror apenas quando o monstro ameaça ultrapassar essas fronteiras, para destruir as frágeis paredes da categoria e da cultura” (COHEN, 2000, p. 49). A heterossexualidade, desde essa perspectiva, também é produzida na relação com o seu outro constitutivo.

Os agressores de Italo, em um “[...] exercício sanguinário de heteronormatividade pelo qual a masculinidade heterossexual é construída” (CORNEJO, 2015, p. 134), precisaram criar um corpo bicha, desviado e vulnerável para “[...] dar à luz ao sujeito masculino normal despoluído de qualquer mancha”. O corpo da pequena Italo, assim como o de tantas outras crianças queer, mulheres e pessoas LGBTI+, tornou-se objeto de violência e de morte por ser lido culturalmente como precário e sem peso de inteligibilidade. Para Butler (2016, p. 156), a “[...] formação de um sujeito exige uma identificação com o fantasma normativo do sexo: essa identificação ocorre através de um repúdio que produz um domínio de abjeção, um repúdio sem o qual o sujeito não pode emergir” (BUTLER, 2016, p. 156). Assim, “[...] se o estupro de Italo tem o efeito de produzir um maricón é também porque produz homens hétero. Essa produção de homens hétero pode ser pensada como uma declaração de identidade” (CORNEJO, 2015, p. 135). Afinal, toda identidade é construída sob o signo de uma exclusão que, ao mesmo tempo que circunscreve e delimita as suas margens, assombra-a internamente (BUTLER, 2016). Apresentamos aqui o episódio que se sucedeu logo após a brutal violência sofrida por Italo.

Depois de ter sido violentada, esfaqueada e abandonada por esses homens, Italo chegou à sua casa e subiu pela janela para que ninguém a visse. Ela foi diretamente ao banheiro e, no espelho, viu seu corpo coberto de sangue. Soluçando e gemendo silenciosamente, ela tirou suas roupas rasgadas e ensanguentadas e as jogou fora. Naquela noite, tentou desesperadamente dormir, mas não conseguiu. Nas noites seguintes, teve sonhos angustiantes nos quais seus estupradores invadiam seu quarto, retornando para estuprá-la seguidamente. Ela nada disse a seus pais, e eles não agiram como se tivessem notado algo. Italo não podia contar a seus pais sobre a terrível agressão. As ameaças das quais era vítima não podiam ser contrariadas. No entanto, reduzir Italo à condição de subordinação radical, mesmo naquele momento de extrema violência, não faz justiça a ela. Depois de ter sido tão violentamente tratada como merda, ela precisava tirar suas roupas manchadas de sangue e se desfazer delas. O que pretenderia Italo com isso? (CORNEJO, 2015, p. 135).

O autor explica, fazendo menção a um texto de Rocío Silva Santisteban, produzido no contexto da violência política que se abateu sobre o Peru nas décadas de 1980 e 1990 e os sucessivos estupros realizados por soldados contra Giorgina Gamboa, que a “[...] primeira coisa que Giorgina fez após a brutal ocupação de seu corpo foi deixar as roupas ensanguentadas para trás” (CORNEJO, 2015, p. 135). Tirar as roupas e deixá-las para trás, nesse contexto, passa a valer como a possibilidade de uma “ressurreição simbólica”, um modo de agarrar-se a vida de alguma forma, mesmo diante de uma ferida mortal. Desse modo, “[...] tirar suas roupas ensanguentadas é lutar pela vida, mesmo quando alguém tem sido radicalmente expelido da noção de vida humana [...]” (CORNEJO, 2015, p. 135), uma forma de não se deixar obliterar pela violência.

Toda a história de Italo, desde esse doloroso acontecimento, se desenrola como uma luta cotidiana por sobrevivência. Algum tempo depois, Italo conhecerá, na rua do bairro operário onde mora, “[...] um colorido grupo de crianças e adolescentes queer e trans” (CORNEJO, 2015, p. 137). Crianças e adolescentes que, como ela, também experimentam em seus corpos os efeitos da não conformidade com os padrões instituídos pelas normas de gênero e sexualidade. A amizade que nascerá, a partir desse encontro, abrirá para a pequena Italo novas possibilidades de se perceber, perceber o seu corpo e o seu modo de vida. Suas novas amigas “[...] lhe deram o dom de suportar o inferno que a sua vida havia se tornado após o estupro. Essas amizades queer eram a diferença entre morrer e se agarrar à vida” (CORNEJO, 2015, p. 137). Foi com o seu grupo de amigas que Italo aprendeu, por exemplo, a se defender dos meninos heterossexuais que a humilhavam e agrediam. Aprendeu a enfrentar o preconceito e a ter orgulho de si mesma, a não se calar diante de uma ofensa. Ganhou, na escola, a “[...] reputação de quebrar os narizes dos meninos hétero [...]” (CORNEJO, 2015, p. 138) e nunca mais se sentiu totalmente sozinha.

Um breve relato para uma conclusão

Também traçamos aqui algumas linhas de encontro entre uma infância remota, mas que ainda vive nas paisagens afetivas e memórias mais intensas de um dos autores deste artigo, com a infância da pequena Italo. Assim como ela, ele também foi uma criança que precisou contar com a amizade de outras crianças queer para sobreviver e lutar contra os intoleráveis. Diferentemente de Italo, não conheceu as suas amigas (des)viadas na rua, tampouco na escola. Foi na Igreja Católica que teve o seu primeiro encontro com crianças que partilhavam de modos de vida semelhantes ao seu. Na época, tinha 10 anos de idade e o desejo por outros meninos começava a florescer. Garoto tímido e de poucas palavras, era apaixonado por um menino da escola e mantinha esse desejo secreto escrito em um diário que, sempre que saía de casa, escondia debaixo do colchão de sua cama. Mas como “[...] nada dura para sempre, especialmente se você é queer [...]” (CORNEJO, 2015, p. 132), o seu segredo foi descoberto por sua mãe.

Ele nunca foi capaz de esquecer aquela tarde. Como era de costume, chegou pontualmente da escola às 12:15h. Sua mãe, mulher que carregava nos olhos o peso da vida, sempre o aguardava com um abraço e um “cheiro”, como é comum em Pernambuco e em grande parte do nordeste brasileiro. Seu pai, homem duro e quase sempre distante, trabalhava fora e só vinha para casa aos finais de semana. Por isso, nos almoços em família, somente ele, sua mãe e seu irmão mais novo rodeavam a mesa com histórias, risos, aromas, sabores e comunhão de vidas. Naquela tarde, contudo, o almoço ainda não estava sobre a mesa e o garoto não encontrara a sua mãe na cozinha ou na sala, lugares onde sempre o esperava. A porta do seu quarto estava aberta e, sentada sobre a sua cama, “mainha”, como costuma chamá-la até hoje, chorava compulsivamente, com o seu diário em mãos. O seu corpo, de repente, viu-se invadido por uma mistura de medo, apreensão e desespero. Sentiu-se como que paralisado, como se o peso do mundo de repente tivesse caído sobre as suas pequenas e frágeis costas. Seus olhos encheram-se de lágrimas e, antes que o seu corpo fizesse qualquer outro movimento, começou a chorar.

Sua mãe levantou-se. De frente para ele, o seu corpo parecia endurecido e sem vida. “Eu nunca imaginei que tinha gerado no meu próprio ventre uma cobra”, são as palavras que recorda desse dia. De repente, havia se tornado uma criança sem passado e sem futuro. O presente o aniquilara. Viu-se, aos poucos, como que em meio a uma densa neblina, deixar de ser “o orgulho da família”, “um menino gentil e educado”, uma “criança carinhosa”, “um filho que só me dá prazer”, “um menino estudioso e que tira as melhores notas”, e tornar-se, naquele dia, uma criança-problema ou, nas palavras de Judith Butler (2015b), um problema de gênero. O pequeno garoto não entendia o que havia de errado consigo e somente sabia chorar. Foi então que, passados alguns dias, a sua mãe, junto com a sua avó e tia chamaram-no para uma conversa. Disseram-lhe que precisava “voltar a participar da igreja”, que estava “afastado de Deus” e, por isso, estava passando por “tentações”.

Ao final da conversa, a sua avó contou-lhe, pela primeira vez, a real história da morte do seu avô. Com olhos marejados e voz rouca, a velha matriarca confessou-lhe, como que em luto, que o seu avô havia se suicidado alguns meses após eles terem se divorciado. O motivo da separação foi que ela descobriu que ele era gay e que a estava traindo com um homem. Ao olhar para ele, mesmo diante de uma criança de 10 anos, era como se o fantasma da história do seu falecido marido tivesse regressado à família. O menino podia perceber no seu rosto o medo e a aflição provenientes de um fantasma do passado. Sentia-se péssimo. Repentinamente, as cores vivas da sua infância foram turvadas pelo medo e por um sentimento de culpa que começou a acompanhá-lo desde então. Por mais que não entendesse, sentia que algo nele estava errado, pois somente isso poderia explicar o sofrimento de sua família. Por duas vezes, o menino cogitou se jogar de um viaduto que ficava nas redondezas de sua casa. Chorando copiosamente, até escreveu uma carta de despedida, anunciando que o “demônio” que carregava em sua carne havia chegado ao fim.

A sentença, por parte de sua família, estava pronunciada: “este menino precisa de igreja”. Mal sabiam elas que seria na sacristia e nos altares da Igreja Católica que ele encontraria forças para resistir e existir de um outro modo. À contragosto, a pequena bicha começou a fazer catequese e, depois, a participar do grupo de coroinhas, auxiliares do padre nas funções religiosas. No grupo de coroinhas, conheceu Jaime, Romeu e Júnior e, logo, se tornaram amigos ou, melhor dizendo, amigas. Elas eram divertidas e, ao final da missa, ficavam na sacristia (sala onde ficam guardados os utensílios litúrgicos, geralmente localizada na parte de trás da igreja) brincando com as túnicas que usavam nas celebrações. Faziam dela um vestido e, quando não imaginavam que eram a Virgem Maria, performando a mãe de Jesus, levantavam a barra da túnica e tornavam-se Joelma, a vocalista da então Banda Calypso.

Júnior era mais velho e experiente. Tinha 13 anos. Enquanto o menino, Jaime e Romeu tinham a mesma idade. Quando se conheceram, Júnior, Jaime e Romeu diziam abertamente que eram gays e, apesar de o menino ter ficado assustado no começo, com o passar do tempo começou a gostar da ideia. Pois era isso que ele também sentia que era. Na igreja, todos gostavam das roupas e paramentas, das pompas litúrgicas, sempre com muito brilho e pedras cravejadas. Era como se, no momento em que se vestiam para as celebrações, investissem sobre os seus corpos e existências outras possibilidades de habitar a masculinidade. Quando não havia missa, reuniam-se em frente à igreja, sentavam nas suas escadarias e era a hora de paquerar os meninos da rua. Planejavam tudo. Imaginavam muito. “Como e onde seria o primeiro beijo?”, “Esse é meu e aquele é seu”. Muitas eram as conversas e confidências. Na época, somente Júnior, por ser mais velho, tinha tido a experiência de “ficar” com um menino. “Não era BV” (boca virgem), como se diz entre as crianças e adolescentes hoje em dia.

O tempo foi passando, a adolescência chegou e, ao lado das suas amigas bichas, o garoto aprendeu a sobreviver. Sim! É preciso aprender a sobreviver quando se é minoria e se vive em uma pequena cidade, com pouco mais de 30.000 habitantes. É preciso aprender a arte de ser uma “bicha esperta”, de saber com quem se pode conversar. A arte de “fazer a pêssega” , fingir-se de boba, quando necessário e, em outros momentos, “dar um close” e “fazer a egípcia” . Com as suas amigas bichas, ele aprendeu que a vida fica mais colorida, alegre e intensa quando temos orgulho do que nos tornamos. Obviamente, esse não foi um processo fácil e linear. Muitos foram os momentos em que o discurso religioso católico, de matriz conservadora, provocou conflitos, dúvidas e descontinuidades em sua trajetória. O próprio jogo micropolítico (SILVA, 2020) de ter que esconder quem era, os seus desejos e sonhos, de não poder ser ele mesmo em um lugar que deveria acolhê-lo e protegê-lo, a sua própria casa, era difícil e doloroso.

Poderíamos rabiscar, aqui, muitas outras linhas da história desse garoto, cujo pulsar de vida atravessa este texto. Mas, como muitas delas estão espalhadas por aí, conectando-se a outras histórias e sentidos, decidimos parar por aqui. A história da criança que um dia foi e que ainda vive nele, como a de muitas outras crianças queer, bichas, (des)viadas, é atravessada pela linha de uma infância precária, mas também de uma infância que assusta, fascina, luta e resiste. Trata-se de histórias de infâncias monstruosas, infâncias que estão situadas no limiar do tornar-se. Infâncias de nosso tempo. Essas infâncias, assim como os monstros que elas carregam, são nossas filhas. Elas podem ser expulsas “para as mais distantes margens da geografia e do discurso, escondidas nas margens do mundo e dos proibidos recantos de nossa mente, mas elas sempre retornam” (COHEN, 2000, p. 54 e 55). Elas retornam, colocando em risco os nossos pressupostos e as nossas verdades, “[...] nos perguntam como percebemos o mundo e nos interpelam sobre como temos representado mal aquilo que tentamos situar [...]. Elas nos perguntam por que as criamos”.

Notas

4A notícia está disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/11/politica/1505164425_555164.html. Acesso em: 2 out. 2021.

6O dossiê foi publicado em maio de 2018 e está disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/issue/view/1651. Acesso em: 15 jun. 2018.

7“Fazer a pêssega” é uma gíria utilizada por pessoas LGBTI+ e significa “se fazer de boba, de lesa, de abestalhada”. Disponível em: http://www.qualeagiria.com.br/giria/fazer-a-pessega/. Acesso em: 5 jul. 2018.

8“Dar close”, no vocabulário LGBTI+, é o mesmo que “dar pinta”, ou seja, assumir uma postura afeminada, propositalmente ou não, “mostrar afetação”. Disponível em: https://tocadotexugo.wordpress.com/2010/10/01/dicionario-gay/. Acesso em: 5 jul. 2018.

9“Fazer a egípcia” é uma gíria LGBTI+ que significa “virar a cara e ficar de perfil (como as figuras egípcias), a fim de menosprezar ou ignorar alguém” ou alguma situação. Disponível em: https://tocadotexugo.wordpress.com/2010/10/01/dicionario-gay/. Acesso em: 5 jul. 2018.

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Recebido: 10 de Agosto de 2021; Aceito: 30 de Novembro de 2021

Prof. Ms. João Paulo de Lorena Silva

Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil)

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social

Colégio Marista Padre Eustáquio, Belo Horizonte, Brasil

Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Currículos e Culturas

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-4855-0197

E-mail: joaopaulopalmas@gmail.com

Profa. Dra. Marlucy Alves Paraíso

Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Currículos e Culturas

Pesquisadora Produtividade em Pesquisa (CNPq, Nível 1B)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-3542-4650

E-mail: marlucyparaiso@gmail.com

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