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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.63 Natal jan./mar 2022  Epub 22-Fev-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n63id27689 

Artigo

A Pedagogia da Alternância e a Psicologia Histórico-Cultural de Lev Vigotski

The Pedagogy of Alternation and the Historical- Cultural Psychology of Lev Vigotski

La Pedagogía de la Alternancia y la Psicología Histórico- Cultural de Lev Vygotsky

Wellington de Carvalho Pereira1 
http://orcid.org/0000-0001-7368-101X

Teresa Cristina Rego1 
http://orcid.org/0000-0002-1164-8094

1Universidade de São Paulo (Brasil)


Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar possíveis correspondências aproximativas entre os princípios fundamentais que sustentam a metodologia da Pedagogia da Alternância, com os fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural de Lev Semionovich Vigotski, especialmente no que tange à noção de vivência (perejivanie) e de signos culturais como mediadores das internalizações e formação das funções psíquicas superiores. Fomenta-se tal empreitada à escassez de trabalhos nessa direção. Para tanto, fundamenta-se a argumentação por meio da revisão bibliográfica que trata dos respectivos temas a partir de uma abordagem analítica qualitativa e reflexiva. Com esse propósito, primeiramente contextualiza-se a Pedagogia da Alternância e apresenta-se alguns dos principais fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural. Em seguida, apresenta-se algumas possíveis aproximações para concluir-se com a apresentação de aspectos de diferentes teorias educacionais libertárias, que também se aproximam das duas perspectivas em análise.

Palavras-chave: Pedagogia da Alternância; Psicologia Histórico-Cultural; Educação socialista; Vigotski

Abstract

The present article aims at analyzing possible approximate correspondences between the fundamental principles that support the methodology of the Pedagogy of Alternation, with the foundations of Lev Semionovich Vygotsky's Cultural-Historical Psychology, especially regarding the notion of experience (perejivanie) and of cultural signs as mediators of internalizations and formation of higher psychic functions. Such an endeavor is encouraged by the scarcity of work in this direction. Therefore, the argumentation is based on a bibliographical review that deals with the respective themes from a qualitative and reflexive analytical approach. With this purpose, we first contextualize the Pedagogy of Alternation and present some of the main foundations of Historical-Cultural Psychology. Then, some possible approaches are presented to conclude with the presentation of aspects of different libertarian educational theories, which also approach the two perspectives under analysis.

Keywords: Pedagogy of Alternation; Historical-Cultural Psychology; Socialist Education; Vygotsky

Resumen

El presente artículo tiene como objetivo analizar las posibles correspondencias aproximadas entre los principios fundamentales que sustentan la metodología de la Pedagogía de la Alternancia con los fundamentos de la Psicología Histórico-Cultural de Lev Semionovich Vygotsky, especialmente en lo que se refiere a la noción de experiencia (perejivanie) y de los signos culturales como mediadores de las internalizaciones y formación de las funciones psíquicas superiores. Se alienta tal empeño a la escasez de trabajo en esta dirección. Por tanto, la argumentación se basa en una revisión bibliográfica que aborda los respectivos temas desde un enfoque analítico cualitativo y reflexivo. Con este propósito, en primer lugar, se contextualiza la Pedagogía de la Alternancia, y se presentan algunas de algunos de los principales fundamentos de la Psicología Histórico-Cultural. Luego, se algunas posibles aproximaciones para concluir con la presentación de aspectos de diferentes teorías educativas libertarias, que también se acercan a las dos perspectivas bajo análisis.

Palabras clave: Pedagogía de la Alternancia; Psicología Histórico-Cultural; La educación Socialista; Vygotsky

Introdução

De modo geral, a instituição escola em sociedades escolarizadas é concebida como essencial na introdução aos conhecimentos científicos e, consequentemente, no desenvolvimento das capacidades mentais, psicológicas e emocionais. Complementarmente, pode-se considerar que o conhecimento humano tenha suas bases mais elementares a partir, primeiramente, das necessidades biológicas humana de existência e, posteriormente, nas relações histórico-sociais que se desenvolvem erigidas e constituída na cotidianidade (HELLER, 1994), ou seja, na percepção empírica imediata do concreto (SAVIANI, 1999). Em termos vigotskianos, a apreciação desses dois momentos remete à noção de pensamento científico e pensamento espontâneo (VIGOTSKI, 2000; 2001), os quais, ainda que partam de pontos opostos e operem em chaves distintas, são complementares e concorrem em direção a se encontrarem. E tendem a se encontrar porque os seus campos de produção, ainda que típicos – escolar-científico e cotidiano de senso comum −, não são exclusivos: há cientificidade no cotidiano e senso comum na escola.

Justamente dessa possibilidade de complementariedade entre conhecimento científico e conhecimento espontâneo que se constrói a proposta deste artigo. Buscam-se possíveis aproximações entre os fundamentos da Pedagogia da Alternância e a Teoria Histórico-Cultural de Lev Vigotski em um pressuposto de formação e desenvolvimento integral do indivíduo a partir da evidência de correspondência entre escola e cotidiano social. Formulamos a ideia a respeito de possíveis aproximações teóricas através do entendimento de aprendizagem, formação e desenvolvimento dos sujeitos a partir tanto da escolarização, quanto das condições materiais e simbólicas de existência do cotidiano. Apesar de uma noção genérica de escola, a reflexão se debruça sobre a concepção de tempo e espaço, assim como de cultura e forma escolar e toda a sua complexa dinâmica que corresponde a localidades, contextos sociais, modalidades e instâncias de ensino. Uma escola que não vise somente o cumprimento da burocracia da jornada de escolarização, mas, sim, a formação do sujeito reflexivo em um horizonte de desenvolvimento material e simbólico, comprometido com a noção de coletividade.

A partir do levantamento em bancos de dados como o Scientific Electronic Library Online (SciELO) e nos Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, quando se restringe a busca por descritores específicos como “Pedagogia da Alternância e Vigotski” (e as outras formas de grafar o nome do autor), ou “Pedagogia da Alternância e Psicologia Histórico-Cultural” constata-se a insuficiência de trabalhos no tema. Essa escassez de pesquisas acerca de possíveis aproximações teóricas entre a Pedagogia da Alternância e Vigotski é confirmada no estado da arte sobre Pedagogia da Alternância elaborado por Teixeira, Bernartt e Trindade (2008), que identifica apenas uma correlação distante entre Pedagogia e a Psicologia Histórico-Cultural no trabalho de Pereira Nascimento (2000).

Nessa esteira, o objetivo aqui é analisar possíveis correspondências aproximativas entre os princípios fundamentais que sustentam a metodologia da Pedagogia da Alternância com os fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural de Lev Semionovich Vigotski, especialmente no que tange à noção de vivência (perejivanie) e de signos culturais como mediadores das internalizações e formação das funções psíquicas superiores. Isto posto, iniciamos por apresentar aspectos das bases teórico-práticas da Pedagogia da Alternância para, em seguida, explicitar, de forma geral, pontos da Psicologia Histórico-Cultural que, avaliamos, permeiam a teoria da Pedagogia da Alternância e, finalmente, argumentar sobre possíveis aproximações teórico-metodológicas dessa metodologia com os fundamentos da Teoria Histórico-Cultural sobre vivências e mediação simbólica. Nas conclusões, por não identificarmos as bases teóricas explicitamente próprias da teoria da metodologia da Pedagogia da Alternância, apresenta-se brevemente algumas teorias que avaliamos serem possíveis pilares epistemológicos de sustentação dessa metodologia, como a noção de escola unitária em Antonio Gramsci, a instrução politécnica da Educação socialista em Anton Makarenko e Nadezhda Krupskaya, assim como aspectos da Educação libertária de Paulo Freire e a Pedagogia Histórico-Crítica de Dermeval Saviani.

Breves considerações sobre a Pedagogia da Alternância

Surgida na França no ano de 1935, a partir das maisons familiales rurales, o interesse central da Pedagogia da Alternância é o atendimento das demandas educacionais de crianças e jovens em correspondência com as particularidades das localidades rurais. Oportuniza, assim, possibilidades de reconhecimento e identificação de seus processos de transformação da realidade por meio do trabalho típico desse meio, assim como o reconhecimento das produções das condições de existência social e histórica (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2004). Ainda, reconhecimento e valorização das culturas e saberes locais enquanto territórios autônomos, independentes do meio urbano (CALDART, 2002).

Seguindo as mesmas intencionalidades da proposta francesa, apesar de ter sido fundada na iniciativa sociopolítica e religiosa italiana, por iniciativa da Fundação Ítalo-Brasileira pelo Desenvolvimento Religioso, Cultural, Econômico e Cultural do estado do Espírito Santo no Brasil (1966, Padova, Itália), a Pedagogia da Alternância no Brasil se inicia em 1968 com o Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (MEPES), a partir da fundação da Escola da Família Agrícola (EFA) de Olivânia, no município de Anchieta. Nesse local, se ratificava a orientação pela busca da promoção humana, assim como das práticas agrícolas, culturais e econômicas locais (NOSELLA, 2012).

A motivação da experiência brasileira tinha por orientação contestar o sistema educacional tradicional de modo a atender as demandas educacionais e sociais das localidades agrícolas, como frear a forte tendência de êxodo rural (NOSELLA, 2012). A problemática da relação do Ser humano com a terra é uma perspectiva que permeia toda a sua estruturação, mas sem descuidar de uma reflexão mais universalista sobre as diferentes formas e modelos de relações e interações sociais. Como explica Nosella:

[...] não apenas pretende solucionar alguns problemas concretos específicos de certas áreas geográficas, mas também, em sua significação mais profunda, em sua história e organização mundial, pretende se constituir como válida alternativa a todo sistema escolar tradicional (NOSELLA, 2012, p. 35).

Entende-se que a mera reprodução da Educação tradicional do meio urbano aplicada de forma automatizada ao meio rural compromete a dinâmica local de entendimento do mundo e da respectiva formação identitária (NOSELLA, 2012). Pode-se afirmar, portanto, que a Pedagogia da Alternância carrega princípios teórico-metodológicos que buscam articular conhecimentos sistematizados tradicionalmente pertencentes ao meio escolar com conhecimentos comunitários socioculturais e profissionais adequados ao contexto de aplicação.

Assim, as demandas locais e as respectivas compreensões de mundo são apontadas como próprias dos processos educativos em diferentes possibilidades de escolarização. Todavia, por outra parte, não se propõe o isolamento cultural. Deve-se atentar para não confundirmos valorização cultural com isolamento ou xenofobia, mas, sim, como transculturalismo. Alguns trabalhos apontam o risco de cairmos na armadilha de supervalorização isolada de culturas; ou ainda, no uso da Pedagogia da Alternância enquanto “política pública” de criação de guetos por meio de uma visão hierarquizada entre culturas, entre urbano e rural, impedindo o acesso do meio rural à cultura e realidade urbana e vice-versa (SILVA, 2020a).

A orientação que se assume é a da valorização dos saberes populares e das culturas regionais e locais como possíveis partes constitutivas dos processos de escolarização, proposta que se sustenta na conciliação horizontalizada dos tempos e espaços escolares com os de convívio comunitários, em contraposição à Pedagogia tradicional.

Há um princípio importante na Pedagogia da Alternância que gira em torno do tempo livre, desinteressado, mas dotado de capacidade criativa e criadora, assim como o reconhecimento das possibilidades educativas a partir do trabalho. Ou seja, segundo a Pedagogia da Alternância, a escola não pode existir simplesmente para atender demandas funcionais das relações sociais instituídas, nem tampouco se orientar pelo atendimento exclusivo de necessidades materiais, ainda que as condições materiais de existência sejam um horizonte. O que é exortado é o princípio de pensar em si mesmo enquanto sujeito em uma realidade e pertencente a um contexto, pertencimento que se efetiva por meio das formas de apreensão, interpretação e compreensão dessa realidade, na qual os signos culturais têm funções elementares.

Os processos educativos se dão a partir da confluência entre tempo-comunidade de conhecimento popular e tempo-escola de conhecimento sistematizado, que são colocados em igualdade de importância. Grosso modo, no tempo-escola, em um primeiro movimento, elaboram-se diretrizes norteadoras para ações reflexivas no tempo-comunidade. Nesse movimento educativo de inter-relação na comunidade, serão forjadas novas reflexões a partir de eventuais demandas sociais da localidade, as quais, posteriormente, serão compartilhadas no retorno ao tempo-escola. Esse movimento dialógico e dialético das ações educativas que transitam entre os conhecimentos dos diferentes espaços e tempos talvez seja a fundamentação elementar da Pedagogia da Alternância. Na mesma direção, em coincidência com a Psicologia Histórico-Cultural, a Pedagogia da Alternância opera na chave de entendimento em que as aprendizagens mais significativas se dão nas inter-relações sociais no ambiente.

Tal processo ocorre pela articulação de diferentes temáticas educacionais de modo a construir um diálogo horizontalizado entre a teoria científica e a prática cotidiana de experiências vivenciadas (GIMONET, 2007). Neste ponto, pode-se pensar tanto na construção de sentidos para os conhecimentos teóricos escolares, quanto em construções de experiências educativas significativas por meio da práxis mediada por linguagens inteligíveis, remetendo ao que Vigotski denomina de vivências (perejivanie).

Esses indícios iniciais contidos na metodologia evidenciam a valorização das formas como as pessoas das localidades específicas se relacionam e se apropriam do conhecimento sócio-histórico (OLIVEIRA, 2012). Seu horizonte, portanto, é a busca por correspondências entre o conhecimento sistematizado e as demandas da localidade, o que significa formação do educando a partir da pluralidade de possibilidades em relações sociais concretas.

Pedagogia da Alternância e Psicologia Histórico-Cultural: primeiras aproximações

Ainda que a escola seja o lugar típico do pensamento científico, ou do conhecimento sistematizado, e o cotidiano, o lugar do senso comum e do pensamento espontâneo, não devem ser entendidos como espaços exclusivos. O pensamento espontâneo e o pensamento científico não são incompatíveis, ainda que opostos. Primeiro porque esses dois tipos de conhecimentos se desenvolvem em direção a se encontrarem: o espontânea parte do concreto em direção ao abstrato e o científico parte do abstrato em direção ao empírico sobre o concreto. Segundo porque os dois são tipicamente complementares: enquanto o pensamento espontâneo é a base, no sentido de desenvolvimento de capacidades ou estrutura geral para compreender conceitos e abre caminho para a formação do pensamento científico a partir de seu caráter prático, o conhecimento científico oportuniza conhecer o objeto da realidade e a própria realidade em maior profundidade (VIGOTSKI, 2001). Ao pensar as noções de conceito espontâneo e conceito científico, Vigotski tem por interesse evidenciar que o processo de formação conceitual do primeiro funciona baseado em categorias difusas, muito atrelado ao contexto e às ações práticas, enquanto o segundo opera na chave da relação lógica (SCHROEDER, 2007).

A reflexão sociopolítica em suas diferentes dimensões é um outro princípio elementar da Pedagogia da Alternância. É por isso que as instâncias decisórias e avaliativas, tanto escolares quanto socioculturais da localidade, passam pela comunidade. O forte caráter político da Pedagogia da Alternância se manifesta na concepção de unidade que concerne à reflexão sobre as condições de vida das localidades quando dos processos educativos, em uma relação intrínseca, em que os educandos são entendidos como agentes ativos da interação entre conhecimento científico e conhecimento de senso comum. Essa interação se apresenta como base na construção de suas particularidades e avaliações subjetivas no processo de delineamento de novas impressões, concepções, interações e relações com a realidade, levando a transformações dos conhecimentos na realidade. Trata-se, portanto, de diferentes níveis de transformações: de si, das relações com os conhecimentos e dos próprios conhecimentos.

Pode-se caracterizar, portanto, que a metodologia da Pedagogia da Alternância se constitui pela teoria, pela prática e pela práxis, mas nunca em uma dinâmica automatizada que levaria a criar uma hierarquização entre teoria e prática. A correlação entre teoria e prática concretizada na práxis da Pedagogia da Alternância pressupõe o exercício psíquico, intelectual e emocional, pressupõe uma reflexão crítica na ação prática e remete à unidade dessas duas dimensões de existência, o que se aproxima bastante da obra de Paulo Freire. É uma proposta que tem interesse na aplicação da teoria na realidade vivida reflexivamente.

É ainda uma Pedagogia com características vocacionais, que tem no horizonte mudanças sociais por meio de processos educativos escolarizados compatíveis com o trabalho humano, os quais devem se orientar pela concepção de coletividade, ou, mais especificamente, pela participação coletiva e comunitária crítico-reflexivas na dimensão democrática. Não se entende, portanto, características vocacionais no sentido de ensino de um ofício laboral ou mera profissionalização. A caracterização vocacional se torna um problema quando assumida exclusivamente como centralidade nos processos educativos, ou, de forma mais exata, quando os ensinamentos de ofícios profissionais substituem os processos educativos. Todavia, quando características vocacionais se apresentam em complementariedade aos processos educativos, operam na chave do entendimento da prática laboral dotada de potência na mediação das aprendizagens significativas. Isso se dá justamente em decorrência da argumentação que se elucida até aqui em relação às contextualizações, às linguagens conhecidas e reconhecíveis, às experiências situadas etc.

Algumas pesquisas atrelam a metodologia da Pedagogia da Alternância a princípios profissionalizantes, uma vez que esta se pauta pela valorização da cultura e conhecimentos de senso comum marcados pela prática do trabalho. Gimonet (2007) diz que a Pedagogia da Alternância, em algum momento, fora anunciada na França como orientação e inserção profissional, adaptação ao emprego, qualificação profissional e, em menor grau, como preparação para processos seletivos. Outros autores (CLÉNET; GÉRARD, 1994) ainda concebem essa metodologia como uma parceria escola-empresa. A partir da década de 1980 na França, a Pedagogia da Alternância expande-se no sentido de formação técnica funcionalista. No entanto, a perspectiva que se assume aqui é que formação educativa escolar correlacionada ao trabalho humano produtivo-criativo não necessariamente significa profissionalização (MARX, 1983; GRAMSCI, 2000).

Como bem nos ensina Nosella (2012), a Pedagogia da Alternância não é profissionalizante, mas, sim, um momento (espaço-tempo) de reflexão crítica sobre a realidade vivenciada, abarcando as formas de produção e o mundo do trabalho em suas diferentes dimensões. É um tempo de se pensar os conhecimentos sociais corriqueiros em correspondências com os princípios de sistematização do conhecimento por meio de princípios científicos. Em última instância é conceber a equivalência entre conhecimento científico e conhecimento de senso comum em uma dimensão de complementariedade necessária à formação humana do sujeito.

Esquematicamente, em um primeiro movimento, a Pedagogia da Alternância é reflexiva, pois propõe a aplicabilidade da teoria na realidade em circunstâncias contextualizadas. Em um segundo movimento, é crítica, pois o seu arcabouço teórico-prático se orienta e se fundamenta no reconhecimento de correspondências entre teoria científica e prática cotidiana, além das respectivas possibilidades de transformações positivas da realidade. Daí a necessidade de articulação entre tempo-escola (período de aulas na escola e articulação entre estudo, pesquisa e proposta de intervenção) e tempo-comunidade (experiências no ambiente social da comunidade, localidade ou região, pesquisa, experimentos e “trabalho” no sentido de experienciar atividades) (SILVA, 2020a). É o reconhecimento da igualdade de direitos nos processos educativos entre família, comunidade e escola. Entende-se, portanto, que os diferentes espaços e tempos – escolar, familiar, social, comunitário – são legítimos nos e para os processos de ensino-aprendizagem, desenvolvimento e formação. É um movimento em direção à integralização comunidade-escola, proporcionando à integralidade das pessoas envolvidas – docentes, educandas1, famílias e comunidade –refletir sobre esses espaços e tempos e sobre a realidade.

Aprofundando-se em sua definição, existem dois eixos metodológicos norteadores na proposta da Pedagogia da Alternância: formação integral e desenvolvimento local. O conceito de formação integral, aqui descrito, não tem sentido tradicional de tempo integral, mas, sim, da qualidade formativa escolar que abarca diferentes dimensões, subjetiva e objetiva, da vida. A ideia de desenvolvimento local está voltada à cultura, costumes e hábitos locais, mas também ao desenvolvimento econômico, no sentido de condições materiais adequadas de existência por meio de atividades e práticas coletivas em diferentes dimensões, de educandas, monitores/professores, gestão escolar, família, comunidade. Formação integral na direção de construção de conhecimentos e saberes articulados e compartilhados, em que o indivíduo se reconheça enquanto sujeito (construção de identidades) e agente social que produz história tanto em âmbito individual quanto coletivo.

Pensar a realidade a partir de conhecimentos sistematizados e conhecimentos de senso comum significa compreender o mundo em sua totalidade de forma integral e dialética. Possivelmente, também significa a construção e a reconstrução dos signos mediadores das relações e interações, produzindo novas significações que dotem de sentido a escolarização, remetendo ao conceito de vivência. A área do retângulo ou a fórmula de Bhaskara deixa de ser apenas um conteúdo obrigatório do currículo e passam a ser entendidos enquanto recursos para se pensar a realidade.

Pensar os conhecimentos escolares como recurso de intervenção na realidade remete à relação dos processos educativos com o trabalho humano. Nesse sentido, escola e trabalho não são incompatíveis; processos educativos produtivo-criativos são incompatíveis com a concepção de trabalho capitalista, majoritariamente em sua forma emprego e, contemporaneamente, com o forte avanço da precarização do trabalho, que também se estende ao conceito de “empreendedor de si” (BRAGA, 2017). Assim, podemos definir essa metodologia pelo seu caráter que se fundamenta tanto na Educação formal, quanto no trabalho produtivo-criativo, mas que é pensada em dimensões que se expandem, erigidas na conciliação entre conhecimento sistematizado e conhecimento de senso comum.

O método fomenta algumas inciativas práticas para a sua efetivação, ou, como denominado na Pedagogia da Alternância, instrumentos pedagógicos para as práticas educativas, quais sejam: plano de estudos; colocação em comum; caderno da realidade; visita de estudo; visita à família; projeto profissional do jovem; intervenção externa; atividade de retorno; acompanhamento individual; avaliação semanal; caderno de acompanhamento; cursos etc.

Os instrumentos que compõem o método e que, juntamente com as concepções teóricas, forjam a metodologia, iniciam com o plano de formação, que organiza as disciplinas, e com os planos de estudos. Tal organização acaba por ordenar a constituição do caderno da realidade (SILVA, 2020).

O objetivo do plano de formação é formalizar, organizar e visualizar os conteúdos e as finalidades da formação integral (SILVA, 2020b; 2019). São as diretrizes norteadoras dos objetivos, das finalidades, sempre a partir de duas dimensões, a da escola e o da realidade vivida (comunidade), concretizados no currículo ou no programa das disciplinas e o do cotidiano, como experiências, cultura, lazer, trabalho. Coletivamente, pode-se construir eixos temáticos a partir de demandas do momento, os chamados temas geradores. Tem-se, então, o momento de “aplicação do plano de estudo”. A partir desse primeiro diálogo, se formulam questões norteadoras para a pesquisa do plano de estudo, o qual será desenvolvido no tempo de comunidade (SILVA, 2019).

A partir dos temas geradores, formulados coletivamente, tem-se o horizonte para se pensar as demandas da comunidade. Ou seja, são temas geradores (facilitadores) que oportunizam a reflexão crítica da realidade na qual os sujeitos estão imersos. O plano de estudos, construído coletivamente, é um “guia” no sentido de propor diretrizes norteadoras dos estudos ao longo do ano. Deve ser entendido como uma ferramenta para conscientizar os educandos e as famílias sobre suas práticas na realidade, sua existência no mundo e suas identidades.

A visita de estudo é um tipo de investigação guiada, referente a uma experiência concreta que, em alguma medida, apresenta correlação com os temas geradores, com as questões demandadas e com o plano de estudo. É uma forma de se conhecer uma atividade profissional ou cultural (SILVA, 2019).

As intervenções externas não acontecem em um momento exato e podem se constituir em diferentes expressões como cursos, palestras, seminários em que o coletivo constitutivo da Pedagogia da Alternância apresenta os conhecimentos produzidos ao público externo. Sua característica é a troca de conhecimentos, em que o grupo de estudantes apresenta os conhecimentos adquiridos e busca a ampliação das reflexões por meio das discussões e diálogos com os participantes (SILVA, 2019).

Todo esse movimento demanda algum recurso de registro, momento este em que se concebe o material chamado de monografia de propriedade, ou caderno da realidade (o nome pode variar também para monografia de comunidade como na França, em 1946). Deve ter por tema as práticas profissionais que envolvem a família e a comunidade e ser uma produção conjunta de educandos e familiares, que se refere às práticas socioculturais e profissionais da comunidade, a partir de observações e coleta de informações na cotidianidade – é um relatório detalhado. Deve acumular os registros das diferentes pesquisas acerca dos temas geradores. Textos produzidos a partir de interações sociais horizontalizadas, nos quais o educando tem autonomia na escrita (NOSELLA, 2012).

Podemos considerar o caderno escolar um instrumento importante na aquisição das ferramentas escolares, especialmente da escrita e das formas corretas de utilização dos espaços do caderno enquanto artefato para registro e autoria (MARCUSCHI, 2001). O caderno da realidade avança fronteiras abarcando todos esses aspectos e alcançando a autoria coletiva, em que as reflexões são compartilhadas, efetivando-se em um documento histórico. Após algum tempo razoável, chega-se à iniciativa denominada colocação em comum, devendo ser pensadas formas de compartilhamento da pesquisa, da coleta de dados, das reflexões, dos resultados ou das conclusões.

A partir da pesquisa no tempo de comunidade, e da colocação e reflexão compartilhada, cada estudante produz uma síntese reflexiva do plano de estudos pontuando aquilo que avalia ser o mais importante, que se constitui em uma referência para reflexões em momentos futuros. Por isso, pode ser entendido como um documento histórico (SILVA, 2019).

Vivências e mediação simbólica na Teoria Histórico-Cultural e a correspondência na Pedagogia da Alternância

Caso atentemos aos aspectos mais gerais, a perspectiva da Teoria Histórico-Cultural encontra alguma correspondência, como se verá, com a Pedagogia da Alternância naquilo que concerne à aproximação entre as diferentes instâncias de conhecimento de modo a proporcionar linguagens inteligíveis e dotadas de sentido às educandas. Similarmente à Psicologia Histórico-Cultural, na Pedagogia da Alternância atribui-se grande importância ao domínio da linguagem específica apropriadas pelos membros de um determinado grupo, aludindo que, por meio dessa mediação reconhecível, se apreende adequadamente a realidade e os significados internos ao grupo e se percebe coerentemente a construção de seus sentidos em contextos específicos.

Do mesmo modo, a abordagem vigotiskiana aponta para a necessidade de se buscar o entendimento da ontogênese e da filogênese da formação e o respectivo desenvolvimento das funções superiores da psique humana por meio das internalizações da realidade vivida e vivenciada. Estas também são mediadas pelas diferentes manifestações simbólicas culturais e, em grande medida, a partir de ações intencionais que demandam esforço cognitivo, como no exemplo da Pedagogia da Alternância, e a compreensão sobre os ofícios laborais locais como mediador das significações dos conhecimentos teóricos escolares.

Pode-se afirmar que tanto na Teoria Histórico-Cultural como na Pedagogia da Alternância admite-se que o ambiente – levando em consideração os interesses, significados, motivos e sentidos correlacionados ao contexto – tem forte influência sobre os comportamentos e, paralelamente, sobre as aprendizagens e respectivos desenvolvimentos. Infere-se, portanto, que não se trata de desenvolvimento psíquico e subjetivo, em direção à socialização, mas, ao contrário, de individualizações das relações e interações sociais na formação de funções psíquicas superiores (internalizações individuais das funções sociais) por meio de aprendizagens e desenvolvimento a partir de mediações simbólicas no e pelo ambiente (VIGOTSKI, 2001).

Esse movimento de internalização das funções sociais aparece na Psicologia Histórico-Cultural como condutas e comportamentos (controle do corpo) assimiladas de forma que se transformem em funções psicológicas cristalizadas, ao fim e ao cabo, em consciência/subjetividade. Nesses termos, Vigotski define o Ser humano pelas internalizações das inter-relações sociais transformadas em funções psicológicas. Em termos da Pedagogia da Alternância, as inter-relações internalizadas aparecem como dimensões das ações práticas e dos comportamentos nas experiências situadas, as quais podem funcionar como signos mediadores na teorização do conhecimento escolar sistematizado, estabelecendo certo grau de unidade entre comunidade e escola.

A interiorização dos signos revela o caráter social do psiquismo humano. O signo é voltado para dentro, ou melhor, é um mecanismo de internalização social. Daí pode-se afirmar que a origem do psiquismo é biológica, mas sua estruturação em funções superiores é social. Assim, os comportamentos ou controle do corpo, em suas diferentes dimensões, também se complexificam por meio dos signos na internalização do social. O ser humano se humaniza em sociedade, mais precisamente, em meio cultural (PRESTES, 2013). Segundo a Psicologia Histórico-Cultural. Na esteira de Marx (1983), o Ser humano é essencialmente cultural, justamente porque não se contentar com a natureza dada e necessita da transformação da natureza por meio do trabalho. Ao transformar a natureza, transforma a si mesmo e constitui a “História humana”, ou seja, produz a cultura, na qual o trabalho é um o signo mediador. Em dimensão menos expandida, o trabalho, enquanto produto e produtor cultural, é constituído por diferentes signos, assim como produz diferentes signos (PRESTES, 2010). É justamente nessa potencialidade do trabalho, enfatizada na Pedagogia da Alternância, que se reconhece a inseparável relação entre Educação e trabalho, que pode ser em sua forma profissional e especializada, em função das potencialidades criadoras e criativas e, por conseguinte, do exercício da reflexão crítica e do desenvolvimento do juízo moral.

A noção de trabalho na Pedagogia da Alternância coincide com o conceito de trabalho presente em Marx e Engels (2007) e, posteriormente, aceito por Vigotski na formulação da Teoria Histórico-Cultural na medida em que concebe o desenvolvimento humano a partir da relação e transformação da natureza. É por meio dessa transformação da natureza, na intencionalidade ou na perspectiva dos interesses humanos, que se alcança a cultura, a qual, por sua vez, gera demandas ao ser social em sua produção e desenvolvimento, que podem ser entendidas como novos interesses, que exigem formulações de novas atividades práticas de transformações da natureza. Essas práticas nada mais são que o trabalho, daí o seu caráter ontológico. É nessa perspectiva que aqui se fala da relação da Educação com o trabalho. O trabalho aqui se apresenta na sua forma original emancipada, criativa e criadora. É nesse interstício espaço-temporal entre as demandas geradas pela cultura e as formulações das práticas transformadoras de trabalho que se situam os novos desenvolvimentos das funções psíquicas superiores.

A formação da consciência – representada diretamente pelas aprendizagens e sentidos que concernem aos significados e motivos das experiências vivenciadas – é desenvolvida socialmente a partir do ambiente, que abarca tanto a espacialidade física da cultura quanto as relações e interações sociais. Como assevera Vigotski, as aprendizagens e o desenvolvimento mantêm estreitas relações com os significados e os respectivos sentidos do contexto, o que remete à constituição da singularidade do indivíduo. Porque é nesse contexto que se constituem as mediações simbólicas culturais mais facilmente reconhecíveis, em que o sujeito melhor domina e entende a dinâmica, a linguagem, as ideias e os próprios aspectos físicos do ambiente, oportunizando problematizar o próprio meio no qual está imerso.

[...] onde o meio não cria os problemas correspondentes, não apresenta novas exigências, não motiva nem estimula com novos objetivos o desenvolvimento do intelecto, o pensamento do adolescente não desenvolve todas as potencialidades que efetivamente contém, não atinge as formas superiores ou chega a elas com um extremo atraso (VIGOTSKI, 2001, p. 171).

Essas intersecções entre as diferentes formas de apreender o mundo levam a um tema caro à Teoria Histórico-Cultural, que é a intencionalidade humana nos processos de significações (ZALTRON, 2012; VIGOTSKI, 2001). Quando nos referimos à intencionalidade para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores é no sentido de que os processos mediados de aprendizagens remetem necessariamente a tipos de esforços e gastos de energia, como a percepção, planejamento, organização, imaginação, memória etc.

Essa intencionalidade não é necessariamente racional, também é constituída por “intencionalidades inconscientes”, ou seja, são entendimentos culturais do mundo internalizados que se cristalizam de tal modo no sujeito que não demandam mais gasto de energia racional para se expressar (PINO, 2000; 2016). A perspectiva da abordagem histórico-cultural entende que os processos de internalizações, ou de aprendizagens e desenvolvimentos, operam entre o consciente e o inconsciente. Na seara do inconsciente, é quando se fala em recorrência de fenômenos e, gradualmente, em constituição de significados e sentidos. Na seara do consciente, é quando se faz alusão aos motivos e motivações ou às capacidades reflexivas e avaliações dos sujeitos.

A intencionalidade na constituição do sujeito não é algo dado, em que o indivíduo se apresenta passivamente (inconsciente), nem decorre de ações puramente racionais interessados (consciente), mas diz respeito à atividade social contextualizada em determinada cultura (consciente e inconsciente) (SMOLKA, 2010).

Vigotski enfatiza que o que fica das inter-relações sociais são as suas significações. Nem toda experiência é imprescindível; experiência imprescindível é aquela vivenciada, o que quer dizer ser significativa. De forma muito resumida, é o conceito de perejivanie.

Toassa e Souza (2010) nos apresentam uma importante análise sobre o termo perejivanie. Colocam que se pode entender perejivanie como apreensões muito além do mero testemunho, muito além da noção de apreensão e interpretação, sendo antes um fenômeno que mobiliza diferentes aspectos da constituição psíquica. Seria uma experiência capaz de deixar marcas profundas, o que, por conseguinte, deixa de ser uma mera experiência, tornando-se uma vivência, podendo apresentar gradações, uma vez que decorre da interação da subjetividade com o ambiente, ou seja, das significações. “A consciência das vivências não é mais do que a tomada de consciência destes processos por parte de seu sujeito psicológico” (TOASSA; SOUZA, 2010, p. 770).

Ainda, a formação e o respectivo desenvolvimento do conjunto psíquico perduram ao longo da vida, haja vista que qualquer emoção ou sentimento proporciona revoluções internas (contradições entre biológico e cultural), mas o grau de afetação potencial depende da própria constituição da subjetividade do sujeito. É justamente por isso que as internalizações também se dão em graus diferentes. E a partir dos tipos de internalização, ou, dito de outra forma, das significações construídas sobre o evento ou fenômeno social, é que se exercerá maior ou menor influência sobre outros aspectos da vida (VYGOTSKY, 2009). É a intensidade da vivência que define a influência que acontecerá sobre o sujeito. Podemos dizer, portanto, que a contribuição da internalização de significações na formação da subjetividade corresponde à intensidade da vivência da experiência.

Vivências envolvem particularidades do ambiente, assim como particularidades da singularidade, em que a afetividade ou a forte carga emocional é vultuosa. Pode-se falar, portanto, que o indivíduo em suas singularidades vivencia determinadas circunstâncias situadas, caracterizando a atividade que une a subjetividade e o ambiente enquanto processo, ainda que subjetividade e ambiente sejam instâncias autônomas. Essa definição ratifica que o ambiente só existe enquanto tal na presença da subjetividade que o apreende e o interpreta (LEONTIEV, 1978).

Perejivánie em russo assume o significado de “estado da alma” sob influência de forte emoção ou sensação, ou mesmo de fortes impressões, derivado de “perijet”, viver algum tempo, e “perijivat”, que é sentir emoção, sentir o papel social. Daí que, na noção de perejivanie, tem-se entre os significados algo como transformação elementar da essência (ZALTRON, 2012). Fala-se, ainda, em vida em transformação, mas, dada a presença da forte emoção, pode-se pensar enquanto uma transformação próxima de ser definitiva, ou, ao menos, fortemente consistente no tempo, tornando o sujeito parte do ambiente, transformado pelo ambiente, assim como o transforma.

Essa conceituação nos remete exatamente à ideia do desenvolvimento humano atrelada à dimensão material e histórica, assim como às condições socioculturais e simbólicas em que essas dimensões se realizam. Ou seja, as relações e interações objetivas e subjetivas humanas, concepção do materialismo histórico-dialético de Marx e Engels, são fundamentações aceitas por Vigotski. Não se tratam de concepções empiristas positivistas, mas da formação da subjetividade, ou da consciência, se preferirmos, que se dá na realidade vivida, não em sua mera concretude, mas na imersão proporcionada por signos culturais mediadores das significações. Avalia-se, assim, que a Pedagogia da Alternância manifesta diferentes pontos teóricos de coincidência com a Psicologia Histórico-Cultural.

Considerações finais ou das articulações entre Pedagogia da Alternância e a Educação socialista

Parece ser valiosa, enquanto enunciação e para possíveis novas pesquisas, fazer a articulação da fundamentação da Pedagogia da Alternância com a dimensão teórica da Psicologia Histórico-Cultural com a Educação socialista a partir de algumas referências como Makarenko (1976) e Krupskaya (2017), passando pela concepção de Gramsci (2000) da escola unitária, até alcançar Paulo Freire com a Educação libertária e Saviani (1999) com a pedagogia histórico-crítica. Faz-se essa correlação entre a Pedagogia da Alternância e a Educação socialista, primeiramente, por considerarmos existir princípios coincidentes entre as duas dimensões e, em segundo lugar, por Vigotski, assim como Makarenko, Krupskaia e Gramsci, terem por uma de suas responsabilidades enquanto teóricos em contexto revolucionário, pensar a constituição do sujeito em uma perspectiva socialista.

O principal lastro da Pedagogia da Alternância é a noção de Educação integral, em que suas práticas e concepções não se reduzem àquilo que é definido pela Educação escolarizada em suas práticas isoladas, mas, sim, ao atrelamento às atividades sociais e ao mundo do trabalho: As ações educativas.

A Educação socialista do início do século XX também pode ser entendida como constituinte do arcabouço teórico-metodológico da Pedagogia da Alternância. Isso porque a Pedagogia socialista, pensada inicialmente por Makarenko, concebe, em um primeiro momento, os processos escolares de ensino-aprendizagem na dimensão da humanização dos sujeitos, o que significa pensar tais processos em correspondências e, paralelamente, aos diferentes processos de constituição da organização social (CAPRILES, 2002). Por outra parte, entende-se também que o atrelamento entre processos escolares e sociais acontece a partir de concepções sobre o trabalho humano em tempo disponível, no sentido de atividade laboral criativo-produtiva e de transformação da natureza, por meio da livre associação entre sujeitos autônomos e reflexivos, orientados para a produção em atendimento às necessidades de subsistência (MARX, 1983).

Avalia-se aqui que a propostas da Pedagogia da Alternância também contém alguns princípios elementares da Educação socialista de Makarenko no que concerne ao envolvimento da família nos processos educativos da escola, assim como nas atividades extracurriculares paralelas e complementares às atividades escolares (MAKARENKO, 1976). “Por objetivo da educação entendo um programa da personalidade humana, um programa do caráter humano, com a particularidade de que no conceito de caráter incluo todo o conteúdo da personalidade” (MAKARENKO, 1976, p. 60).

O que se evidencia é que, mesmo sem mencionar explicitamente, se trata da dimensão do materialismo histórico-dialético e, por conseguinte, as práticas educativas só podem ser concebidas como integrais tendo como ponto de partida e de chegada as práticas sociais. Na esteira da educação socialista, tecendo um paralelo com o contexto brasileiro, a mesma ideia é abordada na proposta da Pedagogia Histórico-Crítica de Demerval Saviani (2008; 2013), em que os processos de produção de conhecimento na constituição do sujeito são mais importantes que o acúmulo propriamente dito de conteúdos, de modo que tais conhecimentos sejam tributários e façam sentido social e historicamente, favorecendo “[...] o diálogo dos alunos entre si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente [...]” (SAVIANI, 2008, p. 55-56).

A identificação de elementos da Teoria Histórico-Cultural presentes na Pedagogia da Alternância ampara-se nessa ideia de ação educativa escolar permeada pela prática social e mediada pelo trabalho, que também é uma metodologia para o desenvolvimento reflexivo na Pedagogia socialista.

Ainda, a proposta da Pedagogia da Alternância, assim como na obra de Paulo Freire (1986), define a Educação como um processo de conscientização que tem como objetivo a libertação e a emancipação do sujeito. E se o ponto de chegada é a emancipação do sujeito, o caminho não pode ser outro senão aquele construído pelo sujeito que aprende, que, nos dizeres de Hannah Arendt (2011), é um aprendente, a novidade no mundo, o elo entre o passado e o futuro e que pode proporcionar transformações significativas.

Isso não significa, porém, que a Pedagogia da Alternância seja uma metodologia dogmática, mas que aponta enfaticamente que o processo educacional começa na experiência vivenciada, dialoga com o conhecimento sistematizado e retorna ao cotidiano, em um movimento contínuo de idas e vindas (NOSELLA, 2012): “[...] parte-se da experiência da vida cotidiana (familiar, profissional, social) para ir em direção à teoria, aos saberes dos programas acadêmicos, para em seguida, voltar à experiência, e assim sucessivamente” (GIMONET, 2007, p. 16).

É a mesma ideia presente na função social da escola na formação multifacética das gerações, que representa a garantia de futuro, apontada por Krupskaya, em que o trabalho em sua expressão educativa, necessariamente, media as relações sociais e, consequentemente, os processos escolares. Esse é um escopo muito parecido com a proposta da escola unitária de Gramsci (2000), que aproxima a Educação do cotidiano, que pode ser exemplificado nas vivências que significam autoeducação, pois transforma a si mesmo e a sociedade. “[...] o estudo ou a maior parte dele deve ser (ou assim aparecer aos discentes) desinteressado, ou seja, não deve ter finalidades práticas imediatas ou muito imediatas, deve ser formativo ainda que ‘instrutivo’, isto é, rico de noções concretas” (GRAMSCI, 2000, p. 49). Assim, talvez estejamos autorizados a dizer que a fundamentação da metodologia da Pedagogia da Alternância seja uma prática educativa dotada de sentido a partir das vivências pedagógicas situadas no contexto do cotidiano e nas considerações de constituição dos sujeitos por meio da interação com o ambiente.

Nota

1Em diferentes momentos do texto, faz-se a escolha pelo gênero feminino nas expressões para marcar a posição sociopolítica por equidade de gênero.

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Recebido: 10 de Janeiro de 2022; Aceito: 20 de Janeiro de 2022

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Profa. Teresa Cristina Rego Universidade de São Paulo (Brasil) Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPQ Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-1164-8094 E-mail: teresare@usp.br

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