SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.60 número63¿ Cuánto vale el trabajo del (de la) profesor (a)? Carrera y remuneración (1932-1964)Las representaciones sociales sobre el futuro de los jóvenes periféricos y sus aportaciones a las prácticas socioeducativas índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.63 Natal ene./mar 2022  Epub 22-Feb-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n63id27025 

Artigo

O acesso à educação infantil em tempo integral: do direito “público” à judicialização

The access to full - time early childhood education: from "public" right to judicialization

Acceso a la educación infantil a tiempo completo: del derecho “público” a la judicialización

Franceila Auer1 
http://orcid.org/0000-0002-1913-854X

Vania Carvalho de Araújo1 
http://orcid.org/0000-0002-7678-1689

1Universidade Federal do Espírito Santo (Brasil)


Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar as justificativas mais recorrentes das famílias que demandam vagas para seus filhos nas instituições públicas de educação infantil em tempo integral no município de Vitória - Espírito Santo. Adota como metodologia a análise documental de oito demandas judiciais e extrajudiciais apreciadas pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Justiça. À luz do pensamento de Hannah Arendt, problematiza a relação entre judicialização, direito e política. Os resultados indicam que as solicitações das vagas pelas famílias estão associadas às suas necessidades socioeconômicas, tais como trabalho remunerado intra e extradomiciliar, e situação de vida marcada pelo risco e vulnerabilidade social. Conclui-se que, embora o direito à educação infantil seja considerado público sob o ponto de vista constitucional, em um contexto de precarização de vagas, a judicialização da educação conduz o direito a partir de demandas privadas e interesses particulares, sem interlocução pública, o que aproxima o direito ao “mérito da necessidade”.

Palavras-chave: Direito e Hannah Arendt; Judicialização; Educação infantil; Tempo integral

Abstract

The paper aims to analyze the most constant justifications of families that demand enrollments for their children in public institutions of full-time early childhood education in the municipality of Vitória - Espírito Santo. It adopts as methodology the documental analysis of eight judicial and extrajudicial lawsuits treated by the Public Ministry and Court of Justice. In light of Hannah Hannah's thoughts, it problematizes the relationship between judicialization, law and politics. The results indicate that the enrollments requested by families are associated with their socioeconomic needs, such as paid work inside and outside the home, and life situation marked by risk and social vulnerability. We conclude that, although the right to early childhood education is considered public under the constitutional point of view, in a context of scarcity of vacancies, the judicialization of education leads the right from private demands and private interests, without any public interlocution, which brings the right closer to the "merit of necessity".

Keywords: Law and Hannah Arendt; Judicialization; Early childhood education; Full-time

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar los motivos más recurrentes de las familias que demandan plazas para sus hijos en instituciones públicas de educación infantil a tiempo completo en la ciudad de Vitória - Espírito Santo. Adopta como metodología el análisis documental de ocho demandas judiciales y extrajudiciales apreciadas por el Ministerio Público y el Tribunal de Justicia. A la luz del pensamiento de Hannah Arendt, problematiza la relación entre judicialización, derecho y política. Los resultados indican que las solicitudes de plazas por parte de las familias están asociadas a sus necesidades socioeconómicas, como el trabajo remunerado intra y extradoméstico, y la situación de vida marcada por el riesgo y la vulnerabilidad social. Se concluye que, si bien el derecho a la educación infantil es considerado público bajo el punto de vista constitucional, en un contexto de precariedad de plazas, la judicialización de la educación conduce el derecho desde demandas e intereses privados, sin interlocución pública, lo que acerca el derecho al “mérito de necesidad”.

Palabras clave: Derecho e Hannah Arendt; Judicialización; Educación infantil; Tiempo completo

Notas introdutórias

A educação infantil enquanto primeira etapa da educação básica deixa entrever a garantia do direito à educação às crianças de zero a cinco anos de idade, cabendo aos municípios a responsabilidade pela oferta de vagas, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (BRASIL, 1996). Se a matrícula das crianças em creches e em pré-escolas, seja em tempo parcial ou em tempo integral for obstruída, torna-se legítima a exigibilidade do direito à educação infantil mediante o sistema de Justiça. Em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2010), considera-se tempo parcial a jornada da criança na escola de, no mínimo, quatro horas diárias na instituição e tempo integral, igual ou superior a sete horas diárias.

De acordo com Silveira (2015, p. 186-187), o reconhecimento da educação infantil como um direito fundamental e social é assegurado nas normas constitucionais “[...] e ordinárias, não sendo sua concretização uma avaliação discricionária da administração pública e a não observância do atendimento pelo Poder Executivo, enseja sua proteção pelo Poder Judiciário”. Dessa forma, o direito público à educação está amparado em um “[...] instrumento da atuação do poder estatal, pois permite ao seu titular constranger [extra ou] judicialmente o Estado a executar o que deve” (DUARTE, 2014, p. 113). Há que se destacar que Poder Judiciário e o sistema de Justiça não se equivalem. Contudo, o Poder Judiciário faz parte do sistema de Justiça junto ao Ministério Público, à Advocacia Pública, à Advocacia e à Defensoria Pública (BRASIL, 1988).

Por isso, as famílias que não conseguem vagas para as crianças diretamente nas instituições de educação infantil vislumbram o sistema de Justiça como um mecanismo eficiente para obtê-las, o que tende a ser um movimento mais rápido do que acionar as instâncias municipais do Poder Executivo. De acordo com Cury e Ferreira (2010), a capacidade de se exigir o direito à educação pode ser definida como “justiciabilidade”, o que fomenta diversas ações que têm como perspectiva a obtenção de vagas em creches e pré-escolas brasileiras e a tentativa de se garantir o direito à educação das crianças, ao menos sob o viés do acesso. Uma pesquisa realizada por Araújo (2015) em vinte instituições de educação infantil em tempo integral de dez municípios capixabas evidencia a utilização de critérios socioeconômicos de matrícula e ações judiciais como formas predominantes de acesso das crianças à essas instituições.

Ao analisarmos o contexto do município de Vitória, localizado no estado do Espírito Santo, identificamos que a universalização da pré-escola é anunciada desde o ano de 2018, contudo, o mesmo não ocorre com o atendimento na creche em tempo integral, como elucida o documento Política Municipal de Educação Integral (VITÓRIA, 2018). Embora já tenha sido considerada a capital brasileira de referência na educação das crianças pequenas no início dos anos 2000 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), as próprias legislações municipais reconhecem o desafio de se ofertar o atendimento em tempo integral para todos. Isso fortalece a tese de que vem acontecendo o fenômeno da judicialização para solicitar as vagas que são negadas pelos Centros Municipais de Educação Infantil (Cmeis) devido ao descompasso entre a oferta do município e a demanda das famílias.

De acordo com Silveira (2015), a judicialização da educação é um fenômeno que pode ser definido como a transposição de conflitos educacionais dos Poderes Legislativo e Executivo para o sistema de Justiça. Contudo, ao assumirmos um compromisso público pelo direito à educação de todas as crianças, compreendemos que não apenas os Poderes Legislativo, Executivo e/ou Judiciário e o Ministério Público têm a responsabilidade de garantir esse direito, pois toda a comunidade política deveria protegê-lo. Aguiar (2017) afirma que a comunidade política não se trata de uma fabricação burocratizada, mas, sim, de uma comunidade de sentido em que os diferentes atores da sociedade participam e interagem, assim como conseguem criar uma rede de relações na pluralidade.

Segundo Aguiar (2019, p. 279), “[...] é a participação, a pertença efetiva a uma determinada comunidade política que garantirá, de fato, os direitos”. Ainda de acordo com o autor, são os direitos que vinculam os homens e as mulheres ao mundo e às atividades e relações diretas e/ou indiretas na presença de seus semelhantes. Para Aguiar (2019, p. 281), pertencer à comunidade política “[...] é ter acesso às coisas e aos lugares de fala capazes de expressar a potência humana [...]” e se reunir em função dos interesses comuns que estão fora dos homens e das mulheres, mas que são capazes de mobilizá-los. Partindo do pressuposto que a comunidade política é uma instância publicamente articulada, Aguiar (2019) entende que o que protege os homens e as mulheres na comunidade política não são apenas as normas jurídicas, mas sobretudo os vínculos concretos que eles possuem com os outros e o comprometimento assumido com o destino de todos.

Ainda que a Constituição da República Federativa do Brasil – CF (BRASIL, 1988) evidencie em seu art. 2º que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (BRASIL, 1988), para Sierra (2011), a relação entre os três Poderes é estreitamente conflituosa, pois o Poder Judiciário é incumbido de intervir sempre que necessário para garantir o ajustamento das “políticas públicas”, grosso modo, cabe a ele fiscalizar as ações dos outros Poderes de modo a prestar segurança jurídica. De acordo com Silva (2018), o Poder Judiciário não é um protagonista na efetivação de direitos na sociedade, mas revela-se como um guardião dos direitos previstos na CF (BRASIL, 1988) que se faz presente quando há falhas ou distorções na atuação dos outros dois poderes no seio do Estado Democrático de Direito.

Cabe aqui destacar que, ao citarmos a política, não estamos nos referindo necessariamente à administração estatal, pois a política ocorre na medida em que os seres humanos se reúnem e deliberam conjuntamente sobre assuntos comuns, o que não depende de um local privilegiado para se manifestar, mas sim da experiência compartilhada. Tais reflexões estão pautadas no pensamento de Hannah Arendt, que analisa o direito sob o ponto de vista da dignidade da política. “Seu ponto de vista não é a dogmática jurídica nem as teorias do direito e da lei [...] a perspectiva a partir da qual o assunto aparece na autora é a política” (AGUIAR, 2019, p. 279). Contudo, Aguiar (2017, p. 87) considera que “[...] abordar o direito em Hannah Arendt é um desafio. Esse repto acontece em razão da autora [...] nunca ter abordado sistematicamente o assunto”.

Ainda de acordo com Aguiar (2019, p. 279), “[...] o que define a existência ou não dos direitos não é o direito em si mesmo, mas a política”. Segundo Arendt (2006, p. 21), a política trata da convivência entre os diferentes e baseia-se na pluralidade e ainda: “[...] política e liberdade são idênticas e sempre onde não existe essa espécie de liberdade, tampouco existe o espaço político no verdadeiro sentido”. Com base no pensamento arendtiano, Brito (2013, p. 214) entende que a política “[...] é a vida em conjunto [...] é a convivência humana que não é natural – isto é, que é regida pelo princípio da liberdade e por isso é construída pelos homens conjuntamente”. Para Arendt (2006), a política constitui-se enquanto relação entre os homens e as mulheres, sem que haja força, mas com liberdade e igualdade, fundando um entre-lugar por meio do convencimento mútuo e da persuasão.

Segundo Sierra (2011), a maioria das demandas judiciais que chegam ao Poder Judiciário tem o viés individual, mas ações coletivas vêm sendo organizadas a fim de pressionar com mais intensidade o Estado para garantir os direitos. Oliveira, Silva e Marchetti (2018) ressaltam que há uma tendência de que as ações judiciais pelo direito à educação infantil sejam mediadas por demandas coletivas, visto que tal direito social não é válido apenas para um indivíduo, mas para toda a sociedade. No entanto, isso não exclui a possibilidade de que ele também seja exigido individualmente. Arendt (2018, p. 216) expõe “[...] o conflito intrínseco entre os interesses dos indivíduos mortais e o interesse pelo mundo comum que estes habitam [...]”, uma vez que os interesses próprios determinados pelas necessidades da vida sempre são mais urgentes do que os do bem comum. Arendt (2020) entende que o mundo comum é aquele que entramos quando nascemos e deixamos quando morremos, assim, a sua durabilidade transcende a vida individual de cada pessoa, mundo este que é fruto da obra humana e não simplesmente um espaço físico.

As vagas proferidas pelo sistema de Justiça contribuem para um maior acesso às instituições escolares, contudo, “[...] sem ampliar ou democratizar sua condição ‘pública’, isto é, sem que se tenha ampliado seu status de bem comum” (GENTILI, 2009, p. 1071). Para Oliveira, Silva e Marchetti (2018), as demandas judiciais de caráter individual não ferem o interesse público, pois o sujeito que exige seu direito defende o benefício de todos.

A nosso ver, essa discussão requer algumas problematizações, visto que o direito público à educação diz respeito ao bem comum, mas quando alguém expressa sua vontade particular, prevalece um interesse individual. Porém, o sentido público do direito não estará deslocado dos desejos particulares, quando os interesses forem capazes de mobilizar as pessoas e fazer com que elas se juntem e discutam de forma conjunta o que será melhor para todos. Tais reflexões justificam a necessidade de um estudo que possa se debruçar sobre a formulação das demandas de famílias por vagas na educação infantil em tempo integral.

A nossa hipótese é que a judicialização, embora seja um instrumento importante de interpelação ao direito, não necessariamente gera uma dinâmica pública em torno do reconhecimento de tais direitos. Dessa afirmação provisória, decorre o nosso pressuposto de que a recorrência das famílias ao sistema de Justiça pode produzir um esvaziamento do direito como um fenômeno público, isto é, uma experiência que diz respeito a toda a sociedade e não somente aos indivíduos que demandam os seus direitos, no caso, as famílias. Diante disso, o objetivo deste artigo é analisar as justificativas mais recorrentes das famílias que demandam vagas para seus filhos nas instituições públicas de educação infantil em tempo integral no município de Vitória - Espírito Santo.

Metodologia: alguns apontamentos

Para alcançar o objetivo proposto, adotamos uma análise documental de demandas judiciais e extrajudiciais impetradas pelas famílias na exigibilidade de vagas para seus filhos em creches e em pré-escolas públicas em tempo integral no município de Vitória - Espírito Santo. Um direito é exigido judicialmente quando a demanda é levada ao Poder Judiciário. E, extrajudicialmente quando é feito um acordo entre as partes envolvidas pela ação de outros entes do sistema de Justiça como, por exemplo, o Ministério Público. Entendemos que ambos os casos se referem à judicialização.

Na primeira etapa da pesquisa, por se tratar de demandas associadas às políticas educacionais do município de Vitória - Espírito Santo, solicitamos os dados à Secretaria Municipal de Educação (SEME com o recorte temporal 2016 a 2020, visto que uma de nossas justificativas é o estudo de Araújo (2015), assim, ensejamos manusear dados atuais. Vale destacar que a pesquisa foi realizada depois de autorização mediante solicitação no portal eletrônico “Protocolo Virtual” da Prefeitura Municipal de Vitória. Contudo, dentre o conjunto de arquivos permitidos para a análise no Departamento de Protocolos da SEME, só encontramos seis demandas advindas de processos extrajudiciais apreciados pelo Ministério Público nos anos de 2016, 2018 e 2019. Na segunda etapa da pesquisa, acessamos o portal eletrônico do Tribunal de Justiça do estado do Espírito Santo (TJES) na aba “jurisprudência”, lançando mão do descritor “educação infantil e tempo integral”, atendendo ao recorte temporal anterior. Uma vez que encontramos duas decisões judiciais, acessamos a aba de pesquisa “consulta processual dos autos” para termos acesso especificamente às demandas de vagas das famílias.

Todas as oito demandas judiciais e extrajudiciais se trata de solicitações individuais das famílias por vagas na educação infantil em tempo integral, sobretudo de mães solicitando vagas para crianças de dois e três anos de idade em creches. Na sua maioria, as formulações das famílias vêm escritas sob formato apelativo, já em outras, o próprio promotor de justiça sistematiza as alegações usando suas próprias palavras. Sendo assim, na análise dos dados, apresentamos recortes das demandas escritas tanto na primeira pessoa do singular quanto na segunda pessoa, a depender da estrutura de cada uma.

Os dados encontrados não necessariamente correspondem ao número real de demandas impetradas pelas famílias, pois obstáculos foram encontrados na coleta: demandas consideradas “segredos de justiças” não puderam ser acessadas; demandas de processos extrajudiciais físicos perdidos com as chuvas que afetaram a SEME em 2018; demandas de processos judiciais apreciados em primeira instância não publicizados pelo TJES. Desenvolvemos uma análise dos resultados encontrados a partir da literatura base do estudo – voltada para as reflexões da pensadora da política Hannah Arendt e seus analistas – vislumbrando fundamentar teoricamente os dados.

Uma análise das demandas de vagas: o que dizem as famílias?

A recorrência dos fatores que motivam as famílias a demandarem, extra e judicialmente, vagas na educação infantil em tempo integral fundamentam a criação das categorias de análise trabalho extradomiciliar, falta de condições financeiras, e situação de risco e de vulnerabilidade social e direito à educação. No que diz respeito à primeira categoria, destacamos demandas decorrentes do Processo Judicial 1 (BRASIL, 2019), do Processo Extrajudicial 2 (ESPÍRITO SANTO, 2019a) e do Processo Extrajudicial 6 (ESPÍRITO SANTO, 2016), a saber:

Tendo em vista que a genitora [...], trabalha em período integral e não tem com quem deixar o menor (BRASIL, 2019).

[...]

O noticiante e a genitora dos menores em comentário trabalham durante o dia, e assim, justificam a necessidade de contemplação de tais vagas para seus filhos (ESPÍRITO SANTO, 2019a).

[...]

Necessita de uma vaga [...], pois precisa trabalhar e não tem com quem deixá-lo (ESPÍRITO SANTO, 2016).

As descrições acima evidenciam que o desejo pelo tempo integral “[...] continua a se constituir como um dispositivo da mãe trabalhadora e uma estratégia recriada para atender as demandas do mercado” (ARAÚJO, 2017, p. 196), remontando a própria história da assistência às crianças pobres no Brasil. Segundo Araújo, Auer e Taquini (2021, p. 2), “[...] historicamente, a assistência às crianças pequenas em espaços com atendimento em tempo integral teve suas raízes firmadas na passagem do Império para a República [...]”. Foi uma resposta à utilização da mão de obra feminina no mercado de trabalho sob a nova ordem urbana que atendia às transformações econômicas, culturais e sociais da época. De um lado, as mulheres ex-escravizadas precisavam de instituições para deixar seus filhos quando passaram a trabalhar como operárias em fábricas ou como empregadas domésticas cuidando das crianças das mulheres da elite que, por outro lado, também assumiam postos de trabalho fora do espaço de suas casas.

Considerando que a maior parte das famílias que realiza a demanda de vagas na educação infantil em tempo integral pertence a classes desfavorecidas sob o ponto de vista social e econômico, a judicialização nesse contexto expõe uma forma de exigir direitos em uma sociedade em que a igualdade está longe de plasmar a vida real (TELLES, 1999). Telles (1999, p. 73) afirma que “[...] em uma sociedade como essa, a afirmação das diferenças, quando não repõe privilégios, é feita na lógica de discriminações que transfiguram desigualdades em modos de ser não apenas distintos, mas incomensuráveis”. De modo semelhante, a segunda categoria de análise refere-se à falta de condições financeiras como explicação para solicitar as vagas na educação infantil em tempo integral, o que pode ser ilustrado nas demandas do Processo Extrajudicial 5 (ESPÍRITO SANTO, 2018a) e do Processo Extrajudicial 1 (ESPÍRITO SANTO, 2019b).

Alegou que cuida do filho sozinha e não tem condições de pagar aproximadamente 800 reais para babá, pois não tem um bom salário e necessita da vaga [...]. Estou pagando quase o valor do meu salário para que meu filho seja cuidado no momento do meu trabalho. Esse dinheiro que estou gastando está me faltando para comprar coisas básicas para meu filho (ESPÍRITO SANTO, 2018a).

[...]

Me ajudaria bastante, porque pago aluguel. Assim já diminuiria o valor e o tempo que a pessoa passaria com ele (ESPÍRITO SANTO, 2019b).

Os trechos acima descritos são exemplos da realidade da vida de duas famílias diferentes que têm dificuldades financeiras para sustentar os filhos e pagar o aluguel, aproximando a demanda pela vaga ao “mérito da necessidade” (TELLES, 1999). A expressão é utilizada por Telles (1999) ao reportar-se à reflexão de Sposati (1988) sobre determinados sujeitos precisarem comprovar suas necessidades para terem a possibilidade de acessar um direito. Nascimento (2014) ressalta que a ideia de que existe uma vida certa e quem a garantirá serão os profissionais do sistema de Justiça propaga-se na sociedade. Segundo Wacheleski (2007), a atuação desses entes jurídicos vem sendo cada vez mais demandada para solucionar problemas que concernem às necessidades essenciais, isto é, para buscar respostas a questões que pertencem estritamente ao ambiente doméstico e que se restringem ao espaço privado.

Esse espaço privado corresponde aos interesses particulares de vida, e trata-se do que é exclusivo ao homem e à mulher em sua individualidade. De acordo com Arendt (2020, p. 68), “[...] viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana”. Assim, o sujeito privado, que não é conhecido e nem consegue ser um expectador interessado, é como alguém que não existe. Os seus atos não têm relevância para os outros seres humanos e o que é significativo para ele também não importa para os outros.

Por sua vez, Lafer (1988, p. 243) entende que o espaço privado “[...] afeta a um ou a poucos [...] (e é) encarado como aquilo que é reservado e pessoal”. Carvalho (2008, p. 5) afirma que, se o espaço privado é o “[...] do ocultamento, dos mistérios da vida e do zelo na sua proteção” [...], o espaço público [...] é esse mundo comum no qual todos podem ser vistos e ouvidos na sua singularidade existencial”. O espaço público relaciona-se à construção de um universo compartilhado que diz respeito ao que temos em comum com as pessoas que vivem no presente, mas também com aquelas que viveram no passado e que viverão no futuro. “O termo público significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós” (ARENDT, 2020, p. 63).

Para Carvalho (2008), o espaço público surge na constituição de um mundo comum e refere-se ao mundo que compartilhamos com os outros, que não se apresenta como propriedade privada dos homens, das mulheres ou do Estado. Inspirando-se em Arendt, Nascimento (2008) entende que o espaço público – como o lugar da política – pode ser compreendido como o espaço do discurso e da ação, em que todos são vistos e ouvidos em companhia dos outros. Nesse sentido, Arendt (2020, p. 63) ressalta que “[...] conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum”. De acordo com Nascimento (2008, p. 60), “[...] o sujeito arendtiano, ao agir, é livre de motivos e interesses, impelido apenas pelo sentimento de responsabilidade pelo destino público”.

Segundo Wacheleski (2007, p. 41), “[...] torna-se necessária a discussão quanto aos limites, a necessidade e a conveniência de um judiciário politizado”. Também podemos inferir que a atuação de entes jurídicos “politizados” pode desencadear em uma sociedade normatizada e regulamentada que tem a política como mera função, onde decisões que poderiam acontecer no âmbito da política são levadas para as ações dos promotores de justiça e dos juízes, constituindo assim, a ideia de um “Estado-juiz” (WACHELESKI, 2007). De acordo com Maia (2006, p. 397), exige-se dos profissionais do sistema de Justiça “[...] uma posição mais ativa e comprometida com a melhor realização do Estado constitucional democrático de direito”.

No entanto, a democracia não está presente apenas na organização do Poder Judiciário, do Ministério Público ou do Estado, uma vez que é uma experiência que ocorre na dinâmica societária e não se refere somente à institucionalização de um regime político. O Estado utiliza a intervenção do sistema de Justiça para garantir os princípios constitucionais e os direitos proclamados, visto que a democracia, em seu sentido essencialmente participativo (NASCIMENTO, 2008), foi enfraquecida e a política, como um acontecimento entre as pessoas e um espaço de decisão, já foi destruída. Como bem afirma Müller (2018, p. 348), “[...] tempos de crise da democracia e do estado de direito são os tempos de hoje [...] tempos em que a confiança na democracia e no estado de direito está fragilizada”.

Segundo Wacheleski (2007, p. 118), em um momento em que os limites entre os espaços público e privado já não são mais detectados “[...] a economia, a sobrevivência e os paradigmas das relações familiares tomam o centro do debate político, uma inflação legislativa, com caráter mais imperativo do que diretivo das ações é a resposta conseguida pelo Estado”. A inflação legislativa, também conhecida como hipertrofia legislativa, é um conceito do campo jurídico que evidencia a criação desenfreada de leis na tentativa de se garantir direitos já outorgados (CARVALHO, 2004). Isso influencia na participação junto a sociedade do Poder Judiciário e do Ministério Público, pois estes agem com vistas ao controle das normas jurídicas criadas pelo Estado para assegurar os direitos. Ainda de acordo com Wacheleski (2007), a confusão entre as fronteiras dos espaços público e privado, além de intensificar essa inflação legislativa, também fortalece o tratamento da política como apenas uma organização administrativa do Estado.

A nosso ver, a forte atuação do sistema de Justiça nos tempos atuais é fruto de uma sociedade individualizada que ainda vive uma “democracia inconclusa” (BRAYNER, 2008). Brayner (2008, p. 66) problematiza a República no Brasil desde os seus primórdios, considerando que foi uma invenção que nem se quer foi constituída por cidadãos republicanos, além de não ter tido um “projeto nacional minimamente apoiado no ‘povo’”. Posto isto, Brayner (2008, p. 70) conclui que o País não conheceu “[...] uma verdadeira experiência (política e institucional) republicana [...]”, em outras palavras, não vimos de fato a construção de um lugar para todos, pensado por todos. Nesse campo de debate, Ricoeur (2008, p. 208) critica um fenômeno recorrente na sociedade atual, trata-se da “[...] transferência de competência do político para o judiciário”.

Portanto, considerando essa sociedade citada por Brayner (2008), que não viu a concretização de um projeto republicano, Ricoeur (2008) nos ajuda a reiterar que a experiência que poderia se constituir por meio de ações políticas se realoca para o sistema de Justiça. A realidade investigada na pesquisa nos faz problematizar se a judicialização retrata a imagem de “cidadãos” transformados em indivíduos demasiadamente preocupados com questões individuais que, de certa forma, já perderam o interesse pelo destino público, visto que precisam garantir suas necessidades que não estão suficientemente contempladas e levam a situação ao sistema de Justiça como justificativa para, neste caso, demandar o acesso dos seus filhos à educação infantil em tempo integral. A exemplo disso, chamamos atenção para a terceira categoria de análise, trata-se da situação de risco e vulnerabilidade social, conforme revelado nas demandas do Processo Extrajudicial 3 (ESPÍRITO SANTO, 2018b), do Processo Extrajudicial 4 (ESPÍRITO SANTO, 2018c) e do Processo Extrajudicial 6 (ESPÍRITO SANTO, 2016).

Devido à situação de risco e de vulnerabilidade social do contexto familiar (ESPÍRITO SANTO, 2018b).

[...]

Considerando a extrema situação de vulnerabilidade social em que as duas crianças se encontram [...] A genitora se encontra em estabelecimento prisional e as crianças, fora da rede de ensino (ESPÍRITO SANTO, 2018c).

[...]

Alega que está separada do pai [da criança] que sua mãe recebe Bolsa Família, o aluguel social no valor de um salário-mínimo [...] que sua mãe não está trabalhando e tem problema mental sério [...] que o cartão do Bolsa Família está com sua mãe desde que a depoente foi presa (ESPÍRITO SANTO, 2016).

Isso não significa que as famílias sejam intempestivas ou que as suas ações sejam inválidas, pois em uma sociedade com intensas desigualdades econômicas, sociais e educacionais, cada pessoa busca uma saída para seus próprios problemas, muitas vezes, seguindo uma tendência individual que aparenta ser um caminho mais viável a percorrer. Em se tratando da judicialização das relações sociais e políticas em uma perspectiva arendtiana, Wacheleski (2007, p. 160) enfoca o Poder Judiciário e afirma que este parece estar “[...] preenchendo essa lacuna da necessidade de um poder [...] que venha a garantir a gestão das relações familiares e da distribuição da justiça social e econômica, através de decisões que se pretendem políticas”.

Partindo do pressuposto de que a judicialização é um fenômeno legitimado pelo Estado Democrático de Direito e previsto pela CF (BRASIL, 1988), é possível afirmar que através da judicialização, “[...] a conquista de direitos não mais resulta da habilidade de atores sociais em afirmá-los e defendê-los publicamente, mas significa concessões e garantias do Estado [...]” (NASCIMENTO, 2008, p. 69), visto que demandar um direito junto ao sistema de Justiça significa coagir o Estado a executar o que está previsto no arcabouço constitucional.

Nesse contexto de investigação, a judicialização expressa uma preocupação “[...] com problemas privados e a perda do interesse pelo destino comum da política” (WACHELESKI, 2007, p. 14). Quando não há a constituição de uma esfera pública compartilhada que seja capaz de proteger mutuamente as pessoas e seus direitos na dinâmica societária, torna-se necessária a judicialização para se resguardar os direitos que são negados e garantir as exigências da sociedade.

Essas intervenções do sistema de Justiça levam a uma “alienação política” (WACHELESKI, 2007), cuja política pode ser condenada pela preponderância da força jurídica. Wacheleski (2007) destaca que o Estado democrático de direito precisa discernir o que é jurídico do que é político e não ser ingênuo em relação à supremacia que o sistema de Justiça exerce na sociedade. Vale reiterar que, nessa perspectiva, os conflitos passam a ser resolvidos pela via jurídica e a política novamente é transformada em uma forma de gestão, que já deixou de existir como “[...] uma dimensão da vida humana que acontece quando os homens são capazes de afirmar um nós como unidade de referência da convivência plural” (NASCIMENTO, 2008, p. 58).

No âmbito do espaço do Poder Judiciário e do Ministério Público, as pessoas não necessariamente discutem, agem e intervêm de maneira conjunta, as formulações das demandas dos processos e as decisões tomadas cabem somente aos profissionais do sistema de Justiça, logo, não há um espaço comum de diálogos e debates e nestas condições não se vê de fato uma experiência política. Arendt (2006) nos convida a pensar na política enquanto ação em conjunto, o que nunca se concretiza no isolamento, tampouco na mera elementaridade da vida.

As demandas interpeladas pelos chamados “cidadãos” ao Poder Judiciário significam, para Wacheleski (2007, p. 64), uma vertente da “[...] crise de comunidades políticas fluídas totalmente no social, naquela estrutura organizacional onde não existe um interesse comum, e onde os cidadãos se distanciam dos centros de decisão do poder político”. A intervenção do sistema de Justiça nas demandas dos “cidadãos” – como, por exemplo, as famílias que exigem vagas para seus filhos na educação infantil em tempo integral utilizando-se de justificativas do âmbito privado – não converge necessariamente para a emancipação de uma cidadania ativa e compartilhada. Conforme sugere Wacheleski (2007), instaura-se uma espécie de “regulação social” frente aquilo que é demandado extrajudicialmente ou judicialmente. Assim, é possível dizer que a judicialização constrói um “[...] homem social que não compartilha o mundo com outros homens, age de modo atomizado e se revela pelos atributos que exibe” (NASCIMENTO, 2008, p. 63).

Sem querer subestimar as demandas dos “cidadãos” aquilo que eles requerem muitas vezes se justifica pela exposição dos seus interesses isolados, embora não possamos perder de vista que o cenário seja a garantia de um direito. Na justificativa das famílias que demandam vagas pelas vias extrajudiciais e judiciais, praticamente não se vê, por exemplo, o reconhecimento da importância do acesso à educação da própria criança como explicação que contemple o pedido da vaga. Isso só está presente em na demanda do Processo Judicial 2 (BRASIL, 2018), o que fundamenta a última categoria de análise direito à educação.

Gostaria de saber se meu filho não tem o direito de estar matriculado no CMEI (BRASIL, 2018).

Embora a demanda dessa mãe tenha ocorrido individualmente, nos chama atenção que ela lance mão do reconhecimento do direito à educação de seu filho em sua justificativa para a solicitação da vaga. Complementando a discussão, Carvalho (2015, p. 39) entende que o atendimento em tempo integral “[...] pode desempenhar um papel importante na transformação das funções da educação pública [...] desde que a educação da infância seja compreendida [...] enquanto espaço de afirmação dos direitos das crianças [...]”, mas de todas elas e não somente daquelas cujas famílias conhecem a possibilidade de acionar o sistema de Justiça para demandar o acesso de seus filhos.

À guisa de conclusão

A nossa intenção ao longo do artigo foi compreender a judicialização da educação infantil em tempo integral com enfoque nas justificativas utilizadas pelas famílias ao demandar vagas para seus filhos. Para Arendt (2008), a compreensão é um conceito de ordem política e pressupõe uma experiência no mundo. Nessa perspectiva, compreender nos conecta aos nossos pensamentos e ao mundo em que vivemos, movimento construído a partir da aproximação com um objeto ou fenômeno específico para apreendê-lo ou abarcá-lo com profundidade.

O pensar, o (re)pensar, o perder-se e o encontrar-se foram acontecimentos inerentes ao nosso processo de pesquisa e são exercícios que contemplam o que Arendt (2008) entende como compreensão, o que permite vários modos de interpretação em relação ao que se está buscando compreender. Porém, a compreensão é inacabada, está em constante mudança, na medida em que sempre podemos nos questionar e constituir diferentes possibilidades de ser e de estar no mundo. A partir da compreensão, novos horizontes podem ser interpelados. Este é o caso da presente pesquisa que termina com alguns “achados”, mas também indagações que podem inaugurar novas reflexões.

No que se refere à judicialização da educação infantil em tempo integral no município de Vitória - Espírito Santo, entendemos que quando o acesso às creches e pré-escolas em tempo integral não é garantido para todas as crianças, uma vez que a demanda é maior do que a oferta, desenha-se um contexto de intervenções extrajudiciais e judiciais na exigibilidade por esse direito, pois, independente do atendimento ser em tempo integral ou parcial, nos referimos ao direito à educação infantil que todas as crianças têm preconizado na CF (BRASIL, 1988) e em outras legislações. Este pode, portanto, ser cobrado judicialmente e extrajudicialmente. Ao analisarmos as demandas individuais das famílias por vagas na educação infantil em tempo integral, observamos que a maioria das justificativas utilizadas está relacionada ao trabalho dos pais e às suas necessidades socioeconômicas. Apenas a demanda de uma família foi justificada pelo reconhecimento do direito à educação da criança.

Se por um lado, problemas socioeconômicos das famílias que concernem às suas vidas privadas são expostos nas demandas extrajudiciais e judiciais, por outro, a não garantia ao direito à educação para algumas crianças, fato que pertence a uma questão fundamentalmente política, é transposta para a esfera jurídica. Também cabe problematizar o esvaziamento da dignidade da política em uma sociedade em que as famílias precisam apresentar justificativas para demandar vagas para seus filhos e convencer os profissionais do sistema de Justiça de sua necessidade, uma vez que o direito à educação, que tem público, já deveria estar assegurado a todas as crianças, independente das suas condições de vida. Embora a judicialização seja um fenômeno importante e antevisto no ordenamento jurídico brasileiro, a reivindicação pelo acesso à educação não diz respeito apenas às famílias que recorrem ao Tribunal de Justiça e ao Ministério Público e nem cabe somente ao Estado e/ou Três Poderes resguardar esse direito, pois essa é uma responsabilidade política de todos os atores da sociedade.

O fenômeno da judicialização da educação infantil em tempo integral pode até contribuir para o acesso de algumas crianças aos Cmeis, mas não corrobora para a solução pontual desse problema de ausência de vagas e tampouco para enfrentar as mazelas sociais em que suas famílias vivem, serve apenas como uma medida paliativa em um contexto desigual. A nosso ver, o cerne do problema de fato está no esvaziamento do sentido do direito como fenômeno público. Enquanto o direito for visto como um fenômeno estritamente jurídico, a tendência é que as demandas extrajudiciais e judiciais persistam, pois a responsabilidade continuará a ser atribuída aos profissionais do sistema de Justiça.

No contexto investigado, um direito público que se torna privado não é um fenômeno conhecido por todos na dinâmica societária, seja pelas justificativas das famílias ao demandarem individualmente as vagas para seus filhos, seja pela circunstância da judicialização. Assim, não é publicamente audível e visível. Vale aqui destacar que não se trata apenas de uma questão de construir mais creches e mais pré-escolas para ampliar o número de vagas. Consideramos que a construção de novas instituições deveria ser pensada coletivamente, em termos dos locais apropriados para construí-las e da organização de como esse movimento poderia ocorrer no município. Ainda assim, a busca pela ação política deveria prevalecer.

Outro aspecto a ser pensado é a importância da continuidade das políticas educacionais, pois a ideia usual de que a política se reduz a um governo tem como consequência a descontinuidade das políticas públicas. Logo, muda-se o mandato do governo e “tudo se perde”. Couto (2015, p. 1) considera que “[...] a descontinuidade das políticas públicas educacionais relaciona-se à fragmentação de ações públicas devido aos processos políticos sucessórios, [des] articulações políticas e rupturas no processo de financiamento da educação”. Diante disso, chamamos atenção para a “[...] participação de uma multiplicidade de atores e [de] incentivo à prática do planejamento educacional [...]” (BASTOS; FERREIRA, 2019, p. 3) de modo que a política seja entendida como experiência (com)partilhada, que conserva a dimensão pública do direito à educação.

Bastos e Ferreira (2019, p. 6) nos convidam a vislumbrar políticas “[...] a partir da atuação de agentes que participam de redes, fóruns ou comunidades de políticas públicas, pois nesses espaços ou instituições se constroem o sentido das políticas, os diagnósticos e as soluções que serão debatidas e que podem culminar em uma decisão”. Portanto, partimos do pressuposto de que seria interessante uma experiência onde as famílias, juntamente à SEME, os profissionais das instituições de educação infantil, a comunidade externa e outros órgãos municipais tivessem o direito de serem vistos e ouvidos, opinando sobre questões que concernem ao direito à educação infantil em tempo integral e que buscam soluções para os problemas enfrentados no município através da deliberação conjunta. Para Müller (2018, p. 374), “[...] a generosidade de saber ouvir a todos, de encontrar no discurso do outro um sentido e revelar este sentido na cuidadosa palavra dirigida a esse outro, deve ser preservada”.

Por fim, trata-se de um tema pouco estudado academicamente no Brasil (ARAÚJO; AUER; TAQUINI, 2021), cujos desdobramentos podem ser aprofundados em futuras pesquisas que se dediquem a pensar no direito à educação infantil em tempo integral como um ato de cuidar do mundo e das novas gerações. Falar de educação, sobretudo das crianças pequenas que chegam a um lugar preexistente, é tratar de um assunto fundamentalmente político e de nossa responsabilidade pública por elas e pelo mundo comum que transcende a existência privada de cada um de nós.

Referências

AGUIAR, Odílio Alves. Hannah Arendt e o Direito I. Argumentos, Fortaleza, v. 31, n.18, p. 87-94, jul./dez. 2017. [ Links ]

AGUIAR, Odílio Alves. O direito, o comum e a condição humana no pensamento de Hannah Arendt. Filosofia Unisinos, Porto Alegre, v. 20, n. 3, p. 278-284, set./dez. 2019. [ Links ]

ALMEIDA, Vanessa Sievers de. Uma leitura do ensaio “A crise de educação” de Hannah Arendt. Revista do Centro de Pesquisa e a Formação, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 114-126, maio 2016. [ Links ]

ARAÚJO, Vania Carvalho de. O tempo integral na educação infantil: uma análise de suas concepções e práticas. In: ARAÚJO, Vania Carvalho de (org.). Educação infantil em jornada de tempo integral: dilemas e perspectivas. Vitória: EDUFES, 2015. [ Links ]

ARAÚJO, Vania Carvalho de. A impermeabilidade das “políticas” destinadas às crianças: por uma necessária ressemantização do direito. Educação, Porto Alegre, v. 40, n. 3, p. 405-412, set./dez. 2017. [ Links ]

ARAÚJO, Vania Carvalho de; AUER, Franceila; TAQUINI, Rennati. Política de educação infantil em tempo integral: notas sobre a percepção das famílias. Jornal de Políticas Educacionais, Curitiba, v. 15, n. 4, p. 1-22, jan. 2021. [ Links ]

ARENDT, Hannah. O que é política? Tradução Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. [ Links ]

ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. Tradução Denise Bottmann. Belo Horizonte: Companhia das Letras, 2008. [ Links ]

ARENDT, Hannah. Ação e a busca da felicidade. Tradução Virginia Starling. Edição de Ana Cecília Impellizieri Martins. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018. [ Links ]

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2020. [ Links ]

BASTOS, Roberta Freire; FERREIRA, Eliza Bartolozzi. Os Planos Municipais de Educação no contexto do PNE 2014-2024: apontamentos sobre a implementação da política. Jornal de Políticas Educacionais, Curitiba, v. 13, n. 28, p. 1-18, ago. 2019. [ Links ]

BRAYNER, Flávio Henrique Albert. Educação e republicanismo: experimentos arendtianos para uma educação melhor. Brasília: Liber Livro, 2008. [ Links ]

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 1996. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/tvescola/leis/lein9394.pdf. Acesso em: 12 abr. 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEB, 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 21 mar. 2021. [ Links ]

BRASIL. Tribunal de Justiça (Espírito Santo). Apelação cível nº 0034839-92.2014.8.08.0024. Classe: Apelação. Órgão Julgador: Primeira Câmara Cível. Apelado: Município de Vitória/ ES. Relator: Desembargador Ewerton Schwab Pinto Júnior. Vitória, 15 maio 2018. (Lex: jurisprudência do TJES). [ Links ]

BRASIL. Tribunal de Justiça (Espírito Santo). Apelação cível nº 0016363-74.2012.8.08.0024 (024120163639). Classe: Remessa Necessária Cível. Órgão Julgador: Quarta Câmara Cível. Apelado: Município de Vitória/ES. Relator: Desembargador Dair José Bregunce De Oliveira e outros. Vitória, 25 nov. 2019. (Lex: jurisprudência do TJES). [ Links ]

BRITO, Renata Romolo. Direito e política na filosofia de Hannah Arendt. 2013. 231 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013. [ Links ]

CARVALHO, Ernani Rodrigues. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 23, n. 45, p. 115-126, nov. 2004. [ Links ]

CARVALHO, José Sérgio Fonseca de. O declínio do sentido público da educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 89, n. 233, p. 411-424, set./dez. 2008. [ Links ]

CARVALHO, Levindo Diniz. Crianças e infâncias na educação (em tempo) integral. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 31, n. 4, p. 23-43, dez. 2015. [ Links ]

COUTO, João Cláudio Diniz. Descontinuidade das ações públicas em educação. In: REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 37. Florianópolis, 2015. Anais [...], Florianópolis: UFSC, 2015. [ Links ]

CURY, Carlos Roberto Jamil; FERREIRA, Luiz Antonio Miguel. Justiciabilidade no campo da educação. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 26, n. 51, p. 75-103, jan./abr. 2010. [ Links ]

DUARTE, Clarice Seixas. Direito público subjetivo e políticas educacionais. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 113-118, jul./dez. 2004. [ Links ]

ESPÍRITO SANTO. Ministério Público. Ofício nº 0826/2016. Notícia de Fato MPES Nº 2016.0015.8011-64. Assunto: Direito Administrativo e Outras Matérias de Direito Público >> Serviços >> Ensino Fundamental e Médio >> Educação Pré-escolar. Vitória: Promotoria de Justiça Cível de Vitória, 2016. [ Links ]

ESPÍRITO SANTO. Ministério Público. Ofício nº 483/2018. Notícia de Fato MPES Nº 2018.0023.9181-59. Assunto: Direito Administrativo e Outras Matérias De Direito Público >> Serviços >> Ensino Fundamental e Médio >> Educação Pré-escolar. Vitória: Promotoria de Justiça da Infância e Juventude, Vitória, 2018a. [ Links ]

ESPÍRITO SANTO. Ministério Público. Ofício nº 606/2018. Notícia de Fato MPES Nº 2018.0019.6634-61. Assunto: Direito Administrativo e Outras Matérias De Direito Público >> Serviços >> Ensino Fundamental e Médio >> Educação Pré-escolar. Vitória: Promotoria de Justiça da Infância e Juventude, Vitória, 2018b. [ Links ]

ESPÍRITO SANTO. Ministério Público. Ofício nº 301/2018. Notícia de Fato MPES Nº 2018.0015.1161-41. Assunto: Direito Administrativo e Outras Matérias De Direito Público >> Serviços >> Ensino Fundamental e Médio >> Educação Pré-escolar. Vitória: Promotoria de Justiça da Infância e Juventude, Vitória, 2018c. [ Links ]

ESPÍRITO SANTO. Ministério Público. Ofício nº 3156/2019. Notícia de Fato MPES Nº 2019.0023.8232-11. Assunto: Direito Administrativo e Outras Matérias De Direito Público >> Serviços >> Ensino Fundamental e Médio >> Educação Pré-escolar. Vitória: Promotoria de Justiça Cível de Vitória, 2019a. [ Links ]

ESPÍRITO SANTO. Ministério Público. Ofício nº 1931/2019. Notícia de Fato MPES Nº 2019.0005. 8734-66. Assunto: Direito Administrativo e Outras Matérias De Direito Público >> Serviços >> Ensino Fundamental e Médio >> Educação Pré-escolar. Vitória: Promotoria de Justiça Cível de Vitória, 2019b. [ Links ]

GENTILI, Pablo. O direito à educação e as dinâmicas de exclusão na América Latina. Educação & Sociedade, Campinas, v. 30, n. 109, p. 1059-1079, set./dez. 2009. [ Links ]

MAIA, Antonio Cavalcanti. As transformações dos sistemas jurídicos contemporâneos: apontamentos acerca do neoconstitucionalismo. Crítica, Londrina, v. 11, n. 34, jan./jun. 2006. [ Links ]

MÜLLER, Maria Cristina. A possibilidade de novos começos. Philósophos, Goiânia, v. 23, n.1, p. 347-376, jan./jun. 2018. [ Links ]

NASCIMENTO, Mariângela. A esfera pública na democracia brasileira: uma reflexão arendtiana. In: CORREIA, Adriana; NASCIMENTO, Mariângela (org.). Hannah Arendt: entre o passado e o futuro. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2008. [ Links ]

NASCIMENTO, Maria Livia do. Pelos caminhos da judicialização: lei, denúncia e proteção no contemporâneo. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 19, n. 3, p. 459-467, 2014. [ Links ]

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. [ Links ]

OLIVEIRA, Vanessa Elias de; SILVA, Mariana Pereira da; MARCHETTI, Vitor. Judiciário e políticas públicas: o caso das vagas em creches na cidade de São Paulo. Educação & Sociedade, Campinas, v. 39, n. 144, p. 652-670, abr./jun. 2018. [ Links ]

SIERRA, Vânia Morales. A judicialização da política no Brasil e a atuação do assistente social na justiça. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 256-264, jul./ dez. 2011. [ Links ]

SILVA, Petula Ramanauskas Santorum e Silva. A judicialização da educação infantil entre ênfases, encaminhamentos e solicitações no município de Sorocaba/SP. 2018. 221 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018. [ Links ]

SILVEIRA, Adriana Aparecida Dragone. Possibilidades e limites da judicialização da educação: análise do sistema de justiça do Paraná. Curitiba: UFPR, 2015. Relatório técnico (104 páginas). [ Links ]

SPOSATI, Aldaiza. Vida urbana e gestão da pobreza. São Paulo: Cortez, 1988. [ Links ]

RICOEUR, Paul. O justo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. [ Links ]

TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: Editora UFMG,1999. [ Links ]

VITÓRIA (ESPÍRITO SANTO). Política Municipal de Educação Integral. Secretaria Municipal de Educação/Gerência de Educação Infantil, Vitória, 2018. Disponível em: http://www.vitoria.es.gov.br/arquivos. Acesso em: 13 jun. 2020. [ Links ]

WACHELESKI, Marcelo Paulo. A judicialização das relações sociais e políticas: uma análise a partir do pensamento de Hannah Arendt. 2007, 183 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Jurídica) – Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Ciência Jurídica, Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, 2007. [ Links ]

Recebido: 23 de Outubro de 2021; Aceito: 25 de Janeiro de 2022

Franceila Auer Universidade Federal do Espírito Santo (Brasil) Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação Bolsista Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo Grupo de Pesquisa “Infância, Educação, Sociedade e Cultura” Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-1913-854X E-mail: auerfranceila@gmail.com

Profa. Dra. Vania Carvalho de Araújo Universidade Federal do Espírito Santo (Brasil) Programa de Pós-Graduação em Educação Professora Titular do Centro de Educação Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Infância, Educação, Sociedade e Cultura” Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-7678-1689 E-mail: vcaraujoufes@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution NonCommercial, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais e que o trabalho original seja corretamente citado.