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Revista Educação em Questão

Print version ISSN 0102-7735On-line version ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.63 Natal Jan./Mar 2022  Epub Feb 22, 2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n63id19801 

Artigo

Percepções de estudantes de Pedagogia ao atuarem como estagiárias com crianças com deficiência

Percepciones de los estudiantes de Pedagogía cuando actúan como aprendices con niños con discapacidad

Pedagogy students' perceptions when acting as interns with disabled children

1Universidade São Francisco (Brasil)


Resumo

Este artigo trata dos resultados de uma pesquisa de pós-doutoramento em Educação, que busca identificar os desafios da iniciação docente de estudantes universitários que ingressam no curso de licenciatura de Pedagogia e, logo nos primeiros semestres de formação, são contratados pelos sistemas municipais de ensino para o acompanhamento de crianças com deficiência. A produção de dados para a pesquisa se deu a partir da escrita de memoriais de formação de três estudantes universitárias do curso de Pedagogia na perspectiva da escrita de si como possibilidade de reflexão da formação e da iniciação docente, bem como de entrevistas narrativas concedidas por elas. As experiências no estágio remunerado proporcionaram vivências que trouxeram inúmeras contribuições à formação das estudantes no que se refere ao impacto com a realidade, o afeto com a criança com deficiência e o seu desenvolvimento, e as frustrações, as aprendizagens e os limites de ser professora.

Palavras-chave: Inclusão; Estágio remunerado; Formação inicial; Pedagogia

Resumen

Este artículo trata de los resultados de una investigación postdoctoral en educación, que busca identificar los desafíos de la iniciación docente de estudiantes universitarios que ingresan al curso de Pedagogía y, en los primeros semestres de formación, son contratados por los sistemas municipales de educación para acompañar a los niños con discapacidades. La producción de datos para la investigación se realizó a partir de la escritura de memoriales de formación de tres estudiantes universitarios del curso de Pedagogía, en la perspectiva de la escritura de ellos mismos como una posibilidad de reflexión de la formación y la iniciación del maestro, así como entrevistas narrativas otorgadas por ellos. Las experiencias en la pasantía remunerada proporcionaron vivencias que aportaron innumerables contribuciones a la formación de los estudiantes con respecto al impacto con la realidad, el afecto con el niño con discapacidad y su desarrollo, y las frustraciones, los aprendizajes y los límites de ser maestro.

Palabras clave: Inclusión; Pasantía remunerada; Formación inicial; Pedagogía

Abstract

This article is about the results of a postdoctoral research on Education, which seeks to identify the challenges of the teaching initiation of college students who enter the degree course in Pedagogy and, in the first semesters of formation, are hired by the municipal education systems to monitor children with disabilities. The production of data for the research was based on the writing of formation memoranda of three undergraduate students of the Pedagogy degree course from the perspective of writing of self as a possibility of reflection on the formation and on the initiation of teaching, as well as from narrative interviews given by them. The experiences in the paid internship provided experiences that brought countless contributions to the students’ formation regarding the impact with reality, the affection with the child with disability and its development, and the frustrations, the learning and the limits of being a teacher.

Keywords: Inclusion; Paid internship; Initial formation; Education

Introdução

As condições econômicas e socioculturais de estudantes que ingressam no ensino superior privado merecem investigações no que se refere aos modos como vivenciam o contexto universitário e os desafios que enfrentam. Como afirma Carrano (2009, p. 181), “[...] apesar da existência de estudos sobre o tema, ainda sabemos muito pouco sobre as trajetórias escolares e biográficas dos estudantes universitários”.

Há entraves constantes para que o estudante possa seguir sua formação, como carga horária de trabalho, tempo insuficiente para lidar com as solicitações do curso e outras, de ordem social e cultural, condicionadas pelos baixos recursos financeiros. Também é possível observar diferentes dimensões de êxito e de fracasso na trajetória de formação, como reflexo e efeito cumulativo da escolarização anterior (GRIGNON; GRUEL apud ZAGO, 2006).

Nesse contexto, o estágio remunerado como primeiro emprego é uma alternativa para a permanência no ensino superior. Com os estudantes das licenciaturas e, principalmente, os do curso de Pedagogia, não é diferente. Muitos inserem-se nas redes educacionais por intermédio dos estágios remunerados, sendo essa uma política pública frequente para suprir as necessidades dos sistemas de ensino.

Assim, estudantes que estão na formação inicial podem ingressar nas escolas a partir de políticas públicas municipais que os contratam desde o primeiro semestre do curso de Pedagogia como estagiários remunerados. Essa prática visa a suprir demandas de ausência de professores e do atendimento às diferentes necessidades das redes educacionais, constituindo-se um contexto totalmente novo para alguns e, portanto, cheio de desafios, uma vez que grande parte desses estudantes acompanha crianças com deficiência.

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa de pós-doutoramento em Educação, que visa responder às questões: Quais são os desafios que esses estudantes enfrentam confrontando o início da formação acadêmica e o ingresso na profissão? Como esses estudantes são recebidos nas instituições de ensino? Como compreendem o papel do professor na educação básica? Quais as condições de trabalho que os sistemas oferecem para esse aluno que está iniciando sua trajetória docente no acompanhamento de crianças com deficiência no contexto escolar?

O objetivo deste artigo é identificar os desafios da iniciação docente dos estudantes universitários que ingressam no curso de licenciatura de Pedagogia e são contratados pelos sistemas municipais de ensino logo nos primeiros semestres de formação.

Organizamos o texto apresentando, inicialmente, a discussão teórica sobre as possibilidades e os limites existentes na atuação do estagiário em formação inicial do curso de Pedagogia no acompanhamento de crianças com deficiência, e as vicissitudes desses processos no contexto escolar. Apresentamos a metodologia proposta, descrevendo e discutindo teoricamente como se deu o processo de escrita e reescrita dos memoriais de formação e as entrevistas narrativas. Em seguida revelamos os excertos dos memoriais de formação com análise das seguintes temáticas: o impacto do início do estágio; a relação afetiva com a criança e a percepção do (não) desenvolvimento; as aprendizagens, as frustrações e os limites para a formação da futura professora. Finalmente, tecemos nossas reflexões.

O estágio remunerado para acompanhamento de alunos com deficiência

Muitas são as vicissitudes enfrentadas por esses jovens quando iniciam a formação docente e logo aderem ao estágio remunerado. É sabido que, durante os estágios, os estudantes veem a oportunidade de aprender e compreender o significado da docência. Além disso, podem despertar um olhar reflexivo para o cotidiano da escola, seu funcionamento, sua estrutura física; ter contato com a sala de aula, compreender quem são os alunos de hoje, entender como funciona a gestão da escola, dentre outras percepções importantes para a sua formação (SANTOS; SANTOS; DIAS, 2012). Ou, até mesmo, complementar a renda para custear os estudos numa instituição privada, como é o caso da instituição onde atuamos.

Os estudantes, ao chegar à escola, podem ter experiências diversas no contato com as crianças, os professores, os gestores e o trabalho desenvolvido. Tais experiências, muitas vezes, podem ser positivas, ou não, configurando determinado repertório no qual as experiências adquiridas possibilitariam ao estagiário ter a perspectiva da profissão como, por exemplo, o acompanhamento de crianças com deficiência.

As políticas públicas determinam que os estudantes acompanhem crianças com deficiência no estágio remunerado na educação infantil e no ensino fundamental. Dessa forma, adquirem experiência, porém, é necessário se questionar quais são os domínios e conhecimentos necessários para o trabalho na escola com as crianças com deficiência. O estágio remunerado segue a Lei Federal 11.728, de 25 de setembro de 2008, que dispõe sobre o estágio de estudantes, cujas regras para a contratação são generalizadas para diferentes áreas, determinando dois anos de duração do estágio, em até seis horas diárias, sem determinar valores e outras especificidades.

Para o estagiário no início da formação acadêmica, parece existir uma não identidade neste estágio. É preciso pensar nesse movimento de falta de profissionalismo docente. A pergunta é sempre a mesma: a escola deve ser inclusiva, ou é inclusiva. Como ela tem acolhido (ou não) a criança com deficiência e garantido uma educação que promova o desenvolvimento? Dainez e Freitas (2018), pautadas nos estudos vigotskianos, analisam as condições de desenvolvimento da criança com deficiência. Elas afirmam:

[...] uma educação precária altera reais possibilidades de desenvolvimento das funções psíquicas, sobretudo quando pensamos na educação de crianças com deficiência. Toma, assim, a deficiência como um problema de educação social e destaca o conceito de compensação social como metodologia da educação social. Isso quer dizer que a produção dos modos de significação, de participação se desenha na coletividade. E que a condição de deficiência demanda formas ainda mais próximas, guiadas e contínuas de mediação, recursos auxiliares para potencializar a participação da criança na atividade coletiva e colaborativa (DAINEZ; FREITAS, 2018, p. 150).

O estagiário, retornando à escola, não mais como estudante, mas como futuro professor, tem um mundo novo a ser descoberto; está se munindo de novos olhares para a realidade escolar. Nesse primeiro encontro com a profissão, no papel do professor, o estudante constata que “[...] a escola é viva, cheia de peças que se movem, os alunos que correm, brincam, fazem perguntas, algumas vezes interessados ou não com a aprendizagem, interagindo entre si e cheios de vida” (TARDIF, 2009, p. 23). Os estudantes passam a ter contato com

[...] a pesada rotina do trabalho docente o que implica em estudar e preparar aulas; ensinar e instruir através dos conteúdos; despertar o interesse para a aprendizagem; avaliar, recuperar, cuidar e aconselhar; amparar emocionalmente os alunos, buscando atendê-los na subjetividade de seus problemas; atender pais; ocupar-se de questões ligadas à gestão; assistir e participar efetivamente das reuniões pedagógicas e atividades extracurriculares; lidar com a falta de estrutura e de materiais didáticos necessários; zelar pelo patrimônio da escola; conviver com a violência social que já invade muitas das salas de aulas [...] (SANTOS; SANTOS; DIAS, 2012, p. 25).

Acrescente-se a isso a responsabilidade de acompanhar um aluno com deficiência. De que ferramentas os estagiários dispõem? Quais serão as suas atribuições? Como esses estagiários vão exercer a função pedagógica? Padilha analisa o papel da instrução e da escola na perspectiva histórico-cultural.

As crianças com deficiência intelectual que chegam às escolas o fazem, na verdade, em um meio que está repleto de vivências (que vão determinar o papel de cada situação do meio para o desenvolvimento). Começam a fazer parte de um universo cujas condições histórico-culturais estão (ou deveriam estar) presentes de modo sequenciado, organizado, intencional, metódico. Há um objetivo a alcançar: o desenvolvimento das funções psíquicas superiores (domínio da vontade, atenção voluntária, memória lógica, imaginação, raciocínio, linguagem, leitura, escrita, cálculo, entre outras funções especificamente humanas) (PADILHA, 2018, p. 68).

Espera-se, assim, que a escola esteja preparada para acolher esses alunos e que o estagiário seja apenas um suporte, ajudando-os a se socializarem, se desenvolverem e a interagirem com os demais colegas da classe. Colocar-se na escuta desse estagiário pode ser uma forma de conhecer a realidade de algumas escolas. Esse é o nosso foco neste texto.

Os procedimentos da pesquisa

A pesquisa segue a abordagem qualitativa aproximando-se dos estudos biográficos na educação, tendo como instrumentos de produção de dados os memoriais de formação e as entrevistas narrativas e foi realizada com três estudantes estagiárias do curso de Pedagogia.

A produção de dados se deu a partir da escrita de memoriais de formação pelas estudantes universitárias, na perspectiva da “escrita de si” como possibilidade de reflexão da formação e da iniciação docente, bem como a partir de entrevistas narrativas concedidas por elas.

As estudantes cursam o 7º semestre do Curso de Pedagogia, são elas:

  • – Cibele: Natural da cidade onde se situa a universidade, tem 21 anos, prestou vestibular para Pedagogia e Direito, optando por Pedagogia. É solteira, filha única de uma família de classe média. A sua primeira experiência com o trabalho foi no estágio remunerado.

  • – Íris: também natural da mesma cidade, tem 35 anos, filha mais velha de quatro irmãos, trabalha desde os 15 anos de idade. Cursou cinco semestres do curso de Psicologia, sem conclui-lo, e depois iniciou o curso de Pedagogia; conciliou o estágio remunerado com outro trabalho no contraturno.

  • – Jéssica: natural de Arcos, estado de Minas Gerais, tem 22 anos, é a caçula de oito filhos. Tinha como sonho cursar Jornalismo ou Letras, mas escolheu Pedagogia por também gostar de Educação e pelo curso ser oferecido na cidade onde mora. Sua primeira experiência com o trabalho foi no estágio remunerado.

Todas as estudantes iniciaram o estágio remunerado a partir do segundo ano do curso, sendo que, entre idas e vindas em diferentes escolas, encontravam-se no fim do período de estágio, que é de dois anos, no período da escrita do memorial de formação para esta pesquisa.

O projeto de pesquisa passou pelo Comitê de Ética da Universidade. As participantes optaram por deixar os nomes reais na exposição dos dados. Isso se justifica, pois se trata de memoriais, em que não há como mudar a autoria do texto. Além disso, também defendemos que, se estudantes e professores sempre foram silenciados pelas políticas públicas, qual é o sentido de, ao se colocar na escuta dessas estudantes, por meio da escrita do memorial e da entrevista narrativa, lhe negar a identidade, atribuindo-lhes um pseudônimo?

As três estudantes reescreveram os memoriais de formação, iniciados na disciplina “Escola e Contexto” que é ministrada no primeiro semestre do curso de Pedagogia. No processo de reescrita, solicitei1 que enfatizassem as experiências vividas no curso de graduação, sendo que o foco da primeira escrita foi o processo de escolarização desde a infância.

Ao reescrever o memorial de formação, com a minha mediação biográfica, as três estudantes apresentaram o trajeto já trilhado no curso de Pedagogia. Esse processo de reescrita teve como duração três meses para a reelaboração do texto, trazendo assim para a pesquisa a versão finalizada a partir do ponto em que estavam cursando o 5º semestre do curso.

Trabalhar com o memorial de formação corrobora a dimensão autobiográfica do estudo em que “um memorial de formação é acima de tudo uma forma de narrar nossa história por escrito para preservá-la do esquecimento. É o lugar de contar uma história nunca contada até então – a da experiência vivida por cada um de nós” (PRADO; SOLIGO, 2007, p. 7).

Eis onde reside a importância do memorial de formação, principalmente, porque,

[...] no ato de anotar as coisas lembradas ou de registrar partes essenciais de uma questão, usamos a escrita, a linguagem escrita. Ao narrar as coisas lembradas, os acontecimentos passados assumem vários matizes e nos dobramos sobre a própria vida. Ao recordar, passamos a refletir sobre como compreendemos nossa própria história e a dos que nos cercam (PRADO; SOLIGO, 2007, p. 6).

Nessa dimensão autobiográfica, o memorial de formação é um texto em que o narrador narra a própria vida entrelaçada à formação escolar e profissional, portanto, para os estudantes que estão na formação docente e já iniciaram na profissão, elaborar o memorial de formação potencializa a proposta de narrar por escrito as experiências e as reflexões oriundas desse contexto, que se apresenta privilegiado no que se refere às possibilidades de articulação entre teoria e prática, além da produção de conhecimento pedagógico.

Passeggi (2010a, p. 1) diz que “[...] o memorial, é um texto acadêmico autobiográfico no qual se analisa de forma crítica e reflexiva a formação intelectual e profissional, explicitando o papel que as pessoas, fatos e acontecimentos mencionados exerceram sobre si”. Para a autora, nesse trabalho de reflexão autobiográfica,

[...] a pessoa distancia-se de si mesma e toma consciência de saberes, crenças e valores, construídos ao longo de sua trajetória. Nesse exercício, ela se apropria da historicidade de suas aprendizagens (trajeto) e da consciência histórica de si mesma em devir (projeto) (PASSEGGI, 2010b, p. 1).

As estudantes também concederam entrevistas narrativas, as quais foram audiogravadas e transcritas. Para Jovchelovitch e Bauer (2011, p. 95), a entrevista narrativa é “[...] considerada uma forma de entrevista não estruturada, de profundidade, com características específicas [...]”, pois não corresponde às formas preestabelecidas de entrevista com pergunta e resposta; ela “[...] emprega um tipo específico de comunicação cotidiana, o contar e escutar história [...]” para atingir os objetivos propostos pela pesquisa que se serve dessa metodologia.

A entrevista narrativa tem como base “questões exmanentes”, que “[...] refletem o interesse do pesquisador [...] para provocar a narração dos sujeitos, em que a regra é deixar o depoente seguir com a sua narrativa, contando a sua história da forma mais espontânea possível com o surgimento de “questões imanentes”, que são [...] os temas, tópicos e relatos de acontecimentos que surgem durante a narração” (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2011, p. 96-97).

Para Schütze (2010), esse movimento possibilita que o entrevistado possa falar de si sem ser interrompido pelo pesquisador. Este, por sua vez, embora não deva interromper o entrevistado, não pode perder os fios daquilo que está sendo narrado, solicitando, ao final de cada fala, complementações de acontecimentos que não ficaram claros ou fragmentados.

Nesse diálogo entre o meio a que pertencem os sujeitos que fazem parte de uma pesquisa e a perspectiva de olhá-los e considerá-los a partir de suas experiências, entendemos que trabalhar com as entrevistas narrativas pressupõe, apoiando-nos em Larrosa (2002, p. 21), “[...] dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras”. Complementando: “[...] também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos” (LARROSA, 2002, p. 22).

Para Passeggi (2010b, p. 104), “[...] se narrar é humano, o trabalho de biografização é uma ação civilizatória, que exige manuseio de tecnologias, marcadas pela cultura, que arrastam consigo relações de poder e implicam saberes, quereres e deveres”. Para a autora, “[...] o ato de (auto)biografar define-se por essa capacidade humana de se apropriar de um instrumento semiótico (grafia) culturalmente herdado, e se colocar no centro do discurso narrativo (autobiografar), ou colocar o outro como protagonista de um enredo (biografar)” (PASSEGGI, 2010b, p. 111).

A narrativa expressa os valores e as experiências do sujeito no seu lugar social, em um movimento que escolhe o que é mais ou menos importante, revelando a lógica social do tempo e do espaço em questão, passando por e pela memória social. Ela se inscreve na constituição de subjetividades, como afirma Souza (2007, p. 69): “Através da abordagem biográfica o sujeito produz um conhecimento sobre si, sobre os outros e o cotidiano, revelando-se através da subjetividade, da singularidade, das experiências e dos saberes [...], assim [...] a construção da narração inscreve-se na subjetividade e estrutura-se num tempo, que não é linear, mas num tempo da consciência de si, das representações que o sujeito constrói de si mesmo.”

A narrativa tem como função despertar a reflexão da formação de si e do outro, passando sempre pela interpretação teórica do pesquisador, sua textualização, a partir das intencionalidades e questões propostas na pesquisa. Como aponta Delory-Momberger (2008, p. 95, grifos da autora): “A narrativa não apresenta ‘fatos’, mas ‘palavras’: a vida narrada não é a vida. Essa constatação tão simples e, ao mesmo tempo, tão difícil de se levar em conta, tão forte é a ilusão do realismo da linguagem, merece ser constantemente (re) lembrada”. Sem dúvida, esse é o grande desafio enfrentado pelo pesquisador que se propõe a trabalhar com narrativas. Ao narrar, o sujeito se autointerpreta, atribui sentido à sua existência; constrói a história de sua vida. “É a narrativa como gênero do discurso, que não é apenas o meio, mas o lugar dessa operação: nós não fazemos a narrativa de nossa vida porque temos uma história; temos uma história porque fazemos a narrativa de nossa vida” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 97, grifos da autora).

Nessa perspectiva, como afirma Bruner (1997, p. 129 e 46), a narrativa possui um tempo determinado, que reconhece em sua análise que “[...] uma narrativa segmenta o tempo não pelo relógio ou pelo metrônomo, mas pelo desenrolar de eventos cruciais – pelo menos em começos, meios e fins”. E o autor complementa: “Talvez sua propriedade principal seja sua sequencialidade inerente: uma narrativa é composta por uma sequência singular de eventos, estados mentais, ocorrências envolvendo seres humanos como personagens ou atores [...]”. O significado da narrativa é dado pelo narrador diante da configuração da sua história. A narrativa produzida, por sua vez, exige que o leitor também atribua significados à história narrada. “O ato de captar uma narrativa é, então, duplo: o intérprete tem que captar o enredo configurador da narrativa a fim de extrair significado de seus constituintes, os quais ele deve relacionar ao enredo” (BRUNER, 1997, p. 47).

No entanto, muitas vezes, a narrativa obtida por uma entrevista não apresenta linearidades, cabendo ao pesquisador, no momento de sua textualização, organizar esses eventos numa sequência que lhe pareça constituir a trajetória do depoente.

Contudo, de posse dos memoriais de formação e das transcrições das entrevistas narrativas, passamos a realizar várias leituras, buscando identificar algumas unidades temáticas para análise. Identificamos pontos comuns nesses memoriais e elencamos três unidades temáticas, as quais serão analisadas na sequência.

O que narram as graduandas sobre o estágio remunerado realizado

Selecionamos excertos dos memoriais e das transcrições das entrevistas narrativas para o processo analítico, visto que eles são bastante extensos – a seleção se deu a partir da identificação de convergências temáticas. As unidades que emergiram foram: o impacto do início do estágio, a relação afetiva com a criança e a percepção do (não) desenvolvimento; e as aprendizagens, as frustrações e os limites para a formação da futura professora.

O impacto do início do estágio

Há certo consenso de que os professores em início de carreira nem sempre são bem recebidos nas escolas onde irão atuar. Parece haver um descrédito de que eles serão capazes de lidar com a tarefa de docência. Com o estagiário, a situação é semelhante. A graduanda Iris, no seu memorial de formação, relata assim o início de seu estágio.

O início do estágio remunerado na prefeitura, para mim, foi uma experiência bem complicada, na verdade, bem difícil. Quando eu cheguei, fui ficar com um menino autista e eu não sabia, sabia que era uma criança deficiente. A escolha da escola foi só porque era mais próximo da minha casa e ele era um menino autista de grau bastante elevado, bem agressivo, tinha pouco contato com as pessoas principalmente com os adultos da escola; teve também a questão da escola, em si, as pessoas, funcionários, professoras no geral me receberam, até que muito bem mas, aquele olhar assim: nossa ela não vai aguentar, mais uma que vai sair correndo, e vai fugir da escola! Eu percebia que a coordenação e a gestão queriam mais é que ele ficasse trancado, eles sempre o mantinham dentro de uma sala que tinha uns computadores e ele sempre ficava brincando com jogos (IRIS, 2019).

A narrativa traz evidências de que a escola possibilita o acesso ao aluno com deficiência, mas não sabe como lidar com ele. Basta deixá-lo na sala de aula, não importa fazendo o quê. O desenvolvimento dessa criança sequer é considerado.

Cibele, em seu memorial de formação também narra o impacto do início do estágio.

O início para mim, no primeiro dia, foi uma coisa que me impactou, eu nunca tinha estado num ambiente escolar, então, o primeiro dia foi algo muito diferente porque eu nunca tinha tido contato com ninguém tão próximo assim, nem estado tão próximo de uma escola como estagiária, como sendo minha profissão. Fui muito bem recebida nessa escola por todo mundo, tanto da parte da gestão quanto dos funcionários, todo mundo me recebeu muito bem, e no primeiro dia eu já conheci o meu aluno que chamava Eliazer, ele era considerado autista de nível leve, era uma criança calma tranquila só que ele tinha muita dificuldade na parte pedagógica, então a minha principal função ali era ajudá-lo nas atividades. Por ser uma sala de primeiro ano, ele estava naquela fase de aprender a ler, aprender escrever, então como ele tinha acabado de sair do infantil era tudo mundo novo para ele e para as outras crianças também (CIBELE, 2019).

Assim como Iris, Cibele também foi bem recebida. O seu impacto foi pela mudança de status: agora ela voltava para a escola não mais como estudante, mas como futura professora. Jéssica, em seu memorial de formação, também narrou como foi o seu início e a mudança na proposta de trabalho.

O meu início no estágio remunerado foi em uma escola aqui da cidade, de ensino fundamental, que pra mim foi bastante chocante na verdade nesse início, primeiramente tenho crianças na família, mas primeiramente o choque com o ambiente escolar, e depois que essa escola que eu iniciei o meu primeiro trabalho ela era uma escola integral então ela tinha uma rotina bastante diferenciada, muito corrida, as crianças ficavam das sete às cinco lá. A diretora era bem distante, não queria muito saber, não me orientava muito, o que me salvou muito nessa escola foi a professora do primeiro ano, a professora do Paulo que me dava muitas dicas de como ajudar, de como lidar com ele (JÉSSICA, 2019).

Apesar da mudança de função no estágio, Jéssica narra com tranquilidade como assumiu o aluno com deficiência e como ela teve apoio da professora, o que não fica evidente nas duas narrativas anteriores.

Na entrevista narrativa cedida por Cibele, ela relata:

O aluno Nicolas Wil entrou na sala do Eliazer, aí eu acompanhava os dois. Foi um processo muito complicado pra mim porque era meu primeiro ano sendo estagiária, eu nunca tinha lidado com uma criança com deficiência e imagine uma sala com dois autistas e eu ali sozinha! Claro que a professora me ajudava só que ela também tinha as duas crianças especiais, mais uma sala com quase trinta alunos, então ela não podia me ajudar muito. Ela tirava minhas dúvidas, e eu cuidava dos dois. Foi uma experiência bastante desafiadora! (CIBELE, 2019).

Importa analisar o que há de convergente nessas narrativas durante a chegada das estudantes na escola, a recepção dos funcionários, dos gestores e professores e o encontro com a criança que acompanharão durante um tempo determinado no estágio.

Neste sentido, para Cibele e Íris, o trabalho com crianças com deficiência em sala de aula foi um desafio, pois não tiveram apoio necessário dos professores da sala, o que as impactou bastante. Os profissionais eram negligentes em relação às crianças e às situações, seja porque não sabiam o que fazer, seja por acreditarem que essa seria a função do estagiário. Parece haver um hiato entre as necessidades da criança, o professor em sala de aula, os gestores da escola e o estagiário, o que não gera inclusão, aprendizagem e desenvolvimento efetivo para as crianças com deficiência. Há, nesses depoimentos, um contraponto às expectativas apontadas por Padilha (2018) quanto ao papel da escola. Em sua entrevista narrativa, Jéssica destaca a importância do trabalho em equipe na escola.

[...] atualmente, a respeito da mudança que eu senti na minha formação é que eu senti que estágio faz toda a diferença, porque ele deixa você inserido na realidade. Para a gente, antes de ir para o estágio, fica aqui na faculdade nas aulas, a gente cria uma imagem de ambiente escolar, a nossa imagem do ambiente escolar, mas a gente chega e cada lugar é um lugar, embora seja uma escola, embora o objetivo seja o mesmo de ensinar aprender com as crianças. Mas cada lugar tem sua identidade própria, então, em cada lugar, você vai conseguir extrair coisas boas e coisas ruins, então, o que acrescentou na minha formação foi isso, a certeza de perceber a importância do trabalho em equipe na escola (JÉSSICA, 2019).

Para Freitas, Monteiro e Camargo (2015, p. 30), “[...] no cotidiano escolar, a dinâmica dialógica se faz presente nos processos de intersubjetividade e está permeada pela diversidade de alunos e vivências que cada um traz [...]”, afirmando a importância de se manter na escola o trabalho em grupo e sob o diálogo com as diferentes frentes existentes neste complexo contexto para que a inclusão se faça presente e atuante.

A relação afetiva com a criança e a percepção do (não) desenvolvimento

Nos depoimentos das estagiárias, identificam-se os vínculos afetivos que elas estabelecem com os alunos. Íris em seu memorial de formação diz:

O meu aluno tinha confiança em mim, a gente acabou criando um laço afetivo. Quando comecei a acompanhá-lo, a primeira atitude que tomei foi não o deixar ter acesso exacerbado aos computadores da escola, pois estava fora do controle. Para deixá-lo quieto, ele ficava o dia todo no laboratório de informática. Eu entendia que o acesso era exagerado, deixava-o mais agressivo, ele praticamente tinha zero contato com as pessoas, ficava só no mundo virtual. Eu pedi para a diretora não deixar ele na internet. Comecei a trabalhar com ele outros tipos de atividades, jogos de tabuleiro, desenhos, dentre outras. Eu fui atendida, achei muito bacana da parte da escola, aí sim, comecei a perceber certa evolução nas atitudes e no desenvolvimento do Giovanne (ÍRIS, 2019).

Já Cibele teve outra experiência com os alunos que acompanhava, mas também de estabelecimento de vínculo afetivo que gerou desenvolvimento para as crianças. Em seu memorial de formação narra:

Eu comecei um trabalho com o Eliazer para desenvolver a fala, porque ele não tinha uma fala que se conseguisse entender, ele não era muito sociável, tinha dificuldade em dividir os brinquedos, em se relacionar com os outros, ele tinha ciúmes, se eu me relacionasse com outra criança, ele ficava bravo. Mas a cada dia, com muita paciência e carinho, comecei a perceber que o Eliazer passou a se comunicar mais, não só comigo, mas com as outras crianças também. E essa comunicação era através da fala, agora. O ciúme continuou, mas consegui avanços com ele (CIBELE, 2019).

Cibele, em seu memorial de formação, narra, ainda, a experiência com o outro aluno que acompanhou na mesma escola e na mesma sala que Eliazer.

O Nicolas tinha muito carinho por mim. Quando ele tinha crises de surto, de se jogar no chão, de chorar sem parar e eu só conseguia acalmá-lo colocando-o no meu colo, conversando com ele. O Nicolas era uma criança que não conseguia se associar e se socializar com as crianças, mas ele se socializava mais com os adultos, principalmente com mulher, por ele sentir a falta de carinho da mãe, que era alcoólatra. Foi bem desafiador! Mas mesmo com todos esses desafios eu fui me adaptando e eles foram se adaptando a mim também e a gente criou um vínculo muito legal, tanto é que o Eu senti que as dificuldades que eles tinham foram se superando aos pouquinhos, claro que não teve um avanço muito grande para quem vê de fora, mas para mim, que estava todos os dias com eles, foram avanços maravilhosos, tanto que eles melhoraram na fala, no comportamento, na socialização (CIBELE, 2019).

Para Cibele, os avanços que os alunos tiveram em relação ao comportamento foram extremamente importantes para ela e para as crianças. E esse avanço só foi possível pela afinidade que criaram na relação entre professor e aluno. Professora sim, pois, esse papel é desenvolvido pela estagiária no contexto escolar. Para Freitas, Monteiro e Camargo,

[...] como o desenvolvimento humano tem origem social, é possível afirmar que o aparato biológico, por si, não define as possibilidades de uma pessoa se desenvolver, pois, tal desenvolvimento está arraigado às condições materiais de existência humana. Ter isto em vista é crucial para se compreender as possibilidades de funcionamento psíquico de pessoas que possuem comprometimento nas funções elementares (biológicas), como é o caso dos alunos com deficiência intelectual (FREITAS; MONTEIRO; CAMARGO, 2015, p. 28).

Numa perspectiva histórico-cultural a partir das leituras e aprofundamentos de Vygotsky (2009, 2011), podemos considerar o ambiente escolar como potencializador para o desenvolvimento humano.

Em sua entrevista narrativa, Íris declara:

Eu acho que a criança com deficiência, depois que convive com você por algum tempo, cria laços afetivos, de confiança, amizade. Se ele não confia na pessoa que está do lado dele, a relação fica praticamente impossível. Eu descobri isso com tempo, ficando ali do lado dele e aí criamos uma relação de amizade (ÍRIS, 2019).

→ Para os estudantes no início do curso, lidar com as questões da deficiência ainda não era uma temática discutida nas disciplinas do currículo, já que somente no último semestre eles cursam uma disciplina voltada para as políticas de inclusão.

Íris, ainda, destaca na entrevista narrativa:

Quando a gente sai do estágio, é muito difícil, porque você criou um laço afetivo, uma relação com a criança muito forte. Então, é muito triste, parece que você está deixando um ente querido ali, que você não vai ver nunca mais. Você se pergunta: Será que ela irá se desenvolver? Será que ele está bem? Será que ele, né, está aprendendo? O que alivia é acreditar que deixamos um pouquinho de nós nela também! (IRIS, 2019).

Para Íris e Cibele, foi muito difícil acabar o estágio, ter que mudar de escola, deixar os alunos, pois o vínculo afetivo e os avanços no desenvolvimento que promoveram e presenciaram foi muito gratificante, o que parece ter dado sentido para a profissão e para o estágio. Os avanços que os alunos demonstraram valorizaram as ações das estudantes universitárias. Como afirmam Tardif e Lessard sobre a profissão docente.

Profissão impossível, dizia Freud a respeito da educação: certo, mas ensinar é também a mais bela profissão do mundo: todos aqueles que a exerceram o podem confiar. Tentemos ver por que é assim, apoiando-nos no que dizem os professores que interrogamos e observamos. [...] O amor das crianças e dos jovens é um tema com significados de diferentes nuances, mas, apesar disso, recorrente na fala dos professores. A revelação de inúmeros professores com os alunos e com a profissão é, antes de tudo, uma relação afetiva. Eles amam os jovens e gosta de ensiná-los. Este sentimento brota, geralmente, da história pessoal e escolar dos indivíduos (TARDIF; LESSARD, 2011, p. 151).

Contudo, as narrativas das estudantes denotam que o sentimento de amor, amizade, confiança, respeito e cuidado pelas crianças que acompanharam no estágio prevaleceram como mola mestra para que o trabalho pudesse ser realizado no tempo em que ficaram com esses alunos na escola, garantindo, assim, o desenvolvimento cognitivo e social esperado pelos processos de inclusão no contexto escolar a partir destes vínculos afetivos.

As aprendizagens, as frustrações e os limites para a formação da futura professora

As estudantes, em suas narrativas, pontuaram de forma clara os desafios, problemas e dificuldades enfrentadas, porém, tais situações impulsionaram o desejo de aperfeiçoamento na profissão docente depois da formação inicial, além da vontade de mudar as realidades que enfrentarão no decorrer da profissão.

Cibele narra em sua entrevista:

Mudei muito meu pensamento sobre o que é ser professor. Eu senti que é difícil, não é uma coisa fácil, somente se a gente quer realmente trabalhar nessa área, se realmente quer ser professor, você supera todos os obstáculos. Para mim, foi muito bom, mudou o estágio, as experiências, o que aprendi, mudou toda a minha forma de ver qual é o papel do professor, como que é trabalhar com a inclusão na sala de aula. Quero ser professora e trabalhar com crianças de inclusão, pois aprendi muito com essas crianças, independentemente (sic) de todas as dificuldades que tive e de todos os momentos difíceis que vivi, foram momentos bons e me fizeram ter um olhar diferente para a inclusão. Quero fazer a diferença! Quero ser diferente dos professores que, infelizmente, eu encontrei que não tinham vontade de dar aula, que não tinham vontade de estar com o aluno em sala de aula. Eu quero ser diferente desses professores, eu quero dar aula, eu quero ajudar meus alunos no desenvolvimento e em tudo que eu puder ajudar. O estágio foi muito enriquecedor e as experiências que vivi levarei para minha vida inteira, o que, com certeza, vai me ajudar a ser uma professora e uma profissional melhor (CIBELE, 2019).

Em sua entrevista narrativa, Íris afirma que é preciso ter um propósito:

Eu não volto mais para ser professora sem antes terminar a faculdade e ter uma formação mais completa, recebo convite direto, mas é preciso ter um propósito, não adianta você ir lá e fazer qualquer coisa e ir embora (ÍRIS, 2019).

A narrativa de Íris corrobora o que Vicente e Bezerra afirmam sobre o trabalho do estagiário na escola.

É imprescindível existir uma troca de experiências e saberes, porque mesmo que o estagiário ainda esteja em processo de formação, na maioria das vezes, é ele quem permanece mais tempo na sala, em todas as aulas, observando, conhecendo e ajudando os alunos. Desta maneira, o estagiário pode contribuir com a prática desse professor, auxiliando-o a organizar estratégias de inclusão mais adequadas para o aluno com deficiência (VICENTE; BEZERRA, 2017, p. 23).

Íris, em sua entrevista narrativa, relatou:

As minhas experiências serviram para ver o que se passa dentro da escola, e que choca, que faz a gente repensar o que é a escola. A escola é um lugar complexo que nos ensina a trabalhar com as diversidades existentes na sociedade. Eu espero conseguir realizar o desejo de me especializar no ensino de crianças deficientes. A minha vontade é me especializar no ensino de crianças autistas, porque eu percebi no estágio que é preciso estar muito bem preparado para trabalhar o desenvolvimento cognitivo destas crianças (ÍRIS, 2019).

Vicente e Bezerra (2017, p. 23) apontam que: “Para o benefício do aluno com deficiência, deve haver contribuição das duas partes, pois tanto o professor quanto o estagiário são responsáveis por planejar, avaliar e resolver os problemas relacionados ao aluno.” Assim, mediante as experiências das estudantes, a interlocução com os professores em sala e a gestão da escola foi insuficiente para o atendimento ao aluno com deficiência, impactando-as e mostrando o quanto é importante a formação do professor para que ele tenha mais autonomia ao trabalhar com alunos deficientes.

O que fica evidente é a dedicação e o aprendizado das estagiárias. Elas puderam, com os males exemplos de profissionais que encontraram nas escolas pelas quais passaram, tirar a lição de que é preciso não seguir esses caminhos e, sim, escolher outros que possam levar a uma ação mais significativa, a uma postura diferente frente às dificuldades, aos desafios e às frustrações.

O que fica evidente também é a experiência com o estágio, especificamente no acompanhamento de crianças com deficiência, a necessidade de aprofundamento nesta área para atender essas crianças e enfrentar as situações de inclusão escolar.

Ser professora, para essas estudantes, é a realização de um sonho e, apesar de todas as dificuldades e os problemas enfrentados no estágio remunerado, o sonho permanece.

Algumas considerações

As experiências no estágio remunerado proporcionaram vivências que trouxeram inúmeras contribuições para a formação das estudantes do curso de Pedagogia, mesmo considerando as dificuldades e os desafios enfrentados por elas.

Nesse contexto, a partir das narrativas dos memoriais de formação e das entrevistas narrativas, os principais desafios que emergiram e que foram enfrentados pelas estudantes do curso de Pedagogia que ingressam no estágio remunerado logo nos primeiros semestres de formação se vinculam às unidades temáticas estipuladas para a análise, conforme citamos: o impacto com a realidade; o afeto com a criança com deficiência e o seu desenvolvimento; as frustrações, aprendizagem e limites de ser professora.

Essas unidades trazem à tona as questões e os objetivos específicos propostos para este artigo, os quais foram bússolas para a leitura das narrativas.

Em relação ao impacto com a realidade, as estudantes relatam inúmeras sensações que tiveram ao chegar à escola, como o medo, a insegurança, o enfrentamento com o novo. Na verdade, elas chegam às escolas em outro papel, no papel de professor, mesmo sendo estagiárias, já conhecem o contexto da escola porque também são alunas. Agora, com a mudança de papéis, os desafios e as dificuldades surgem como se nunca tivessem tido contato com o contexto escolar.

O impacto dessas estudantes teve um desafio mais complexo: chegar à escola e, além do contato com a estrutura e a sistemática do seu funcionamento, já iniciar o trabalho no acompanhamento de crianças deficientes. Assim, as dificuldades parecem ter sido de maior impacto. Várias questões do início do estágio na escola emergiram quando narraram suas experiências: O que fazer com aqueles alunos? Como trabalhar os conteúdos escolares com eles? Quem poderia me ajudar para o acompanhamento dessas crianças? Enfim, essas dificuldades de início do estágio marcaram a trajetória dessas estudantes em suas narrativas.

Para Vicente e Bezerra (2017), a chegada dos estagiários na escola pode ter diferentes significados para o grupo escolar, sendo que, na maioria dos casos, a equipe considera que os estagiários já chegam prontos para o trabalho e para ajudar. Mas essa responsabilidade anula as possibilidades de troca e a compreensão de que esses jovens precisam de apoio, ajuda e ensinamentos para desempenharem satisfatoriamente o seu papel, principalmente no acompanhamento de crianças com deficiência, como nos casos narrados.

A declaração das estudantes sobre a necessidade de desenvolverem vínculos afetivos com as crianças com deficiência que acompanharam para a construção de pontes que levassem ao seu desenvolvimento foi uma constante nos depoimentos cedidos por elas. Tais vínculos foram se estabelecendo no convívio com as crianças de forma natural, o que novamente marcou suas experiências e deu sentido para o trabalho que estavam realizando.

O surgimento de sentimentos como confiança, amizade e até ciúmes e apego, como no caso da estudante Cibele, deixou claro para elas que a profissão docente é permeada pelas compensações e vicissitudes das relações humanas. Ou seja, em um determinado momento, precisaram ir embora, partir daquela escola e deixar a criança que acompanhavam, o que as causou sofrimento. Diante disso, os vínculos afetivos também foram pontes para o entendimento das necessidades de cada criança, do que precisavam fazer e criar para colaborar no seu desenvolvimento.

Nas diferentes experiências, as três estudantes colaboraram para o desenvolvimento das crianças com deficiência – como narrado por elas – e, principalmente, na interação com o ambiente escolar, trazendo-as para a socialização do grupo, o que, na perspectiva histórico-cultural a partir das leituras e aprofundamentos de Vygotsky (2009, 2011), podemos considerar que potencializou o seu desenvolvimento, criando condições para que pudessem interagir com o contexto escolar.

Porém, as narrativas das estudantes revelam o quão despreparados estão os professores, a gestão e toda a comunidade escolar, incluindo elas, professoras em formação, para efetivar a inclusão das crianças com deficiência na escola. Esse dado nos sinaliza para a necessidade de maior aprofundamento nas questões que envolvem a inclusão nos sistemas de ensino no que diz respeito à formação continuada e à estrutura necessária nas escolas, desde a formação da equipe escolar, até às adaptações físicas na escola para o acolhimento de suas necessidades, além da presença de tecnologias assistidas, como materiais pedagógicos de apoio e ambientes com acessibilidade, dentre outros recursos que fazem grande diferença no atendimento das crianças com deficiência.

Diante das vivências narradas, as frustrações, a aprendizagem e os limites de ser professora também emergiram como os principais pontos a serem refletidos pelas estudantes.

As condições de trabalho que os sistemas oferecem, tanto para os professores quanto para os alunos que estão iniciando a sua trajetória docente no acompanhamento de crianças com deficiência, mostram a fragilidade dos processos de ensino e aprendizagem, bem como do acolhimento e acompanhamento dessas crianças na escola. Porém, para as estudantes, o que mais marcou foi a compreensão do que é ser professor, pois, mesmo diante de todas as realidades problemáticas enfrentadas no estágio remunerado, a vontade de ser uma profissional do ensino, fazer a diferença na vida dos alunos e seguir na profissão não foi afetada. Ao contrário, reafirmou o objetivo de se formar e se inserir nos sistemas educacionais com a compreensão de que é difícil, sim, de que existem dificuldades e desafios profundos, mas que também é necessário ser agente de mudança com consciência e criticidade do trabalho a ser realizado em prol de uma Educação de melhor qualidade.

Notas

1O texto é produzido ora na primeira pessoa do singular, quando se refere ao trabalho da pesquisadora, primeira autora do texto, junto às graduandas; ora na primeira pessoa do plural, quando se refere às ações coletivas e às interações com a supervisora, segunda autora do texto.

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Recebido: 06 de Fevereiro de 2020; Aceito: 19 de Julho de 2020

Profa. Dra. Renata Bernardo Universidade São Francisco (Brasil) Programa de Residência Pedagógica Programa de Iniciação Científica Grupos de Pesquisa: HIFOPEM, RASTROS e GPETI Orcid id: https://orcid.org/0000-0003-4782-2856 E-mail: brenatta@gmail.com

Profa. Dra. Adair Mendes Nacarato Universidade São Francisco (Brasil) Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação Cursos de Extensão para Formação Docente Grupos de Pesquisa: Grucomat e HIPOFEM Editora da Revista Horizontes Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-6724-2125 E-mail: ada.nacarato@gmail.com

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