Introdução
A linguagem constitui um campo epistemológico bastante discutido por diferentes correntes sócio-filosóficas. Mesmo considerando que a noção da linguagem é central para questões como alfabetização e/ou letramento, observa-se que o campo das linguagens passa a se expandir no contexto brasileiro para um grupo de componentes curriculares, como Artes, Educação Física, Língua Portuguesa e Inglesa, carecendo ainda de melhor caracterização na área educacional. Assim, a distribuição das disciplinas em áreas vem sendo apresentada desde as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM) (BRASIL, 1998) até o último documento curricular oficial brasileiro, a Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC-EM) (BRASIL, 2018).
Dentre outros componentes curriculares, percebemos que a Educação Física foi incluída na área de linguagem e, mesmo sobre aligeiradas noções que compreendem que as práticas corporais como “passíveis de leitura e produção” (BRASIL, 2018, p. 214), é ainda necessário superar uma concepção de linguagem como processo restrito à escrita e oralidade, bem como abrir perspectivas teóricas e procedimentais do que se considera linguagem para a área de Educação Física (OLIVEIRA; SOUZA; SOUZA JUNIOR; SILVA; ARAÚJO, 2021).
A literatura da Educação Física busca fortalecer suas compreensões de linguagem na filosofia e sociologia. Nesses termos, partindo do campo teórico na educação, de forma genérica, podemos perceber que Educação Física foi alcançada por compreensões de Linguagem a partir de três perspectivas: a semiótica, a fenomenologia e a sócio-histórico-cultural.
A partir de um mapeamento conceitual e identitário do componente curricular, o objetivo deste texto é analisar a noção de linguagem apresentada na Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio e suas repercussões para a Educação Física.
O atual estudo tem sua relevância no reconhecimento das noções de linguagens e suas aparições em documentos oficiais da educação brasileira que irão orientar a elaboração dos currículos. Esse texto é fruto de dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na linha de estudos pedagógicos do corpo e do movimento.
Vertentes das Linguagens no olhar da Educação Física
A Educação Física (EF) nos anos 70 a 80 concentrou seus debates em busca de sua identidade na escola. Segundo Bracht (1999) nos anos 90 uma nova perspectiva muito influenciada pelas ciências humanas, principalmente a sociologia e a filosofia da educação propuseram objetos de estudo e conhecimento para a área.
Nesta trajetória, Matthiesen e colaboradores (2008) trazem-nos, de forma genérica, alguns indicadores que principiam exercícios de vincular a EF ao campo das linguagens. Os autores supracitados entendem que diversos pesquisadores da Educação Física buscaram a compreensão de área e suas aproximações com a linguagem ao aprofundar questões filosóficas (SANTIN, 1985), ou com a perspectiva da semiótica (BETTI, 1994), ou mesmo na teoria crítica (KUNZ, 1995). Já o texto dos PCNs do Ensino Médio voltado para a área de Educação Física, “[...] escrito por Mattos e Neira, publicado no ano de 1999, faz algumas menções a Educação Física enquanto linguagem, propondo a interatividade, o diálogo, a construção de significados na, pela e com a linguagem” (MATTIESEN e COLABORADORES, 2008, p. 130).
Apesar da multiplicidade de indícios, observamos a sistematização mais longeva de três vertentes da Linguagem na área da E F, são elas: a semiótica, a fenomenologia e a sócio-histórico-cultural.
A perspectiva da semiótica da linguagem na área da Educação Física tem no o professor Mauro Betti (1994; 2007; 2021) sua maior referência. Tal autor assina o verbete linguagem no dicionário crítico da área, apontando que a semiótica “[...] estuda a vida dos signos, o modo como se organizam para significar, qualquer que seja o campo em que se manifestem” (GOMES-DA-SILVA; GOMES-DA-SILVA, 2014, p. 603).
De acordo com Betti (2021), a semiótica apresenta três grandes correntes, mas o mesmo declara que se aproxime mais da semiótica peircena, em que não há hierarquia dos signos e nem dualidades, pois tudo é signo num processo comunicativo, seja ele os silêncios, os gestos, a fala, entre outros. Por isso, o autor afirma que a EF é produto da linguagem e o corpo em movimento é a linguagem, sendo esse sem classificação de “corporal” ou não. O corpo em movimento é comunicação que parte de si para o mundo cercado de signos e significados que podem ser interpretados de diferentes formas e em diferentes culturas. Com isso:
tratar a EF no campo da linguagem não é apenas analisar a lógica interna dos jogos e esportes como sistemas de signos (tendência estruturalista), nem apenas desvelar as significações já instituídas por certos grupos sociais (tendência socioantropológica que lembra vagamente a semiótica da cultura). Tarefas necessárias, mas que deixam à sombra o mais importante na educação escolar: as experiências de aprendizagem dos sujeitos (alun@s), suas ‘experiências vívidas’ nas aulas. Ao mesmo tempo, compreender os ‘objetos de conhecimento’ da EF como sistemas de signos já codificados, mas também em constante (re)criação (BETTI, 2021, p. 17-18).
Numa segunda perspectiva, temos a fenomenologia que com grande influência do filósofo Merleau-Ponty, bem como, na E F, o debate do professor Elenor Kunz. Nesta corrente de pensamento, Kunz (1994) traz a relação de subjetividade e esclarecimento em que o sujeito aprende pelo o outro no agir comunicativo.
De acordo com Almeida e Lucas (2010, p. 88) o agir comunicativo proposto por Habermas circundam em três aspectos: “[...] a objetiva – relacionada às coisas externas do mundo, a social – vislumbra as normas, leis e regras que regem a convivência social e a subjetiva – os sentimentos, desejos, experiências, necessidades reais do indivíduo”. Compreendendo o mundo a partir da noção dose-movimentar.
O Se-movimentar é, assim, interpretado como uma conduta humana, onde a Pessoa do ‘se-movimentar’ não pode simplesmente ser vista de forma isolada e abstrata, mas inserida numa rede complexa de relações e significados para o Mundo, que configura aquele ‘acontecimento relacional’, onde se dá o diálogo entre Homem e o Mundo [...] (KUNZ, 2001, p. 174).
Metodologicamente, tal perspectiva de linguagem, ganha organização didática nas categorias de trabalho (objetividade), interação (relação social) e linguagem (comunicação). Desta forma, Kunz (1994) inaugura a perspectiva crítica-emancipatória que já apresenta tradição no campo da EF, bem como comentadores que apontam potencialidade na pluralidade de percepção de linguagens (TINÔCO; ARAÚJO, 2020).
Por último, dentro de uma perspectiva sócio-histórico-cultural, Machado (2019) traz Vygotski, Luria e Leontiev para compreender a linguagem. Na EF o Coletivo de Autores (1992) o principal grupo que dialoga com essa vertente, mesmo alguns autores tenham percorridos outros caminhos, como é o caso de Valter Bracht.
Na obra do Coletivo de Autores (1992) defende-se a expressão corporal como linguagem, social e historicamente construída. Sendo a cultura corporal como um conjunto de temas ou formas de atividades (jogo, esporte, ginástica, dança ou outras) que constituirão seu conteúdo. Nesta obra defende-se que na “[...] perspectiva da reflexão da cultura corporal, a expressão corporal é uma linguagem, um conhecimento universal, patrimônio da humanidade que igualmente precisa ser transmitido e assimilado pelos alunos na escola” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 29).
Dentro dessa perspectiva teórica sócio-histórico-cultural, temos como um dos principais autores o Mikhail Bakhtin (1997), filósofo russo com estudos na linguística e literatura contribui nos debates sobre a compreensão da linguagem, propondo o Círculo de Bakhtin, com três pilares: a interação discursiva, o enunciado concreto e o signo ideológico.
Para melhor representar as perspectivas apresentadas, elaboramos um quadro com as três correntes para melhor compreender o que cada uma entende por Linguagem e o que os autores da área da EF entendem dentro dessa perspectiva o que seria a Linguagem.
CORRENTES | SEMIÓTICA | FENOMENOLOGIA | SÓCIO-HISTÓRICA-CULTURAL |
---|---|---|---|
LINGUAGEM | Se establece a partir dos signos que por mediação do interpretante traduz em objecto, eriando signifições e relações de códigos (produto) no processo de comunicação e cultura | Possui signifícado em que o signo não se separa significação c este é subjetivo no ser-no-mundo dos sujeitos, sendo o agir comunicativo um acontecimento relacional com o outrem | É o principal melo de mediação disponível para os indivíduos engajados na interação social, utilizando os instrumentos e signos como mediadores externos, sendo uma relação dialógica marcado por um tempo/espaço histórico |
LINGUAGEM NA EF | Cullura Corporal de Movimento produto da Linguagem em que os sistemas de signos codificados ou não, expressam ou delimitam os gestos, as expressões, movimentos, etc. dos alunos, sendo a Linguagem não hieraquizada | Cultura de movimento envolve a a relação entre corpo, natureza e cultura num conhecimento marcado pela linguagem, que emerge do corpo e é revellada no movimento que é gesto, abarcando os aspectos bioculturais, socials e históricos | Cultura corporal, ou a expressão corporal vé uma linguagem, um conhecimento universal, patrimônio da humanidade social e historicamente construída que a partir da interação social se materializa com o outro. |
PRINCIPAIS AUTORES / (EDUCAÇAO FÍSICA) | Ferdinand de Saussure Charles Peirce / (Mauro Betti) | Escola de Frankfurt Merleu-Ponty / (Elenor Kunz) | Lev Vygotsky Mikhail Bakhtin / (COLETIVO DE AUTORES) |
Fonte: Autores (2022).
Em paralelo à produção acadêmica no campo da EF, a aproximação do componente curricular EF na área de Linguagem em documentos oficiais se dá com a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM) (BRASIL, 1998), quando este apresentou as disciplinas por áreas de conhecimento. Na sequência, foi apresentado o PCN do Ensino Médio (PCNEM), no ano 2000, com a EF na área Linguagens, Códigos e suas tecnologias. Naquele documento a linguagem foi considerada como
[...] capacidade humana de articular significados coletivos em sistemas arbitrários de representação, que são compartilhados e que variam de acordo com as necessidades e experiências da vida em sociedade (BRASIL, 2000, p. 19).
O documento englobava a Língua Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna, Educação Física, Artes e Informática, apontando as competências e habilidades para cada disciplina. Em seguida foi lançado o PCN+ – Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio – apresentando pilares que cada disciplina teria que expor conceitos que caracterizam suas especificidades: representação e comunicação; investigação e compreensão; contextualização sociocultural. Neste último documento, a professora Suraya Darido (2002) assinou o capítulo referente a disciplina de EF trazendo como representação a Linguagem corporal e apontando que:
[...] a comunicação humana pode efetivar-se por meio de palavras (linguagem verbal) ou por meio de outros signos (linguagem não-verbal). Há substratos comuns entre todos esses signos, com destaque para o fato de terem sido criados pelo homem com finalidades específicas. Trata-se, pois, de convenções, variáveis de acordo com as necessidades e interesses do grupo social. Essas convenções podem ser agrupadas em conjuntos conhecidos como códigos. Os gestos e os movimentos fazem parte dos recursos de comunicação que o ser humano utiliza para expressar suas emoções e sua personalidade, comunicar atitudes interpessoalmente e transmitir informações (DARIDO, 2002, p. 140).
Ao comentar a conteúdo dos documentos da política curricular para o Ensino Médio, Souza (2018, p. 30) aponta que na PCNEM e PCN+ possuem a tendência da vertente semiótica com signos e códigos ligados ao corpo. Portanto, para que os alunos “possam ‘ler’ os signos, eles deveriam saber a gramática da linguagem corporal [...] a Educação Física seria responsável por uma prática de linguagem específica, codificados em linguagem sígnica [...]”.
Com o ensino médio inovador, em 2009, foram elaboradas novas diretrizes, as DCNEM (2013), em que a área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, é renomeada para apenas de “Linguagens”, bem como ocorreu a exclusão da “Informática”. Assim, os componentes obrigatórios decorrentes da LDB ficaram referentes a: “I – Linguagens: a) Língua Portuguesa. b) Língua Materna, para populações indígenas. c) Língua Estrangeira moderna. d) Arte, em suas diferentes linguagens: cênicas, plásticas e, obrigatoriamente, a musical. e) Educação Física” (BRASIL, 2013, p. 187).
Por fim, a DCNEM de 2018, que dialogou com a BNCC-EM, propõe uma reformulação renomeando a área de “Linguagem e suas Tecnologias”, com as disciplinas de Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Educação Física e Artes.
No Ensino Médio, o foco da área de Linguagens e suas Tecnologias está na ampliação da autonomia, do protagonismo e da autoria nas práticas de diferentes linguagens; na identificação e na crítica aos diferentes usos das linguagens, explicitando seu poder no estabelecimento de relações; na apreciação e na participação em diversas manifestações artísticas e culturais e no uso criativo das diversas mídias (BRASIL, 2018, p. 470).
Assim, a BNCC-EM continua trazendo as competências e habilidades, porém não as define por disciplina, mas por área, apresentando especificidades apenas na Língua Portuguesa e Matemática. Podemos visualizar essa linha do tempo supra descrita a partir da ilustração abaixo:
É neste espaço histórico e político da dinâmica curricular do Ensino Médio que nos inscrevemos para compreender a noção de linguagem. Compreendemos que visitar o documento da BNCC-EM se constitui em um exercício de reconhecimento ou estranhamento do quanto esta política pode expressar o movimento de construção identitária da área de E F. Mesmo considerando que, muitas vezes, a construção de documentos como a BNCC-EM privilegia posturas teórico-políticas macro e silenciam/retiram a efetiva participação dos professores no processo (SOAVE; REAL BARBIERI e ANTÔNIO DA ROSA, 2020), entendemos que a análise dos documentos pode ajudar a área no debate, crítica e operacionalização da política curricular.
Metodologia
A metodologia utilizada foi exploratória-documental de abordagem qualitativa, tendo o documento da BNCC-EM como corpus de análise. Para a análise da BNCC-EM utilizamos a sistematização da análise de conteúdo segundo Bardin (1979) que se constitui em três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados.
Na primeira etapa, a pré-analise, fizemos a leitura flutuante do documento e, para os fins do estudo, selecionamos a introdução e a seção que se refere à área de Linguagens, destacando a disciplina de Educação Física para análise, com a criação de um arquivo próprio, sem alterar o documento oficial. Para a exploração material (codificação) utilizamos o auxílio do software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ). Este programa informático viabiliza diferentes tipos de análise de dados textuais simples, como a lexicografia básica (cálculo de frequência de palavras), até análises multivariadas (classificação hierárquica descendente, análises de similitude, dentre outras), que demonstra sua valia na organização e distribuição do vocabulário de forma facilmente compreensível e visualmente clara (CAMARGO; JUSTO, 2013).
Bardin (1979) estabelece convenções em que se pode delinear a análise por regras de enumeração e contagem, além de formas de organização categorial de documentos analisados. O método que utilizamos para o tratamento dos dados foi o de Classificação Hierárquica Descendente (CHD):
[...] classifica os segmentos de texto em função dos seus respectivos vocabulários, e o conjunto deles é repartido com base na frequência das formas reduzidas (palavras já lematizadas). [...] O IRAMUTEQ também fornece outra forma de apresentação dos resultados, por meio de uma análise fatorial de correspondência feita a partir da CHD (Análise Pós-Fatorial) que representa num plano cartesiano as diferentes palavras e variáveis associadas a cada uma das classes da CHD. A interface possibilita que se recuperem, no corpus original, os segmentos de texto associados a cada classe, momento em que se obtém o contexto das palavras estatisticamente significativas, possibilitando uma análise mais qualitativa dos dados (CAMARGO; JUSTO, 2013, p. 516).
E em conjunto com o método de CHD utilizamos a análise de similaridade no intuito de aprofundar e analisar alguns termos centrais da pesquisa que serão expostos mais adiante. “A análise de similitude se baseia na teoria dos grafos, possibilita identificar as coocorrências entre as palavras e seu resultado traz indicações da conexidade entre as palavras” (MARCHAND; RATINAUD apud CAMARGO; JUSTO, 2013, p. 516).
Para que o Software IRAMUTEQ execute o tratamento dos dados foi preciso preparar o corpus compatível ao programa. A partir do documento da BNCC-EM o corpus foi constituído pela: Introdução (p. 7 -34); 5. A etapa do Ensino Médio (p. 461-472); 5.1. A área de linguagens e suas tecnologias (p. 473- 482); 5.1.1. Linguagens e suas tecnologias no Ensino Médio: competências específicas e habilidades (p. 483-489); 5.1.2. Língua Portuguesa (p. 490- 516).
No corpus repartimos o documento em 23 linhas de comandos de acordo com os tópicos da BNCC (cada linha informa tópico a ser identificado pelo software), por exemplo: n_01 “A Base Nacional Comum Curricular” (p. 7- 10); n_10 “competência específica 1” (p. 483). As palavras com significado único foram modificadas para siglas, como CCM (cultura corporal de movimento), LT (linguagens e suas tecnologias).
Na terceira etapa, operamos pelo tratamento dos dados obtidos e interpretação. O software nos oferta classes de unidades de sentido as quais estamos considerando categorias de análise. “As categorias são, rubricas ou classes, as quais reúnem um grupo de elementos [...] sob um título genérico, agrupamento esse efetuado em razão dos caracteres comuns destes elementos (BARDIN, 1979, p. 117). O critério de classificação pode ser semântico, sintático, léxico ou expressivo, e esclarecemos que em nossa pesquisa optamos pela classificação do “[...] léxico (classificação das palavras segundo o seu sentido, com emparelhamento dos sinônimos e dos sentidos próximos)” (BARDIN, 1979, p. 118). Temos, a partir dessa trajetória, a formação de classes/categorias a serem discutidas.
Núcleos de sentido na BNCC-EM: linguagem e a Educação Física em foco
Os resultados obtidos do tratamento no software através da CHD na BNCC-EM apontam para a formação cinco classes agrupadas por uma análise lexical das palavras no texto. Apresentamos, na figura 3, as classes de acordo com as unidades de textos trazidas pela CHD fornecida pelo software que considera a força e relações dos conceitos nas classes. Tais classes se tornam categorias de análise para o debate a partir de então. Ressaltamos que iremos dar destaque a categoria das linguagens nesse texto.
Como é possível perceber na imagem acima, a CHD aplicada ao documento em análise nos apresenta 5 categorias, a saber: Sistema institucional (27,24%); Expressões e Diversidade (13,00%); Juventude (22,91%); Elementos da Linguagem (14,40%); e Códigos da Linguagem (22,45%). Percebe-se, certo equilíbrio na representatividade de cada categoria. Contudo destaca-se a força de três classes: a categoria 01, Sistema institucional (27,24%); a categoria 03, Juventude (22,91%) e; a categoria 05, Códigos da Linguagem (22,45%).
O vocabulário típico da classe/categoria 1 permitiu a categorização “Sistema institucional”, ou seja, essa classe engloba a regulamentação do sistema escolar e seus artefatos legislativos. Essa classe engloba todas as outras classes fazendo ligações diretas entre elas, bem como apresenta na maior parte do seu corpus a introdução da BNCC-EM.
Assim, podemos apontar que esta categoria agrega a organização e sistematização do documento frente às normas legais, bem como a orientação para estados, distrito federal e municípios na elaboração dos seus currículos.
O primeiro, já antecipado pela Constituição, estabelece a relação entre o que é básico-comum e o que é diverso em matéria curricular: as competências e diretrizes são comuns, os currículos são diversos. O segundo se refere ao foco do currículo. Ao dizer que os conteúdos curriculares estão a serviço do desenvolvimento de competências, a LDB orienta a definição das aprendizagens essenciais, e não apenas dos conteúdos mínimos a serem ensinados. Essas são duas noções fundantes da BNCC (BRASIL, 2018, p. 11).
Assim, o documento reforça as articulações entre os anseios das políticas públicas, das teorias pedagógicas e as práticas escolares. Sendo esta categoria ligada mais para dispositivos legais e, portanto, para relações de poder institucional de controle sobre uma ideologia de formação/projeto social. Para a noção de linguagem em relação a EF, importa considerar que essa categoria o aborda uma sequência de investimentos de documentos normativos que apontam apostas na direção de linguagem desde os PCNEM (BRASIL, 2000).
Portanto, a classe/categoria “Sistema Institucional” apresenta os elementos normativos que ancoram a proposta, como a Constituição Federal e a LDB, colocando a BNCC como necessidade de um currículo mínimo para todo o país. Contudo, a proposta insiste na pedagogia de competência e habilidades voltada a uma formação mínima. Assim a primeira categoria prima por uma burocratização e tecnificação do ensino/currículo e por um esvaziamento de elementos que leve a compreender a área de linguagens.
A classe 2, que possui menor incidência (13%) se comparado a outras classes/categorias da BNCC, foi nomeada como “Expressões e Diversidade”. Concentra seu corpus nas competências 4, 2, 7 e 1 do documento. Como podemos ver na competência 4 - “Compreender as línguas como fenômeno [...] reconhecendo-as e vivenciando-as como formas de expressões identitárias, pessoais e coletivas, bem como respeitando as variedades linguísticas e agindo no enfrentamento de preconceitos de qualquer natureza” (BRASIL, 2018, p. 481). Contudo Huber nos alerta que
Há um paradoxo na questão abordada, pois o documento reconhece as diversidades culturais e as desigualdades, mas nos objetos de ensino e nas habilidades isso praticamente não aparece. Não apresenta uma possibilidade de como inserir essas questões nos currículos. Com isso, não se propõe a reflexão sobre temas importantes na sociedade e que fazem os sujeitos refletirem sobre suas realidades (HUBER, 2017, p. 65).
Ainda nessa categoria encontramos também o termo “linguagem” relacionado às diferentes práticas de produção e usos sociais, havendo maior incidência na competência 2 “[...] utilizar diferentes linguagens (artísticas, corporais e verbais) para exercer, com autonomia e colaboração, protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva[...]” [BRASIL, 2018, p. 485]. Notadamente, existe um caráter generalista ao se tratar da linguagem na BNCC-EM. Diversas partes do texto traz os termos “práticas de linguagens”, “diferentes linguagens [...]” (BRASIL, 2018, p. 470), sem, contudo, explicitarem quais seriam essas práticas, nem tão pouco como cada habilidade poderia explorá-la. Ao que parece, a literatura já tem apontado que
Alguns trechos ou expressões utilizadas parecem se sustentar em uma perspectiva mais estruturalista de entender a linguagem – como a relação com a aquisição de códigos e signos –, enquanto outras colocações indicam um movimento interpretativo mais identificado com perspectivas pós-estruturalistas de compreender as linguagens – como a produção de sentidos e significados, a construção de discursos a partir do uso da linguagem e as relações de poder envoltas na construção das linguagens (FONSECA; MACHADO; TAVARES; MACHADO; PUJOL; LIMA, 2017, p. 666).
Partindo das possibilidades de compreensões de linguagens apresentadas anteriormente (semiótica, fenomenologia, sócio-histórica-cultural), constatamos uma inclinação do documento para a abordagem semiótica, quando o documento, na parte específica de língua portuguesa, explicitar que
Considerando que uma semiose é um sistema de signos em sua organização própria, é importante que os jovens, ao explorarem as possibilidades expressivas das diversas linguagens, possam realizar reflexões que envolvam o exercício de análise de elementos discursivos, composicionais e formais de enunciados nas diferentes semioses – visuais (imagens estáticas e em movimento), sonoras (música, ruídos, sonoridades), verbais (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita) e corporais (gestuais, cênicas, dança) (BRASIL, 2018, p. 478).
Podemos perceber uma pluralidade de práticas de linguagens, em suas diversas expressões, seja elas artísticas, corporais e verbais, bem como enquadra cada uma delas em sua determinada disciplina, ou seja, Artes, Educação Física e Português/Inglês.
Betti (2007), ao discutir a educação física escolar, realça a semiose estruturalista de Saussure em que “[...] o signo linguístico seria uma entidade psíquica de duas faces, formada por um significante e um significado, ou seja, uma imagem acústica e um conceito, que são unidos por um vínculo de associação em nosso cérebro” (SAUSSURE, 2006, p. 80).
O signo é, neste sentido, processual que interage e inter-relaciona, como já explorado na área da EF, a exemplo da tese de Mendes (20160, citado por Merrell (2012), que retrata a semiótica perciana na EF:
Por exemplo, você está assistindo a um jogo de basquete com Michael Jordan – este que foi e ainda é um ícone da cultura norte-americana. E lá está ele, disparando para a cesta, como se estivesse atraído em direção a um signo, o signo-aro. O agente semiótico em questão, Michael Jordan (MJ), ele próprio é um outro signo, está na zona de recepção deste desejado signoesfera, a bola de basquete, que ele agarra e – com a língua pendurada para fora da boca e olhos vibrados – ele recria seu notório signo-MJ para si mesmo, para seus companheiros de time, oponentes e o público que o assiste, com um salto que desafia a gravidade e uma enterrada violenta do signo-esfera através do signo-aro. Durante sua enterrada, ele se encontra com um vociferante signo de aprovação de sua hoste de admiradores. Ele então conscienciosamente aponta seu signo-dedo-indicador em direção ao signo-pivô que lhe serviu o signo-esfera como um gesto de reconhecimento. E tudo isso ocorreu no que, para efeitos práticos, foi um fluxo de imagens contínuas, mutuamente interpenetrantes. [...] Não havia como demarcar precisamente onde um signo saía de cena e outro começava. [...] MJ, companheiros de time, bola, salto, cesta, enterrada, aplauso, e tudo mais, não substituem coisa alguma: MJ é o que é, como são todos os signos (MENDES apud MERRELL, 2012, p. 19-20).
Ainda com relação à noção de Linguagem, percebe-se que esta também aparece na classe/categoria 3, a qual nomeamos como “juventude”, e que se liga muito fortemente com a categoria 02 (“Expressões e Diversidade”) por uma relação lexical próxima.
A partir do próprio título da categoria/classe 03, intitulada juventude, gostaríamos de pensar a noção de juventude e suas implicações para pensar a linguagem. Segundo a categoria, o documento da BNCC-EM aponta a cultura juvenil fortemente relacionada ao universo digital. Ta l fato é explícito ao documento afirmar que, “[...] do ponto de vista das práticas contemporâneas de linguagem, ganham mais destaque, no Ensino Médio, a cultura digital, as culturas juvenis, os novos letramentos e os multiletramentos, os processos colaborativos, as interações e atividades que têm lugar nas mídias e redes sociais, os processos de circulação de informações e a hibridização dos papéis nesse contexto” (BRASIL, 2018, p. 490).
Tal relação ganhou certa visibilidade na literatura educacional seguindo o argumento de Prensky (2012), ao segmentar gerações com vivência pré e pós a emergência da cultura digital, denominados “imigrantes digitais” e “nativos digitais” respectivamente.
Contudo, acompanhamos estudos (ARAÚJO, 2022; OVENS, GARBETT, HEAP, 2015) que creem tais rótulos não descrevem uma geração homogênea de aprendizes, mas que concorrem para alertar ao professor que aproximação com os usos culturais da linguagem de seus alunos devem ser considerados no desenvolvimento de uma proposta curricular/pedagógica (TINÔCO; ARAÚJO, 2020; SOUSA, TINÔCO, BARROS, BATISTA, ARAÚJO, 2014; CHAVES, BARROS, SOUSA, COSTA, ARAÚJO, 2015).
Ainda nessa categoria observamos o termo “multiletramentos”, aparece três vezes no texto e localizado apenas na parte de Língua Portuguesa, evocando expressões de linguagem “para além da cultura do impresso (ou da palavra escrita) [...]” (BRASIL, 2108, p. 478), e ofertando uma postura em que, [...] do ponto de vista das práticas contemporâneas de linguagem ganham mais destaque, no Ensino Médio, a cultura digital, as culturas juvenis, os novos letramentos e os multiletramentos [...]” (BRASIL, 20180, p. 49).Entendemos, contudo, que restringir a noção de multiletramentos à seção específica de língua portuguesa, restringe suas potencialidades de aposta interdisciplinar. Neste sentido, buscamos no corpo a unidade de expressão do sujeito que pode operar por diferentes modalidades e/ou manifestações.
Talvez, ao conceber as linguagens do corpo – seus códigos, representações, modos de comunicar – como uma das modalidades que compõem um entendimento mais amplo de letramento, poderíamos abrir caminhos para ampliar a riqueza de diálogos transversais entre diferentes linguagens e saberes (PEREIRA, 2014, p. 80).
Essa ausência de transversalidade reflete uma carência já apontada por Oliveira e colaboradores (2021, p. 3) no ensino fundamental, em que a partir dos anos finais “[...] percebe-se completa ausência de qualquer menção aos termos que se relacionem com as linguagens escrita e oral, bem como termos/palavras que possam nos elucidar as representações de ordem visual e/ou sonora [...]”, ou seja, abre-se formalmente/documentalmente a possibilidade de agregar componentes curriculares na área de linguagem mas, de fato, não fomenta a diversidade de expressões de linguagem entre esses componentes curriculares. Explicitando o paradoxo, a BNCC-EM possibilita que se amplie a concepção de linguagens, com as diversas áreas e suas relações, porém o documento, por vezes, não provoca ou estimula essa potencialidade.
Podemos refletir também, que o termo “multiletramentos” e “novos letramentos” vem no documento sem ser desenvolvido ou detalhado nas habilidades específicas e/ou materializando-se nos planos de aulas.
Na penúltima classe/categoria, “elementos da linguagem”, temos alguns termos que dialogam de forma mais próxima com a Educação Física. Vejamos a figura abaixo que mostra a relação dos termos de toda a classe 4.
Podemos observar no primeiro momento que todos os termos se ligam à cultura. Como vimos na primeira sessão, a literatura da EF tem justificado a tal área no campo da linguagem a partir de diferentes perspectivas. Caparroz e Bracht (2007, p. 45), por exemplo, defendem que a linguagem habita de forma ampla o mundo do simbólico, entendendo que “[...] o que qualifica o movimento enquanto humano é o sentido/significado do mover-se, sentido/significado mediado simbolicamente e que o coloca no plano da cultura”.
Cabe à competência 5 do bloco de linguagens e suas tecnologias no Ensino Médio garantir alguma especificidade ao diálogo da CCM com o campo das linguagens. Assim, segundo a BNCC-EM “[...] cada conjunto de práticas da cultura corporal de movimento (danças, lutas, ginásticas, esportes e jogos) apresenta especificidades de produção da linguagem corporal e de valores e sentidos atribuídos às suas práticas” (BRASIL, 2018, p. 487).
Contudo, a concentração nesses temas, ao passo que garante a especificidade de área, não propõem uma visão mais ampla de linguagem porque, de alguma forma, faz ligação linear com o movimento/linguagem corporal.
Na área de Linguagens e suas Tecnologias, a corporeidade e a motricidade são também compreendidas como atos de linguagem. Ao experimentarem práticas da Educação Física (como ginástica de condicionamento físico ou de consciência corporal, modalidades de esporte e de luta), os jovens se movimentam com diferentes intencionalidades, construídas em suas experiências pessoais e sociais com a cultura corporal de movimento (BRASIL, 2018, p. 475).
Podemos deduzir que o documento, ao ancorar a EF à linguagem corporal, reduz as possibilidades de expressão da cultura corporal de movimento.
Na última classe/categoria, “códigos da linguagem”, temos expressividade na exploração do campo jornalístico-midiático, campo das práticas de estudo e pesquisa, todos os campos de atuação social, ou seja, uma classe que contém os campos prescritos para a língua portuguesa. Aqui novamente ressaltamos, que o campo jornalístico-midiático ligado apenas a Língua Portuguesa limita e empobrece a sua potencialidade para todas as áreas e disciplinas.
Midiatizar/reportar sobre os temas das Artes, da língua estrangeira e da EF também é operar pela linguagem sobre os saberes das áreas. Mostrando, assim, as suas possibilidades nos diversos campos de aprendizagem e, para além deles, a potencialidade de se trabalhar a interdisciplinaridade. Na E F, por exemplo, diversas são as publicações contemporâneas de análise da BNCC e das formações de professores para trabalhar com ela que apontam as potencialidades técnicas, críticas e produtivas do trabalho com narrativas midiáticas (ARAUJO; SILVA; OVENS; KNIJNIK, 2021a; ARAUJO; CARVALHO; OVENS; KNIJNIK, 2021b; ARAÚJO, KNIJNIK; OVENS, 2021).
Tem se registrado na literatura que o empobrecimento no trato das linguagens de forma transversal não habita tanto na compreensão restrita de sua concepção, mas antes em uma resposta às avaliações internacionais de disciplinas mais tradicionais do currículo escolar.
A BNCC permanece no ecletismo e ainda evidencia o estreitamento da Educação Física e de outras disciplinas em relação à Matemática e Língua Portuguesa, o que demonstra a clara intenção da BNCC em atender às demandas das grandes avaliações realizadas pelo MEC para dar uma resposta aos organismos internacionais (SANTOS; BRANDÃO, 2018, p. 116).
Destacamos que os achados que evidenciam um maior destaque para a Língua Portuguesa e seus campos de atuação sugere a perda de coerência quando o documento traz como principal potencialidade, a noção de multile-tramentos. No empobrecimento em que cada linguagem está reservada à sua disciplina, a Educação Física com linguagem corporal, as Artes com a linguagem artística e Inglês com a linguística, habita também um reducionismo que não dialoga com o multiletramento. Por fim, na especificidade da Educação Física, percebe-se à noção de Linguagem ligada à tradição semiótica, com abordagem estruturalista, sendo a área vinculada à cultura corporal de movimento, como conceito que abarca as expressões da linguagem corporal.
Considerações Finais
A partir da compreensão da trajetória histórica e social da última etapa escolar hoje considerada “Ensino Médio”, bem como da Educação Física e do campo epistêmicos das linguagens, compreendemos que o documento norteador BNCC-EM apresenta diversas correntes de pensamento desde a proposta inicial até a última versão homologada. Sendo assim, e entendendo o currículo como campo de disputa histórico, nosso interesse neste estudo é a área de linguagem e a composição de disputas em que a EF é inicialmente incluída como a linguagem do corpo.
Na investigação em tela, a BNCC-EM aponta uma noção de linguagem mais próxima à concepção semiótica do termo. Especificamente, observamos que a vertente expressa na BNCC-EM é a semiótica estrutural em que há categorias dicotômicas, significado x significante, e em que o significado é relacional e o signo só faz sentido dentro da relação sistêmica da língua (sistema).
A principal consequência para área é uma visão um pouco mais rígida da linguagem em suas competências e habilidades pré-determinadas, bem como a percepção produtiva e funcional. Em um olhar mais específico, percebe-se que, ao mesmo tempo em que o documento indica uma autonomia, crítica e participação nas diferentes linguagens, ao analisar as competências, habilidades e objetos de conhecimento é possível perceber que há limitação didática e pedagógica neste sentido de vivência plural de diferentes linguagens.
Por fim, ao analisar a compreensão de linguagem na BNCC-EM elenca-se algumas reflexões sobre as possíveis implicações no ensino da Educação Física no Ensino Médio: a) a área de linguagem está posta nos documentos de forma isenta dos conflitos e contradições sociais, sem ênfases em crítica social e/ou contexto histórico; b) a EF está inserido na área de linguagem com um recorte bem específico na linguagem corporal, sem possibilidade explícita de diálogo com outras expressões de linguagens; c) as competências e habilidades gerais e específicas da área da linguagem abordam o ensino no contexto escolar de forma genérica e/ou técnica, sem indicações claras para o desenvolvimento autônomo dos possíveis usos da linguagem pelos jovens. Tais reflexões apresentam-se como elementos de uma agenda de pesquisa que se abre.