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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.64 Natal abr./june 2022  Epub 23-Feb-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n64id28542 

Artigo

A etnografia, o menos-adulto e a triangulação na pesquisa com crianças

Ethnography, the less-adult and triangulation in research with children

Etnografía, el menos adultos y la triangulación en investigación con niños

Gisele Brandelero Camargo1 
http://orcid.org/0000-0003-3983-2966

Marynelma Camargo Garanhani2 
http://orcid.org/0000-0002-3975-7137

1Universidade Estadual de Ponta Grossa (Brasil)

2Universidade Federal do Paraná (Brasil)


Resumo

O texto traz reflexões sobre a etnografia, a postura do menos-adulto e a triangulação como aporte metodológico para pesquisa com crianças. Considerou-se uma pesquisa com crianças que teve como objetivo de compreender o ponto de vista das crianças sobre como é a experiência de atravessar da Educação Infantil para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Ancorada nos estudos da Sociologia da Infância, admitiu-se a perspectiva de que as crianças são sujeitos capazes e produtoras de conhecimento, atores sociais, criativos e partícipes do processo partilhado de construção da informação. Entende-se que a postura do menos-adulto é adequada para este contexto de investigação, pois respeita a lógica própria das crianças e adapta os elementos científicos para que possam ser acessados pelas crianças. Entende-se que a etnografia, a postura do menos-adulto e a triangulação atendem às especificidades da pesquisa com crianças, tornando-se um aporte útil e eficiente.

Palavras-chave: Pesquisa com crianças; Etnografia; Menos-adulto; Triangulação

Abstract

The text brings reflections on ethnography, the less-adult attitude and triangulation as a methodological support for research with children. It was considered as a research with children that aimed to understand the children's point of view about how the experience of going from Kindergarten to the Early Years of Elementary School. Anchored in the studies of the Sociology of Childhood and the perspective that children are capable persons and producers of knowledge, social actors, creative and participants in the shared process of information construction. It is understood that the less-adult attitude is the most appropriate for this research context, since it respects the children's own logic and adapts the scientific elements so that they can be accessed by children. It is understood that ethnography, the less-adult attitude and triangulation meet the specificities of research with children, making it a useful and efficient contribution.

Keywords: Research with children; Ethnography; Less-adult; Triangulation

Resumen

El texto aporta reflexiones sobre la etnografía, la postura menos adulta y la triangulación como soporte metodológico para la investigación con niños. Se trató de una investigación con niños que tuvo como objetivo comprender el punto de vista de los niños sobre la experiencia de pasar del Jardín de Infancia a los Primeros Años de la Escuela Primaria. Anclado en los estudios de la Sociología de la Infancia, se admitió la perspectiva de que los niños son sujetos capaces y productores de conocimiento, actores sociales, creativos y partícipes del proceso compartido de construcción de información. Se entiende que la postura del menos adulta es adecuada para este contexto de investigación, ya que respeta la propia lógica de los niños y adapta los elementos científicos para que puedan ser accesibles a los niños. Se entiende que la etnografía, la postura del menos adulto y la triangulación responden a las especificidades de la investigación con niños, convirtiéndola en un aporte útil y eficaz.

Palabras clave: Investigación con niños; Etnografía; Menos adulto; Triangulación

Introdução

Fazer pesquisa com crianças não é o mesmo que investigar sobre crianças. Essas são duas formas diferentes pesquisar, marcadas pelas opções conceituais, teóricas e metodológicas dos pesquisadores. Ambos os caminhos nos conduzem a uma aprendizagem. A aprendizagem nos torna mestiços (SERRES, 1993). Isto é, a investigação mescla em nós conhecimentos, nos torna múltiplos ao longo do percurso de investigar.

Pesquisar com crianças, todavia, traz para o pesquisador a aprendizagem e o exercício da confiança na criança. Confiar, atitude implícita na ação investigativa com a criança, é o mesmo que creditar na sua capacidade para construir conhecimento conjunto e compartilhado. Para o adulto, isso pode ser uma aprendizagem e um desafio, pois as lógicas infantis são diferentes das dos adultos. Para alterarmos uma formulação conceitual, compreendemos que é necessário passar por um processo de transformação interior, gerenciado, dentre outros, pelas experiências individuais e pelos acontecimentos evolutivos sócio-históricos, que vão do conhecimento ao convencimento, confirmando ou refutando o que já estava postulado em nós intrinsecamente. Tal alteração conceitual é importante ao investigador que se propõe a pesquisar com crianças.

A imersão no universo da infância, pela pesquisa, demanda movimentar conceitos arraigados, constituídos por meio da cultura adultocêntrica, alterar perspectivas do pensamento e modos de agir e a ter disposição para congregar a genuinidade das culturas infantis, validando as lógicas próprias das crianças. Além disso, o pesquisador deixa o centro do processo de investigação para percorrer, lado a lado com as crianças, os rumos da pesquisa.

Então, a pesquisa com as crianças, pode exigir a alteração das concepções sobre elas, deslocando alguns saberes que são resguardados no imaginário coletivo sobre suas culturas, seus direitos e suas formas de participação no tecido social em que vivemos. Sobretudo, é necessário confutar a perspectiva da criança como sujeito em devir para aderir à compreensão de criança enquanto “[...] ator social, portador da novidade que é inerente à sua pertença à geração que dá continuidade e faz renascer o mundo” (SARMENTO, 2004, p. 2).

Reconhecê-las como sujeitos capazes e produtoras de conhecimento, atores sociais, criativos e confiáveis, partícipes do processo partilhado de construção da informação é, portanto, a primeira opção do pesquisador que deseja realizar a pesquisa com crianças.

Quando compreendemos as crianças a partir dessa perspectiva, admitimos que são capazes de (re)criar culturas, pois suas falas e apontamentos assumem legitimidade e verdade, podendo influenciar e modificar os contextos em que estão inseridas. Sendo assim, podem compartilhar decisões e ações na produção dos dados da pesquisa.

Partindo dessa premissa, propomos neste texto algumas reflexões sobre o fazer pesquisa com crianças. Pautamo-nos na recente experiência que tivemos, na ocasião do doutoramento, em que realizamos uma investigação de base interpretativa com caráter etnográfico. Nessa investigação, o objetivo foi compreender o ponto de vista das crianças sobre como é a experiência de atravessar da Educação Infantil para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Para isso, nos inserimos em dois contextos escolares: inicialmente, em um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) de Ponta Grossa – Paraná, de agosto a dezembro de 2018 e, na sequência, em uma escola adjacente ao CMEI, de Anos Iniciais do Ensino Fundamental, no período de fevereiro a julho de 2019.

Permanecemos todas as segundas, terças e quartas-feiras letivas desses períodos, inseridas no dia a dia das crianças, nos contextos das escolas. Lá, em ambos os espaços, assumimos a postura de menos-adulto (MANDELL, 2003) na relação com as crianças e, por meio da produção compartilhada de dados, utilizamos a triangulação como método de análise.

O processo de nossa inserção no campo escolar e no grupo das crianças passou por algumas fases, importantes de relatar aqui. Primeiramente, contatamos a Secretaria Municipal de Educação (SME) do município a fim de obter autorização para realização da pesquisa. Depois disso, explanamos nossa intenção de pesquisa a cinco comunidades escolares (equipe gestora, professores, pais e/ou responsáveis pelas crianças estudantes), indicadas pela SME. Vale dizer que nosso objetivo, nessa segunda fase, era observar quais comunidades escolares demonstrariam interesse pela pesquisa, o que entendemos ser mais apropriado do que apenas ter dado o aceite à nossa proposta. Como terceiro momento do processo de inserção, conversamos com as crianças, as aproximando do universo da investigação e transpondo a linguagem científica para a lógica infantil. Por meio do consentimento dos responsáveis (impresso e assinado) e do assentimento das crianças em participar da nossa investigação (gravada em vídeo), pudemos acompanhá-las nas aulas e em todos os ambientes escolares que frequentavam. Foi nessa fase que notamos a necessidade de estabelecer uma postura próxima às crianças, junto as quais estabelecemos um comportamento participativo, demonstrando nosso interesse, apesar de sermos adultas, em experienciar com elas os rituais da escola.

Assim, o que nos propomos a refletir neste texto se refere a esses três aspectos metodológicos da nossa pesquisa com crianças: o caráter etnográfico; a postura do menos-adulto nas relações com os sujeitos da investigação e a triangulação como uma possibilidade de método de análise interpretativa dos dados.

O caráter etnográfico na pesquisa com crianças

Muitos pesquisadores (PROUT, JAMES, 2010; SIROTA, 1993; CORSARO, 2011; SARMENTO, 2005; FERNANDES, 2011; MARCHI, 2018; HORNA, 2013; KRAMER, 2002; BARBOSA 2014, entre outros), influenciados pelas discussões que a Sociologia da Infância propôs no campo teórico e metodológico para a construção do conhecimento, revelam que a etnografia é um método útil na pesquisa com crianças. Isso porque “[...] permite às crianças uma voz mais direta na produção de dados sociológicos do que normalmente é possível através de estilos experimentais de pesquisa” (PROUT, JAMES, 2010, p. 4, tradução nossa).

Uma metodologia originada na antropologia, a etnografia tem sido uma das formas eficientes para descrever minuciosamente as culturas. Assim, entendemos, como Geertz (1978, apud MARCHI, 2018, p. 730) que cultura é “[...] como uma teia de significados que o ser humano teceu e na qual está enredado e a etnografia como o processo de interpretação ou descrição densa de culturas”.

Apesar de sua origem antropológica, concordamos com Oliveira (2013) quando afirma que

[...] a etnografia não é exclusiva da ciência antropológica, tampouco dos membros que compõe sua comunidade científica, contudo ela está assentada no conhecimento produzido e acumulado pela Antropologia, e isso deve ser reconhecido no processo de apropriação desta por outro campo do saber, o que não deve ser realizado de forma simplificada (OLIVEIRA, 2013, p. 78).

Para além do que está explicito no trecho anterior, o que o autor quer alertar com essa afirmação é que a etnografia não deve ser utilizada como mera técnica de recolha de dados no campo da pesquisa, sem considerar seu substrato teórico. Ele advoga que a etnografia

[...] pressupõe não uma coleta, mas sim uma construção dos dados, que se dá em meio ao processo intersubjetivo que se estabelece entre pesquisador e pesquisado. A etnografia demanda a capacidade de compreender o que os outros pensam sobre o mundo, sobre si mesmos e, por que não? sobre o pesquisador e o que ele está fazendo em campo (OLIVEIRA, 2013, p. 71).

Por essa perspectiva, a etnografia propõe a imersão do pesquisador no universo do outro. Não se trata apenas de visitar o outro, mas de sair do seu lugar para conviver com e como o outro, se desprover das pré-noções para construir conhecimento a partir de uma experiência que inicia, sensorialmente, no universo do outro. Isto é, o pesquisador vai construir o conhecimento na etnografia, do modo de ser e viver do outro, pela experiência que viveu com ele. Foi o que fez Malinowski (1976, apud SANTOS, 2013), quando se despiu de suas culturas para conhecer as dos povos da ilha de Trobriand (Papua – Nova Guiné), trazendo de lá a “[...] descrição e análise dos mais corriqueiros detalhes dos imponderáveis da vida real” (SANTOS, 2013, p. 98). Ou ainda, como Corsaro (2011), que saiu do seu contexto local, do seu país, dos seus domínios socioculturais e linguísticos, para adentrar no universo das crianças em escolas italianas, na cidade de Bolonha, no ano de 1985. Ambos os pesquisadores experienciaram a etnografia, no amplo sentido da palavra.

Para Larrosa (2011), uma experiência é mais abrangente do que obter uma informação ou opinião e vai além do conhecer, do agir, do trabalhar. É individual e perpassa o sentir e o significar. A experiência é algo que nos toca e nos transforma, nos move interior e exteriormente, nos derruba de nossos domínios. Por isso, “é incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre” (LARROSA, 2011, p. 25). Assim, podemos dizer que a etnografia oportuniza ao pesquisador a experiência do, no, com e por meio do outro.

No campo educacional, a etnografia tem assumido um lugar de destaque em pesquisas com crianças. Nos contextos escolares, influenciada pela Sociologia da Infância, contribui para “[...] compreender que significado(s) as ações das crianças têm ou assumem no sistema simbólico das suas culturas infantis” (MARCHI, 2018, p. 730).

Na mesma direção, James e Prout sugerem que:

[...] etnografia tem sido adotada como uma metodologia que tem um papel particular a desempenhar no desenvolvimento de uma nova sociologia da infância, uma vez que permite às crianças uma voz mais direta na produção de dados sociológicos do que normalmente é possível através de estilos experimentais ou de pesquisa (JAMES; PROUT, 1990, p. 4, tradução nossa).

Todavia, precisamos nos questionar quanto ao rigor do método etnográfico nas pesquisas realizadas nesse campo. Marchi (2018) alerta para as críticas à apropriação meramente instrumental do uso da etnografia nos estudos desenvolvidos na área da Educação. Ela

[...] alerta para o risco do ‘simulacro da abordagem teórico-metodológica etnográfica’ por parte de pesquisadores nessa área que, de “[…] maneira inadequada […] têm-se apropriado dos instrumentos de pesquisa etnográficos e da etnografia mesma (MARCHI, 2018, p. 731).

Na mesma direção, Oliveira (2013) tece algumas reflexões acerca da utilização da etnografia no campo da Educação e indica que as pesquisas etnográficas precisam: a) buscar a discussão do conceito de cultura (objeto tradicional das pesquisas etnográficas); b) desenvolver o conceito de cotidiano; c) superar a mera descrição da cultura em detrimento da análise do objeto de estudo; d) articular dados teóricos e empíricos; e) promover a articulação do contexto microescolar com as dimensões macrossociais; f) alterar o entendimento de que etnografia é equivalente a aplicação de entrevistas, pois estas são instrumentos de produção de dados que podem ser utilizadas em diversos tipos de pesquisa.

Considerando essas críticas, entendemos como mais apropriado esclarecer que a nossa pesquisa foi desenvolvida a partir de algumas características da etnografia. Ou seja, o que fizemos foi uma “[...] adaptação da etnografia à educação, o que [...] leva a concluir que fazemos estudos do tipo etnográfico e não etnografia no seu sentido estrito” (ANDRÉ, 1995, p. 28).

O contexto das duas escolas do município de Ponta Grossa, no Paraná, no qual nos inserimos durante as segundas, terças e quartas-feiras no período de nove meses letivos, convivendo as crianças de uma turma, na travessia da Educação Infantil para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, é uma característica da etnografia em nossa investigação. Embora não tenhamos permanecido todos os dias da semana na escola, entendemos que o tempo de inserção no campo de pesquisa proporcionou a nossa integração no grupo e provocou o acolhimento das crianças para participarmos do seu cotidiano. Assim, concordamos com Oliveira (2013) quando afirma que

[...] o tempo em campo, por assim dizer, ‘o tempo etnográfico’, não é linear. [...] ou seja, uma longa estadia em campo não é sinônimo de uma abundância de dados, pois há ainda a possibilidade do pesquisador ver, mas não enxergar os referidos dados, que como já apontamos, não são simplesmente coletados, mas sim construídos no processo de interação entre pesquisador e pesquisado (OLIVEIRA, 2013, p. 76).

Concordamos com o autor sobre a não linearidade do tempo etnográfico e ressaltamos que a interação entre o pesquisador e o pesquisado é o que contribui para que o tempo no campo de pesquisa seja eficiente. A depender dessa relação, a qualidade das interações na permanência do pesquisador no campo pode possibilitar “[...] descobrir como é a vida cotidiana para os membros do grupo – suas configurações físicas e institucionais, suas rotinas diárias, suas crenças e seus valores e a linguísticas e outros sistemas semióticos que medeiam essas atividades e contextos” (CORSARO, 2011, p. 63).

Para uma descrição densa e minuciosa, o pesquisador etnográfico se coloca como observador participante, ou seja, utiliza “[...] a observação participante como técnica de geração de dados” (MARCHI, 2018, p. 729).

Essa característica da pesquisa etnográfica – a observação participante – também compôs o nosso percurso metodológico para a investigação. Em todo o período de inserção no contexto investigado, observamos uma realidade, que, apesar de estar próxima à nossa (na mesma cidade, com os mesmos códigos linguísticos e culturas afins a nossa), nos revelou que a realidade familiar pode ser “[...] bem mais complexa do que aquelas representadas pelos mapas e códigos básicos nacionais e de classe através dos quais nos socializamos” (VELHO, 2012, p. 133). Isto é, nós buscamos observar, com um olhar de estranhamento, os contextos em que nos inserimos, mesmo quando encontramos similitudes culturais.

O estranhamento da realidade observada é a primeira etapa da pesquisa etnográfica (FONSECA, 1999). É a partir do estranhamento que buscamos “[...] alternância entre dados de campo e leituras bibliográficas [...], procurando entender qual o sentido das práticas” (FONSECA, 1999, p. 67). As outras quatro etapas propostas para a etnografia por Fonseca (1999, p. 66) são: “[...] 2. esquematização (dos dados empíricos); 3. desconstrução (dos estereótipos preconcebidos); 4. comparação (com exemplos análogos tirados da literatura antropológica) e 5. sistematização do material em modelos alternativos”.

Em nossa pesquisa, vivenciamos todas as etapas que Fonseca (1999) propôs para a etnografia, entretanto, elas se inter-relacionaram umas com as outras e não funcionaram como fases subsequentes.

Foi a partir dessas etapas, inter-relacionadas, especialmente com o olhar de estranhamento perpassando todo o processo de produção de dados, que conduzimos a pesquisa e construímos as perguntas norteadoras do estudo, que foram: Que diferenças, de um contexto escolar para o outro, foram identificadas pelas crianças, durante sua travessia? Quais estratégias foram desenvolvidas pelas crianças nos contextos das duas escolas? Essas questões influenciaram o desenho de análise que trataremos adiante.

Para respondermos a essas indagações, assumimos outros instrumentos de produção de dados além da observação participante, como a entrevista registrada em áudio, vídeo – ou desenhada pelas crianças – e a visita monitorada. Isso porque entendemos que as falas das crianças se revelam de muitas formas além da verbal e suas interlocuções devem ser produzidas e observadas no reduto de suas culturas e de seus conhecimentos. Notamos que as crianças que participaram deste estudo revelaram, sobretudo com o corpo em movimento (livre ou reprimido), suas interpretações de mundo, dos costumes e rotinas das escolas, das relações que ensejaram nesses contextos, dos efeitos que lhes causou a travessia entre a Educação Infantil e os Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

Percebemos que as crianças reconhecem o esforço dos adultos para se aproximarem de seus grupos e de suas culturas e, da mesma forma, se esforçam para acolhê-los. Contudo, é importante saber que papel o adulto, enquanto pesquisador, pode assumir no grupo de crianças. Se será mais um adulto com controle sobre o coletivo, como os professores; se será apenas um observador que anota tudo o que vê e ouve; se será um adulto que brinca junto, ou exercerá outros papéis. Em nossa investigação com crianças, definimos assumir o papel do menos-adulto (MANDELL, 2003). É sobre o papel de menos-adulto que trataremos a seguir.

O menos-adulto na pesquisa com crianças

Para Graue e Walsh (2003), a escolha do papel assumido pelo adulto deve ser orientada teoricamente, de acordo com o que se pretende atingir com a pesquisa e quais relações se deseja criar. Segundo eles, o pesquisador pode se aproximar das crianças a partir de uma das três opções: “[...] a noção de Spradley de observador participante (1979), com as suas várias gradações de participação, o papel reactivo de Corsaro (1985) e o papel de menos-adulto de Mandell (1988) [...].” Todos esses posicionamentos estão relacionados com o entendimento do pesquisador sobre as inter-relações que podem ser vivenciadas na pesquisa. Como exemplo, Graue e Walsh (2003) explicam que “[...] se o investigador acreditar que a intercção com as crianças vai alterar a actividade da criança e, consequentemente, invalidar observações, é muito pouco provável que o papel do observador participante seja assumido” (GRAUE; WALSH, 2003, p. 97).

Na mesma direção, Soares (2005) sugere pensarmos nos papéis adotados pelos adultos na pesquisa com crianças. A autora cita Mandell (1991) para apresentar três tipos de papéis viáveis ao adulto no processo de pesquisa. Segundo ela:

[...] o observador desligado, em que se reconhece uma distinção absoluta entre os mundos sociais, culturais e sociais das crianças e dos adultos; o papel de semi-participativo desligado, no qual apesar de se defender que não há uma distinção absoluta entre adultos e crianças, há, no entanto, relações de poder assimétricas entre adultos e crianças, baseados fundamentalmente no critério idade; o papel de menos-adulto, o qual defende que todos os aspectos de superioridade do adulto em relação à criança podem ser afastados, excepto a superioridade física, permitindo assim ao investigador entrar no mundo das crianças como um membro activo e participativo (MANDELL apud SOARES, 2005, p. 156).

Inicialmente, acreditamos que nosso papel em nossa inserção no CMEI seria o de observador participante, com alto grau de participação, através do qual dividiríamos as funções pedagógicas com a professora regente da turma. Mas, com o passar do primeiro mês de convivência, percebemos que desejávamos assumir outra postura na relação com as crianças. As inquietações que motivaram a mudança de posicionamento foram relatadas na análise dos dados do relatório de pesquisa como se pode observar a seguir:

Todavia, a postura da condutora da atividade tem incomodado pois, quando conduzimos a atividade, não conseguimos olhar para as crianças com a mesma particularidade. Precisamos organizar as estratégias para tocar no centro do interesse deles, preparar os materiais, observar o tempo da atividade etc. (CAMARGO, 2020, p. 86).

Isto é, ser observadora participante, admitindo a condução de algumas tarefas do cotidiano das crianças, não permitia um olhar atento aos detalhes, das suas falas verbais e não verbais. Portanto, alteramos nossa postura, adequamos nosso papel na escola. Na medida em que frequentávamos esse campo da pesquisa, percebemos que as crianças indicavam o que esperavam de nós:

Elas sabem que somos adultas. Reconhecem a adultez, no modo de me vestir e agir. Somos as adultas que eles podem ignorar para subverter as regras do coletivo escolar. Eles têm atitudes diferentes quando estão a sós conosco. Negam nossas orientações, fingem não ouvir, a fim de satisfazer seus interesses (aqueles que não podem ser realizados quando as professoras estão com eles) (CAMARGO, 2020, p. 89).

Esse lugar, a de adulta que fez pequenas tarefas de auxílio às rotinas escolares, mas que não possuiu autoridade pedagógica, não coordena nem propõe atividades, não objetiva o controle das crianças, atende aos pressupostos do conceito de menos-adulto, definido por Mandell, que, a partir de sua experiência de pesquisa com crianças, propõe

Meu papel de menos-adulto incluiu uma participação responsiva, interativa e totalmente envolvida, observando as crianças da maneira mais adulta possível. Isso não implicava em dirigir nem corrigir as ações das crianças. Embora meu tamanho ditasse que eu nunca poderia passar fisicamente por uma criança, esforcei-me por colocar uma forma comum de autoridade e status de adultos, competência verbal, domínio cognitivo e social, a fim de seguir de perto seus caminhos (MANDELL, 2003, p. 42, tradução nossa).

Mandell (2003) nos explica que o papel de menos-adulto requer concentrar esforços para a aproximação do pesquisador com as crianças. Significa imergir no universo infantil, fazer coisas com as crianças, participar de suas convenções. Ela afirma que um bom nível de envolvimento com a criança perpassa a posição do menos-adulto na pesquisa etnográfica. Em suas palavras:

Eu conceituo o papel do menos-adulto como membro do grupo que suspende as noções adultas de superioridade cognitiva, social e intelectual e minimiza as diferenças físicas, defendendo que os pesquisadores adultos sigam de perto os modos das crianças e interajam com as crianças dentro de sua perspectiva. Atingir um bom nível de envolvimento com crianças pequenas é possível através da partilha do objeto social. Por meio da manipulação conjunta de objetos, as crianças e o pesquisador consideram um ao outro e criam um significado social. Agindo com as crianças na sua perspectiva, os adultos ganham uma compreensão das ações das crianças (MANDELL, 2003, p. 58, tradução nossa).

No contexto da nossa pesquisa, buscamos retirar o foco da lógica ou da cultura adulta, a fim de minimizar a distância entre nós e as crianças, mas nossos corpos não puderam ser ignorados em suas diferentes dimensões. Nessa perspectiva do menos-adulto (MANDELL, 2003), há uma característica que merece nossa reflexão. As diferentes possibilidades que os corpos e os movimentos corporais do adulto e da criança ensejam, nesse contexto investigativo, marcam o posicionamento dos sujeitos na pesquisa, pois, objetivamos um comportamento familiar à criança na posição do menos-adulto, apesar das diferentes dimensões corporais. Sendo assim, em nossa pesquisa, quando admitíamos a postura do menos-adulto, sentávamos ao lado das crianças no ambiente de sala de aula, realizávamos tarefas designadas a elas, partilhávamos os momentos de conversas e brincadeiras, ignorando nossa adultez e o fato de termos acessado mais informações ou outras culturas ao longo de nossas vidas. Isto é, ser adulto não significou deter o poder ou o controle das crianças. Tentamos partilhar com elas momentos e experiências como sujeitos desiguais, nem melhores ou piores uns que os outros.

Para Mandell (2003), o pesquisador deve mostrar às crianças que o papel que desenvolve não inclui o desenvolvimento de auxílio à professora regente. No relato de sua experiência de pesquisa com crianças ela menciona:

[...] como eu não queria ser tratada como professora, tinha que mostrar às crianças que não poderia ser chamada para executar tarefas adultas, como amarrar sapatos, empurrá-las nos balanços, segurá-las no colo ou trocar fraldas” (MANDELL, 2003, p. 43 e 44, tradução nossa).

Apesar de concordarmos com Mandell (2003), que o menos-adulto se refere a uma postura que implica na aproximação da criança pelo não controle, não poder, não domínio da relação adulto-criança, entendemos que algumas tarefas de ajuda às crianças, podem ser realizadas por esse adulto pesquisador. Isso porque algumas dessas atividades também são desenvolvidas pelas próprias crianças.

As crianças na faixa etária de quatro e cinco anos, como era o caso dos nossos sujeitos, eram incentivadas a desempenhar ações para contribuir com os rituais da escola, o bem estar coletivo físico, social e cognitivo. Isso incluía a aprendizagem da autonomia para realizar pequenas tarefas em prol de si mesmo e dos colegas, como, por exemplo, ajudar a amarrar os tênis, puxar o trem (a fila) para o deslocamento da turma pela escola, balançar o colega no parque, ajudar os menores a alcançar objetos no alto, entre outras coisas.

Esse tipo de atitude é, geralmente, incentivado na escola de Educação Infantil para atender ao currículo desse segmento para, a partir das interações e brincadeiras, em garantir que as experiências “[...] possibilitem situações de aprendizagem mediadas para a elaboração da autonomia das crianças nas ações de cuidado pessoal, auto-organização, saúde e bem-estar” (BRASIL, 2010, p. 26).

Sendo assim, compreendemos que é possível ser menos-adulta e desempenhar tarefas de ajuda para favorecer o andamento da rotina e das relações nesse contexto, pois, considerando que as crianças também executavam esse tipo de ações no âmbito de suas relações na escola, entendemos que não haveria contrassenso (teórico e metodológico) em desenvolvê-las. Além disso, desempenhá-las não impediu a aproximação com as crianças, ao contrário nos manteve junto a elas.

Com a compreensão de que desempenhar tarefas de organização não impediu a aproximação com a criança, ao contrário nos manteve junto delas, admitimos o papel de menos-adulta (MANDELL, 2003).

Percebemos que, com os passar dos dias, como menos-adulta, tivemos grande aceitação das crianças como pode ser observado no relato descrito na análise de dados no relatório de pesquisa:

O Murilo demonstrou proximidade hoje. Abraçou e falou conosco durante as brincadeiras de pátio e na sala de aula também. Conversamos sobre as letras no canto dos jogos. Da mesma maneira que fiz com o Cauê. Ele mostrou que conhece as letras que compõem seu nome. Andamos pela sala procurando tais letras. Ele estava feliz! Aliás, o afeto das crianças, o abraço delas, o desejo de estar por perto, revela que estamos sendo aceitas pelo grupo. Da mesma forma, quando discordam do que pedimos, ou se aborrecem conosco por algum motivo, demonstram que já fazemos parte do grupo, afinal, a pertença requer envolvimento pleno, “tanto no amor quando no ódio” (CAMARGO, 2020, p. 78).

Nossa relação com as crianças se tornou cada vez mais íntima e profícua e dentro do que se podia esperar com o processo de pesquisa de base interpretativa de cunho etnográfico.

Com essa postura, a de menos-adulto (MANDELL, 2003), produzimos os dados com as crianças. Depois disso, com a triangulação como proposta para as pesquisas interpretativas, realizamos a codificação e análise dos dados.

A análise dos dados pela triangulação

Como a palavra já sugere, triangular, no sentido amplo e genérico, pressupõe dividir uma base em três ângulos. No âmbito da pesquisa científica, esse termo tem sido utilizado para designar uma maneira de realizar investigações prevendo o cruzamento e a combinação de diferentes pontos de vista, a fim de aprofundar a discussão na construção do saber científico, de forma interdisciplinar e interativa.

Minayo (2010) explica que a triangulação, originada da corrente do interacionismo simbólico, defendida primeiramente por Norman Kent Denzin (1973), tem sido utilizada em diversos momentos da pesquisa, desde a produção até a análise dos dados, permitindo aos pesquisadores obter a “[...] visão de vários informantes e o emprego de uma variedade de técnicas [...] que acompanha o trabalho de investigação” (MINAYO, 2010, p. 29).

Na mesma direção, Graue e Walsh, explicam que a triangulação pressupõe

[...] decisões experimentais que procuram analisar um fenômeno sob várias perspectivas, uma verificação cruzada assente em pareceres desenvolvidos a partir de diversas fontes de dados [...], contagem, busca de padrões e anomalias, e desenvolvimento de temas. Uma descrição rica em pormenores surge quando a atenção se concentra em determinada coisa em particular e assim se mantém por um período de tempo considerável (GRAUE, WALSH, 2003, p. 119).

Isto é, o método alarga os horizontes da pesquisa, uma vez que possibilita olhar o objeto do estudo por ângulos distintos, inter-relacionar informações e perspectivas de análise.

Marcondes e Brisola (2014, p. 203) destacam três dimensões distintas no processo de pesquisa em que a triangulação pode ser utilizada. Segundo elas, é um método útil: 1)- para “[...] avaliação aplicada a programas, projetos, disciplinas [...]”, 2) para o momento da produção dos dados da pesquisa e 3) para a análise das informações produzidas. A partir dessas três dimensões, as autoras descrevem a experiência que tiveram na utilização desse método no momento da análise dos dados de sua pesquisa. Elas enfatizam que

[...] a triangulação é utilizada para análise qualitativa das informações coletadas [e] o processo interpretativo deve ser realizado, primeiramente, mediante ‘uma valorização fenomênica e técnica dos dados primários, em si mesmos e à exaustão’[...]. E, posteriormente, num segundo movimento analítico, as informações devem ser contextualizadas, criticadas, comparadas e trianguladas (MARCONDES; BRISOLA, 2014, p. 204).

No primeiro momento, sugerem que o pesquisador realize “[...] primeiro - preparação e reunião dos dados; segundo - avaliação de sua qualidade; e terceiro - elaboração de categorias de análise” ((MARCONDES; BRISOLA, 2014, p. 204). No segundo momento, deve-se realizar a análise contextualizada dos dados, “[...] ancorada no diálogo com autores que tratam questões pertinentes às categorias de análise emergidas das narrativas ou dos dados” (MARCONDES; BRISOLA, 2014, p. 205), e em seguida,

No ápice da interpretação [...] deve contemplar o objeto de estudo, contextualizandoo na ambiência macro da sociedade, bem como reflexos dessa realidade macro no espaço particular do objeto de estudo, buscando-se também uma articulação entre as informações coletadas no ambiente imediato com as informações normatizadas, definidas num contexto mais amplo coletados (MARCONDES; BRISOLA, 2014, p. 206).

Em nossa pesquisa, a triangulação perpassou duas etapas metodológicas: na produção dos dados, pois considerou o uso de três instrumentos diferentes, e no momento da análise, quando concerniu o cruzamento dos dados com suas fontes diversas na articulação com os autores e seus diferentes pontos de vista.

Após a produção dos dados por meio dos três instrumentos e a participação das crianças, equivalendo ao primeiro momento da organização dos dados, consideramos a codificação proposta por Graue e Walsh (2003, p. 194). Segundo eles, a codificação é “[...] a classificação de temas que são apresentados por conjunto de dados. Nessa perspectiva, os códigos são apenas significantes das ideias – categorias analíticas que o investigador identificou nos dados”.

Para analisar a experiência da travessia da Educação Infantil para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, consideramos as falas das crianças e suas diversas formas de expressão com o intuito de responder às perguntas norteadoras do estudo. Assim, foi possível elencar os eixos estruturadores da análise – as diferenças e as estratégias. Estes, entrelaçados nos temas apresentados pelas falas das crianças, revelaram os significados e sentidos atribuídos por elas para: a) as rotinas e espaços; b) as práticas escolares e c) as regras contidas nos dois contextos da experiência da travessia.

Nas falas das crianças, ainda foi possível verificar algumas sugestões para a organização da escola dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Elas apontaram aspectos que podem compor uma cultura da escola, diferente da que encontramos. Isso nos fez legitimar sua capacidade de leitura e compreensão do universo em que estão inseridas além de nos oportunizar uma interpretação da cultura da escola e de seus sujeitos. A triangulação, nesse sentido, favoreceu a articulação da análise do micro para o macrocontexto, no qual os aspectos socioeducacionais foram pensados.

Entendemos que utilizar a triangulação significa “[...] adotar um comportamento reflexivo-conceitual e prático do objeto de estudo da pesquisa sob diferentes perspectivas, o que possibilita complementar, com riqueza de interpretações, a temática pesquisada, ao mesmo tempo em que possibilita que se aumente a consistência das conclusões” (MARCONDES; BRISOLA, 2014, p. 206).

Assim, acreditamos que a triangulação é um modo eficiente de produzir e analisar os dados das pesquisas interpretativas, em especial na pesquisa com crianças, pois seus pressupostos epistemológicos favorecem a amplitude que a pesquisa deseja atingir.

Considerações finais

A pesquisa desenvolvida por ocasião do doutoramento, na qual admitimos a etnografia, a postura do menos-adulto e a triangulação como procedimentos metodológicos, foi encerrada em março de 2020 com a apresentação da tese. Afirmou que o corpo criança, na travessia da Educação Infantil para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, é o lugar da sua experiência, tanto quanto é o lugar das suas interpretações e ações sociais.

Os resultados da investigação demonstraram que as crianças são capazes de pensar seus processos de escolarização ao identificar as diferenças das práticas escolares nas duas escolas e ao criar estratégias de participação pautadas nos movimentos e gestualidades, pois entenderam que a aprendizagem passa pelo corpo.

Na reflexão sobre as práticas escolares, observamos que as crianças ressignificaram o ato de brincar, de se relacionar com seus pares e de participar ativamente no contexto escolar. Nas propostas de brincadeiras ressignificadas, é possível compreender o seu interesse em mesclar as brincadeiras ao aprendizado, a diversão à seriedade, o lúdico à seriedade.

Os resultados da investigação foram marcados por significados e sentidos próprios das culturas das infâncias. Nelas, as crianças identificaram e enfatizaram as diferenças existentes nas duas escolas no que concerne aos aspectos normativos, infraestruturais, pedagógicos, de rotinas e tempos escolares. Elaboraram e executaram estratégias e técnicas corporais de permanência nesses contextos, apesar das situações novas inerentes ao processo de transição de um segmento escolar para o outro. Por essas reflexões, defendemos que a adequação dos contextos escolares necessita ser perpassado pela legitimação das culturas das infâncias, pedagogia do corpo, validação das formas de pensar, sentir e agir das crianças no mundo, e, sendo assim, considerar a escola como solo fértil e potente para o compartilhamento de tomada de decisões e ações entre crianças e adultos no processo de escolarização.

Assim, a experiência da criança na transição da Educação Infantil para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental é corporal e carregada de significados e sentidos singulares, pois elas são sujeitos competentes e hábeis na leitura e construção do contexto escolar.

Entendemos, por meio do aporte teórico e metodológico, que fazer pesquisa com crianças pressupõe, entre outras coisas, repensar as formas de produção e análise dos dados, pois as metodologias tradicionais de investigação não são satisfatórias. Isso porque as crianças quebram os protocolos formais da pesquisa por meio dos seus movimentos corporais e com sua lógica própria, com suas criativas maneiras de ser e estar no mundo. Suas características peculiares, seus modos de interpretar o contexto, de se relacionar com seus pares e com os adultos, suas ações no universo social em que estão inseridas levam os pesquisadores a considerar possibilidades inovadoras de pesquisas, pelas quais as crianças têm mais possibilidades de expressão e atuação como produtoras de conhecimento científico.

Ao admitir esse ponto de vista acerca das crianças e suas infâncias, a atitude do pesquisador adulto se modifica na medida em que desenraiza as velhas concepções de infância, se convence e se transforma com essa perspectiva (nova), em que a criança é um agente social, pertencente à categoria geracional infância. Quando isso ocorre, a organização da pesquisa perpassa o universo infantil, respeita os movimentos corporais e a lógica própria das crianças e adapta os elementos científicos e éticos para que possam ser acessados pelas crianças. Nesse sentido, por nossa experiência, indicamos a etnografia, a postura do menos-adulto e a triangulação como aporte metodológico eficiente na pesquisa com crianças.

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Recebido: 28 de Março de 2022; Aceito: 14 de Junho de 2022

Profa. Dra. Gisele Brandelero Camargo

Universidade Estadual de Ponta Grossa (Brasil)

Líder do Grupo de Estudos das crianças, cultura e educação (GEICE/UEPG)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0003-3983-2966

E-mail: gbcamargo@uepg.br

Profa. Dra. Marynelma Camargo Garanhani

Universidade Federal do Paraná (Brasil)

Programa de Pós-graduação em Educação

Líder do Grupo EDUCAMOVIMENTO

(Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-3975-7137

E-mail: marynelmagaranhani@gmail.com

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