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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.64 Natal abr./jun 2022  Epub 23-Fev-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n64id28977 

Artigo

Movimentando pensamentos e criações no experienciar docências

Moving thoughts and creations in teachings experience

Moviendo pensamientos y creaciones en el experienciar docencias

Lucia de Fatima Dinelli Estevinho1 
http://orcid.org/0000-0002-1449-4844

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim2 
http://orcid.org/0000-0002-0323-9207

1Universidade Federal de Uberlândia (Brasil)

2Universidade Estadual de Campinas (Brasil)


Resumo

O texto apresenta uma pesquisa teoricamente envolvida com a Filosofia da Diferença com o intuito de analisar os processos criativos no experienciar docências em dois cursos de formação de professores. Os efeitos expressivos são uma cartografia entre as disciplinas: Escola e Cultura (Unicamp) e Biologia e Cultura (Universidade Federal de Uberlândia - UFU). A cartografia como metodologia de pesquisa proporcionou o pensar como rizoma, intervalar entre, em conexão e não em hierarquias. O entre nunca é o decalque, é sempre a criação, a abertura. Entendemos que, no exercício da docência, colocar o pensamento em movimento é um desafio, um exercício em que, além da palavra escrita, as imagens têm um papel fundamental. Também nos ancoramos na metodologia da pesquisa-criação, modo de fazer pesquisa que é corporalmente experimental. Os achados mostraram que o ato criativo aconteceu por caminhos que envolveram a proposição-provocação a partir de materiais advindos de distintas artes, que proporcionaram aprendizagens diferenciadas.

Palavras-chaves: Pesquisa-criação; Cartografia; Disciplinas; Formação de Professores

Abstract

The text presents the results of a research theoretically involved on the Philosophy of Difference with the purpose of analyzing the creative processes in the experiencing of teaching in two teacher education courses. The expressive effects are a cartography between the disciplines: School and Culture (Unicamp) and Biology and Culture (Federal University of Uberlândia – UFU). Cartography as a methodology of research provided the thinking as a rhizome, as interspacing in-between, in connection, and not in hierarchies. The in-between is never the decal, it is always the creation, the openness. We understand that, in the exercise of teaching, putting thought in movement is a challenge in the exercise of teaching, an exercise in which, besides the written word, images play a key role. We are also anchored ourselves in the research-creation methodology, a way of doing research that is corporeally experimental. The findings have shown that the creative act took place through paths that involved the proposition-provocation from materials coming from different arts, which provided differentiated learnings.

Keywords: Research-creation; Cartography; Disciplines; Teacher formation

Resumen

El texto presenta una investigación teóricamente involucrada con la Filosofía de la Diferencia con la intención de analizar los procesos creativos en el experienciar docencias en dos cursos de formación de profesores. Los efectos expresivos son una cartografía entre las disciplinas: Escuela y Cultura (Unicamp) y Biología y Cultura (Universidad Federal de Uberlândia - UFU). La cartografía como metodología de investigación proporcionó un pensamiento como rizoma, intervalo del entre, en conexión y no en jerarquías. El entre nunca es un calco, es siempre la creación, la apertura. Entendemos que, en el ejercicio de la docencia, colocar el pensamiento en movimiento es un reto, un ejercicio en el que, además de la palabra escrita, las imágenes tienen un papel fundamental. También nos anclamos en la metodología de la investigación-creación, una forma de hacer investigación que es corporalmente experimental. Los hallazgos mostraron que el acto creativo se dio a través de formas que involucraron la proposición-provocación a partir de materiales procedentes de distintas artes, que proporcionaron aprendizajes diferenciados.

Palabras claves: Investigación-creación; Cartografía; Disciplinas; Formación de profesores

Conjecturando uma pesquisa no entre

Sempre acontece no meio.

Nós sempre acontecemos no meio.

Não um primeiro pensamento, então, uma ação,

em seguida, um resultado, mas um estar-no-meio,

“nós”, o resultado de uma atração que capta,

por um instante, como o pensamento já era uma ação,

como o corpo sempre foi também um mundo.

(ERIN MANNING, 2019).

Estar no meio, no entre foi o que movimentou a pesquisa que apresentamos neste artigo. Um entre disciplinas: Escola e Cultura do curso de Licenciaturas da Unicamp e Biologia e Cultura do Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Para isso, uma cartografia da disciplina Escola e Cultura foi realizada no segundo semestre de 2021 em uma turma reservada para estudantes do curso de licenciatura em Química e Física. A disciplina Biologia e Cultura entra na cartografia por rememorações que emergiram das marcas que se fizeram ao cartografar a disciplina Escola e Cultura. No contexto da pesquisa, a cartografia foi realizada pelos dois autores do artigo, um deles professor da disciplina Escola e Cultura, e a outra professora da disciplina Biologia e Cultura.

Para cartografar, foi necessário preparar o corpo para alcançar um “corpo vibrátil” que capturava afetos e marcas enquanto a cartografia se desenrolava. Um corpo que se fez entre, que se fez em nó(nós). “Não primeiro um corpo então um mundo, mas um se tornar-mundo através do qual um se fazer-a-um-corpo emerge [...]” (MANNING, 2019 p. 9).

Estar no meio também encontra ressonância no conceito de rizoma. Para Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), tal conceito permite pensar fora dos padrões hierárquicos, combatendo o pensamento cartesiano, linear, dualístico. Pensar por rizomas, ao contrário da cópia e do decalque, é fazer proliferar hastes, fazer mapas, abrir para a multiplicidade através de linhas de fuga. É, similarmente à cartografia, um se tornar-mundo, mas, desta vez, pelo pensar entre e forçar o pensamento a pensar pelo que vem de fora, antes da experiência se tornar cognoscível.

Corpo e pensamento do fora são pulsões que importam sobremaneira ao campo de estudos curriculares em suas vertentes pós-estruturalistas. Por exemplo, Amorim (2020), no artigo Diagramas para um currículo-vida, discute a ideia de um currículo com ligação em outros devires, livre da representação, porque encontra-se deslocado do sujeito, pois não é apenas no sujeito que devemos pensar. Além da ideia de currículo como uma construção discursiva, comumente desenvolvida por muitos autores brasileiros do campo do currículo, Amorim propõe pensar na ideia de um “currículo-texto-escrita-vida”.

[...] o currículo-texto-escrita-vida pode se constituir como liberdades fora da centralidade no humano, pois sobre todo e qualquer texto pairam nuvens de outros dizeres, outras nomeações, outras corpo-reidades, o outrem do próprio texto, aquilo que o desencadeia das lógicas de sua representação formal e estrutural (AMORIM, 2020, p. 408-409).

Foi pensando nessa materialidade, que foge do sujeito, que elegemos como problemática da pesquisa as imagens, como podem colocar o pensamento em movimento e se desdobrar na percepção do mundo. As imagens, ao permitirem sair da linguagem escrita, abrem-se para outros devires provocando pensamentos que fogem da representação, do decalque, da imitação. “O movimento entre o currículo-texto-escrita-vida ao encontro do currículo-imagem, passa pelo pensar, tentar, experimentar o virtual, é portanto sempre pensar de outro modo” (AMORIM, 2020, p. 417).

A pesquisa que apresentamos ancorou-se nos conceitos de rizoma, no mapa-cartografia, no currículo-texto-escrita-vida para investigar com eles os processos criativos no experienciar docências, pois entendemos que o exercício da docência é um acontecimento que se dá através da criação, do rizoma, das linhas de fuga. É o que Manning (2019) comenta sobre o estar na relação, o estar no meio. Imediação.

No trabalho de (se) sintonizar com o mais-do-que, que nos compõem, e o mais-do-que-que nos ilude, o conceito mais difícil que permanece é o da própria relação. Como falar do que anima nosso estar-vindo-a-ver, mas que não é nós? Como falar de modos que não são os nossos? Como escrever desde o meio da experiência de uma maneira que nos situe como participantes e não como líderes da ação? (MANNING, 2019, p. 20).

O entrar como participantes na relação, antes da ação, aconteceu através da cartografia da disciplina Escola e Cultura. Nesse cartografar, a disciplina mostrou-se toda permeada/construída por atividades que provocavam um pensar fazer na prática - thinking-making-doing. Por isso, nos pautamos na metodologia Research-creation (TRUMAN; LOVELESS; MANNIG, 2020) para entender as marcas que se constituíram no decorrer da cartografia.

Elegemos a cartografia por ser uma metodologia que abre espaço para que a intimidade e os afetos possam emergir. Nesse sentido, ela se aproxima dos fundamentos da pesquisa-criação, pois esta última é uma modalidade que mostra a impossibilidade da neutralidade e do distanciamento na pesquisa, ressaltando a importância de estarmos imbricados nos processos que estamos estudando, mesmo que, para isso, seja necessário nos desvincularmos dos saberes disciplinares e desaprender o que achamos importante. “Precisamos reorganizar nossas práticas sensoriais e de criação de sentido e romper os estilos de pensamento disciplinar e as formas de ver para que outros mundos dentro deste mundo possam ser vistos” (TRUMAN; LOVELESS; MANNING, 2020, p. 232)1.

Para isso, os registros dos acontecimentos das aulas constituíram-se como um conjunto potente para criar mundos diferentes e não para representar o ocorrido. Os registros passeiam entre as escolhas dos materiais para cada aula ou sequências de aulas que criavam cadências não pensadas a priori, mas, sim, abertas às experimentações e afetos que reverberavam pelos corpos da sala de aula.

As marcas da cartografia que se davam no percurso da disciplina Escola e Cultura se materializaram em um processo de uma escrita quase diária, experienciando as vivências que deram matéria ao corpo vibrátil quando retomadas pelas escritas.

Entre a vibratibilidade do corpo e sua capacidade de percepção há uma relação paradoxal. É a tensão desse paradoxo que mobiliza e impulsiona a potência de criação, na medida em que nos coloca em crise e nos impõe a necessidade de criarmos formas de expressão para as sensações intransmissíveis por meio das representações que dispomos (ROLNIK, 2011, p. 13).

Os materiais – leituras de textos acadêmicos e literários, filmes, entrevistas, obras artísticas, músicas, encenações e performances – sugeridos para cada aula eram visitados anteriormente às aulas e algumas anotações dessas leituras eram feitas no caderno de notas que passou a ser chamado de diário chão de janelas. Chão porque é pelas “coisas chãs”2, expressão usada por Didi-Huberman (2017) no livro Cascas, e nos pareceu que a ideia de chão cumpria a ideia de recolher o que acontece no espaço de sala de aula, recolher não só o que de fato acontece, mas o que ficou esquecido. O que não foi planejado, mas que foi gerado naquele dia, como quando saímos de uma sala de aula e, antes de desligar as luzes ou fechar a porta, olhamos para o chão e notamos um papel de bala amassado, pedaços de borracha que apagaram anotações, pontas de lápis perdidas entre as carteiras, uma camada fina de pó do giz que foi gasto pelas escritas na lousa, um bilhete trocado entre os estudantes. E as janelas, chão de janelas, porque fomos recolhendo tudo isso pelas janelas do computador, já que eram por meio delas que nos encontrávamos no ensino remoto.

Foram 28 encontros com duração de 2 horas-aula cada, no período noturno em dois dias da semana. Os materiais que compuseram o enredo das aulas3 eram os mais diversos: quatro aulas com material de literatura; duas aulas com material de exposição de arte; sete filmes; três entrevistas com cineastas; cinco textos acadêmicos apresentando pesquisas no campo da educação; dois textos de revistas de estilo magazine ou jornais diários. As produções dos estudantes advindas dos trabalhos avaliativos foram quatro: duas realizadas individualmente e duas em grupos.

Trazemos, para compor essa sinfonia de trabalhos, de falas, de filmes e debates, as escritas do diário chão de janelas, uma vez que esta não é apenas uma construção do que acontecia em aula, mas, sim, daquilo que reverberava. A cartografia exposta com suas marcas e, por vezes, com seus decalques, estão expostas nas próximas seções. Enfatizamos que o texto foi construído com o diário chão de janelas, numa escrita com ele e a partir dele. Alguns destaques são feitos com trechos da discussão do chat. Os trechos de aulas gravadas e trechos dos trabalhos dos estudantes estão referenciados como notas de campo – diário chão de janelas. É importante destacar que os processos da pesquisa deram-se a partir dessas notas, consideradas escritas-experimentação, que buscam por sentido nos encontros com os signos — compreendidos como aqueles que nos forçam a pensar, porque oferecem elementos singulares a serem interpretados e capazes de obrigar-nos a sair da mera condição de observador (VINCI, 2018).

Um mapa em trançados na e com a disciplina Escola e Cultura

As aulas sempre começavam com palavras do cotidiano vivido. Saber do dia, quando iria chover, se estava calor em cada canto de janela que se abria. Uma lembrança contada conquistava aos poucos as janelas que às vezes se abriam, às vezes só as vozes eram ouvidas. Ensino online. “Explosões de sensações que os jovens passam. As séries (se referindo à Netflix) não exploram isso” (ESTUDANTE, 2019). A conversa que se estabeleceu no início da primeira aula foi sobre o que os estudantes gostavam de ver nas séries televisivas e, na sequência, o filme En Rechâchant de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub foi exibido. Um filme de curta-metragem, em branco e preto, baseado no texto Ah! Ernesto, escrito por Marguerite Duras em 1971, em que o personagem, um menino que se recusa a aprender, abre as aulas de Escola e Cultura. Um mistério a desvendar. Um convite para pensar a escola. Trechos de fala dos estudantes mostram que o pensamento é ativado: “Mas como ele aprendeu o que ele sabe?” “Ele pareceu mais maduro que os pais”. “Por que ele não quer aprender? O que levou ele a não querer aprender?” “Não quer aprender no molde”. “Além da questão do conhecimento dogmático, ele critica essa educação bancária mesmo...” (ESTUDANTES, 2021). O professor comentou: “Ele não quer aprender na escola porque ele quer aprender coisas novas”. “Ele é tão enigmático que a gente tem que completar a história”. “Um filme que a gente pode trabalhar a presença dos objetos” (PROFESSOR, 2021). O filme, as falas do professor e dos estudantes são um disparador de ideias. É possível conhecer melhor o que os estudantes pensam da escola e já os colocam em movimentos para pensar outras possibilidades para ela.

As aulas foram sempre construídas no entre, pelos diversos materiais que criavam mais intimidade com os estudantes a cada encontro, e pelas atividades avaliativas provocadas pelo pensa-fazer-fazendo. O primeiro exercício avaliativo solicitava que os estudantes comentassem sobre o que mais gostaram nos textos lidos e nos filmes exibidos em aula e elaborassem uma pergunta para seguir com ela nos próximos encontros. O professor sentiu que as respostas a esse exercício trouxeram muita desesperança em relação à escola, por isso o tema “Sonhos para a escola” foi proposto para a aula do dia 14/09/2021. A aula começou com a apresentação de duas produções audiovisuais – Atemporalidades e Lousa viva, de turmas anteriores de Escola e Cultura que trouxeram memórias de escola. Fotografias de lembranças de escola se misturavam aos sons capturados em uma escola atual. Essas produções, assim como um espetáculo musical exibido no fim da aula, trouxeram leveza e ativaram as memórias dos estudantes. Memórias boas dos tempos de criança na escola. Crianças e adolescentes do Vale do Jequitinhonha que encenaram o espetáculo Ser Minas Tão Gerais (GRUPO PONTO DE PARTIDA, 2004). A sensibilidade aflorou e um dos estudantes questionou no chat: “[...] pô, professor esse diálogo tinha que ser antes da tarefa, agora tenho uma pergunta nova pra trabalhar” (ESTUDANTE, 2021). Nessa fala, o estudante está se referindo ao primeiro exercício avaliativo que entregaram um dia antes. O professor respondeu: “As perguntas nunca acabam, sempre teremos perguntas novas” (PROFESSOR, 2021). O professor não apenas responde sobre o que está certo ou o que está errado, ele movimenta pensamentos, uma vez que as perguntas sempre entram mesmo antes de obtermos respostas àquilo que havíamos colocado em questão. Uma resposta que ativa pensamentos, um currículo-texto-escrita-vida em processo. O professor, promove rupturas no pensamento dos alunos. A partir dessa aula, começamos a pensar que não são apenas os materiais audiovisuais (as imagens) que movem o pensamento ou que despertam o processo criativo. Somos tomados pela pesquisa-criação, pois o pensar-fazer-fazendo é um tonar-se mais sensível aos problemas geradores, aos problemas que ainda não apresentam soluções (TRUMAN; LOVELESS; MANNIG, 2020).

O professor utilizou as conversas do chat e comentou que a escola é atemporal como os sonhos, questionando: "Como voltar para um lugar desconhecido como um estrangeiro, como coisas reveladoras, sonho?" (PROFESSOR, 2021). Um estudante interrompeu perguntando se em todas as versões da disciplina Escola e Cultura os estudantes produzem vídeos, o professor responde sim e não. E citou alguns exemplos do não, como a intervenção feita no ônibus circular interno da Unicamp onde seis estudantes se posicionaram em vários pontos de ônibus vestindo uma camiseta vermelha. Dentro do ônibus, um dos membros do grupo registrava em uma filmadora o desenrolar da atividade. No sexto ponto, subiu uma pessoa e abriu um livro de registro de presenças e foi fazendo a chamada e as pessoas de camiseta vermelha (estudantes da disciplina) respondiam: presente. Todos desceram no ponto de ônibus seguinte. Segundo o professor, o que interessava era brincar com alguns objetos muito relacionados com a escola, como um livro de registro de presença, que é uma situação que ocorre apenas na escola. Citou outras duas intervenções que aconteceram em um espaço público: na frente do restaurante universitário da Unicamp. Em uma delas, havia um lençol sendo bordado e as pessoas que passavam eram convidadas a bordar, a primeira palavra já bordada era ESCOLA.

E a pergunta do estudante, coisas chãs, que durante a aula não causaram estranheza, mas na escrita do caderno chão de janelas ganha destaque, a princípio, apenas como um incômodo e depois como um repensar a provocação do pensamento, que não acontece necessariamente pelas imagens. Uma marca que a cartografia capturou desestabilizando a forte tendência em entender a produção audiovisual como ato criativo principal da disciplina Biologia e Cultura. O tecido bordado na entrada do restaurante universitário trouxe o tecido no qual bordamos todo o início da disciplina Biologia e Cultura com os nossos nomes, enquanto somos provocados pela leitura do ensaio Fita-verde de experimentação, de Davina Marques (2008). Estar no entre disciplinas a partir das provocações das aulas de Escola e Cultura despertaram um outro olhar para os processos criativos. "Em cortes, permitir atravessamentos, para que a arte e a literatura ecoem no plano de imanência educação" (MARQUES, 2008, p. 278).

Os materiais das aulas e as provocações do professor chamaram a atenção sobre as materialidades dos filmes, do espetáculo de música e fazem prestar atenção para a plasticidade dos materiais e como eles dão forma a outras coisas. A partir dos filmes produzidos em turmas anteriores de Escola e Cultura, os sons capturados em uma escola visitada são trabalhados com sobreposição de fotografias dos próprios estudantes quando crianças nas escolas nas quais estudaram. Em uma outra produção, um elemento não humano ganha vida para narrar histórias de escolas: uma lousa que tem voz, ecos. Do espetáculo de música que usa o jornal como elemento plástico que vira rio, vira vento, vira barco. E no filme O último poema (2015), exibido nessa aula, em que o professor solicitou aos estudantes que observassem quais são as materialidades que dão voz às narrativas que o filme quer contar e deu uma pista: "[...] são cartas, correspondências entre um poeta e uma professora primária" (PROFESSOR, 2021).

Durante a exibição do filme, as conversas no chat resgataram afetos e memórias de como as histórias do filme colhem outras histórias que passam por cada um, pelo corpo da sala de aula. Um corpo que ganha vida, volume e tempo como um bloco de sensações.

[...] um corpo se define somente por uma longitude e uma latitude: isto é, pelos conjuntos de elementos materiais que lhe pertencem sob tais relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão (longitude); pelo conjunto de afetos intensivos de que ele é capaz sob tal poder ou grau de potência (latitude) [...]. Latitude e longitude são os dois elementos de uma cartografia (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 47).

As conversas, os suspiros, as emoções foram compartilhados no chat e um diálogo entre professor e estudantes estabeleceu-se. Segue um recorte desse diálogo: "que bacana isso!"; "[...] detestei o filme, é de chorar não tava preparado kkkkkkkk" (ESTUDANTES, 2021). "Eles só se encontram presencialmente no filme" (PROFESSOR, 2021). "[...] nossa, esse poema e agora josé"; "?"; "<"; "<3"; "o meu deus to chorando faz 1 ano" (ESTUDANTES, 2021); "[...] é uma história de professora" (PROFESSOR, 2021).

Encerrado o filme, todos retornaram para as janelas da sala online e o professor se despediu com um "boa noite", não havia mais nada para dizer. Não houve discussão, ficou apenas no chat. Apenas? O filme e a situação de exposição do filme alimentam uma conversa entre nó(nós). Nós, provocados pelo filme e pela maneira como ele se encadeia com as outras produções em sala de aula e um nós coletivo na escrita do caderno de chão de janelas. Após o término da aula, falamos sobre o filme, sobre as escolhas, a materialidade do filme, os objetos que ganham vida: os lençóis com poemas pendurados no varal, as cartas ao vento, a música Anoitecer (WISNIKI, 2003) que fecha o filme, um poema de Carlos Drummond de Andrade musicado por José Miguel Wisniki. Falamos da professora, da mulher e das correspondências. O professor comentou sobre o que pensou para as próximas aulas e para a próxima atividade avaliativa. Talvez escolha textos da Revista Brasileira de Educação Básica, dossiê sobre o Paulo Freire e um trabalho que seja algo a partir de um material maleável, ainda não sabia o que seria, mas pensou em solicitar que os estudantes escolhessem um material para trabalhar. Embora o professor tenha muito claro o que quer com a disciplina, ele trabalhou com uma construção que ocorreu semana a semana. Às vezes, havia pausas. Às vezes pedia para guardar uma pergunta. Era possível perceber que tudo se constrói em processos, no entre. Nada é pré-determinado.

Um embrião da atividade avaliativa foi anunciado nesta conversa, mostrando a permeabilidade da construção da disciplina, que se faz pelo tempo, não de duração das horas em aula, mas da duração que provoca blocos de sensações. Essa atividade avaliativa, a segunda, foi postada no dia 21/09/2021, um pouco antes da aula. Uma atividade criativa e desafiadora que solicitava que os estudantes respondessem à pergunta elaborada no primeiro exercício avaliativo consultando um artigo da Revista Brasileira de Educação Básica (Dossiê Paulo Freire) e escolhessem um material maleável para agir sobre ele e construir uma reposta à pergunta. Depois, deveriam escolher um estudante da turma para enviar a resposta que seria uma espécie de presente ao colega. Os estudantes ficaram com muitas dúvidas em relação à atividade. O professor, além de esclarecer tudo de maneira tranquila, comentou que é "[...] para se divertir ao fazer a atividade e não para sofrer" (PROFESSOR, 2021), acrescentando que "[...] como professor, a gente se arrisca quando vamos apresentar as coisas para os estudantes" (PROFESSOR, 2021).

E o pensar-fazer-fazendo vai tomando corpo e passamos a ver a disciplina com esse movimento, especialmente a partir do desafio proposto para a segunda atividade avaliativa, trabalhar com um material maleável, que continuou a ser discutido nas aulas subsequentes. Em uma delas - aula do dia 30/09/2021, o ensaio Cortas poro conversor (ESTEVINHO, 2021) foi apresentado para fomentar as ideias de como um material pode ser maleável. No caso desse ensaio, o objeto maleável é uma carta-postal, que em conjunto com outros materiais – uma carta não enviada, trechos do livro Cascas (DIDI-HUBERMAN, 2017) e fotografias – são transformados em uma escrita literária. Após a apresentação do ensaio Cartas para conversar, o professor enfatizou que a plasticidade do material interage com outros materiais, como livro, fotografias, cartas, mobilizando mais elementos para o segundo exercício avaliativo.

Essa provocação de trabalhar com um material maleável, de escolher um objeto, de ficar com ele um tempo para construir outras materialidades, se fez como marca na cartografia da pesquisa. E esse achado transfigura a problemática da pesquisa em como se dá o processo criativo no experien-ciar docência-pesquisa, reverberando a fala de Erin Manning provocada pela pergunta de Sarah Truman: “É necessário rigor artístico e teórico na pesquisa-criação?” (TRUMAN; LOVELESS; MANNING, 2020, p. 238). O que Manning responde se conecta com o exercício provocativo de trabalhar com uma materialidade: a sedução do material.

Este tipo de rigor é uma prática em si só. [...] Na prática artística para mim isso significa seguir a sedução da materialidade e ver onde isso produz o problema que pode levar o caminho para o processo artístico se desenvolver além da proposição inicial que levo para a mesa. No contexto pedagógico, isso significa ouvir como o aluno aborda o que se move através do seu pensamento, ajudando a esclarecer e intensificar o problema na medida que ele se desenvolve (TRUMAN; LOVELESS; MANNING, 2020, p. 239).

Um aprender-pensar-fazer-fazendo que movimenta o pensamento não necessariamente para buscar um problema artístico, proposto na resposta de Manning, mas para problematizar e responder a questionamentos pela materialidade/plasticidade que se torna matéria do sensível.

Na pesquisa-criação, haveria uma violência do signo atrelado ao seu caráter heterogêneo. Vinci (2018), pautando nos estudos de Deleuze, explica que tal violência é o que nos força a pensar, uma vez que oferece elementos singulares a serem interpretados e nos obriga a sair da condição de simples observadores. Por isso, há uma violência, que estaria no fato de que o signo não pode ser representado nem pelo objeto que emana, nem muito menos pelo seu significado, e tampouco pelo o que esse objeto significaria a quem o está interpretando. “O signo escapa da ordem representacional, ao exigir uma interpretação incapaz de se conformar ao real ou as verdades estabelecidas a priori. As grades de leitura do mundo não servem para interpretar o signo, este exige a criação de uma lente própria para ser captado” (VINCI, 2018, p. 325-326).

Assim, os textos, os filmes, dentre outros materiais propostos para as aulas, entram pela relação com o outro e de como o professor se conecta com os posicionamentos a partir das vozes dos estudantes em aula e no chat. Um trecho de fala do professor na aula do dia 30/09/2021 mostra esse envolvimento e o encadeamento para pensarmos no que queremos para a escola, não esta escola que está aí, mas aquela que iremos ou poderemos construir, esperançando mundos possíveis.

Preparar as gerações para suportar o mundo, e suportar é se envolver com as histórias, com as narrativas e também sustentar o mundo para o mundo seguir adiante. Para o mundo continuar existindo. Porque o mundo não acaba conosco, não acaba com a nossa existência. [...] Isso tem tudo a ver com a escola. [...] A literatura tem esse papel de trazer lembranças de acontecimentos que não estão tão presentes e que tem histórias plurais (PROFESSOR, 2021).

A fala propõe esperançar escolas e mundos por vir e que conectam com pensamentos de docências em nó(nós). Que fazem vibrar a figura do professor, reverberar a procura dessa profissão, que desperta sem deixar apagar a chama que vive em nó(nós). A escola como lugar de cultura. A escrita como lugar de provocar mundos. “Isto requer novos gestos, novas posturas, novas no sentido de emergentes para o acontecimento, ativadas desde o próprio meio do acontecimento. E isso requer novos modos de narração, novos modos de escrita. [...]” (MANNING, 2019, p. 21).

Na conversa estabelecida entre os textos – A luz da escuridão: literatura, um espaço onde todos podemos conhecer; A nova literatura brasileira é as das favelas e da periferia, conheça o escritor José Falero, indicados para leitura da aula do dia 30/09/2021, damos destaque a um trecho do livro Os Supridores (FALERO, 2020), alguns estudantes comentaram que não se sentem reconhecidos nos livros de literatura com que a escola trabalha. “As literaturas, querendo ou não, são elitistas. Os livros da literatura, a gente que é da periferia, a gente não se identifica” (ESTUDANTE, 2021). O professor lembrou que o escritor José Falero deseja voltar à escola para terminar o ensino médio porque quer ser professor. Enfatiza que ele [o escritor] já tem uma profissão e marca com isso que a escola, o ensino médio, não é o lugar para dar uma oportunidade de profissão aos estudantes como está proposto no novo ensino médio e nas suas propagandas veiculadas pelo governo federal. Mas que, no caso desse escritor, ele quer voltar para a escola porque quer ser professor, e um professor que defenda a entrada da literatura com a qual o jovem se reconheça.

Entre essas discussões sobre literatura, se encontra a discussão para entender que é pelo outro que se constitui o corpo da sala de aula, do lugar de fala para não discriminar, dos objetos que se transformam em outros e provocam criações. Esse fugir da representação e da imitação, desse entre, emergem os objetos-presentes construídos pelos estudantes na segunda ativi-dade avaliativa e que geraram surpresas: a de receber um presente-objeto e a de narrar o que ele provocou para a classe, numa cumplicidade entre o estudante que fez o presente-objeto e o estudante que o recebeu. Tudo isso criou uma intimidade na aula do dia 26/10/2021.

Estavam previstas para essa aula as apresentações dos "presentes" que cada aluno recebeu de um colega como parte da segunda atividade avaliativa. A aula se revelou completamente experimental, desde a proposta da atividade avaliativa que culminou nos presentes-objetos, até na maneira como estes foram trocados na sala de aula online.

Pesquisa-criação é um modo de fazer teoria/pensamento que é corporalmente experimental, e considera a pesquisa (a produção de conhecimento) como um acontecimento (especulativo) que emerge da prática, ao invés de performado ou predeterminado (TRUMAN; LOVELESS; MANNING, 2020, p. 226).

Buscamos no caderno chão de janelas uma anotação sobre um dos presentes-objetos-maleáveis proposto por uma das estudantes. Tal presente--objeto-maleável é uma sequência de fotografias de uma plasticidade artística que atraiçoa o tempo cronológico ao mesmo tempo que o apresenta, revelando nuances da vida da estudante. Sentimos o envolvimento despendido para criar tal presente-objeto-maleável. Na apresentação, a aluna ficou com a câmera aberta, algo que nem sempre acontecia, e no momento que um dos estudantes recebeu o seu presente e começou a descrevê-lo, ela tentou expressar o mínimo possível de emoção, mas no final deixou transparecer um pequeno sorriso, revelando, quem sabe, uma aprovação daquilo que o estudante vislumbrou do presente-objeto-maleável recebido.

Essa mesma aluna recebeu de presente três mini-podcasts e comentou que ficou pensando muito como o objeto trouxe a voz do estudante do ensino médio, como é que foi filmar dentro do ônibus, sem nenhum ruído de dentro do ônibus, como se fosse um estudante saindo para ir para escola de coletivo e revelou que "[...] a arte faz isso, tirar desse lugar e colocar para fora, ficou sensacional!" (ESTUDANTE, 2021).

Alguns estudantes revelaram que alguns objetos eram muito parecidos, tanto o de quem recebeu como de quem o presenteou. Havia alguma coisa em comum, especialmente os objetos trocados entre duas estudantes mulheres. Uma delas, quando foi falar sobre seu presente, disse: “[...] a gente pensou a mesma coisa, ela mandou para mim o desenho de um punho erguido, uma colagem com imagens de vários grupos de minorias e eu também mandei um punho erguido” (ESTUDANTE, 2021). A outra estudante disse a mesma coisa: “Os dois objetos-presentes revelam a nossa vontade, era uma busca pelo feminismo, um átomo e um punho juntos” (ESTUDANTE, 2021).

Subjetividades reveladas nas trocas dos objetos-presentes e no sentir que emerge ao receber o presente para um saber que é também um não saber para aquilo que foi construído experimentalmente pelos estudantes no processo de responder a uma perguntar a partir de um objeto maleável. Na troca dos presentes em aula, os estudantes puderam refletir sobre a experimentação, aquela que criaram e a do outro. Pensar através do fazer. Uma atividade “[...] que gravita em direção à especulação e modos emergentes de saber e não saber” (CUTLER, 2020, p. 27).

Finalizadas as trocas dos presentes, uma pergunta do professor firmou-se como marca da cartografia: “Como foi a expectativa de ouvir sem ver?” (PROFESSOR, 2021). Expectativa, pois os estudantes não sabiam se o presente seria compreendido, o que pode ter gerado decepção, caso o entendimento não fosse aquele esperado. O professor comentou que a decepção tem muito a ver com ensinar e aprender, especialmente com a aprendizagem, e que alguns teóricos dizem que a decepção é importante, a decepção no sentido de não correspondência. E que a decepção e a correspondência na troca dos presentes fizeram emergir uma matéria do sensível. O professor salientou o papel da memória, mas não de uma memória que conta aquilo que ocorreu e, sim, uma memória criativa, uma memória que cria um futuro e que isso é o que a escola faz. Depois dessa explicação, o professor pediu que os estudantes comentassem sobre os seus próprios trabalhos. A partir das palavras trocadas entre dois estudantes, destacamos uma anotação no caderno chão de janelas: "[...] processo criativo: dar tempo... pausar... ouvir... deixar falar..., entregar o sujeito na vivência da escola pela matéria do sensível" (PROFESSORA, 2021). Foi possível recolher os pedaços das borrachas espalhadas em um canto qualquer da sala de aula, o pó de giz, o papel de bala, aquilo que fica quase despercebido entre uma aula e outra nesse espaço que é a sala de aula, seja uma sala física, seja online. Coisos chãs.

O aprender e o ensinar parece estar ligado ao "Experienciar" o processo criativo, que vinculávamos ao trabalho pela problemática da pesquisa com as imagens para fugir da representação. Mas a imagem também pode ser representação. O que a pesquisa, uma cartografia no entre as aulas de Escola e Cultura e Biologia e Cultura, mostrou pelas marcas que reverberaram foi que não é apenas pelas imagens. Os achados, as marcas, mostraram que os processos criativos se traduzem no pensar através do fazer. Como o que foi provocado pelo professor na segunda atividade avaliativa e que refletiu o que foi feito durante toda a disciplina. A aula de apresentação dos presentes mostrou como o pensar-fazer-fazendo perpassou toda a disciplina e desencadeou os processos criativos em nó(nós). Esse exercício de pensar-criando-fazendo provocou uma liberdade para criar, uma liberdade convocada pela proposta da atividade, uma liberdade que vislumbrava a criação. Criar liberdades para criar um currículo-texto-escrita-vida constante, criativo, que liga pessoas, objetos, que convoca encontros. Agenciamentos.

O entre escola e cultura e biologia e cultura

Ao esclarecer sobre a dinâmica política da cartografia, Suely Rolnik (2011) atesta que há dois tipos de olhares em uma cartografia: um mais ligado à percepção, outro mais vibrátil. Ela escreve que "[...] é na dinâmica entre esses dois olhares que nos é dado entrever o traçado de cartografias nos movimentos de criação de realidades de um determinado contexto histórico” (ROLNIK, 2011, p. 13).

Durante o percurso da pesquisa, emergiu uma perspectiva literária que disparava uma criação na escrita, uma escrita inventiva. Essa escrita alinhavada-costurada ao exercício experimental que a disciplina Escola e Cultura trazia traduzia-se nos escritos do caderno chão de janelas que se mostrava prenhe de criação. Dele, emergiam pistas, caminhos, percursos entre Escola e Cultura e Biologia e Cultura, linhas de vida. Dar línguas aos afetos, um vaivém, duplo traçado entre desterritorializar – “[...] face da intensidade (invisível, inconsciente e ilimitada)” (ROLNIK, 2011, p. 50) –, os afetos escapando. A percepção de outros movimentos de criação não apenas pelas imagens. E depois, um plano começa a ser traçado a partir das linhas dos afetos. Territorialização – “expressão visível (consciente e finita)” (ROLNIK, 2011, p. 50). Começamos a perceber que esse processo criativo, que não necessariamente vem pela imagem, também acontece em Biologia e Cultura. Começa a fazer sentido o que era provocar em Biologia e Cultura.

A rememoração dos acontecimentos da disciplina Biologia e Cultura enquanto a cartografia de Escola e Cultura acontecia foi um alívio de certa forma, embora permeado por questionamentos constantes. Compor linhas de afeto e de fuga. Depois, territorializar as memórias criativas advindas das intervenções realizadas ao longo das turmas de Biologia e Cultura. A questão que não se cala é se, de fato, um entre as disciplinas se estabeleceu. A certeza é que abriu brechas, fissuras, novas experimentações. E essas, sim, são o entre, o meio, a imediação, o que não está dado a priori.

Memórias de Biologia e Cultura afloram pela especulação que emerge do cartografar Escola e Cultura. Não são apenas as imagens que criam um corpo-escola, mas a provocação de um pensar-fazer-fazendo que se deu em Escola e Cultura a partir do qual foi possível vislumbrar processos criativos outros em Biologia e Cultura. E, assim, as memórias trazem outras intervenções criadas pelos estudantes da disciplina Biologia e Cultura como a intervenção criada a partir das árvores de uma praça em um bairro da cidade, onde cada grupo de estudantes escolheu uma árvore na primeira visita e trouxe para ela outras discussões que não apenas as biológicas. Em uma delas, um flamboyant, os estudantes perceberam que haviam cobertas em cima da árvore, indícios de que moradores sem teto usavam aquela praça para dormir. A partir de doações de roupas, os estudantes transformaram a árvore em um flamboyant-árvore-acolhimento de moradores sem teto com direito a bilhetinhos, roupas e até um urso de pelúcia. A árvore virou um presente.

Em outra árvore, um ipê sem flores que só é visto e admirado quando está com flores, os estudantes, em alusão à doença da depressão, penduraram flores de papel na árvore com mensagens no verso convidando os transeuntes a acolher a doença da depressão que deixa as pessoas tristes e que ninguém as olha quando estão tristes, como um ipê sem flores.

Retomamos Deleuze e Guattari (1995, p. 22) para afirmar que a cartografia é pensada como um mapa, nunca um decalque, uma imitação. Para esses autores, o mapa faz parte do rizoma. Mas, por ser parte de um rizoma, ele (o mapa) também tem múltiplas entradas, mesmo sendo o contrário do decalque "que sempre volta ao mesmo". O mapa tem a força do desejo, de sair em multiplicidades. Entretanto, nos alerta Deleuze e Guattari (1995, p. 22), o mapa não pode cair em uma relação de dualismo ao se opor ao decalque. Esses autores questionam: "As linhas de fuga, inclusive elas, não vão reproduzir, a favor de sua divergência eventual, formações que elas tinham por função desfazer ou inverter?" E continuam:

Mas o inverso é também verdadeiro, é uma questão de método: é preciso sempre projetar o decalque sobre o mapa. E esta operação não é de forma alguma simétrica à precedente, porque, com todo o rigor, não é exato que um decalque reproduza o mapa. Ele é antes como uma foto, um radio que começaria a eleger ou isolar o que ele tem a intenção de reproduzir, com a ajuda de meios artificiais, com a ajuda de colorantes ou outros procedimentos de coação (DELEUZE: GUATTARI, 1995, p. 23).

De um lado Escola e Cultura e de outro Biologia e Cultura. Se de fato tivemos um entre as disciplinas, o que se abriu para multiplicidades em linhas de fuga? O entre que emergiu foi a plasticidade dos materiais. A maleabilidade que foi atingida ao experimentar vários materiais. Uma árvore-biológica vira árvore-acolhimento [Biologia e Cultura). Um pedaço de papel vai vertendo outros significados [Escola e Cultura). Significados do jornal, material plástico do espetáculo Ser Minas tão gerais (GRUPO PONTO DE PARTIDA, 2004), ao punho erguido de uma mão feminina, um dos trabalhos avaliativos da disciplina Escola e Cultura. Significados dos sons do espetáculo e das vozes de crianças gravadas em uma escola ao som do mini-podcast que entrevista a educação em um ônibus, pelo seu barulho peculiar no trajeto – buzinas, freadas.

Retomamos Deleuze e Guattari (1995, p. 24): “[...] seria necessário sempre ressituar os impasses sobre o mapa e por aí abri-los sobre linhas de fuga possíveis”. São as perguntas que fazemos para a cartografia de Escola e Cultura que se abrem em linhas de fuga. E com elas novos traçados são marcados numa abertura para novos percursos. Que caminhos foram abertos nesse mapa-cartografia de Escola e Cultura? Seria um decalque que fez o pensamento voltar à Biologia e Cultura pela cartografia de Escola e Cultura? A entrada pelo decalque acontece quando percebemos na apresentação de trabalhos de turmas anteriores de Escola e Cultura e que ganham expressão na pergunta do estudante: “[...] sempre se produz audiovisual em Escola e Cultura?” (ESTUDANTE, 2021) E a resposta do professor é um sim e um não. As imagens, as produções audiovisuais têm o poder de desestabilizar, de mover pensamentos e estão, sim, em Escola e Cultura, fazem parte do material selecionado, mas o não também faz parte da resposta. E esse não traz a memória criativa de atividades de Biologia e Cultura que entram como um decalque sobre o mapa de Escola e Cultura. O lençol bordado na porta do restaurante universitário é um germe do lençol bordado nas aulas de Biologia e Cultura.

Quais foram as linhas de fuga que se abriram nessa pesquisa cartográfica? Talvez o pensar-fazer-fazendo (pesquisa-criação) que é experiencialmente corporal. O gesto de bordar que movimenta pensamentos pela ação de bor-dar-bordando, pensando na palavra escola, bordada de antemão no lençol. E de como esses gestos irrompem outros gestos nos estudantes de Escola e Cultura nas atividades avaliativas que abrem espaços para criações como a colher de sopa no formato de uma equação-fórmula da Física. Colher impressa em uma impressora 3D, artisticamente acomodada em um pedaço de madeira clara com as palavras “para tomar sopa” (ESTUDANTE, 2021) grafadas em caixa alta em vermelho sobre uma etiqueta branca. Ou na equação-fórmula da Física desenhada em um pedaço de papel que vira aviãozinho, que vira barco, chapéu, balão em um movimento de abrir e fechar da mão, do papel. Um registro imagético que faz pensar, quem sabe, recriar o ensino da Física. O papel, material muito usado pelos estudantes de Escola e Cultura para fazer o objeto-presente, resgatou a materialidade do papel do espetáculo Ser Minas Tão Gerais (GRUPO PONTO DE PARTIDA, 2004) e do filme O último poema (2015). Primeiro, vários pedaços de papéis recortados em cima de outro papel, na imagem seguinte, os pedaços se unem, se arrumam e liberam palavras: “Educação transformadora, interessante, introdução, experiências, cultura, realidade, contato, criatividade” (ESTUDANTE, 2021). A escrita trouxe em germe o bordado da palavra “escola”. O papel sempre presente. As letras N E M escritas no formato datilografado em papel branco que deixam transparecer palavras, frases questionando o novo ensino médio. O papel-papelão em esculturas, sobreposições de materiais: um papelão colorido de preto com as letras A, B e C pintadas em branco. Uma palmatória esculpida no papelão pintado de vermelho por cima da mão. Ao lado, um cadeado fecha o trabalho com a frase: “Escola... não deve haver amarras que impeçam a pessoa de ser quem ela pode ser” (ESTUDANTE, 2021). Um lapso de tempo ou, quem sabe, um decalque trouxe as letras da carta-postal que se transformaram em escrita poética, que resvala na escrita também poética a partir de um material que se transforma. O agir sobre um material que responde uma questão. A resposta, a escrita poética. A pergunta: A série da Netflix pode dar vida ao ensino de Física? Um podcast, uma viagem de ônibus circular com direito a pautas sobre Augusto Boal, uma prática interessante para a educação. Educação pelo teatro. Desenvolver práticas expressivas. A expressão teatral ..., enquanto isso, o ônibus circula. O passageiro desce no ponto, pega outro ônibus, vai para outro lugar. A repetição, prática muito comum no ensino de Física, fica na conversa ao fundo entre dois passageiros. Outro podcast registra os ruídos internos no ônibus, até os da buzina, do freio, da porta se abrindo e fechando, catracas rodando, a moedinha vibrando.

Retomamos Deleuze e Guattari (1995, p. 24): “Se é verdade que o mapa ou o rizoma tem entradas múltiplas, consideraremos que se pode entrar nelas pelo caminho dos decalques [...]”. Os papéis talvez entraram no caminho dos decalques. Mas quantas linhas de fuga lançaram sobre o ensino de Física, a educação, a cultura, a escola? O podcast irrompe em linhas de fuga outra entrada pelo rizoma-mapa. “Em outros casos, ao contrário, nos apoiaremos diretamente sobre linhas de fuga que permita explodir os estratos, rompem as raízes e operam novas conexões” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 24). Há o decalque que é um germe para uma linha de fuga, mas há também as linhas de fuga, os movimentos de abertura provocados pelos próprios estudantes. “Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 32).

É o que aconteceu em Escola e Cultura, foram por esses materiais de expressão que se desvelaram os sujeitos em formação. Aquilo que os colocaram em conexões, seja pelas memórias, seja pelos objetos que as provocam, pelo sonho de sonhar a escola ou ainda pelo gesto de dar um presente para o futuro. São gestos, gestos menores.

Gestos que como tempos-espaços de variação e, portanto, de invenção de novas conexões e com elas de invenção de novos modos de expressão e existência, chamam-nos a confiar no menor, por mais que não deixe rastros claros de evidência e no seu lugar distribua dissonâncias e perturbações que nos fazem intuir o acontecimento [...] (WIEDEMANN, 2021, p. 7).

Vislumbrando um pensar-fazer-fazendo em pesquisa-criação

Materiais diversos escolhidos pelo professor fomentaram ideias, sensibilizaram fazeres em criação. Pensar-fazer-fazendo. Espaço criativo da docência que atravessou a disciplina Escola e Cultura em criação, em acontecimento. Uma cartografia sensível às cores e aos cheiros imaginados, uma vez que não estávamos próximos fisicamente, mas cada vento, cada calor, cada fumaça, cada poeira, cada pingo de chuva no telhado, nas diferentes janelas que se conectavam, eram capturados pelas inventivas aulas que se abriam em conversas, em vídeos, em poemas, em canções, em performances, em cores, em cheiros, em afetos.

Memórias... música... objetos... cores... canetas... poesia... cápsula do tempo. Um tempo de escola, um tempo que foi esculpido no pensar-fazer-fazendo. E, assim, um currículo-texto-escrita-vida foi criado no entre. “O gesto menor move a vontade de arte para dentro do acontecimento. Isso é feito mantendo-se viva a força do problema, compondo com suas constelações singulares de relações” (MANNING, 2019, p. 19).

A cartografia não termina, está em permanente ebulição. O problema mantém-se vivo não porque não encontrou respostas, mas porque encontrou mais perguntas. O entre disciplinas já estava fadado a um lugar sem força de broto. Brotar é pelo entre, mas quando ele ainda não se iniciou, quando ele ainda é germe. Fica a pergunta se um entre as disciplinas ocorreu. Talvez não seja possível responder agora, mas o problema veio de outra maneira. O processo criativo veio de uma outra maneira, não pensado antes, a priori, mas se instalou no meio, e, foi assim, que o entre emergiu.

Notas

1Todas as traduções do livro “Knots and Knowings: Methodologies and Ecologies in Research-Creation” (TRUMAN; LOVELESS; MANNIG, 2020) foram realizadas por nós.

2Para entender coisas chãs: “[...] transformar essa genérica timidez diante das coisas, essa vontade de fugir ou de permanecer numa perpétua atenção flutuante, em observação de tudo que está embaixo: as primeiras coisas a serem vistas, as coisas que temos ‘debaixo do nariz’, as coisas chãs” (DIDI-HBERMAN, 2017, p. 28).

3Seguem as temáticas das aulas: Aprender o que já se sabe?; Reflexões sobre ser professor; Juventudes e(m) Neteflix; A quem será que se destina? E ...; Sonhos para a escola; A escola sonha; Tudo fica guardado; Todo mundo gosta de literatura; Escola versus cultura? Escola exposta; O Ensino Médio virou propaganda; Reformar o Ensino Médio para quem?; Partilhas do sensível; Ao menos uma coisa bela para si.

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Recebido: 23 de Maio de 2022; Aceito: 11 de Julho de 2022

Profa. Dra. Lucia de Fatima Dinelli Estevinho

Universidade Federal de Uberlândia (Brasil]

Programa de Pós-Graduação em Educação

Instituto de Biologia - Universidade Federal de Uberlândia

Pesquisadora do UIVO - Matilha de estudos em criação, arte e vida

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-1449-4844

E-mail: lestevinho@gmail.com

Prof. Dr. Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

Universidade Estadual de Campinas (Brasil]

Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas

Programa de Pós-Graduação em Educação

Pesquisador do Laboratório de Estudos Audiovisuais (Olho)

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-0323-9207

E-mail: acamorim@unicamp.br

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