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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.64 Natal abr./jun 2022  Epub 23-Fev-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n64id29872 

Documento

O pensamento crítico, pioneiro e vigoroso da educadora Madalena Freire

The critical, pioneering and vigorous thinking of the educator Madalena Freire

El pensamiento crítico, pionero y vigoroso de la educadora Madalena Freire

Madalena Freire1 

Teresa Cristina Rego2 
http://orcid.org/0000-0002-1164-8094

1Instituto Superior de Educação Pró-Saber do Rio de Janeiro (Brasil)

2Universidade de São Paulo (Brasil)


Apresentação

O texto a seguir é uma versão editada da entrevista concedida pela educadora Madalena Freire à professora Teresa Cristina Rego em junho de 2021. O evento (transmitido online para uma grande plateia) fez parte da programação das comemorações do centenário do nascimento de seu pai, Paulo Freire, promovidas pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Além de celebrar a data, a entrevista teve o propósito de possibilitar o contato de um público mais amplo com o pensamento crítico, pioneiro e vigoroso dessa grande educadora.

Geralmente Madalena é logo identificada como sendo a filha mais velha de Paulo Freire e uma das principais defensoras do legado desse que é o patrono da educação brasileira, um nome que goza de enorme prestígio e que desperta admiração de todos aqueles que levam a educação a sério, no Brasil e no mundo.

Ser filha de Paulo Freire é, sem dúvida, um aspecto muito importante, que deixou indubitavelmente, marcas profundas. Todavia, Madalena tem muitos outros traços que a qualificam. Mais do que mera guardiã do trabalho de seu pai, Madalena, tem uma importante trajetória na educação, área que se dedica há aproximadamente seis décadas.

Madalena Freire nasceu em Recife em 1946. É arte-educadora e pedagoga, formada primeiramente no Magistério e depois pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Além de consultora pedagógica de diversas instituições, ela exerce, desde 2005, a função de diretora pedagógica do Curso de Especialização em Educação Infantil do Instituto Superior de Educação Pró-Saber, cuja sede é no Rio de Janeiro.

É também autora de importantes livros, artigos e textos publicados em diferentes formatos. Inspirada nos pressupostos da pedagogia freireana e em algumas outras importantes referências (como Jean Piaget, Henri Wallon, Lev Vigotski, Célestin Freinet, Jacques Lacan, Pichon-Riviere, Ana Mae Barbosa entre tantos outros), Madalena tem realizado, ao longo de sua trajetória profissional, projetos, reflexões e trabalhos autorais, trazendo contribuições fecundas, primeiramente para e educação infantil e, nas últimas décadas, para a formação docente.

Como veremos a seguir, sua iniciação na educação aconteceu no início dos anos 1960 por meio de participações, ainda quando menina, nas pioneiras e revolucionárias experiências de alfabetização de adultos no nordeste brasileiro (como a de Angicos, no Rio Grande do Norte), lideradas por Paulo Freire, ponto de partida das propostas pedagógicas que levariam o educador a ser conhecido em grande parte do mundo.

Embora sua obra seja incontestavelmente relevante, suas ideias e proposições ainda não foram suficientemente divulgadas e conhecidas, especialmente entre as gerações de educadores mais jovens. Essa entrevista, de certo modo, pretende preencher parte dessa lacuna.

Teresa: Madalena, primeiramente quero te agradecer por aceitar participar dessa entrevista. Estou muito feliz porque sei o quanto é raro você aceitar convites como esse. Você não gosta de muita exposição de grandes plateias. Prefere encontros menores, rodas de conversa, que possibilitem o diálogo e o encontro mais próximo. Obrigada por ter aberto essa exceção. É uma honra – depois de quarenta anos de amizade – conduzir essa entrevista! E você, está feliz de participar dessa conversa?

Madalena: Pois é: quarenta anos, vida de professora e aluna. Eu estou feliz, mas, ao mesmo tempo, numa agonia terrível. Isso acontece sempre em qualquer aula que dou. E mais ainda nesse encontro de hoje, que provoca tantas lembranças do vivido, do experienciado, com tanta gente. Você representante desse todo. Estou muito emocionada, mas muito nervosa. Eu só começo a me sentir à vontade da metade para o fim. Então vamos embora logo.

Teresa: Sim, vamos transformar essa emoção em trabalho!

Você é filha do primeiro casamento do Paulo Freire, com Elza Maria Costa Oliveira, com quem ele foi casado por 42 anos. Você é a mais velha de uma família constituída de 5 filhos (3 mulheres e 2 homens). Todos os professores, aliás. Seu pai é um dos autores da área da educação mais citados no mundo, goza de enorme prestígio nacional e internacional, acumulou, ao longo de sua vida profissional, inúmeros títulos e honrarias (como por exemplo 41 títulos de doutor honoris causa). Uma vez li uma entrevista concedida pelo seu irmão mais novo Lutgardes Freire em que ele afirma que considera muita sorte ser filho de Paulo Freire, mas também muito sacrifício. Ele se referia principalmente ao fato de seu pai ser uma figura pública, sempre muito requisitada e que dividia a atenção à família com o compromisso em transformar a educação e o mundo. Você concorda com ele? É difícil ser filha do Paulo Freire?

Madalena: Sim, concordo. A carga das projeções é muito pesada; às vezes sufocantes. E a gente teve, eu pelo menos tive, que aprender a administrar e, ao mesmo tempo, lançar de volta as projeções, aquilo que não é meu. Mas, mesmo com a minha idade essas coisas ainda me afetam. Em certas ocasiões eu digo assim: "Estou com 75 anos eu ainda levo essas besteiras a sério? Quando é que eu não vou lhe dar a menor importância?"

Meu pai foi um visionário. E muito do que ele assinalou, praticou, chamou atenção, escreveu, mostrou, hoje ainda é uma atualidade, não é? Tenho consciência que o seu legado não é pouca coisa. Agora o que me salva e o que eu acho que salvou a todos os filhos, é que ele era uma pessoa extremamente simples, comum. Ele tinha todas as qualidades de escuta de homem simples, sempre muito amoroso e interessado pelo outro. Mas é importante lembrar que esse ser foi gestado duplamente com a minha mãe Elza. Ela foi a grande incentivadora, inspiradora de todo o trabalho dele, de toda a filosofia dele. Nunca se pode dizer o trabalho, a filosofia de Paulo Freire, sem dizer também a filosofia da Elza porque os dois, Paulo e Elza, é que forjaram, em parceria, essa filosofia.

Mas voltando à sua questão: no início da minha vida profissional foi dificílimo. Mas eu aprendi rapidamente a me preservar e a me esconder. Porque quando eu voltei para o Brasil em 1968, em plena ditadura, os livros de meu pai precisavam ser encapados para ninguém saber que estavam sendo lidos. Então eu logo tive que aprender a me preservar, a me esconder, como os livros que se encapavam na época para não ser denunciados. Mas fazia isso para poder sonhar e praticar o meu sonho. Era como se eu falasse: “Não me atrapalhe! Não quero holofotes! Me deixa trabalhar!” Enfim, foi difícil, mas eu fui aprendendo a administrar essa dificuldade. Os meus pais também me ajudaram muito. Eles eram os primeiros a dizer: "Vai! Se lance, o voo é seu. Vamos embora. Assuma isso!"

Então, ser filha de Paulo Freire foi - e ainda é - uma certa responsabilidade, mas por outro lado, foi o que me ensinou a ser eu mesma. Foi o que iluminou o caminho para a construção da minha identidade.

Teresa: Seu pai foi uma pessoa que te inspirou e incentivou muito. Mas uma das coisas que me impressiona na sua trajetória, na pedagogia apaixonada que você acabou dando forma, é o fato de você conseguir entretecer, com tanta competência, pressupostos da filosofia do seu pai com ideias originais, sempre com grande autonomia de pensamento, com a liberdade de quem explora o novo e a disposição de conversar com autores diversos. Como você consegue, sendo filha de quem é, ser tão autoral? Como consegue ser fiel e, ao mesmo tempo, transgressora do trabalho do Paulo Freire (transgressora no bom sentido, no sentido por ele apontado)? Isso tem a ver com o estilo de educar dos seus pais?

Madalena: É verdade. Essa é a vantagem de ser filha não somente de Paulo Freire, mas também da minha mãe Elza. Um detalhe importante: no início, quem influenciou a minha decisão de ser professora, não foi o meu pai, foi a minha mãe. Ela era uma grande educadora, uma alfabetizadora ímpar! Os dois me ensinaram a ser autora de minhas ideias. Tudo o que acontecia, das mais simples às mais complexas situações dentro de casa, eles se sentavam e diziam: “Por que você está falando isso? Por que que você pensa assim? Fundamente, defenda seu ponto de vista”. Isso na adolescência! Você pode imaginar os conflitos, as brigas, o bater porta...

Há um outro fator que pode estar relacionado ao caminho que acabei trilhando. No início da minha carreira quando eu voltei para o Brasil em 1968 e comecei a minha vida profissional em São Paulo, meus pais não estavam comigo. Conforme comentei anteriormente o clima no país era de perseguição de Paulo Freire e de suas ideias. A partir dessas primeiras experiencias fui construindo meu próprio caminho. Quando eles voltaram de vez do exílio (em 1980) eu já tinha o meu terreno minimamente construído. Nessa época as discussões com meu pai e com a minha mãe eram frequentes. A gente formalmente se reunia (sobretudo com o meu pai) para discutir a prática que eu estava realizando, as ideias que eu estava formulando etc. E ele foi sempre um ouvinte e, ao mesmo tempo, um provocador. Ele dizia: “Para, volta, pense melhor sobre isso; mas isso aqui é genial etc."

Teresa: Gostaria que você começasse contando um pouco de sua história, da gênese de seu interesse pelo campo da educação. Quando jovem (com 16 anos), entre 1962 e 1963, você acompanhou e até participou da Campanha de Alfabetização que seu pai (e sua mãe) coordenaram no SEC (Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife) e da famosa experiência de Angicos no Rio Grande do Norte, quando um grupo de professores, sob a liderança de seu pai, ensinou a ler e escrever, um em menos de 40 horas, 380 trabalhadores. Num de seus livros, você diz que foi assim que começou seu aprendizado sobre a importância do registro, da observação, da escuta, do enfrentamento dos conflitos, do diálogo no grupo (FREIRE, 2008). De que modo essas experiências te impactaram? Foi a partir disso que você resolveu cursar o magistério?

Madalena: De fato, desde muito cedo, vivi experiências muito impactantes. Na minha casa, com meus pais, se respirava educação. Eu era adolescente quando participei dos cursos do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife. Eu estudava pela manhã no ginásio. E à tarde eu me metia nos cursos que estavam sendo gestados. Eu chegava e dizia, "paizinho, eu quero participar disso aqui". E ele: "Pense bem se é o que você quer". Mesmo assim, eu me juntei com um amigo que estava coordenando os círculos de cultura, me meti e entrei. Depois dessa experiencia é que começou a campanha de alfabetização em Angicos. Meu pai disse: "Eu estou pensando que você vai. Você vai?" Eu falei: "vou".

Foi muito importante ter vivido esse sonho naquela época. Foi precioso ter esta vertente de construção, de rebeldia, ver meu pai atuando na coordenação dos grupos. Então imagina, com a cabeça adolescente, a minha explosão, meu vulcão de querer fazer e de, ao mesmo tempo, me rebelar com ele! Foi um momento crucial na minha trajetória eu ter participado dessa formação. E depois de Angicos, estourou o golpe. Aí a vida ficou de pernas para o ar. Foi terrível...

Teresa: Em 1964, com o golpe militar, depois de 75 dias preso num quartel do exército, seu pai partiu para o exílio com toda a família. Depois de uma passagem rápida pela Bolívia, Paulo Freire foi para o Chile onde permaneceu, por 5 anos (de 1964 a 1969). Findo esse período transferiu-se para os EUA onde lecionou, como professor convidado em Harvard, até fevereiro de 1970. No final desse ano mudou-se para a Suiça, vinculando-se, entre outras instituições, à Universidade de Genebra. Foram 16 anos antes de voltar definitivamente ao Brasil (em junho de 1980). Nesse longo período Paulo Freire escreveu muito, publicou seus mais importantes trabalhos e iniciou uma profícua sequência de viagens, realizando trabalhos e conferências pela África, Ásia, Oceania e América. Ajudava, principalmente, os países que tinham conquistado sua independência política a sistematizarem seus planos de educação, como por exemplo os países de língua portuguesa: Cabo Verde, Angola e, sobretudo, Guiné-Bissau (HADDAD, 2019). Creio que seja importante recuperarmos essa história porque me parece que boa parte dos ataques que a obra do Paulo Freire recebe hoje, tem a ver com ignorância, com o desconhecimento de uma trajetória de luta de extrema importância. Minhas perguntas são as seguintes: onde você estava durante este período? Quando vocês partiram você era muito nova. Quanto tempo você ficou no exílio? O que fez enquanto esteve fora do Brasil? Sei que dois de seus irmãos moram na Suíça até hoje. Por que você resolveu voltar ao Brasil?

Madalena: Eu fiquei com eles no Chile, que foi o primeiro país que a gente chegou ao sair do Brasil. Eu tinha 17 anos. Sai de lá com 19 e alguns meses. Vivi praticamente dois anos e meio lá. No final desse período me casei com um paulista e, na sequência, voltei para o Brasil.

A experiencia do exílio é muito dura. Você não imagina o que causa de sofrimento você perder a raiz. A impossibilidade da volta, a perda de referenciais, a necessidade de se comunicar em outra língua, as saudades dos amigos... É como viver num estado de choque, com muita dor e sofrimento. Eu, como filha mais velha, tenho a impressão de que sofri muito.

Mas apesar desse sofrimento, enquanto estive no Chile tive que me adaptar e retomar os estudos. Entrei primeiramente no liceu. Depois passei para o curso de magistério. Mas o meu sonho era voltar para o Brasil. Quando voltei a minha família ainda ficou em Santiago. Eu já não fui para os Estados Unidos nem para Genebra.

Teresa: Quais foram suas experiências quando retornou ao Brasil? Foi neste período que fez a Faculdade de Pedagogia? Quais foram suas primeiras atividades profissionais? Foi nessa fase que você começou a se interessar de modo mais sistemático pela arte-educação?

Madalena: Sim. Quando voltei ao Brasil fiz exames de madureza, prestei e passei no vestibular e, em seguida, comecei a cursar o curso de Pedagogia na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Mas a universidade, você sabe, nunca me fascinou. Não sei se isso é uma qualidade ou um defeito. Na faculdade me sentia morta. Eu queria acabar logo, sair daquilo e ter a liberdade de fazer as coisas que eu tinha em mente, que era trabalhar com criança, entrar numa escola. E a faculdade é disciplina, não é? E eu não tinha. Isso de maneira nenhuma é uma crítica à universidade. Mas a minha escolha foi ficar fora da universidade para viver uma vida de mergulho na profissão. Concordo com o António Nóvoa quando afirma que a formação dos educadores tem que estar na escola, com os professores, com os profissionais. Foi isso que aconteceu comigo. Aprendi muito na prática.

Teresa: De certo modo seu pai também tinha esse compromisso radical com a práxis, não é? Embora tenha sido professor em tantas universidades ele não foi um acadêmico típico. Quer dizer que no seu caso, você achou que as práticas na universidade, te cerceavam, eram limitadoras?

Madalena: Sim representavam uma camisa de força para minha criação. Não estou dizendo que isso é a regra. Não, não é isso. O que eu estou dizendo é que cada uma precisa mergulhar em si mesmo e se perguntar: “onde sou mais eu criando, sonhando, fazendo?”. E eu me vi sempre dentro da escola, com as crianças, especialmente no meu início de carreira, é claro. Mas depois, os anos foram chegando e eu não aguentava mais correr atrás de menino.

Teresa: Você lançou o livro “A Paixão de Conhecer o mundo” em 1982, logo depois de sair da Escola da Vila, escola que você ajudou a fundar. Esse livro, que relata sua experiência como professora de uma turma de crianças, marcou toda uma geração de educadores que atuavam na Educação Infantil e que lutavam para a criação de uma prática alternativa às conservadoras pré-escolas que existiam até então. O livro também trouxe contribuições para o tema da formação docente, na medida em que mostrou a importância dos registros e da reflexão sobre a prática. Por que você resolveu escrever o livro? Você tinha ideia que essa publicação teria tanta repercussão?

Madalena: Não, nem imaginava. Eu duvidava de tudo. Foi meu pai que me estimulou a publicar esse primeiro livro. Se não fosse por ele talvez eu não o tivesse publicado. Ou quem sabe, teria publicado em outra hora. O meu pai me dizia: "Não, você não está vendo como isso é importante. Isso tem que ser divulgado.” A gente se sentava duas vezes na semana. Ele relia tudo e dizia: "Reescreva isso. Isso aqui não está bom. Volta, apaga." Foi um trabalho de aproximadamente seis meses. Ele sempre me encorajando, me fazendo propostas para melhorar o texto.

E ele tinha razão. Depois da publicação do livro comecei a receber muitos convites para realizar palestras em diversas escolas e em diferentes tipos de encontros. Foi somente aí que comecei a ter consciência e, ao mesmo tempo, me acalmar no sentido de reconhecer que escolhi o caminho certo. E aí foi bom.

O que eu fui tomar consciência depois é que o Paixão de conhecer o mundo mostrou que o vital da formação de um educador é a reflexão sobre a prática e a teoria que ele pratica. O livro talvez tenha deixado claro que a chave da formação está com cada professor. Porque o processo de formação é assumido antes que tudo, né? Pela autoria, pela reflexão. E a reflexão é a arma de luta, porque é ela que acorda a consciência teórica e política da tua prática. É ela que te dá o chão dessa autoria.

Tereza: Em 1986, você publicou um artigo, em parceria com a Sylvia Leser, também muito importante. Nesse texto você relata uma experiência marcante desenvolvida na Vila Helena, um bairro periférico do Município de Carapicuíba (estado de São Paulo). Como você mesmo escreveu, depois de quase vinte anos trabalhando com crianças de 2 a 8 anos de classe média, você aceitou o desafio de trabalhar com crianças de uma outra realidade social. Esse trabalho trouxe contribuições cruciais para a transformação do forte ranço assistencialista das creches que vigorava no Brasil da época (e que, de certo modo ainda permanece) e para as importantes lutas travadas naquele período histórico, como a luta para a criação de uma constituição capaz de assegurar o direito das crianças, a luta por creches e pelo direito de inserção das mulheres no mercado de trabalho. O que te motivou a realizar tal experiencia? Quais foram os seus principais aprendizados do trabalho desenvolvido?

Madalena: Nas palestras e falas que passei a fazer depois da publicação do livro A paixão de conhecer o mundo, com frequência me jogavam na cara no final da conversa "você só conseguiu fazer todo esse incrível trabalho porque você estava com filhos de pais liberais, você estava com a classe média, você lidava com alunos privilegiados de uma escola particular, de elite. Eu queria ver você com os meninos pobres". Num certo momento aceitei o desafio e falei: "então eu vou trabalhar com esses meninos”. Estava disposta a provar, para os outros e para mim mesma, que era possível realizar o mesmo trabalho com as crianças moradoras de regiões periféricas.

Na época, morava perto do bairro Vila Helena, no Município de Carapicuíba. Consegui reunir crianças de diferentes idades e trabalhar com elas diariamente, num galpão improvisado, cedido pela igreja. Eu fui para lá e mergulhei totalmente naquele universo. Foram muitos os aprendizados. Como descrevo no artigo que você se referiu, eu levei cada pedrada! Porque meus vinte e tantos anos de experiência profissional (esse era o tempo de atuação como professoras de crianças que eu tinha naquela época) ruíram. Num primeiro momento, tudo o que eu lançava para as crianças, não dava certo. Os meninos não estavam nem aí para o que eu falava. Tudo dava errado! Você não imagina o meu desespero, o meu pânico! Pensava "meu Deus como é que pode!". Até que um dia descobri. Eu estava imitando o meu próprio modelo de atuação que fazia com crianças da classe média. Então só podia dar errado. Aquela era uma outra realidade.

Teresa: Mas apesar de ter constatado diferenças abissais entre as duas realidades, os seus princípios pedagógicos permanecerem os mesmos. Você não renunciou ao seu papel mediador e educador. Ao contrário, se preocupou em adaptar suas práticas e buscou entender a história de cada criança, suas necessidades e interesses. Eu me lembro muito da história do Tom-Tom, que você relata no artigo, aquele que o pai dizia, "pode sentar a mão nele porque ele é terrível". Nesse caso você fez um impressionante trabalho de acolhimento e de integração do moleque “endiabrado”. Uma experiência exemplar.

Madalena: Pois é. Foram tempo de grandes aprendizados. Hoje avalio que foram essas experiências que confirmaram a minha escolha pela prática pedagógica, pelo enfrentamento dos desafios que a realidade nos coloca, a cada dia. Penso que essas experiências me diziam: você está viva, fica aí mesmo, não vai para lá. E eu tenho impressão de que talvez, se eu tivesse ficado na universidade, eu não teria feito tudo o que eu já fiz.

Teresa: E que bom que você enveredou por um outro caminho. Nada contra universidade, eu sou professora da universidade há muitos anos e sei a importância que ela tem. Mas acho que o caminho alternativo que você trilhou, acabou trazendo grandes contribuições para todos nós. A socialização dos seus registros sobre a prática, suas reflexões sobre o que é fazer um diário, o que é fazer um relatório, o que é planejar, e, sobretudo, o que é colocar o afeto, de fato, no centro do ato pedagógico, tudo isso nos ensinou tanto! E sei que essa não é uma opinião individual. Muita gente pensa como eu.

Madalena: Eu também não tenho nada contra a universidade, contra a vida acadêmica. Ao contrário. Agora, tudo isso que você salienta está relacionado a possibilidade dessa construção, desse caminho que eu acho que eu assumi, escolhi e de certa forma mostrei, não é? O que eu penso de mais importante é que todo mundo pode e é capaz de seguir ou ser esta professora. Todo mundo é capaz de ter a sua prática, a sua autoria e sua história pedagógica na mão. Todo mundo pode. Isso não é atributo de alguém que lá em cima teoriza e tem três livros e isso e aquilo. Talvez a mensagem principal que fica é a seguinte: Assuma o seu mundinho, seu pequeninho, o seu possível e o seu sonho que está sendo partejado e criado diariamente. Sua experiência tem valor.

Teresa: Sua posição tem uma importância inestimável. Você propõe uma valorização radical da prática, e ao fazer isso, acaba estimulando a autonomia, a autoria e a autoridade docente.

Madalena: Nenhum educador é autor ou tem a sua autoria na mão se renunciar à reflexão cotidiana da prática. A reflexão cotidiana da prática é teoria e prática que você assume no dia a dia. E é neste movimento, neste caminho que você vai assumindo o que pensa, o que faz, o que diz e o que mostra, não é? Que é muito diferente daquele educador alienado que teoriza e blá, blá, blá, blá, não tem língua própria, tem citações, não é? E está apenas se nutrindo de modas pedagógicas. Agora Vigotski, joga fora Piaget. Agora Reggio Emília, agora é a tal, como é que é o negócio agora? Documentação, metodologia ativa... E eu penso: meu Deus do céu como é que fica a autonomia e a autoria do professor? Como é que pode existir essas propostas sem reflexão? Então, eu vejo que o livro A Paixão de conhecer o mundo funcionou como uma amostra, um exemplo: "olha aqui, o autor, a força está com cada professor". Por isso que eu digo, cada professor pode. Agora reconheço que é trabalhoso.

Teresa: Além de chamar a atenção para a força de cada professor, você também dá muita importância para a reflexão em grupo, entendido como espaço de troca que possibilita o intercâmbio, o apoio e a solidariedade.

Além de destacar o papel mediador dos coordenadores e diretores, você insiste na necessidade de que haja espaço no cotidiano das escolas para que essas reflexões em grupo ocorram, não é?

Madalena: Sim, isso é muito importante. Eu costumo dizer que estudar, a gente pode estudar sozinho. Agora, conhecer, só no grupo. Porque conhecimento se constrói com sujeito que assume o que pensa, não é? Mas você não conhece fora do grupo, você copia. Me apoiando em Vigotski, afirmo: conhecimento se constrói na interação, na diferença, na semelhança, nas divergências e nas concordâncias do grupo. É por isso que defendo que a formação do educador tem que estar na mão dos educadores, como diz o Antonio Nóvoa, entre os profissionais e dentro da escola. Agora isso é uma verdadeira revolução, porque, quem é o professor dos professores? Creio que os coordenadores e diretores tem um papel muito importante nesse processo. Eles são os professores dos professores, são mediadores. Portanto, precisam assumir sua classe, ter o registro sobre o processo de formação de cada professor e do grupo de professores. Mais do que isso, ensinar os professores a pensar, a refletir sobre suas práticas e também a socializar essas reflexões com o grupo de educadores da escola. Se esse papel não for exercido, os professores ficarão abandonados. Abandonados no seu pensar, no seu processo de construção de conhecimentos.

Enfim, o pensar é uma construção que só é possível a partir da reflexão sobre a prática, do estudo conjunto. Esses exercícios devem ser aprendidos. E isso não deve ser confundido com as temerárias propostas de reciclagem, treinamento, capacitação, que muitas vezes consistem em assistir palestras e participar de eventos. A palavra já diz: é vento.

Teresa: E qual é a importância do registro da prática e das reflexões sobre ela?

Madalena: A grande arma de luta é o registro da reflexão, é o registro reflexivo. Hoje, já com 16 anos no curso de formação de professores do Pro-Saber, este é um ponto pacífico para mim e para toda a equipe que trabalha comigo. É interessante observar que, na experiência da Vila Helena, quando eu comecei a formar as duas professoras da comunidade, elas não valorizavam a escrita, a reflexão sobre a prática, sobre o que aconteceu no dia. Elas diziam "não precisa escrever, não. Eu guardo tudo na cabeça. Eu não preciso registrar nada." Elas diziam que não queriam escrever porque não sabiam, porque não tinham tempo etc. Diante disso eu propus: "bom, então você vai falar, porque falar você sabe, não é?" A partir daí comecei a funcionar como escriba, anotando o que falavam. Me esforçava para que entendessem que, para além da função comunicativa, quando a pessoa fala ela se posiciona, defende um ponto de vista. Tais registros eram socializados com todos os educadores envolvidos e explorados no início de cada reunião sobre a prática pedagógica. Não importa que era por meio da oralidade, o importante é que começavam a reconhecer o quanto esse registro era crucial, porque provava que cada uma era capaz de pensar, refletir e teorizar. É por isso que defendo que o germe da teoria está no registro da reflexão sobre a prática realizada.

Teresa: Claro, toda a prática enseja uma teoria. Assim como toda a teoria traz implicações para a prática. A posição que você defende é revolucionária demais para os problemáticos dias de hoje. Tenho a impressão que, cada vez mais, o que se promove é a negação total da autoria, já que os professores são frequentemente obrigados a executar programas feitos por outrem. São pacotes prontos, apostilas, plataformas online, cursos rasos (ministrados até por whatsapp!) que determinam que o papel do professor é apenas o de reproduzir o que já está pré-determinado e definido.

Madalena: Mas Teresa, eu acho que foi sempre assim. Talvez esse quadro tenha se agravado, mas o roubo do desejo, da capacidade de pensar, da possibilidade de autoria do educador sempre existiu.

Teresa: Sim é verdade. Mas vamos explorar mais essa sua metodologia de trabalho com os docentes. A longo do tempo você vem construindo um modelo de formação pedagógica audacioso, com o potencial de fazer com que cada educador viva seu processo com autoria, autonomia e autenticidade. Além de valorizar o papel da arte e da emoção no processo educativo, você reconhece que o educador (seja ele um professor, coordenador ou diretor) é um profissional do conhecimento, um estudioso, um intelectual que necessita de ferramentas, recursos apropriados para realizar sua tarefa. Quais são esses instrumentos?

Madalena: Entendo que são necessários quatro instrumentos metodológicos. São eles: a observação, a reflexão da prática/teoria, a avaliação e o planejamento. Creio que eles possibilitam o exercício sistemático da reflexão para a construção e apropriação da disciplina intelectual. Para mim esses instrumentos metodológicos sempre foram e vem sendo, cada vez mais, as armas de luta cruciais do processo de formação e para a gestão desse autor. O educador estando em qualquer função na escola (professor, coordenador, diretor) é um profissional do conhecimento, um estudioso, um intelectual – seu compromisso está em promover que seus alunos entrem em contato com seu próprio processo de conhecimento. Para isso, a disciplina intelectual é a ferramenta básica. Assim como um pedreiro necessita de ferramenta para levantar uma casa, o educador necessita de instrumentos metodológicos para a construção permanente da disciplina intelectual, para o estudo permanente que alicerça sua autoria e autonomia.

Teresa: Então vamos falar do primeiro instrumento metodológico: a observação. Qual é a sua importância?

Madalena: A observação demanda/envolve a atenção, a escuta na reflexão de quem admira, contempla a realidade. O ato de observar exige estar por inteiro, encarnado na presença. O ato de estudar começa na observação que demanda atenção, escuta, presença e reflexão. Estar presente, no presente, enquanto presente da vida…, que me exige exposição, para ser visto, por esse olhar do presente. Simone Weil afirma que toda “atenção deveria ser o único objeto da educação”. A atenção é um ato de generosidade e abertura para acolher o mundo. A atividade da observação é o planejamento da avaliação. A observação focada é um ato de metacognição: processo mental, interno, pelo qual o sujeito toma consciência dos diferentes aspectos e movimentos de sua atividade cognitiva. Por meio desse processo, o sujeito toma distância reflexiva, e por isso mesmo é uma atividade do seu processo de aprendizagem. É um movimento constitutivo para o desenvolvimento da autonomia, por ser um instrumento de regulação, conduzido por aquele que aprende.

É na socialização das observações de cada um, que se opera um diálogo interno, alimentado pela linguagem do outro, favorecendo assim o conhecimento de si. A observação envolve o ver, o olhar e o enxergar. Podemos ter a visão, mas isto não significa que olhamos, enxergamos. Olhar, enxergar, vai além do ver. Olhar é mais do que ver; é enxergar, decifrar o sentido, é ler, ir além do visto, além da vista, da visão…

Recorrerei às categorias do filósofo Charles Pierce para explicar a dinâmica do processo. Ao vermos, na visão primeira, de “primeridade”, ficamos nas aparências, na superficialidade, na primeira impressão, colados às situações, sem distanciamento reflexivo. O desafio é conquistar um olhar de “secundidade”, em que superamos as aparências, apuramos uma reflexão, um distanciamento e, por isso mesmo, tecemos uma interpretação, leitura dos sentidos, significados, do que conseguimos enxergar, interpretar. Neste sentido, a ação de observar é sempre diagnóstico-avaliativa.

Este exercício de aprender a olhar, enxergar, exige concentração e foco, escuta e recolhimento e silêncio: para poder escutar o externo e comunicar-se internamente, o que exige tranquilidade na intranquilidade. E, para isto, serenidade e paciência. Exige também escrita: registro do que o educador escuta, interpreta, pensa e dúvida.

É por isso que digo que a observação exige foco. A observação focada é estudo, reflexão sobre os sentidos e significados. Deste modo, ela é sempre diagnóstica, avaliação da realidade. Os focos são chamados por mim de pontos de observação. Seus focos estão direcionados para os elementos de toda aula, de todo ensinar, que são: a própria aprendizagem do educando, a dinâmica com a qual o grupo constrói a aula e o ensinar do educador (coordenador).

Teresa: Por favor, explique melhor o que você está chamando de pontos de observação.

Madalena: Observar é focar o olhar, a escuta e o próprio silêncio numa ação reflexiva, avaliativa, sobre elementos da prática que se quer pesquisar, estudar. Os focos da observação estão centrados no próprio processo de aprendizagem, na dinâmica do grupo e no ensinar do educador. O ponto de observação é uma atividade essencialmente avaliativa, mas também é o planejamento da avaliação, a ser desenvolvida no final da aula, quando cada participante socializa o que observou sobre os focos determinados.

O ponto de observação direciona o exercício da autoavaliação, entendida como autorregulação, ou seja, aquela atividade em que o educando tem como desafio refletir sobre seu processo de aprendizagem, buscando um olhar distanciado, crítico sobre o que vive enquanto participa da aula.

A observação, com seus focos, delimita o que queremos pesquisar, refletir, estudar. Por isso mesmo ela traz o germe da avaliação. Ela diagnostica o que cada um e o grupo sabe – zona real do conhecimento – e o que ainda não conhece – zona proximal do conhecimento, na perspectiva de Vigotski. O desafio, portanto, é que o educando seja levado a uma tomada de consciência sobre o seu próprio processo de aprendizagem, podendo assim romper comportamentos estereotipados, viciados, como numa repetição de hábitos, mecanicamente.

Todo processo de tomada de consciência opera num diálogo interno com nós mesmos e, ao mesmo tempo, alimentado pela linguagem dos outros. Por tudo isso, é fundamental que na avaliação, no final da aula, cada participante posicione-se, socializando sua observação (avaliação) trabalhada durante o decorrer da aula.

São situações distintas aquelas onde o educador faz devoluções para seu educando sobre os desafios a enfrentar em seu processo de aprendizagem, daquela onde o próprio educando expõe, assumindo-se diante do grupo, socializando seus desafios e impasses em relação ao seu processo de aprendizagem.

O ponto de observação busca assim que cada educando assuma sua própria aprendizagem, enquanto autores do processo e, por isso mesmo, vá dependendo cada vez menos da regulação externa do educador. Neste sentido, é uma atividade que alicerça o exercício permanente da construção da autonomia.

Teresa: Agora peço que explique o segundo instrumento metodológico: o registro reflexivo.

Madalena: Pensar é marca humana. Não cessamos de pensar, mas pensar é uma coisa; outra, muito diferente, é refletir. Refletir é o apuramento do pensar; é lapidar o próprio pensamento.

Nesta concepção, em que se busca uma relação democrática, o pensar é arma de luta, que fundamenta a autoria e a autonomia. Pois pensar é perguntar, duvidar, procurar e criar hipóteses que serão testadas no agir, no fazer do dia a dia. Pensar e agir compõem a ação pensante, atenta no cotidiano, gestando experiências, mudanças e transformações. É a reflexão sobre a prática que produz a tomada de consciência amorosa, pedagógica e política. Nesta linha, o educador é um militante “caminhante” (como diria Walter Benjamin) pedagógico, que se mantém atento, na sua presença presente, em vigília reflexiva e estudiosa, da prática e, por sua vez, da teoria que pratica.

O registro (escrito), por sua vez, é arma de luta nesse processo de apurar o próprio pensar. Entendo que há vários tipos de registro: no ato, após (as notas imediatas e a síntese sobre a aula), a reflexão temática.

(desenvolvimento de um conteúdo da aula) e o relatório (bimestral, trimestral) sobre o trabalho do grupo e sobre os processos individuais de cada educando.

O registro reflexivo (síntese) sobre a aula está pautado nos focos que regem toda aula, ou seja, no planejamento das atividades, nos conteúdos trabalhados, na dinâmica do grupo, na aprendizagem dos educandos e na avaliação do próprio ensinar.

O registro reflexivo (síntese da aula ou reflexão temática) obriga a focar, priorizar o estudo, numa ação permanente de análises comparativas, a interpretar e fundamentar o próprio pensamento. É nesse sentido que o registro reflexivo apura o próprio pensamento, gestando assim uma tomada de consciência e, portanto, um rompimento da alienação cotidiana.

Contudo, não basta registrar para si, somente. É vital a comunicação com o outro, o parceiro. A reunião entre iguais, coordenada por um educador (coordenador) é fundamental nesse processo de conscientização.

Teresa: E a avaliação, que você considera o terceiro instrumento? Qual é o seu papel nesse processo?

Madalena: Na ação de avaliar pensa-se o passado e o presente para poder construir o futuro. Nesta concepção de educação, portanto, a avaliação é vivida como processo permanente de reflexão cotidiana na construção do produto. É neste sentido que o ato de avaliar é processual. Acontece no processo permanente de rever, refletir o passado para reconstruir o futuro no presente.

Aprender a avaliar é aprender a modificar o planejamento. No processo de avaliação contínua, o educador agiliza sua leitura da realidade, podendo assim criar encaminhamentos adequados para o constante ato de recriar o planejamento.

Observando, analisando e planejando seu cotidiano, o educador alicerça sua disciplina intelectual para a apropriação de seu pensamento teórico. Não há ação educativa que prescinda de diretividade. No nosso ensinar a diretividade é mediada pelo exercício dos instrumentos metodológicos: da observação, da reflexão, da avaliação e do planejamento.

O processo de avaliação inicia-se na observação e por sua vez os focos a serem observados constituem o planejamento da avaliação. A avaliação retoma os focos do planejamento e estuda o processo vivido, seus impasses e conquistas – que produto foi alcançado. É neste sentido que toda avaliação é processual, acontece a cada aula, constituindo assim o embrião do planejamento da aula seguinte.

A reflexão faz a costura, a sistematização entre estes três movimentos: da observação para a avaliação e desta para o planejamento, e, outra vez, reinicia-se a observação, a avaliação e o próximo planejamento. É neste exercício disciplinado, que conseguimos sintonizar com os significados e faltas do grupo, tendo oportunidades de construir uma aprendizagem significativa, tanto com nossos alunos como com nós mesmos, no nosso ensinar.

Nesta concepção de avaliação, portanto, está implícito que é processual e diagnóstica, muito distinta da visão autoritária, em que ela é autopsia…. pois estão em des-sintonia com o processo vivido… Sendo assim nesta perspectiva a atividade da avaliação acontece em toda aula e é constituída por dois movimentos: o primeiro, que resgata, recupera os conteúdos da disciplina estudados; o segundo, que resgata os conteúdos dos sujeitos, segundo o ponto de observação na aprendizagem. Mas também se resgata a avaliação de como o grupo construiu a aula, que entraves, impasses houve na sua dinâmica.

Avalia-se também o ensinar do educador (coordenador), pois todos estão implicados e o educador também se avalia no seu ensinar. O modelo de um educador que recebe as críticas de seus educandos sobre seu ensinar aprende a ensinar melhor. Um aluno que aprende a ensinar, observando e avaliando um educador que está aberto às críticas também aprende a ser melhor educando e mirar-se num modelo de educador democrático. Toda atividade de avaliação, no final da aula, desemboca no planejamento para a próxima aula. É neste sentido que todo planejamento nasce na avaliação.

Teresa: Agora chegamos naquilo que você considera o quarto instrumento metodológico de todo esse intenso processo: o planejamento.

Madalena: Pois então. O planejamento tem seu nascimento na avaliação da aula anterior. Todo planejamento é uma hipótese, porque antes de entrar em aula, ele está no terreno do sonho, somente na imaginação. É na interação com (o real) os alunos, o grupo, que se inicia a aterrissagem… ou seja, avalia-se, questiona-se sobre o sentido de seguir a hipótese planejada ou se seria necessário remanejamentos, pelos inusitados: por exemplo – muitas ausências, nem todos fizeram a tarefa etc.

É neste sentido que o ideal é entrar em aula com duas hipóteses possíveis de planejamentos… quanto mais nosso olhar é alargado para os inusitados, mais agilidade teremos para re-criar o planejamento. É deste modo que a pré-visão do (sonho) do planejamento vai aterrissando no real, possível a ser seguido, executado. Nesta concepção, o planejamento liberta o voo para a criação e recriação permanente da aula.

Teresa: Madalena, e o papel da arte? A arte educa?

Madalena: Sem dúvida, porque a arte é o que alimenta a alma, é o que alimenta esse processo de construção e de aventura em que a gente se lança. E pelos mais variados motivos a arte nos fisga. E é por isso que, sem a arte, a gente morre.

Teresa: Sobretudo nos tempos atuais...

Madalena: Sem dúvida! Nesses tempos de paixões tristes, de paixões tenebrosas, a arte nos impede de enlouquecer, de morrer. Vivemos tempos nefastos, de muito conservadorismo. É duro ver o Brasil regredindo 50 anos atrás. Mas por mais difícil que seja eu não nego esse tempo porque a realidade é a realidade, não adianta você xingar nem adianta você sair com pedras na mão. Esta está sendo uma ocasião para reconhecermos (sobretudo nós, educadores) o quanto nós estávamos (e estamos) distantes de um Brasil desconhecido para todos nós. De um Brasil atrasado, de um Brasil ignorante, de um Brasil preconceituoso, de um Brasil escravocrata. Agora não tem como fechar os olhos. Ele está aí.

E é um tempo de provação. Eu não tenho nada de religioso falando essa palavra. É um tempo de provação no sentido de reconhecer: "olha, é isso". Temos que sonhar a partir disso, temos que resistir a partir disso, temos que nos rebelar a partir disso.

Teresa: Recentemente você participou de um livro muito interessante organizado por nossa colega Anete Abramovich (ABRAMOVICH; PRAK, 2021). O volume reúne reflexões sobre as experiências vividas na pandemia de uma série de mulheres de uma mesma geração que lutaram muito para sair de casa, para conseguir autonomia financeira, reconhecimento profissional. Com a necessidade do distanciamento social, essas mulheres foram obrigadas a voltar a ficar dentro do ambiente doméstico. No seu texto você trata da difícil (e nobre) tarefa de educar (ainda que a distância) e se pergunta: “Como permanecer humano sem o toque, na lonjura do isolamento? Como ensinar sem o corpo a corpo, sem o calor do toque que acalma, acalanta, acolhe?” E agora te faço outra pergunta: sabemos que a pandemia acirrou problemas crônicos que já vivíamos no contexto educacional brasileiro. O modo desigual como os alunos das diferentes classes sociais viveu o isolamento (em termos de condições de moradia, acesso à equipamentos etc.) é um bom exemplo. Sabemos também que o afastamento de alguns alunos mais pobres significou uma quebra de vínculo com os educadores e até um rompimento com a escola. Qual é o balanço que você faz de toda essa experiência?

Madalena: Sim, a Anete fez um belo livro. A experiencia do isolamento social foi muito sofrida. Todos nós tivemos que nos reinventar. Num breve intervalo de tempo tivemos que nos adaptar à vida virtual, conviver com os excessos do mundo digital, mas ao mesmo tempo, aprendemos muito com tudo isso, não é? Tivemos que enfrentar os desafios e limitações do ensino remoto, da comunicação online. A realidade é que a grande maioria dos adolescentes e das crianças da classe popular foi banida pela desigualdade. Poucos conseguiram, de alguma maneira, acompanhar online.

A situação foi toda muito delicada pelo seguinte: a escola (que é um espaço público) invadiu o espaço privado que é a casa de cada um. E vice-versa: a casa, o ambiente doméstico, também invadiu o espaço, a cultura escolar. As câmeras abertas (e as discussões em torno disso) testemunharam essa invasão mútua. E claro, tudo isso rendeu muitos conflitos!

Quando me perguntavam sobre o que fazer diante desse complexo quadro eu dizia: o que precisa ser explicitado com toda força e com toda energia para os educandos, para os alunos é o seguinte: "a escola quer você. Então o seu desafio é: organize o espaço público da escola na sua casa. Infelizmente, e felizmente, eu estou pedindo para você se organizar. No banheiro, na laje, no terraço, em cima da sua cama. Aonde for, o que é importante é que você respeite o espaço público de sua aprendizagem e que respeite você mesmo, o seu processo de construção de aprendizagem."

Do ponto de vista dos educadores procurei chamar a atenção para a dimensão sagrada do conhecimento. O conhecimento salva, então o educador que não se posicionar, não se engajar nessa luta e no envolvimento com o sagrado que é construir, que é conhecer, não vai conseguir fazer nada. E a outra coisa que vai junto, vitalmente, com tudo isso, é o vínculo com cada um. A grande dificuldade de ensinar e aprender é que eu só aprendo por amor ou por ódio. Na indiferença, eu não aprendo. É por isso que o estabelecimento ou a manutenção de vínculos na experiencia remota foi um dos principais desafios a ser enfrentado.

Teresa: Por favor, aproveito para pedir que você explique o programa de formação que você atua como diretora pedagógica no Pró-Saber. É um curso gratuito de especialização para educadores de educação infantil, não é? Como foi a experiência on-line?

Madalena: O Pró-Saber é uma faculdade particular gratuita que trabalha pela valorização da educação, que defende e dá prioridade à classe popular. Desde 2004, formamos professores que trabalham em creches da rede pública do município do Rio de Janeiro, cujo trabalho beneficia, direta e indiretamente, cerca de 4.000 crianças de até 6 anos em 133 creches de 67 comunidades. A maior parte dessas creches estão situadas nas favelas do Rio de Janeiro. O curso é grátis e tem a duração de 3 anos.

No Pró-Saber, durante a pandemia, as aulas foram pela internet e pelo WhatsApp. E a luta foi, "organize-se, você é crucial, você é importante, você é vital para o seu conhecimento, você é o autor desse trabalho". Teve gente que se escondeu no banheiro, gente que se fechou dentro do armário para ter alguma privacidade.

Teresa: Gostaria de encerrar essa entrevista falando de esperança. Pode ser uma boa maneira de homenagearmos o seu pai, que tanto defendia a pedagogia da esperança, capaz de denunciar o problema e, simultaneamente, de anunciar o novo, a saída. Num encontro realizado um pouco antes da pandemia, você tratou da seguinte questão: "como atravessar e como enfrentar tempos sombrios". Na ocasião, você fez colocações muito esperançosas, cheia de energia, garra e otimismo. Depois de tantas mortes decorrentes do Coronavírus que poderiam ter sido evitadas, depois dos difíceis meses de isolamento social, depois do agravamento dos problemas econômicos e sociais de nosso país (decorrentes do total descaso de nossos governantes com a vida, com a cultura e a educação), você continua pensando da mesma maneira? Você ainda tem esperanças?

Madalena: Exatamente, exatamente. Eu continuo pensando o mesmo. O que enlouquece e o que mata é o velado. É crucial desnudar, confrontar, reconhecer a realidade. Por mais dura que seja. Mas não enlouquece se a gente souber se preservar para não esmorecer. Não com a paixão triste, como dizia Espinosa, no medo. É a gente se preservar para não se deixar contaminar com esta paixão triste. E preservar, às vezes, significa esconder ou não falar tudo o que você pensa. Se preservar no sentido de manter a paixão de alegria, a paixão de vida, do humano, da fé nessa aposta, do sonho e da criação. Em outras palavras, é fazer da alegria um ato de fé, um ato de resistência.

Teresa: Madalena, quero te agradecer, mais uma vez, por ter aceitado participar dessa entrevista. No começo dos anos 1980, quando eu era muito jovem e estava iniciando a minha carreira como educadora, participei, como sua aluna, de suas primeiras experiências de formação docente, nos famosos grupos de reflexão que você coordenava na simpática casa da Rua Turi, na Vila Madalena em São Paulo. Desde nosso primeiro encontro me sinto muito privilegiada por ter tido a sorte de te conhecer. Saiba que você foi (e ainda é) uma grande referência para mim. E, pelas manifestações efusivas no chat da plateia que nos escuta, é grande o público que te admira. Muito obrigada por tua generosidade, carinho, respeito e principalmente, por você ser essa pessoa tão humilde, tão generosa e tão importante para nós da educação brasileira. Muito obrigado, do coração.

Madalena: Teresa, eu aceitei esse encontro porque sabia que ele me levaria (como de fato me levou) a uma relação de amor, de acompanhamento, de vida de professora e de vida de aluno inesquecível. Passaram-se 40 anos que a gente não se via. Nesse período não nos encontramos, apenas nos lemos. E você ainda continua na minha frente, aquela menina de 17 anos, cheia de curiosidade, cheia de agonia, cheia de busca. Para mim esse encontro foi uma gratificação e uma homenagem a nós duas, a Faculdade de Educação da USP e também uma homenagem, obviamente, a meu pai.

Como você sabe, eu não costumo aceitar esse tipo de convite porque eu prezo pela minha privacidade, pela minha intimidade (no sentido que expliquei anteriormente). Mas gostei. E gostei muito porque você fez, de modo muito amigo e generoso, perguntas que foram centrais, que pontuaram fatos importantes do meu processo profissional. Eu agradeço imensamente a todos: a você, aos organizadores e ao público que nos assistiu. Muito obrigada para todos vocês.

Nota

11 O encontro pode ser assistido no seguinte endereço: https://www.youtube.com/watch?v=ZazvCI2FBwQ. Maiores informações sobre o evento podem ser obtidas na página da FEUSP: http://www4.fe.usp.br/ano-100-paulo-freire/ano-100-com-paulo-freire-na-feusp.

Referências

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FREIRE, Madalena. A paixão de conhecer o mundo. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 21. ed. 2008. [ Links ]

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Disponível em: http://www.prosaber.org.br/comunidade/?p=4320. Acesso em: 23 jun. 2021. [ Links ]

FREIRE, Madalena. O inédito é viável? Formação de professores da educação Infantil na pandemia (coord.). Pró-saber, 2021. [ Links ]

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‎MELLO, Sylvia Leser de; FREIRE, Madalena. Relatos da (con)vivência: crianças e mulheres nas famílias e na escola. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 56, p. 82-105, fev. 1986. [ Links ]

Prof.ª Madalena Freire

Instituto Superior de Educação Pró-Saber - Rio de Janeiro

Diretora pedagógica do Curso de Especialização em Educação Infantil

Email: madalenafreire@gmail.com

Prof.ª Titular Teresa Cristina Rego

Universidade de São Paulo

Faculdade de Educação

Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq

E-mail: teresare@usp.br

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-1164-8094

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